O PARADOXO DO TEMPO NAS HISTÓRIAS DE - neauerj.com · Para isso, propomos uma aproximação com a...

14
241 O PARADOXO DO TEMPO NAS HISTÓRIAS DE HERÓDOTO Fábio Feltrin de Souza 1 RESUMO Este artigo tem por objetivo examinar o paradoxo do tempo da obra Histórias, de Heródoto de Halicarnassos. Para isso, propomos uma aproximação com a filosofia e a sofística dos séculos V e IV, investigando o desvio operado no pensamento grego e a emergência de uma experiência do tempo, em que chronos e aion, dessacralizados, passaram a conviver de maneira paradoxal. Palavras-Chave: Histórias; Tempo; Grécia Antiga; Paradoxo. ABSTRACT This article aims to examine the paradox of time the Histories of Herodotus of Halicarnassos. We propose an approach to philosophy and sophistry of the fifth and fourth centuries, investigating the diversion operated in Greek thought and the emergence of an experience of time that chronos and aion, desacralized, started living paradoxically. Key-words: Histories; Time; Ancient Greece; Paradox. 1 Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor Adjunto II do curso de História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Atualmente desenvolve o projeto de pesquisa intitulado Comunidades Traumatizadas: uma Arqueologia da Imagem. E-mail: [email protected]

Transcript of O PARADOXO DO TEMPO NAS HISTÓRIAS DE - neauerj.com · Para isso, propomos uma aproximação com a...

241

O PARADOXO DO TEMPO NAS HISTRIAS DE

HERDOTO

Fbio Feltrin de Souza1

RESUMO Este artigo tem por objetivo examinar o paradoxo do tempo da obra Histrias, de Herdoto de Halicarnassos. Para isso, propomos uma aproximao com a filosofia e a sofstica dos sculos V e IV, investigando o desvio operado no pensamento grego e a emergncia de uma experincia do tempo, em que chronos e aion, dessacralizados, passaram a conviver de maneira paradoxal. Palavras-Chave: Histrias; Tempo; Grcia Antiga; Paradoxo. ABSTRACT This article aims to examine the paradox of time the Histories of Herodotus of Halicarnassos. We propose an approach to philosophy and sophistry of the fifth and fourth centuries, investigating the diversion operated in Greek thought and the emergence of an experience of time that chronos and aion, desacralized, started living paradoxically. Key-words: Histories; Time; Ancient Greece; Paradox.

1 Doutor em Histria Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor Adjunto II

do curso de Histria da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Atualmente desenvolve o projeto de pesquisa intitulado Comunidades Traumatizadas: uma Arqueologia da Imagem. E-mail: [email protected]

242

Um certa concepo de Histria parece estar sempre acompanhada por uma

experincia de tempo (AGAMBEN, 2005: 111). A concepo hegemnica que a

antiguidade greco-romana construiu para o tempo fundamentalmente circular e

contnua. Dominada por uma ideia de intelegibilidade que assimila o ser quilo que

em si e permanece idntico a si mesmo, ao eterno e ao imutvel, o grego considera

o movimento e o devir como graus inferiores da realidade, em que a identidade no

mais compreendida seno como permanncia ou, ainda, como recorrncia. O

movimento circular que assegura a manuteno das mesmas coisas atravs da sua

repetio e do contnuo retorno, a expresso mais perfeita e imediata daquilo que

se abre como eterna imobilidade.

No Timeu, Plato argumenta que o tempo, medido pelas revolues cclicas

das esferas celestes, definido como imagem da eternidade imvel e una. Joseph

Moreau assim definiu as ponderaes do filsofo:

C'est cependant une tout autre dfinition du Temps que l'on retient ordinairement de ce dialogue : le Temps serait, selon une formule clbre, une image mobile de l'ternit. Platon explique que le cours mobile du Temps est rythm par les rvolutions clestes, et c'est alors qu'il dclare qu' la rvolution de chacun des orbes clstes correspond un temps dtermin : le jour la rvolution de la sphre des toiles fixes, le mois la rvolution de la Lune, l'anne celle du Soleil; et de mme, la rvolution de toutes les autres plantes correspond un temps dtermin, bien qu'il ne soit pas dsign par un nom particulier, comme le jour, le mois, l'anne, ce fait, en ce qui concerne les plantes autres que le Soleil et la Lune, tant inconnu de la plupart des hommes. Il est manifeste que dans ce passage Platon n'entend pas dfinir la nature du Temps en gnral ; il signale seulement que la priode de rvolution de chaque plante est un temps, peut tre prise pour unit de temps. (MOREAU, 1948: 60).

Aristteles reafirma o carter circular do tempo. Para o filsofo de Estagira,

o tempo parece ser o movimento da esfera, porque seria este movimento a medir

outros movimentos, inclusive o tempo. Tempo, suspeita o filsofo, parece ser uma

243

espcie de crculo. Uma primeira consequncia dessa viso que podemos apontar

de que o tempo, sendo essencialmente circular, no tem direo. Dessa forma, no

tem incio, centro, ou fim. Ele os tem somente na medida em que, em seu

movimento circular, retoma incessantemente sobre si mesmo. Isso facilmente

percebido numa passagem de Problemas, de Aristteles, em que o filsofo afirma

ser impossvel saber, desse ponto de vista, se somos anteriores ou posteriores

guerra de Tria. Isso porque, ao indagar-se sobre os fins e os incios, Aristteles

pondera que a sequncia dos acontecimentos um crculo. Impossvel, devido a

uma maior proximidade do incio, saber se somos anteriores Tria, ou posteriores

a ela.

A imagem circular do tempo e sua noo de eternidade e imobilidade, bem

definidas em Zeno de Elia e depois em Plato, tem sua correspondncia nos

orculos. O jogo da adivinhao s possvel por conta da circularidade do tempo.

Em transe, o sacerdote despe-se da iluso da matria e tem acesso ao depois que

nada mais do que o que j foi um dia. Essa a noo mais conhecida da

experincia do tempo na antiga Grcia. Entretanto, ela no parece ter sido to

triunfante quanto desejou uma certa historiografia, afeita homogeneidade.

Pretendemos investigar a convivncia paradoxal desta perspectiva de tempo, do

tempo da eternidade (aion), com uma outra, mais humana, ligada ao fluxo, ao passar

do tempo, ao chronos. Suspeitamos que esse paradoxo esteja presente nas Histrias

de Herdoto e em toda produo filosfica e sofstica dos sculos V e IV a. C..

Na Fsica, Aristteles nos apresenta uma outra concepo de tempo, no

mais circular e retornvel, mas um continuum pontual, infinito e quantificado. O

tempo definido como nmero de movimentos conforme um antes e um depois

e sua continuidade garantida pela sua diviso em instantes (t nyn, o agora)

inextensos, anlogos ao ponto geomtrico (stgm). O instante, em si, nada mais

seria do que a continuidade do tempo (syncheia chrnou), um puro limite que

conjuga e divide passado e futuro. Esse instante sempre o outro, na medida em

244

que o tempo dividido ao infinito e, contudo, sempre o mesmo, na medida em que

une o porvir e o passado, garantindo sua continuidade. Essa sua natureza

fundamento da radical alteridade do tempo e de seu carter destrutivo, visto que o

instante , simultaneamente, incio e fim do tempo, no da mesma poro dele, mas

fim do passado e incio do futuro, num movimento que est sempre prestes a

comear e a terminar. Com isso, afirmar que os antigos gregos no possuam uma

experincia do tempo vivido soa-nos simplista. Este tempo vivido, humano,

aparentemente linear parece ter convivido com o eterno.

Vrios so os problemas levantados por Aristteles ao longo do seu tratado

do tempo, a Fsica. Inicia perguntando se o tempo existe (ei esti) e, se sim, qual a sua

natureza (ti esti). Ao indagar-se sobre sua existncia conclui que, em primeiro lugar,

ele composto por um passado que j no e por um futuro que ainda no . E

em segundo lugar, o instante, que divide o passado e o futuro, e que apesar de no

ser parte do tempo , no entanto, a sua grande realidade, no pode conservar-se

como um e o mesmo nem ser sempre novo. O movimento j teria o antes e

depois, mas apenas em potncia (REIS, 1996: 147). O tempo enquanto tal parece ser

a pura relao de sucesso. Essa inferncia parece estar em conformidade com

comentadores modernos de Aristteles, como filsofo Joseph Moreau, para quem o

tempo no seria seno a dimenso inerente representao intelectual do

movimento (MOREAU, 1948: 40). Nas suas referncias a Plato, Aristteles reprova

que ele se tenha limitado a contar o tempo segundo os dias, os meses e os anos,

em vez de dizer o que ele (ti esti). Supomos que a unidade de medida no mais

as revolues completas dos astros (os dias, os meses, os anos), antes o instante

inextenso, que desta maneira pode medir toda e qualquer parte dessas revolues,

incluindo as infinitamente pequenas:

En premier lieu, le mouvement ou le changement est la proprit d'un sujet ou d'un mobile particulier, tandis que le temps est commun tous les mouvements ; en d'autres termes, le temps est le substrat universel de tous les mouvements ; sous un

245

mouvement, quel qu'il soit, il y a toujours l'coulement du temps. En outre, tout mouvement particulier est lent ou rapide; il n'en va pas de mme du temps. En effet, le lent et le rapide se dfinissent en fonction du temps: est rapide, ce qui se meut beaucoup en peu de temps; lent, ce qui se meut peu en beaucoup de temps. Mais le temps ne se dfinit pas en fonction du temps, ni comme une certaine quantit, ni comme une certaine qualit. Le Temps n'est donc pas mouvement, c'est l une vidence (MOREAU, 1948: 61).

E por outro lado, partindo do movimento, ao juntar-lhe a diviso segundo o

antes, o agora e o depois, ele parece na verdade, afirma o filsofo da

Universidade de Coimbra Jos Reis, descobrir, pelo menos na Fsica, que o tempo

fundamentalmente uma sucesso continua (REIS, 1996: 196). O pensamento de

Herclito de feso parece fazer coro a essa concepo descrita por Aristteles, na

medida em que este mundo, que o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou

homens o fez; mas foi sempre, e ser um fogo eternamente vivo, que se acende

com medida e se apaga com medida (HERCLITO, 2000: 22). Tudo fogo, tudo

uma constante mudana ( ).

As Histrias de Herdoto, narrativa que mais tarde seria celebrada como o

nascimento da disciplina que hoje chamamos de Histria, parecem evidenciar o

paradoxo do tempo na velha Grcia. Sua enunciao est explcita na abertura:

Herdoto de Halicarnasso expe aqui suas investigaes (histors apdexis), para impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, no se apague da memria e que os grandes e maravilhosos feitos, concludos tanto pelos brbaros quanto pelos gregos, no sejam esquecidos (akle gntai); em particular, a causa (ait) com que gregos e brbaros entraram em guerra uns contra os outros (HERDOTO, I: 1)

Esta apresentao evidencia o intento de combater o carter destrutivo do

tempo. Guardar, pois, para eternidade, feitos nicos, instantes, enfim, aquilo que

no regressar jamais. Histria em grego guarda uma correspondncia com a palavra

conhecer (eidnai). Ambas possuem o mesmo radical id, que significa ver. Hstor ,

246

na origem, testemunha ocular, aquele que viu. Os eventos se esvaem frente

presena do olhar. A escrita das Histrias visam interromper esse continuum

movimento de mudana. Herdoto parecia estar preocupado em preservar aquilo

que devia sua existncia aos homens como uma evocao feita pela posteridade a

respeito das aes de homens que viveram no passado. Nota-se a preocupao com

a imortalidade, pois, a mortalidade era a prpria marca da humanidade, da

existncia no tempo. Os grandes feitos e obras, que ganharam destaque na narrativa

de Herdoto, de que so capazes os mortais no eram, at o sculo V a.C., vistos

como parte do todo, do eterno, mas sim como situaes nicas e isoladas, de pouco

ou nenhum valor memorativo. Nossa hiptese essas situaes nicas, feitos e

eventos, interrompiam o movimento circular.

Herdoto opera aqui uma partilha entre dois tipos de narrativas que

correspondem a duas formas de tempo: h uma narrativa mtica, lendria, sem

cronologia possvel que remete ao tempo afastado dos deuses, heris e homens; e

h uma narrativa histrica (de um tempo investigvel), como referncias

cronolgicas possveis de serem encontradas. O historiador Pierre Vidal-Naquet

afirma que no se trata de uma oposio de tempo cclico e linear, tanto que o

historiador, diferente de Tucdides, parece acreditar nos deuses, embora eles no

tenham valor analtico na obra (VIDAL-NAQUET, 1960). No se trata de negar o

tempo mtico e sagrado, trata-se de recusar seu procedimento narrativo para

descrever o tempo humano, restrito, finito e agora passvel e possvel de ser

conhecido, lembrado, investigado. Ocorre uma dessacralizao da ideia de verdade e

conhecimento. O tempo eterno, antes dos deuses, dessacralizado e convive com o

tempo dos homens.

H tambm uma percepo da verdade e do tempo como no pertencentes

aos deuses, mas o eterno, talvez no o mesmo eterno de Herdoto. A posio de

Plato peculiar e parece vincular-se a outra possibilidade do processo de laicizao

do conhecimento. Jamais a questo da histria ser tratada cientificamente, j que

247

a Histria dos eventos humanos est irremediavelmente imersa na temporalidade,

na concretude, na singularidade, no emprico. Ela pertence, portanto, ao nvel da

doxa, como conjectura, no mximo, da crena; enquanto a epistme se guarda para

permanente, o universal, o atemporal. A epistme enquanto encontro com a

objetividade ao nvel da estabilidade e permanncia supe a ultrapassagem do plano

emprico e da temporalidade das vivncias humanas. O eu epistmico vive alm do

circunstancial, do efmero, do temporal: habita o reino do Aion, na eternidade. O

objeto perfeito do conhecimento seria atemporal. Plato no est, portanto,

preocupado com o Chronos, tampouco com seu lpido irmo, Kairs. Suas

preocupaes recaem sobre o Aion, sobre a eternidade. Pois o conhecimento de l

advindo; no do passageiro, o informe, do falsificado, do simulacro. Nesse sentido, a

histria (por ele rejeitada) est prxima da sofstica, pois ser sempre circunstancial,

sempre no nvel da doxa, jamais da epistme.

Histrias tinha como tema os eventos, isto , algo to extraordinrio que

ultrapassava o movimento circular da vida e que podia atingir uma dignidade capaz

de conferir a esses eventos algum tipo de imortalidade. A busca pelas causas, que no

caso das investigaes de Herdoto levaram guerra de Helenos contra Persas, no

era exatamente algo novo. Afinal, os mitos forneciam as causas pelas quais gregos e

troianos lutaram entre si, e as causas pelas quais ocorreram muitos outros eventos.

A novidade introduzida por Herdoto, assegura Finley, a investigao sistemtica

empreendida para buscar respostas, o que resultou numa narrativa histrica, cujas

explicaes so humanas e, em particular, polticas. Uma gerao depois, Tucdides

levou essas novidades mais longe, insistindo numa narrativa contnua e

cronologicamente rigorosa, numa anlise estritamente secular centrada nos eventos

polticos (FINLEY, 1989: 23). Semelhante aos poetas, Herdoto procurou preservar

do esquecimento os feitos que se passaram. Porm, no foram as Musas, as nove

divindades filhas de Zeus e Mnmosyne, quem lhe informaram o que dizer. Ele

prprio, promoveu suas investigaes cujos resultados foram transformados em

escrita. Promove todo um jogo comparativo entre as informaes orais de diversos

248

povos a que teve acesso, demonstrando uma preocupao em dizer a verdade

(alethia) sobre os atos humanos. Se antes as mentiras (psedea) e as verdades

(alethia) eram acessveis apenas aos deuses que, desse modo, controladores da

imortalidade, tornando os poetas (e adivinhos) seus servos (LIMA & CORDO, 2010:

3), com Herdoto (e os sofistas e trgicos) percebemos um processo de

dessacralizao da verdade, tornando-a passvel de ser alcanada atravs do

exerccio da investigao. Supomos que tanto a verdade quanto a mentira foram

dessacralizadas e ganharam um espao no tempo vivido, das coisas que

aconteceram ou no. Esse impulso est assentando no fenmeno histrico da Plis

clssica, e em particular da Plis ateniense, que, pela primeira vez, apresentou a

poltica como uma atividade humana, transformando-a na mais fundamental das

atividades sociais. Um novo enfoque do passado parecia imprescindvel. Aliado a um

crescente ceticismo operativo observado desde de Demcrito, que, alis, viveu no

mesmo sculo de Herdoto (FINLEY, 1989: 24.).

Segundo Herclito (cuja doutrina parece estar em sintonia no apenas como

Anaximandro e Empdocles, como tambm, ao que parece, com pensamento de

Herdoto) a unidade do ser a prpria harmonia dos contrrios; o constante

processo de transformao e intercmbio dos opostos; o que faz com que tudo

esteja em constante fluxo e nada permanea esttico. Isso ocorreria porque a

natureza (incluindo os homens), segundo Herclito (e Herdoto), coexistiriam os

contrrios em contnua alternncia: a vida e a morte, a doena e a sade, o homem

e a sociedade, a gerao e a corrupo (EIRE, 1990). Reside a uma das principais

marcas das Histrias: a imagem dos gregos construda por Herdoto tem sempre seu

referencial naquilo que lhe diferente, ou seja, nos brbaros. Para Hartog, atravs

do jogo de espelhos, em que os costumes e prticas dos povos brbaros so

comparados com os dos gregos (no com o intento de hierarquizar, mas para

entender o diferente), que Herdoto reconhece seus iguais (HARTOG, 1999). A

imagem construda pelo outro, sob o prisma da diferena, sempre relativa, o que

permite uma compreenso de si mesmo pela verdade relativizada. Verdade,

249

compreendida como revelao (alethia), que no sculo V a.C. j parece estar

dessacralizada. Tanto que para o sofsta Ggias, ela parece inalcanvel, restando-

lhe apenas a doxa. Procura ento um caminho especulativo, encontrando o logos

como possibilidade de iluminar fatos, circunstncias e situaes da vida dos homens

e das cidades na sua concretude e na sua situao contingente. Ele no fornece um

fundamento adequado, antes, procura perceber no mundo dos homens a

possibilidade e a riqueza da harmonia. Vale lembrar que com da sofstica nascem os

saberes tcnicos, saberes que versam sobre a atividade humana, compreendida

como medida de todas as coisas, e no pretendem descobrir a verdade ltima, nem

a arch. Preocupavam-se, assim como seu mestre Demcrito, com a educao

realista, material e prtica com vistas a executar corretamente as atividades das

distintas profisses (EIRE, 1990: 82). Assim como a Histria de Herdoto, a

sofsitica era filha da Plis.

Uma importante chave de leitura a noo de regimes de historicidade,

cunhada pelo historiador Franois Hartog, na medida em que compreendemos

Histrias como produto e produtor de um ambiente cultural, social e poltico, como

sintoma de um regime e no apenas de uma poca. Para Hartog o regime marca a

temporalidade e a representa, podendo subscrev-la, ou ainda, evadir-se buscando

alternativas. Nesse exerccio altera-se a compreenso do que seja a histria; no caso

grego, do que eram narrativas verdicas e a forma como elas apresentavam uma

justificativa: o estabelecimento de uma corrente acompanhado de seu

questionamento, vide as objees de Plato ao discurso de Herdoto, ou mesmo as

crticas que Tucdides fez ao autor de Histrias (GAGNEBIN, 1997: 27). Trata-se de ler

os textos, no apenas as Histrias de Herdoto, fundamentalmente como obras

possveis de um tempo, de um ambiente cultural.

Hartog afirma que os gregos, enquanto pertencentes a uma pr-histria

dos regimes de historicidade surgem como tardios em relao s explicaes dadas

por mesopotmicos, por exemplo. Os primeiros texto que nos deparamos so os

250

poemas homricos (sculos VIII e VII). O mundo pico baseia-se na economia da

glria imortal (kleos): concorda-se em morrer na guerra em troca de obter-se glria

imortal, por meios dos cantos do poeta inspirado pelas musas ( disso que trata a

histria de Aquiles). A poesia pica funcionava como uma memria social de um

grupo de aristocratas. Dois sculos depois, o primeiro objetivo de Herdoto ser o

de impedir o oblvio ou pelo menos retard-lo. O tempo visto como o inimigo,

como devorador, como fluxo contnuo e o passado menos concebido como uma

coletnea de precedentes do que como uma histria que tem que ser contada e

lembrada. nesse sentido que Hartog se dedicou a estudar a obra herodotiana: no

para encontrar a parternidade do discurso historiogrfico, mas para perceb-lo

como momento definidor de uma modalidade de saber, de um lugar de produo

discursiva at ento indita (HARTOG, 1999). Em seu livro, publicado originalmente

em 1980, Espelhos de Herdoto: ensaios sobre a representao do outro, a obra do

primeiro historiador,2 colocada como ponto da cultura ocidental ao qual se

retorna, na inteno permanente de dar a ler esses textos, reconstruindo a questo

qual eles respondem, redesenhando os horizontes de expectativa (NICOLAZZI,

2010, p. 233). Por isso propomos neste breve ensaio o cruzamento de Histrias com

a filosofia e a sofstica dos sculos V e IV,3 investigar o desvio operado no

pensamento grego e a emergncia de uma experincia do tempo, totalmente

paradoxal. Dessa forma, no seria foroso, levando as ponderaes de Hartog ao

limite, encontrar, poca da escrita de Histrias, um regime de historicidade, uma

vez que h diferentes modos de articulao das categorias de presente, passado e

do futuro. O regime de historicidade no uma realidade acabada, mas um

instrumento analtico (HARTOG, 2007: 16).

No momento da emergncia da narrativa de Herdoto, da filosofia e da

2 Hartog argumenta que antes de ter inventado a Histria, Herdoto teria sido o primeiro historiador

na medida em que, seguindo a tradio de Hecateu de Mileto e dos loggrafos, escreveu eu no danativo para falar de um investiga (HARTOG, 2001, p. 53).

3 Presente nos dilogos de Plato, sobretudo em Protgoras e Ggias.

251

sofstica, os deuses no foram descartados. Vale destacar que estamos

problematizando essa premissa elaborada por Pierre Vidal-Naquet. O historiador

francs buscou mostrar, numa intrincada articulao de textos, que os gregos

antigos no possuam apenas uma noo de tempo, a cclica. Possuam na verdade

uma dupla diviso: o tempo dos deuses e o tempo dos homens. J Jean-Pierre

Vernant mostrou que desde Hesodo (at Aristteles) h uma tripla diviso: o mundo

dos deuses, dos homens e da natureza (VERNANT, 1990: 28). A relao entre esses

tempos variada o que possibilitou (VIDAL-NAQUET, 1960: 56) uma pluralidade de

modalidades de crena e, ao mesmo tempo, uma pluralidade de modalidades de

verdade. Assim, suspeitamos que no houve um o abandono de um mundo (ou uma

forma de pensamento) centrado no mito, em benefcio da razo, mas a convivncia

paradoxal e laicizada entre esses mundos.

Assim, as Histrias de Herdoto de Halicarnasso representam um desvio.

Diferente dos poetas inspirados pelas Musas, Herdoto investiga. Ele preenche (ou

ao menos busca preencher) a lacuna deixada pala ausncia das deusas inspiradoras a

partir da busca por informaes. Os deuses so apartados sua interveno, e a

memria do passado j no elemento exclusivo das filhas de Mnemosyne.

Exemplar o fato de que essa narrativa nominada de Histria, do sculo V a.C.,

contempornea emergncia do discurso mdico de Hipcrates, das tragdias de

Sfocles e Eurpedes e da sofstica de Protgoras, cuja principal caracterstica, para

alm do olhar cristalizado de Plato, era o relativismo de todas as coisas e quebra

radical com uma verdade nica e eterna, trazendo para o nvel da doxa uma

possibilidade de produo de conhecimento. A narrativa inventada por Herdoto,

mais tarde batizada como Histria, insere-se numa tradio do pensamento grego

no sculo V a.C.: a de procurar causas (aiti). De Demcrito a Plato, dos pr-

socrticos a Aristteles, de Hesodo a Scrates, o problema das causas parece definir

tanto o logos quanto o mythos, ou seja, definir a investida discursiva da produo de

verdades na velha Hlade. Essas causas no so mais da ordem do sagrado ou da

physis, inserem-se no mundo dos homens, doravante governados por um sentido

252

temporal irreversvel. O fluxo inevitabilidade (anak). dessa concepo histrica

da existncia humana que nasce Histrias de Herdoto. Entretanto, a eternidade,

no dos heris e seus feitos, mas dos homens e suas maravilhas, ainda, supomos, era

o horizonte.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

ARAJO, Orlando Luiz; LIMA, Marinalva Vilar de. Ensaios em estudos clssicos.

Campina Grande: Ed. UFCG, 2006.

ARISTOTLE. The Works of Aristotle. Chicago: Encyclopaedia Britannica, c1952.

ASHERI, David; LLOYD, Alan B.; CORCELLA, Aldo. A Commentary on Herodotus I-IV.

Edited by Oswyn Murray and Alfonso Moreno. Oxford: Oxford University Press,

2007.

ASSAL, Jacqueline. La Muse, lade et le hros. Noesis, No. 1, 1997, pp. 109-169.

BENVENISTE, mile. O vocabulrio das instituies indo-europias. So Paulo:

Unicamp, 1995. (2 v.).

CALAME, Claude. Le rcit en Grce Ancienne: Enonciations et reprsentations de

potes. Paris: Mridiens Klincksieck, 1986.

CHATELET, Franois. La naissance de lhistoire: la formation de la pense historienne

en Grce.Paris: Miuit, 1974.

COSTA, Lgia Militz da. A potica de Aristteles: mmese e verossimilhana. So

Paulo: tica, 1992.

DARBO-PESCHANSKI, Catherine. O discurso do particular: Ensaio sobre a investigao

de Herdoto. Braslia: Editora UNB, 1998.

DETIENNE, Marcel. Les matres de verit dans la Grce Archaque. Paris: Maspero,

1981.

_________. A inveno da mitologia. Rio de Janeiro: Jos Olmpio; Braslia: UnB,

1992.

EIRE, Lopez. De Herdoto a Tucdides. Studia historica. Historia antigua, N 8, 1990.

253

Diponvel em dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=106320. Acessado em

10/04/2013.

FINLEY, Moses. Mito, memria e histria. In: Uso e abuso da histria. Trad.:

Marylene Pinto Michael. So Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 3-27.

GAGNEBIN, Jeanne Marrie. O Incio da Histria e as Lgrimas de Tucdides. In: Sete

aulas sobre Linguagem, Memria e Histria. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

GRIMAL, Pierre. O sculo de Augusto. Trad.: Rui Miguel O. Duarte. Lisboa: Edies

70, 1997.

HARTOG, Franois (Org.). A histria de Homero a Santo Agostinho. Trad.: de Jacyntho

Lins Brando. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001.

________. O espelho de Herdoto. Ensaio sobre a representao do outro. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 1999.

________. Rgimes dhistoricit. Prsentisme et expriences du temps. Paris:

ditions du Seuil, 2003.

_______. Os antigos, o passado e o presente. Trad.: Sonia Lacerda et al. Braslia: UnB,

2003.

HERCLITO. Fragmentos. In: Pr-Socrticos (Os pensadores). Trad.: Jos Cavalcante

de Souza. So Paulo: Nova Cultural, 2000, 81-116p.

Herdoto. Braslia: Editora UNB, 1998.

MENDONA, Antonio da Silva. Introduo. In: Bellum civile (a guerra civil). Trad.: So

Paulo: Estao liberdade, 1999.

MOMIGLIANO, Arnaldo. As razes clssicas da historiografia moderna. Trad.: Maria

Beatriz Florenzano. So Paulo: EDUSC, 2004.

MOREAU Joseph. Le Temps selon Aristote ( suivre). In: Revue Philosophique de

Louvain. Troisime srie, Tome 46, N9, 1948. pp. 57-84. Disponvel em

http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/phlou_0035-

3841_1948_num_46_9_4129. Acessado em 02/02.2013.

MORELO, Sonila. A relativizao da verdade em Herdoto. Belo Horizonte: UFMG,

2001 (dissertao de mestrado).

254

MOSS, Claude. As instituies gregas. Lisboa: Edies 70, 1985.

________. A Grcia Arcaica de Homero a squilo. Lisboa: Edies 70, 1989.

MURACHCO, Henrique. Lngua Grega: viso semntica, lgica, orgnica e funcional.

So Paulo/Petrpolis: Vozes, 2003 (v. II).

NICOLAZZI, Fernando. Histria entre Tempos: Franois Hartog e a conjuntura

Historiogrfica Contempornea. Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 53, p.

229-257, jul./dez. 2010. Editora UFPR.

REIS, Jos. Sobre o Tempo. Revista Filosfica de Coimbra, n. 9, 1996.

ROMILLY, Jaqueline de. Fundamentos de Literatura grega. Rio de Janeiro: Zahar,

1984.

_________. Histria e Razo em Tucdides. Braslia: Editora Universidade de Braslia,

1998.

SHOTWELL, James T. A interpretao da histria e outros ensaios. Trad.: Murillo

Bastos Martins. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1967.

TRABULSI, Jos Antnio Dabdab. O Imperialismo Ateniense, Tucdides e a

historiografia contempornea. In: Ensaios de Literatura e Filologia, 5, 1985.

________. Crise social, tirania e difuso do dionisismo na Grcia arcaica. In: Revista

de Histria. So Paulo: USP, 1984.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad.: sis Borges B. da

Fonseca. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

VEYNE, Paul. Acreditaram os gregos em seus mitos? Trad.: Antonio Gonalves.

Lisboa: Edies 70, s/d.

VIDAL-NAQUET, Pierre. Temps des dieux et temps des hommes. Essai sur quelques

aspects de l'exprience temporelle chez les Grecs. Revue de l'histoire des religions.

Paris, v. 157, n. 01, p. 55-80, 1960. Disponvel em

http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/rhr_0035-

1423_1960_num_157_1_8998. acessado em 01/02/2013.

WATERS, K. H. Herdoto el historiador. Sus problemas, mtodos y originalidad.

Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1996.