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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao ( C I P ) ( C m a r a Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Luria, Alexander Romanovich, 1902-1977. A construo da Mente / A . R . Luria ; traduzido por Marcelo Brando Cipolla. So Paulo : cone, 1992 Bibliografia. I S B N 85-274-0204-1 1. Luria, Alexander Romanovich, 1902-1997 2.

Neuropsicologia 3. Psicologia Unio Sovitica I. Ttulo CDD-150.9247 -150.947 91-3095 -612.801

ndices para catlogo sistemtico: 1. Neuropsicologia 612.801 2. Unio Sovitica : Psicologia 150.947 3. Unio Sovitica : Psiclogos : biografia

A. R. Luria,

A CONSTRUO DA MENTETraduzido por Marcelo Brando Cipolla.

Copyright 1992, cone Editora Ltda.

Produo Telma L. Vidal Capa Anizio de Oliveira Arte Final Vladimir Arajo

Proibida a reproduo total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrnico, mecnico, inclusive atravs de processos xerogrficos, sem permisso expressa do editor (Lei n 5.988, de 14/12/1973).

Todos os direitos reservados pela, CONE EDITORA LTDA. Rua Anhangera, 56/66 - Barra Funda Cep 01135 - So Paulo - SP Tels. (011) 826-7074/826-9510

NDICE

INTRODUO O CONTEXTO HISTRICO A CONSTRUO DA MENTE 1. APRENDIZADO 2. MOSCOU 3. VYGOTSKY 4. DIFERENAS CULTURAIS DE PENSAMENTO 5. DESENVOLVIMENTO MENTAL EM GMEOS 7. DISTRBIO DE FUNES CEREBRAIS 8. NEUROPSICOLOGIA DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 9. MECANISMOS DO CREBRO 10. CINCIA ROMNTICA EPLOGO UM RETRATO DE LURIA BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA 231 193 . 23 33 43 63 87 .... 126 143 161 179 7

6. REGULAO VERBAL DO COMPORTAMENTO ....... 111

INTRODUO O CONTEXTO HISTRICO

Logo aps a virada deste sculo, o psiclogo alemo Hermann Ebbinghaus ponderou que a psicologia "tem um longo passado, mas uma histria curta". Ebbinghaus se referia ao fato de que enquanto a teoria psicolgica j existe h tanto tempo quanto o pensamento registrado, apenas um quarto de sculo havia se passado desde a fundao dos primeiros agrupamentos cientficos que se denominavam conscientemente "laboratrios de psicologia". At cerca de 1880, poca enfocada por Ebbinghaus, a psicologia jamais havia sido considerada uma disciplina acadmica independente; era antes uma faceta das cincias "humanas" e "morais", que eram, por sua vez, um ramo da filosofia e o passatempo amador de qualquer pessoa instruda. Ainda que outros trs quartos de sculo tenham se passado desde a observao de Ebbinghaus, a histria da psicologia como cincia ainda curta o suficiente para que um indivduo a abarque toda, ou quase toda, ao longo de sua carreira. Esse indivduo foi Alexander Romanovich Luria (1902-1977), nascido da segunda gerao de psiclogos cientficos, mas criado em circunstncias tais que o envolveram com as questes bsicas que haviam motivado os fundadores da disciplina. A psicologia cientfica surgiu quase simultaneamente nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha e na Rssia. Ainda que os compndios dem a Wilhelm Wundt o crdito pela fundao do primeiro laboratrio experimental, em Leipzig, 1879, essa nova abordagem ao estudo da mente no era privilgio de qualquer indivduo ou pas. Quase mesma poca, William James encorajava seus es-

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tudantes a realizarem experimentos, em Harvard; na Inglaterra, Francis Galton iniciava as aplicaes pioneiras de testes de inteligncia; e Vladimir Bekhterev, em Kazan, fundava um laboratrio que explorou grande parte das questes que mais tarde predominariam na nova cincia. Mecanismos de aprendizagem, alcoolismo e psicopatologia eram alguns temas investigados no laboratrio de Bekhterev, enquanto Luria se criava em Kazan. Lanando um olhar histrico ao passado, possvel dividir-se a psicologia em eras, de acordo com as idias dominantes de seus profissionais. No entanto, as mudanas que ocorreram nos primeiros anos deste sculo, e que em 1920 haviam tornado obsoleta a "nova psicologia" dos anos 1880 e 1890, no foram nem um pouco claras. A insatisfao pela psicologia dominante ainda no resultara numa oposio coerente, com um programa prprio definido. Se a situao j era confusa na Europa e nos Estados Unidos, era ainda mais turva na Rssia, onde a cincia labutava sob o peso da censura governamental, guiada por princpios religiosos conservadores e por uma poltica autocrtica. S em 1911 foi fundado na Universidade de Moscou o primeiro instituto de psicologia oficialmente reconhecido. Mas mesmo este passo frente foi truncado pela escolha de um diretor cuja pesquisa baseava-se solidamente na teoria psicolgica alem dos anos 1880. Nestas condies, um jovem russo que se interessasse por psicologia encontrar-se-ia em meio a uma curiosa distoro temporal. Caso se restringisse a ler em russo, suas idias a respeito da matria e do mtodo da psicologia estariam defasadas. Os trabalhos importantes da Europa Ocidental s eram traduzidos na quantidade e nos temas que convinham censura do Tzar. Devido pouca literatura disponvel na lngua russa, a psicologia em Kazan em 1910 estava no mesmo estgio que a psicologia em Leipzig ou Wurzburg, uma gerao antes. Mas se um jovem russo soubesse ler alemo, teria acesso produo mais recente, especialmente se sua famlia freqentasse crculos intelectuais cujos membros fossem estudar na Alemanha. Era esse o caso da famlia Luria. Assim, desde muito cedo, o jovem Luria leu mais sobre a psicologia experimental contempornea do que o permitiram as tradues russas. Talvez por seu pai ser um mdico, interessado em medicina psicossomtica, tambm os novos trabalhos de Freud e Jung na rea da psiquiatria 8

chegaram s mos de Luria. A isto ele somou as idias filosficas e humanistas da tradio romntica alem, em especial aqueles trabalhos que criticavam a psicologia de laboratrio como havia sido proposta por Wundt e seus seguidores. Assim, ainda que, por virtude de seu nascimento, Luria pertencesse segunda gerao da psicologia, comeou sua carreira envolvido com os problemas bsicos que haviam ocupado seus fundadores, um quarto de sculo antes. Ao longo de seus sessenta anos de atividades na teoria e na pesquisa, Luria nunca deixou de se ocupar desses problemas fundamentais. Constantemente buscou suas solues, luz dos novos conhecimentos acumulados medida que cada gerao de psiclogos operava transformaes no material bsico herdado de seus antecessores. A amnsia generalizada que flagela a disciplina histrica da psicologia torna difcil a recuperao dos dilemas que confrontaram Luria na sua juventude. Talvez encontre-se algum consolo na noo de que as idias psicolgicas da virada do sculo apresentam-se hoje to obsoletas quanto os automveis que eram fabricados naquela poca. Mas a evoluo da tecnologia material uma pssima analogia para o progresso na psicologia cientfica. Existe uma analogia mais precisa, e que ocupa lugar honroso na histria do pensamento russo do fim do sculo XIX e na literatura marxista dos sculos XIX e XX. Foi proporcionada por Lenin, que, a respeito do progresso nas cincias, observou que se tratava de "um desenvolvimento que repete os estgios j passados, mas os repete de maneira diferente, num plano superior... um desenvolvimento, por assim dizer, em espirais, no em linha reta" (Lenin, 1934, p. 14). Quando Luria contemplou a paisagem intelectual circundante, no comeo de sua carreira, a espiral da psicologia encontrava-se num estado de disputa. A grande discordncia que dividia os acadmicos encontrava sua expresso em diversos argumentos aparentemente independentes. Primeiramente, discutia-se se a psicologia poderia ou no ser uma cincia objetiva e experimental. O elemento "novo" da "nova psicologia" de 1880 foi a experimentao. Havia pouca inovao nas teorias e categorias psicolgicas propostas por Wundt, cujos principais conceitos poderiam ser encontrados, passando pelos filsofos empricos, como Locke, at em Aristteles. Wundt, como os filsofos inclinados psicologia que o precede9

ram, tomava como mecanismo bsico da mente a associao de idias, que surgem do ambiente na forma de sensaes elementares. A inovao de Wundt foi ter declarado que poderia verificar essas teorias, baseado em observaes controladas levadas a termo em experimentos de laboratrio cuidadosamente programados. A instrospeco subsistia como parte essencial de seus mtodos - mas tratava-se j de uma introspeco "cientfica", que poderia produzir as leis gerais da mente, e no de uma especulao diletante. As colocaes tericas especficas de Wundt no deixaram de ser desafiadas. Encontraram oposio, dentro da nova psicologia, da parte de uma srie de eruditos, cujas pesquisas suscitaram a construo de teorias alternativas para a explicao dos eventos mentais. As discordncias freqentemente centravam-se num questionamento da validade dos relatos subjetivos e grandes controvrsias eram geradas sobre os assuntos mais prosaicos. Finalmente, o fracasso na resoluo destas questes e a suspeita de que elas fossem insolveis em princpio, por referirem-se a relatos individuais e interiores e no a eventos sujeitos observao no-tendenciosa, trouxeram a termo esta primeira era da psicologia cientfica. Muitas discusses sobre este perodo (e.g. Boring, 1925-1950) escamoteiam o fato de que os debates cientficos entre Wundt e seus crticos faziam parte de uma discusso mais ampla, que questionava a validade da experimentao em si. Enquanto Wundt e seus seguidores acumulavam fatos e prestgio para sua cincia nascente, os cticos lamentavam a perda dos fenmenos que haviam originalmente tornado a mente humana um importante tpico de estudo. Esta crtica foi elegantemente capturada por Henri Bergson, ao citar a frase de Shakespeare: "Assassinamos para dissecar". Ou, mais tarde, as escolhas colocadas por G. S. Brett: "Um caminho levar a uma psicologia cientfica, mas artificial; o outro levar a uma psicologia natural, mas que no pode ser cientfica, sendo, no fim, uma arte" (Brett, 1930, p. 54). A objeo colocada experimentao por seus crticos era que a restrio da psicologia ao laboratrio automa-ticamente restringiria os fenmenos mentais que se pretendia investigar. A vida algo mais que as sensaes elementares e suas associaes; e o pensamento algo mais do que aquilo que pode ser inferido dos experimentos 10

que medem o tempo de reao. Mas, aparentemente, s esses fenmenos elementares seriam passveis de investigao em laboratrio. Wundt no reagiu s crticas com indiferena. Reconheceu que o mtodo experimental tinha seus limites, mas decidiu confrontar seus oponentes fazendo uma distino entre funes psicolgicas elementares e superiores. A psicologia experimental seria a conduta correta para o estudo dos fenmenos psicolgicos elementares, ao passo que as funes superiores no poderiam ser estudadas experimentalmente. Na verdade, provavelmente no haveria possibilidade de averiguar-se, por qualquer meio, o processo funcional da psicologia superior. No mximo, seria possvel estudarem-se os produtos das funes superiores, pela catalogao de artefatos culturais e do folclore. E Wundt de fato entregou o estudo das funes psicolgicas superiores disciplina da antropologia, como a conhecia. Dedicou muitos anos a essa tarefa, que denominou Volkerpsychologie. A escolha bsica entre mtodos experimentais e noexperimentais foi central para Luria no comeo de sua carreira, mas ele no se ligou a qualquer uma das opes prontas que lhe confrontaram. Por todos os lados via formulaes tendenciosas, nenhuma das quais lhe satisfazia. A exemplo de Wundt, Bekhterev, e outros, acreditava firmemente na necessidade da experimentao; mas tambm simpatizava com os crticos de Wundt, em especial com Wilhelm Dilthey, que havia buscado a reconciliao entre as simplificaes acarretadas pelo enfoque experimental de Wundt e as anlises humanistas de aes e emoes humanas complexas. Dilthey, com o tempo, perdeu as esperanas, respeitando a experimentao como uma forma para os estudos dos processos psicolgicos humanos. Luria, pouco dado ao desespero, tomou outro caminho. Buscou um novo mtodo que, sinttico, reconciliava a arte e a cincia, descrio e explicao. Afastaria a artificialidade do laboratrio, mantendo seu rigor analtico. Tendo feito sua escolha, defrontou-se com uma srie de novas opes, relacionadas ao mtodo e teoria, que tornariam possvel sua tentativa de sntese cientfica. Como muitos dos psiclogos que o antecederam, Luria acreditava que um entendimento completo da mente teria que incluir vises do conhecimento das pessoas a respeito do mundo, e das motivaes que fornecem energia aplicao desse conhecimento. A importncia estava em

conhecer os processos bsicos de obteno de conhecimento, e as regras que descrevem a mudana. O conceito de mudana, para Luria, referia-se aos novos sistemas em que os processos bsicos poderiam se organizar. Sua tarefa, gigantesca, e at hoje irrealizada por qualquer teoria psicolgica, era tentar elaborar uma estrutura geral e um conjunto de mecanismos especficos, para descrever e explicar todos os sistemas de comportamento que surgem a partir da atividade dos inmeros subsistemas que compem o indivduo vivo. A partir dessa caracterizao global da mente humana, Luria teve que verificar quais dos mtodos experimentais existentes poderiam embasar sua abordagem, evitando o vazio da palavra pura. Na arena do conhecimento, as principais tcnicas eram elaboraes da noo bsica de que as estruturas das idias poderia ser identificada estrutura de suas associaes. Laboratrios alemes haviam passado a usar cronmetros mecnicos, dos quais se esperava uma medida temporal precisa das associaes mentais. Esta tecnologia havia avanado ao ponto de muitos pesquisadores acreditarem na possibilidade de registrarem o tempo necessrio para a ocorrncia de diferentes tipos de eventos mentais. Os debates centravam-se na definio das unidades de atividade mental, e perguntava-se, se o que estava sendo "medido" eram elementos ou atos mentais. Simultaneamente, eruditos com orientao mdica, como Jung e Freud, usavam as respostas associativas com um propsito bem diferente. Mesmo reconhecendo que as associaes de palavras davam pistas das relaes entre idias, no estavam interessados num mapeamento dos sistemas conscientes de conhecimento, ou na cronometragem das respostas associativas, mas no aproveitamento das associaes para a descoberta de informao desconhecida pelo paciente. Ainda mais importante era a possibilidade de as associaes de palavras informarem a respeito dos motivos ocultos conscincia que estariam fornecendo energia a um determinado comportamento, de outra maneira inexplicvel. Nessas diferentes abordagens ao mtodo de associao de palavras - uma experimental e outra clnica - Luria entreviu a possibilidade de enriquecer o estudo do conhecimento e da motivao, que ele acreditava estarem inextricavelmente combinados em qualquer processo psicolgi12

co. Seus esforos para a criao de uma psicologia unificada da mente representaram, desde o comeo, o tema central de seu trabalho. Sua disposio em trabalhar com os conceitos de motivao, como expostos pela escola psicanaltica, poderia t-lo colocado margem da psicologia acadmica, mas isso no aconteceu, por uma srie de razes. Primeiro, Luria estava comprometido com o mtodo experimental. Outro fato igualmente importante era sua confiana no uso de fatos objetivos como a base da teorizao. Quando muitos psiclogos passaram a exigir no s que o comportamento observvel representasse a matria bsica da psicologia, mas tambm que as teorias psicolgicas apelassem a eventos no-observveis, Luria colocou sua objeo. Antecipando uma posio tomada por Edward Tolman muitos anos depois, Luria tratava a conscincia e o inconsciente como variveis interpostas, isto , como conceitos que organizavam os padres de comportamento obtido. Outro tpico que confrontava os psiclogos na virada do sculo era sua atitude em relao ao conhecimento "mais bsico" que despontava na fisiologia, na neurologia e na anatomia, uma rea hoje conhecida como "neurocincias". As grandes conquistas da biologia e da fisiologia no sculo XIX haviam tornado impossvel ignorar as importantes ligaes entre o sistema nervoso central e os fenmenos mentais que eram o tema central dos psiclogos. Mas a questo colocada era se a psicologia deveria se restringir aos fenmenos descobertos nos laboratrios de fisiologia. Aqui as opinies dividiam-se em duas correntes importantes. Muitos, psiclogos rejeitaram, por uma questo de princpios, que a mente pudesse ser reduzida "matria em movimento", e que essa matria pudesse ser estudada no laboratrio do fisiologista. De acordo com esta viso, a mente deveria ser estudada introspectivamente, usando a si mesma como ferramenta de investigao. No extremo oposto, alguns cientistas afirmaram que a psicologia no era mais que um ramo da fisiologia, que proporcionaria uma teoria unificada do comportamento. Esta posio foi assumida pelo fisiologista russo I. M. Sechenov, cujo Reflexos do crebro continha um programa explcito que explicava os fenmenos mentais como elos centrais do arco reflexo.

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Entre essas posies extremas, muitos psiclogos, Luria inclusive, acreditavam num desenvolvimento da psicologia que fosse coerente com as neurocincias, sem depender delas integralmente. Eles aceitavam a noo de que os fenmenos psicolgicos, como parte do mundo natural, esto sujeitos s leis da natureza. Mas no aceitavam necessariamente como corretos qualquer um dos modelos que se propunham a explicar a ligao entre o crebro e os processos psicolgicos, em especial os processos complexos. Assim, a psicologia deveria prosseguir sozinha, com um olho na fisiologia. Luria incluiu-se entre alguns poucos psiclogos que buscaram a expanso das reas de coerncia entre as duas disciplinas, confrontando deliberadamente os fatos e teorias da psicologia e das neurocincias. Quarenta anos depois de ter iniciado essas atividades, um novo ramo, hbrido, da psicologia e das neurocincias, chamado "neuropsicologia", ganhou reconhecimento como disciplina cientfica. Outra diviso bsica da psicologia estava relacionada a como os psiclogos viam os "tijolos" bsicos da construo da mente. Um grupo, associado a nomes como Wundt, E. B. Titchener, John Watson e Clark Hull, procurava identificar os elementos bsicos do comportamento como sendo sensaes que, combinadas segundo as leis de associao, construiriam idias elementares ou hbitos. Outro grupo, no qual podemos incluir Franz Brentano, William James e os psiclogos da Gestalt, resistiria a esse "elementarismo". Suas anlises sugeriam que os processos psicolgicos bsicos sempre refletiam propriedades de organizao que no poderiam ser descobertas nos elementos isolados. Essa idia era expressa por termos como "corrente da conscincia", "inferncia inconsciente", e "propriedades do todo". A essncia dessa posio era que a reduo da mente a seus elementos destrua as propriedades do organismo vivo e intacto, propriedades essas que no poderiam ser recuperadas uma vez operada a reduo. Nessa controvrsia, Luria colocou-se claramente contra os elementaristas, mas sua insistncia em que as unidades bsicas de anlise retivessem suas propriedades emergentes no se reduziam aos argumentos e fenmenos ento explorados pelos psiclogos da Gestalt. Luria desde cedo fez questo de afirmar que as unidades bsicas de anlise psicolgica eram funes, cada uma das quais rep14

resentativa de um sistema de atos elementares que controlavam as relaes entre o organismo e o meio. Inserido num meio intelectual constitudo por uma srie de opes excludentes e pretensas reivindicaes de legitimidade cientfica, Luria no pode ser ligado a qualquer uma das correntes ento em voga. Em relao a cada uma das questes sistemticas ento colocadas psicologia, Luria tomou posies claras, escolhidas do mesmo leque de possibilidades assumido por seus contemporneos, mas a combinao de suas escolhas formou um padro nico, singular, que ao mesmo tempo o ligava e o diferenciava das principais correntes psicolgicas do princpio da dcada de 20. O novo amlgama que Luria desenvolveu com a colaborao de Lev Vygotsky conservou-se diferenciado at 1960. O interesse de Luria no papel da motivao na organizao do comportamento, sua disposio de falar de "complexos ocultos", o uso que fazia das tcnicas de livre associao (ainda que conjugadas cronometragem do tempo de reao), e sua promoo das idias psicoanalticas nos tentam a classific-lo como um freudiano experimental primitivo. Mas mesmo seus primeiros textos sobre o tema j desbancariam esse rtulo. Seu interesse primeiro no era a descoberta da natureza inconsciente, e o grande valor que conferia ao meio social como determinante do comportamento individual humano o deixava pouco vontade com o enfoque biologizante que Freud dava mente. Desde o comeo, Luria defendeu cuidadosamente uma metodologia segundo a qual os dados objetivos como respostas verbais, movimentos, ou indicadores psicolgicos - eram, na psicologia, os nicos dados aceitveis. Isto bastaria para classific-lo entre os behavioristas, no fosse sua disposio em falar dos estados no-observveis da mente, e sua insistncia no uso dos indicadores objetivos como portadores de informaes sobre esses estados. Sua classificao entre os behavioristas tambm seria dificultada pela forte relao existente entre o behaviorismo primitivo e a teoria dos reflexos, ou de estmulo-resposta. Para Luria, a associao de palavras era uma ferramenta extremamente til no desvendar do funcionamento de um sistema psicolgico complexo, mas ele nunca aceitou a noo de que as associaes de idias, ou de estmulos e res-

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postas, representassem uma teoria do funcionamento da mente. Ele no era favorvel identificao entre a teoria de estmulo-resposta e a teoria da "central telefnica", que comparava o papel do sistema nervoso central na organizao do comportamento ao de uma gigantesca mesa de distribuio eltrica. Observou, com repugnncia, que "seria um trabalho muito interessante o acompanhamento da histria completa das analogias na cincia natural do sculo vinte... daqueles modelos que so aceitos como uma base para a formulao de idias acerca das formas e mecanismos da atividade vital humana. Esta histria revelaria alguns princpios de pensamento extremamente ingnuos... Esta tendncia de introduo de conceitos simplistas, explicando o sistema nervoso com base em analogias com coisas artificiais, mais comum no estudo do comportamento do que qualquer outro lugar" (Luria, 1932, p. 4). No lugar da central telefnica, Luria sugeriu um sistema organizado de forma dinmica, composto por diversos subsistemas, cada um dos quais contribuindo para a organizao do todo. Na dcada de vinte, isto poderia ser entendido como uma verso de psicologia da Gestalt, mas os psiclogos cognitivos no foram pegos de surpresa quando, mais de trinta anos depois, Luria acolheu o Planos e a Estrutura de Comportamento, de Miller, Galanter e Pribram - um esforo pioneiro da aplicao da anlise de sistemas computacionais psicologia - como um trabalho semelhante ao seu no que tocava crtica s limitaes da teoria de estmulo-resposta, e como uma analogia mecnica que, apesar de suas prprias limitaes, comeava a aproximar-se da sua concepo dos sistemas humanos. Seria tambm possvel classificar Luria como um psiclogo fisiologista, devido ao seu contnuo interesse pelas bases cerebrais do comportamento, mas, para ele, o estudo do crebro, isoladamente nunca revelaria como o comportamento organizado. Luria sempre teve em mente que as propriedades do sistema integral no poderiam ser obtidas de maneira confivel a partir de um estudo da operao isolada de suas partes. O crebro fazia parte de um sistema biolgico maior, e mais, de um sistema ambiental circundante, no qual a organizao social era uma fora importantssima. Conseqentemente, uma teoria psicolgica do organismo intacto, que preservasse, no estudo, sua histria de interaes com o meio e suas tarefas, era um

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complemento necessrio da investigao fisiolgica ou anatmica pura. Esse conjunto de princpios, j encontrados nos textos que Luria escreveu na dcada de vinte, constroem a imagem de um psiclogo prematuramente moderno, cuja vida comeou antes que suas idias encontrassem confirmao na tecnologia e nos dados disponveis. Mas no possvel, ou apropriado, classificar as idias de Luria nos termos puramente psicolgicos ou neurofisiolgicos. Sua carreira tambm foi moldada, desde o princpio, pelo fato de ele ser um intelectual russo, ativamente envolvido na construo da psicologia e da cincia soviticas. A partir da Revoluo sovitica, pelo tempo aproximado de uma dcada, houve muita experimentao e improvisao na conduo da cincia, da educao e da poltica econmica soviticas. Muito menos conhecidas que as lutas polticas que se sucederam morte de Lenin so as experimentaes com novos padres escolares, agricultura de mercado livre, modernos meios de expresso nas artes e novos ramos da cincia. Durante a dcada de vinte, praticamente todos os movimentos psicolgicos existentes na Europa Ocidental e nos Estados Unidos encontraram adeptos na Unio Sovitica. Talvez pelo fato de a psicologia, como disciplina acadmica, encontrar-se num estado embrionrio no ocaso da era dos czares, havendo um nico instituto dedicado ao que se entendia ento como psicologia, era muito grande a variedade de pontos de vista e de atividades que competiam pelo direito de determinar os padres da nova psicologia sovitica. Educadores, mdicos, psiquiatras, psicanalistas, neurologistas e fisiologistas realizavam com freqncia reunies nacionais para a discusso da pesquisa e da teoria. No decorrer da dcada, trs tpicos principais passaram a dominar essas discusses. Em primeiro lugar, havia a crescente nfase em que a psicologia sovitica se assumisse conscientemente como marxista. Ningum sabia exatamente o que isso significava, mas todos contribuam na discusso com suas prprias propostas. Em segundo lugar, vinha a necessidade de a psicologia ser uma disciplina materialista; todos os psiclogos seriam obrigados a buscar as bases materiais da mente. E em terceiro lugar, a psicologia deveria ter um papel relevante na construo de uma sociedade socialista. A exortao de Lenin para que a teoria fosse posta a teste na prtica era uma questo ur-

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gente, tanto na economia quanto na sociedade. Ao final da dcada de vinte, a discusso havia chegado a um ponto em que havia concordncia em torno de certos princpios gerais, mas as principais concluses no indicavam qualquer abordagem cientfica como modelo para as demais. Simultaneamente, com o advento da rpida coletivizao da agricultura, e com a acelerao crescente do desenvolvimento industrial pesado, o pas passava por novas agitaes sociais e econmicas. As escolas psicolgicas no supriam as demandas sociais de contribuies prticas nesses setores. Uma reorganizao deliberada da pesquisa psicolgica ocorreu em meados da dcada de trinta, como resultado das deficincias ideolgicas e de desempenho. A nvel particular, os eventos relacionados com essa reorganizao surgiram da insatisfao advinda do uso de testes psicolgicos na educao e na indstria, mas o resultado geral foi um declnio da autoridade e do prestgio da psicologia como um todo. Durante a Segunda Guerra, muitos psiclogos, Luria entre eles, concentraram seus esforos na reabilitao dos feridos. A psicologia educacional e a mdica, se mesclavam livremente, face devastao provocada pela guerra moderna. Estes mesmos tpicos continuaram prevalentes na psicologia sovitica do ps-guerra, no perodo da reconstruo. A psicologia enquanto disciplina independente permaneceu em hibernao, e a pesquisa psicolgica era tratada, de uma maneira geral, como um segmento particular de outros empreendimentos cientficos. O interesse pela psicologia foi renovado no final dos anos quarenta com a ateno focalizada no trabalho do conhecido fisiologista russo Ivan Pavlov. Muitos americanos conhecem Pavlov como um psiclogo, talvez porque seus mtodos para o estudo dos reflexos condicionados foram adotados pela psicologia americana dos anos vinte aos sessenta como uma metodologia-chave e um modelo terico, mas Pavlov negou uma associao com a psicologia pela maior parte de sua vida. Os psiclogos soviticos retriburam-lhe a gentileza: estavam muito dispostos a reconhecer a preeminncia de Pavlov no estudo da base material da mente; mas reservavam para si o campo dos fenmenos psicolgicos, em particular aqueles relacionados "psicologia superior", como a memria e a ateno voluntria, e a soluo de problemas lgicos.

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Como neste pas, muitos fisiologistas soviticos que estudavam as relaes entre o crebro e o comportamento viam com desagrado essa diviso de trabalho cientfico. Na verdade, consideravam a psicologia completamente cientfica. Quando tiveram oportunidade, essas pessoas, muitas das quais eram estudantes de Pavlov, se deliciaram em fazer do estudo da "atividade nervosa superior" um modelo a ser seguido pela psicologia. Aps uma srie extraordinria de reunies, levadas a termo sobre os auspcios da Academia de Cincias Mdicas em 1950, os psiclogos passaram a dedicar mais energia e ateno aplicao de conceitos e das tcnicas de Pavlov ao seu trabalho. Importncia especial foi conferida idias de Pavlov sobre a linguagem, que era, claro, uma rea de interesse dos psiclogos. No ltimo quarto de sculo, a psicologia sovitica cresceu muito em grandeza e prestgio. Avanos importantes da cincia ocidental, em particular o estudo do funcionamento do crebro e a tecnologia dos computadores, foram adotados pela cincia sovitica, tendo se tornado parte do corpus cientfico autctone. A psicologia, alm de estabelecer sua reputao como uma disciplina cientfica independente, foi includa entre as disciplinas que integram a prestigiada Academia Nacional de Cincias. Ao longo das primeiras seis dcadas da psicologia sovitica, Alexander Luria trabalhou para torn-la mais prxima do sonho de seus fundadores: um estudo marxista do homem, a servio do povo de uma sociedade democrtica e socialista. Na busca desse objetivo, Luria viveu experincias pioneiras no contato com problemas e insights acumulados pela psicologia em todo o mundo, desde o seu princpio, h cem anos atrs. Seu trabalho um monumento tradio intelectual e humanista, pice da cultura humana, que ele buscou entender e aperfeioar.

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A CONSTRUO DA MENTE

1. APRENDIZADO

Comecei minha carreira nos primeiros anos da grande Revoluo Russa. Este acontecimento nico e importantssimo influenciou decisivamente a minha vida e a de todos que eu conhecia. Comparando minhas experincias com as de psiclogos americanos e ocidentais, vejo uma importante diferena. Muitos psiclogos europeus e americanos possuem dons pessoais e extraordinrios. Como outros bons cientistas, realizaram descobertas importantes. Mas muitos passaram suas vidas num ambiente externo relativamente calmo e constante. Suas histrias refletem o curso de seu trabalho, e as pessoas e os fatos que os conformaram: seus pais, seus professores e colegas, e os tpicos intelectuais com que estiverem envolvidos. Seu trabalho acadmico consiste em pesquisar e, s vezes, mudar de universidade. A diferena repousa nos fatores sociais e histricos que nos influenciaram. Desde o comeo, era aparente que eu teria pouca oportunidade de buscar aquela educao sistemtica e ordenada que a pedra de fundao da maioria das carreiras cientficas. Ao invs, a vida me ofereceu a atmosfera extraordinariamente estimulante de uma sociedade ativa e em rpida mudana. Toda minha gerao foi inspirada pela energia da mudana revolucionria aquela energia libertadora que as pessoas sentem quando fazem parte de uma sociedade que pode realizar um progresso tremendo num intervalo de tempo muito pequeno. Eu era um jovem de 15 anos quando irrompeu a Revoluo de 1917. Nossa famlia residia em Kazan, uma velha cidade universitria de 140.000 habitantes, situada sobre o Rio Volga, 600 milhas a leste de Moscou. Meu pai era mdico, especializado em doenas do estmago e do in23

testino, e lecionava na escola de medicina de Kazan. Depois da Revoluo, tornou-se um influente colaborador da medicina sovitica. Fundou em Kazan um instituto independente para estudos mdicos avanados, e depois de alguns anos mudou-se para Moscou, onde foi vice-diretor do Instituto Central de Estudos Mdicos Avanados. Minha famlia era tpica daquilo que na Rssia era conhecido como "a intelligentsia". Consideravam-nos progressistas e no tnhamos tradio religiosa. Embora simpticos ao movimento revolucionrio, no ramos com ele diretamente envolvidos. As opressivas restries do perodo tsarista so de difcil compreenso para as pessoas modernas. A sociedade na Rssia pr-revolucionria era composta por classes rigidamente divididas: trabalhadores e camponeses, intelectuais (mdicos, professores e engenheiros), comerciantes e homens de negcios, e a alta classe (a aristocracia e os altos funcionrios governamentais). A natureza repressiva do regime se refletia no sistema educacional, elaborada para assegurar que cada um permanecesse em seu lugar "natural" e que nada mudasse. Para ter certeza disto, o Ministrio da Educao determinou que o ginsio e as escolas preparatrias para o ginsio "fossem esvaziados da freqncia de filhos de condutores, criados, cozinheiros, lavadeiras, pequenos comerciantes e outras pessoas de situao semelhante, cujas crianas, excetuando-se talvez as extraordinariamente dotadas, no devem ser encorajadas a abandonar o ambiente social a que pertencem". Claro est que a Revoluo mudou tudo isto. Ps abaixo as barreiras entre classes, e deu a todos ns, independentemente da classe social, novas perspectivas e novas oportunidades. Pela primeira vez na histria da Rssia as pessoas puderam escolher a prpria carreira, independentemente de sua origem social. A Revoluo nos libertou - especialmente a gerao mais jovem - para a discusso de novas idias, novas filosofias e sistemas sociais. Nem eu nem qualquer um de meus amigos tnhamos intimidade com o Marxismo ou com a teoria do socialismo cientfico. Nossas discusses no haviam ido alm dos esquemas socialistas utpicos, em voga naqueles tempos. Eu no tinha idia das causas reais da Revoluo, mas meus amigos e eu nos atiramos imediatamente, de corpo e alma, no novo movimento, porque percebemos as oportunidades que oferecia. Meu entu24

siasmo advinha principalmente de um forte sentimento emocional e romntico pelos acontecimentos da poca, e no de uma apreciao intelectual profunda de suas razes sociais. Nosso contedo e estilo de vida mudaram quase imediatamente. Ao invs da cuidadosa procura de um apoio para pr os ps sobre a vida, nos defrontamos repentinamente com muitas oportunidades de ao - uma ao que ia muito alm de nosso pequeno crculo familiar e de amizades. Os limites de nosso restrito mundo particular foram estilhaados pela Revoluo, e novas paisagens se abriram perante nossos olhos. Fomos arrebatados por um grandioso movimento histrico. Nossos interesses pessoais foram consumidos em favor das metas mais amplas de uma nova sociedade coletiva. A atmosfera que se seguiu imediatamente Revoluo proporcionou a energia para muitos empreendimentos ambiciosos. Uma sociedade inteira havia sido liberada para direcionar seus poderes criativos construo de uma nova vida para todos. A excitao geral, que elevava a atividade a nveis altssimos, no conduziu, todavia, investigao cientfica sistemtica e altamente organizada. Estas novas condies mudaram imediatamente o curso de minha educao. Em 1917, havia completado seis anos de um curso ginasial de oito. Hoje s me recordo, dentre esses anos de educao clssica formal, das cinco horas por semana e lies de latim, nas quais aprendamos a escrever extemporaneamente sobre diversos assuntos. A prtica do latim me foi til no aprendizado do ingls, francs e alemo. No completei o curso ginasial regular. Ao invs, consegui meu diploma em 1918, junto com muitos colegas, fazendo um curso reduzido. Entrei ento na Universidade de Kazan, onde a situao estava especialmente catica. As portas da universidade haviam sido abertas a todos os graduandos das escolas secundrias, sem levar em conta quo bem ou mal preparados estavam. Milhares de estudantes entraram, mas a universidade no estava em condies de dar-lhes educao. Naqueles tempos, havia escassez de todos os gneros. Talvez a mais importante fosse a escassez de professores preparados para ensinar sob as novas condies. Alguns professores mais velhos e conservadores se opunham Revoluo. Outros, que se dispunham a aceit-la, no ti-

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nham idia de sua importncia em relao ao que era ensinado, e como. O currculo tradicional inclua disciplinas como a Histria do Direito Romano e a Teoria de Jurisprudncia para a sociedade pr-revolucionria, e que agora, bvio, haviam se tornado inadequadas. Mas ningum havia ainda decidido como seriam os novos programas, e nossos professores estavam confusos. Recordo-me dos esforos patticos empreendidos por um professor de Direito Romano, na tentativa de adaptar-se nova situao. Ele mudou o nome de sua disciplina para "As Bases Sociais do Direito", mas as tentativas que fez no sentido de modernizar as aulas foram completamente infrutferas. A confuso era pequena nas escolas de medicina, fsica, matemtica e qumica, mas era gritante nas cincias sociais, onde eu estudava. Neste contexto, as discusses estudantis e os projetos preparados por estudantes passaram a dominar as aulas dos professores. Havia inmeras reunies de grupos de estudantes e associaes cientficas, onde eram discutidos assuntos gerais, especialmente poltica e a conformao da sociedade futura. Participei de muitas destas atividades; sob esta influncia passei a me interessar pelo socialismo utpico, imaginando que me ajudaria a compreender os progressos posteriores. Estas discusses acerca da histria contempornea tambm envolveram-se com certas questes relativas ao papel do homem na conformao da sociedade: de onde vm as idias sociais? Como se desenvolvem? Como se alastram? Como podem tornar-se uma fora motriz do conflito e das mudanas sociais? Procurei livros que tratassem destas questes. Lembro-me de um livro de Petrazhiskis sobre as razes psicolgicas da lei e da emoo. Tambm me lembro de ter lido o A Teoria dos Impulsos Humanos, do economista L. Brentano. Cheguei a traduzi-lo para o russo e a public-lo pela Associao Estudantil de Cincias Sociais. Este dois volumes me levaram a querer desenvolver uma abordagem psicolgica concreta dos eventos da vida social. Cheguei a elaborar um ingnuo plano para escrever um livro sobre estes assuntos. Esse tipo de projeto era tpico da poca, e embora no houvesse a menor chance de que eu realmente escrevesse tal livro, este tipo de ambio deu forma a meu desenvolvimento intelectual.

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Pouca coisa de valor encontrei na seca psicologia acadmica pr-revolucionria, que ento prevalecia nas universidades, e que era fortemente influenciada pela filosofia e pela psicologia alems. Muitos psiclogos estavam ainda elaborando os problemas propostos, havia j muitos anos, por Wilhelm Wundt, pela escola de Wurzburg e pelos filsofos neokantianos. Os psiclogos ainda conservavam a idia de que o objeto da psicologia era a experincia imediata. Para estudarem a experincia imediata, colhiam relatos introspectivos dessas experincias vividas por pessoas em montagens laboratoriais cuidadosamente controladas. As afirmaes destas pessoas sobre o que haviam sentido eram ento analisadas, na tentativa de se descobrirem os elementos bsicos da mente e sua forma de combinao. Esta abordagem conduzia invariavelmente a interminveis discusses, em parte porque no havia acordo acerca do que eram os elementos mentais bsicos, independentemente do cuidado tomado na conduo dos experimentos. Esta psicologia no me atraa por outras razes tambm. As teorias clssicas alems acerca da combinao de associaes tinham uma ligao muito forte com as idias de leis de associao, que se originaram com os antigos gregos. Recordo-me de ter simpatizado com Harold Hoffding, que propunha que as leis de associao no explicavam a memria. Seu argumento era forte: se dois elementos, a e b, so associados por ocorrerem simultaneamente, atravs de que mecanismo poderia uma nova experincia A evocar a memria de b? Wundt diria que A associado a a, e por isso evoca a memria de b. Mas se A est ocorrendo pela primeira vez, como poderia ser associado a a? A resposta seria que A e a so de alguma maneira "semelhantes". Mas no haveria base para que se estabelecesse a relao de semelhana at que as associaes entre A e a j estivessem estabelecidas! Mesmo criticando os pontos fracos do associacionismo simples, Hoffding aceitava os mtodos, ento em voga, de coleta e anlise de dados psicolgicos. Eu concordava com suas crticas, mas no as achava suficientemente fortes. Deprimia-me constatar quo ridos, abstratos e afastados da realidade eram aqueles argumentos. Eu queria uma psicologia que se aplicasse s pessoas de fato, na sua vida real, e no uma abstrao intelectual num laboratrio. A psicologia acadmica era para mim terrivelmente de27

sinteressante, porque no via qualquer ligao entre a pesquisa e o lado de fora do laboratrio. Queria uma psicologia relevante, que conferisse alguma Substncia a nossas discusses sobre a construo de uma nova vida. Insatisfeito com as contradies acerca dos elementos da mente, procurei alternativas naqueles acadmicos que criticavam a psicologia de laboratrio. Neste ponto recebi influncia dos neokantianos alemes, homens como Rickert, Windelband e Dilthey. Dilthey me interessou particularmente, porque se preocupava com as reais motivaes que energizam a vida das pessoas, e com os princpios e idias que guiam suas vidas. Ele me introduziu Reale Psychologie, na qual o homem seria estudado como um sistema dinmico e unificado. Para ele, o perfeito entendimento da natureza humana seria a base daquilo a que ele se referia como Getsteswissenschaften, ou "cincias sociais". Esta no era a psicologia dos compndios, e sim uma psicologia prtica, baseada num entendimento do ser humano vivo e interagindo com o mundo. Era uma psicologia que descrevia os valores humanos, mas no se arvorava a explic-los em termos de seus mecanismos internos, assumindo que seria impossvel realizar uma anlise fisiolgica do comportamento humano. Ao mesmo tempo em que estas idias me atraam, os problemas ligados sua implementao tornaram-se claros para mim, pela leitura das crticas obra de Dilthey feitas por Windelband e Rickert. Eles perguntavam-se se a psicologia era uma cincia natural, como a fsica ou a qumica, ou uma cincia humana, semelhana da histria. Assim, faziam uma distino entre as leis das cincias naturais e as das cincias humanas. As leis da cincia natural eram generalizaes que se aplicavam a uma multiplicidade de eventos individuais. As leis que descrevem a queda dos corpos, em geral, tambm descrevem a queda de um corpo em particular. Estas leis eram classificadas como "nomotticas", em oposio ao pensamento "idiogrfico", pelo qual os eventos e as pessoas so estudados individualmente, e no como exemplos de alguma lei natural ou cientfica. Os fatos ou pessoas estudados pela histria so bons modelos de abordagem idiogrfica. Por exemplo, um historiador estudaria Pedro o Grande como um tsar que ocidentalizou a Rssia, e no como um representante de toda a classe dos tsares, e nem mesmo de todos os tsares progressistas.

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Animava-me a idia, colocada por Dilthey, de uma psicologia realista, que refletisse aquilo que conheo como verdadeiro das complexidades de uma pessoa real, mas eu estava convencido de que seu enfoque descritivo no era suficiente. Queria uma psicologia que superasse esse conflito; que descrevesse os fatos concretos da vida mental do indivduo humano, gerando simultaneamente leis explicativas. Enquanto lutava com este conflito, travei contato com as obras primitivas da escola psicanaltica. O A Interpretao dos Sonhos, de Sigmund Freud, havia sido traduzido para o russo, com uma srie de seus primeiros trabalhos. Outros escritos seus, assim como de Alfred Adler e C. G. Jung (inclusive seu Estudos de Associaes em Diagnstico), estavam disponveis em alemo. Muitas das idias de Freud me pareceram especulativas e um pouco fantsticas, mas o uso do mtodo associativo no estudo dos conflitos emocionais e dos complexos me pareceu promissor. Pensei: aqui est uma abordagem cientfica que combina uma forte explicao determinista do comportamento individual concreto com uma explanao das origens das necessidades humanas complexas nos termos da cincia natural. Talvez a psicanlise servisse como base de uma Realepsychologie cientfica, que superasse o dualismo nomottico-idiogrfico. Aos vinte anos, quando completava minha educao formal, comecei a escrever um livro sobre estas idias. O projeto no foi alm da cpia manuscrita que est hoje em meus arquivos. Ainda que este trabalho no tenha valor cientfico, vale a meno minha tentativa, pois minhas ambies eram caractersticas da gerao jovem da poca. Tambm era caracterstica a maneira pela qual mergulhei na pesquisa psicanaltica. Para comear, fundei um pequeno crculo psicanaltico. Cheguei a encomendar papis timbrados com os dizeres "Associao Psicanaltica de Kazan" impressos no caberio em alemo e em russo. Mandei notcias da formao do grupo ao prprio Freud, e com surpresa e agrado recebi sua resposta, endereada ao "Querido Sr. Presidente". Freud expressou sua satisfao em saber que um crculo psicanaltico havia sido fundado numa cidade to remota da Rssia. Esta carta, em caligrafia gtica alem, est ainda em meus arquivos, na companhia de uma outra em que Freud autorizou a publicao da traduo russa de um de seus livros menores.

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Neste primeiro estgio, meus esforos me levaram a alguns estudos exploratrios em pacientes do Hospital Psiquitrico de Kazan, que fazia parte da escola de medicina, e nada mais. Curiosamente, um dos pacientes com quem trabalhei era a neta de Fiodor Dostoyevsky. Preenchi meus cadernos com suas associaes livres, mas no estava em posio de capturar "a realidade concreta do fluxo de idias". Vendo a coisa colocada desta maneira, torna-se claro por que este enfoque no levaria a parte alguma. Anos depois, publiquei alguns artigos baseados nas idias psicanalticas, e escrevi o esboo de um livro que dava um enfoque objetivo psicanlise, que nunca foi publicado. Mas finalmente conclu ser um erro acreditar que pudssemos deduzir o comportamento humano de um conhecimento das "profundezas" biolgicas da mente, excluindo suas "alturas" sociais. Quando me graduei na Universidade de Kazan, em 1921, meu futuro na cincia no estava de modo algum definido. Meu pai me incitava a entrar na escola de medicina. Mas minha ambio primordial era tornar-me um psiclogo. Queria participar da criao de um enfoque objetivo do comportamento, que se concentrasse em eventos da vida real. Ento, me comprometi a abraar as duas carreiras simultaneamente. Naquela poca, era possvel estudar simultaneamente em mais de uma escola. Comecei ento a ter aulas de medicina, e cheguei a completar dois anos de escola mdica antes de interromper meus estudos, que s seriam retomados muitos anos depois. Ao mesmo tempo, freqentava o Instituto Pedaggico e o Hospital Psiquitrico de Kazan. A despeito de todos estes contatos institucionais, no foi fcil adquirir experincia no uso de tcnicas de laboratrio. No havia laboratrio ativo na Universidade de Kazan ou no Instituto Pedaggico. Um dos primeiros laboratrios psicolgicos russos, fundado no final de 1880 por V. M. Bekhterev, no Hospital Psiquitrico da Universidade de Kazan, havia desaparecido sem deixar rastros. O nico equipamento de laboratrio que encontrei na universidade foi um cronoscpio Hipp para medida de tempo de reao, velho e fora de uso. Enquanto procurava uma oportunidade de tomar contato com mtodos de laboratrio, lia todos os livros de psicologia que encontrava. O Estudos das Associaes em Diagnstico, de Jung, que sugeria maneiras totalmente no30

vas de se aplicarem mtodos objetivos no estudo dos processos psicolgicos, me impressionou sobremaneira. Tambm me marcou o trabalho de William James, As Variaes da Experincia Religiosa, que considerei uma brilhante descrio das formas concretas de um processo psicolgico. Foi nesta poca, enquanto elaborava estas leituras, que descobri alguns artigos de Bekhterev e de I. P. Pavlov. O fato de ambos proporem abordagens objetivas a problemas que os psiclogos s podiam discutir subjetivamente me impressionou de imediato. Os experimentos de Pavlov com condicionamento me entusiasmaram especialmente. Atualmente, aceitamos como uma verdade simples sua demonstrao de que possvel medirem-se os processos de excitao e inibio do sistema nervoso central, que medeiam o caminho entre um estmulo perifrico e o reflexo da salivao. Na poca, porm, isto tinha implicaes revolucionrias. Agarrei uma oportunidade de colocar minhas idias em prtica, aceitando o cargo de assistente de laboratrio no Instituto de Organizao Cientfica do Trabalho de Kazan, que havia sido estabelecido no imediato perodo psrevolucionrio. Usando o cronoscpio Hipp que havia encontrado na universidade, iniciei um estudo sobre os efeitos do trabalho pesado sobre a atividade mental. Meus sujeitos eram os trabalhadores de uma fundio. Tentei medir a influncia de instrues verbais sobre seu tempo de reao. Os resultados que obtive eram rudimentares e no muito interessantes, mas, tentando public-los, embarquei num caminho que acabou me levando a Moscou. Tendo lido muito da obra de Bekhterev, e conhecendo o largo espectro de seus interesses, meus colegas e eu decidimos fundar um jornal, na esperana de que Bekhterev integrasse o conselho editorial. O nome que escolhemos para esta empreitada foi "Problemas de Psicofisiologia do Trabalho", e eu fui o escolhido para ir a Petrogrado (hoje Leningrado) para convidar Bekhterev a participar. Minha primeira visita a Petrogrado foi uma grande aventura. Bekhterev, ento um senhor j idoso, com uma longa barba branca, me conduziu por seu Instituto do Crebro, que ainda hoje leva seu nome. Impressionaram-me sua grande energia e aquele mundo, totalmente diferente do que eu conhecia em Kazan. 31

Bekhterev concordou em tornar-se membro do nosso conselho editorial, com uma condio: teramos que anexar ao ttulo as palavras "e Reflexologia", o nome que ele havia dado a seu sistema psicolgico. De pronto aceitamos, e Bekterev tornou-se um dos editores-chefe. O outro era um venervel fisiologista da Universidade de Kazan, N. A. Mislavsky, que na verdade nada tinha a ver com psicologia, trabalho ou reflexologia. Havia escassez de papel naquela poca, e eu emprestei alguns pacotes de papel amarelo de uma fbrica de sabo para imprimir a primeira edio do jornal. Esta atividade empreendedora acadmica teve conseqncias que eu no havia previsto: o final de meu "aprendizado" cientfico em Kazan e um convite para ir a Moscou. Neste perodo de minha vida, tateava ingenuamente. Mesmo assim, cinqenta anos depois sinto que muitas daquelas atividades foram significativas para meu desenvolvimento enquanto psiclogo. Ao longo dos anos, a aparncia superficial de meu trabalho mudou bastante. Mas os temas centrais que haviam guiado meus primeiros esforos subsistiram.

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2. MOSCOU

Em 1923 o professor K. N. Kornilov, o recm-empossado diretor do Instituto de Psicologia de Moscou, convidou-me a integrar sua equipe. Havia me escolhido porque necessitava de colaboradores jovens de orientao objetiva, que se dispusessem a envolver-se com psicologia experimental. Meus primeiros artigos, publicados em papel de sabo, e que utilizavam mtodos objetivos para estudar o efeito da fadiga nas reaes motoras, haviam atrado sua ateno. Encontrei em Moscou uma cidade que, como Kazan, estava entusiasticamente engajada no trabalho de reconstruo. Mas, diferena de minhas condies de trabalho em Kazan, os psiclogos moscovitas tinham metas bem estabelecidas e meios adequados pesquisa especializada. Reuni-me a um pequeno grupo acadmico, cuja tarefa era reconstruir a psicologia russa, a fim de aproxim-la das metas revolucionrias. Mas aqui necessrio fazer uma pequena digresso, para deixar claro qual era o contexto que me esperava em Moscou. Os primeiros laboratrios psicolgicos da Rssia foram criados por Bekhterev na dcada de 1880, primeiro em Kazan e depois em So Peters burgo. S em 1911 foi fundado um Instituto de Psicologia, por I. G. Chelpanov, um filsofo e lgico mentalista que tambm havia lecionado psicologia. J familiarizado com a pesquisa psicolgica que se realizava no ocidente havia algum tempo, Chelpanov previu a utilidade, em Moscou, de um instituto semelhante. Um edifcio especial foi construdo no campus da Universidade de Moscou, e foi montada uma excelente coleo de instrumentos experimentais alemes (incluindo o meu colega, o cronoscpio Hipp). Chelpanov foi o primeiro diretor do instituto. Em essncia, o trabalho que era de-

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senvolvido l consistia numa tentativa de replicar o contedo dos compndios de Wundt e E. B. Titchener e at da "psicologia emprica" de Hoffding (que, naquela poca, j havia adquirido um valor simblico negativo para mim, devido ao seu tedioso contedo). Chelpanov havia publicado um compndio de psicologia para escolas secundrias, que na poca da Revoluo j estava quase na vigsima prensagem. Este grande volume, intitulado Crebro e Mente, era consagrado discusso da relao entre a experincia subjetiva e o mundo material. Nele, Chelpanov abordava o mais srio problema da psicologia europia da poca: o crebro um lugar de interao entre mente e matria, ou as duas apenas funcionariam paralelamente? A posio adotada por Chelpanov era a de que um enfoque materialista da mente seria intil. A idia de separar o crebro da mente era to arraigada que at mesmo Pavlov deu as boas-vindas ao instituto de Chelpanov, quando este se integrou ao crculo cientfico russo. Numa carta endereada a Chelpanov, quando da abertura do instituto, Pavlov observou que as atividades do crebro eram to complexas que demandavam mtodos de estudo to intensivos quanto variados, e assim "qualquer um que exclua totalmente de seu laboratrio qualquer meno a estados subjetivos congratula-se cordialmente com o Instituto de Psicologia e com seu fundador". Esta carta, escrita em 1914, s foi publicada em 1955. Se a pesquisa no Instituto houvesse continuado como comeou, no se chegaria a qualquer resultado muito importante, salvo pela evidncia adicional nos campos de limiares da sensao visual ou da abrangncia da memria, e nos estudos descritivos do pensamento. Aparentemente, no havia como unir a psicologia acadmica aos problemas sociais da prtica. Havia pesquisa neste ltimo campo, como a realizada pelo neurologista G. I. Rossolimo e pelo psiquiatra A. N. Bernshtein, que estavam empreendendo uma importante investigao em psicologia mdica, mas no havia nada do tipo dentro do Instituto. Depois da Revoluo, o trabalho do instituto foi reavaliado. A psicologia isolada numa torre de marfim foi considerada antittica s metas da Revoluo, e em 1922 foram iniciadas as mudanas que ligariam as atividades do Instituto a uma reconstruo cientfica da vida. 34

Kornilov, um dos estudantes de Chelpanov, havia desenvolvido uma tcnica que, segundo ele, poderia medir o esforo mental. Trabalhando com variaes sobre o paradigma do tempo de reao, Kornilov servia-se de um engenho que media a fora e a durao de reaes motoras. Ele supunha que um organismo possua uma medida fixa de energia, que seria partilhada pelos sistemas mental e motor. Quanto maior a energia despendida no componente mental de uma ao, menor seria a frao destinada ao componente motor. Kornilov ingenuamente sups que sua tcnica poderia medir esta "energia". Previu que a fora motora seria mxima nas reaes simples, menor nas reaes durante as quais o sujeito teria que escolher entre dois estmulos, e menor ainda nas respostas que envolvessem escolhas associativas complexas. claro que Kornilov nunca mediu a energia mental diretamente. Simplesmente afirmou t-la medido, baseado em suas suposies. Tambm afirmou ter criado uma abordagem materialista do estudo da mente, que, ele supunha, englobava toda atividade humana e era coerente com Marx e Engels. Ainda que sua abordagem, que ele denominou "reactologia", fosse ingnua, naturalista e mecanicista, parecia conter uma alternativa psicologia abertamente idealista de Chelpanov. Assim, em 1923, Chelpanov desistiu do cargo de diretor do instituto, e Kornilov foi nomeado o novo diretor. A filosofia marxista, um dos sistemas de pensamento mais complexos do mundo, foi assimilada lentamente pelos eruditos soviticos, entre os quais me incluo. Para falar a verdade, nunca cheguei a dominar o Marxismo tanto quanto desejava. Ainda considero esta uma das maiores falhas de minha educao. No deve surpreender, portanto, que embora naquela poca muitas discusses evocassem o Marxismo, elas no se davam num terreno l muito slido. De qualquer maneira, a meta de reconstruir a psicologia sobre bases materialistas, colocada explicitamente por Kornilov, foi na poca um passo frente. Tornou possvel dar ao trabalho no Instituto um sentido mais produtivo, e arregimentar hordas de jovens acadmicos para ajudar na indispensvel reconstruo da psicologia. Assim, a razo pela qual meu trabalho era atraente para Kornilov deve ficar clara: viu em mim um reflexo de seus prprios preconceitos.

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Quando cheguei, a situao do Instituto era de fato muito peculiar. Os nomes de todos os laboratrios haviam mudado, de modo a inclurem o termo "reaes": havia um laboratrio de reaes visuais (percepo), um de reaes mnemnicas (memria), um de reaes emocionais, e assim por diante. O objetivo de tudo isto era eliminar quaisquer traos de psicologia subjetiva, e substitu-la por um tipo de behaviorismo. O pessoal era novo e inexperiente. Ningum tinha mais que vinte e quatro anos, e poucos haviam passado por um treinamento apropriado; mas o entusiasmo era geral, e era muito grande a variedade de trabalhos feitos sobre as mais diversas reaes: ratos albinos percorriam labirintos. estudavam-se cuidadosamente as reaes motoras de adultos, e era dada ateno a problemas de educao. Em conjunto com este ativo programa de pesquisa, havia o ensino, j que o instituto era tambm um campo de treinamento para os futuros psiclogos. Os jovens estudantes compunham-se de novatos como eu e dos que restavam do currculo de Chelpanov. Eu tinha a mesma idade e sabia tanto quanto muitos de meus alunos, ento passava as noites preparando textos e demonstraes para as aulas do dia seguinte, na esperana de me manter pelo menos um dia a frente de meus estudantes. Foi nesta poca que conheci o jovem Alexei N. Leontiev, a quem desde ento estive estreitamente ligado. Entre meus alunos estavam I. M. Soloviev e L. V. Zankov, que se tornariam importantes foras intelectuais da psicologia sovitica. Talvez a nica maneira segura de caracterizar meus sentimentos poca do comeo da minha vida profissional seja dizer que eram altamente ambguos. Tinha grande simpatia pelos esforos do instituto em desenvolver mtodos objetivos de pesquisa. No conferia grande importncia s tentativas de medida de energia mental. O esquema mecanicista de Kornilov era sem dvida uma hipersimplificao. Mas o interesse que eu j tinha pela psicanlise me ajudou a superar esta ambivalncia e a encontrar algo til para fazer. Cheguei a dar uso a um "dinamoscpio", um tubo de vidro em forma de U repleto de mercrio, que era usado por Kornilov para registrar a fora de um movimento numa tira de papel. Nos meus primeiros experimentos em Kazan, havia utilizado um instrumento semelhante para medir a inten36

sidade de reaes motoras, e na poca havia registrado um fenmeno curioso. Se crissemos condies em que os sujeitos experimentassem a sensao de dvida, como, por exemplo, faz-los decidir entre apertar ou no um boto, a linha que registrava seus movimentos assumia uma forma descontnua; a curva suave que era geralmente obtida se distorcia de uma maneira que parecia refletir a incerteza do sujeito. Decidi tentar transformar estas observaes-piloto num estudo objetivo e experimental do conflito, da tenso e das emoes fortes. Em outras palavras, decidi dar incio minha prpria "psicanlise experimental", usando a distoro de respostas motoras como um indicador objetivo de conflitos emocionais internos. Um dos componentes da tcnica que desenvolvemos era a associao livre, como a usada por Jung em seu Estudos de Associaes em Diagnstico (1910). Demandvamos do sujeito que se engajasse numa resposta motora simultnea resposta associativa verbal. Enfatizo a palavra "simultnea" porque a lgica de nossa abordagem dependia de que os componentes verbal e motor de uma determinada resposta constitussem um sistema funcional unitrio. S a partir de sua simultaneidade poderamos confiar que uma reao emocional se refletiria numa quebra do padro estabelecido pela componente motora do sistema. Demos incio a um intensivo perodo de pesquisas que se prolongaria por muitos anos. Primeiramente, Leontiev e eu conduzimos estudos com estudantes que se preparavam para seus exames. Instruamos cada sujeito a apertar um pequeno bulbo de borracha com sua mo direita, enquanto mantinha sua mo esquerda relaxada segurando outro bulbo, e simultaneamente expressando a primeira palavra que vinha sua mente em resposta a nosso estmulo verbal. Apresentamos dois tipos de estmulo verbal. Primeiro, havia os estmulos "neutros", palavras comuns que imaginvamos no ter qualquer significado especial para algum que enfrentaria seus exames. Entremeados a esses, havia os estmulos "crticos", palavras como "exame", "frmula", e "passou", que estavam ligadas difcil experincia pela qual passariam os estudantes. Quando estudvamos as associaes livres ou os tempos de reao do estudante, sem lanar mo de qualquer outro dado, tnhamos dificuldades em distinguir suas respostas s duas classes de es37

tmulos. Mas se levssemos em conta o componente motor, que mostrava como o movimento voluntrio de apertar um bulbo era abalado pela emoo criada por um determinado estmulo, podamos distinguir com segurana as palavras crticas para aquele sujeito. Ento decidimos tentar usar esta tcnica para descobrir os "complexos ocultos" de pessoas. O fenmeno que tnhamos em mente era aquele pelo qual se interessavam Freud e a escola psicanaltica: experincias carregadas de emoo, situadas muito alm dos limites da experincia em si, que motivam e guiam o comportamento das pessoas. Comeamos por desenvolver um modelo do problema em laboratrio, de acordo com o que, imaginvamos, ocorria na vida real. Para isto, precisvamos distinguir confiavelmente entre respostas a estmulos crticos ou neutros. Nosso modelo experimental funcionava como exposto a seguir. Meu assistente criava uma estria que era contada a diversos sujeitos. Uma das estrias, por exemplo, era sobre um ladro que arrombava a janela de uma igreja e roubava um candelabro de ouro, um cone e um crucifixo. Os sujeitos eram instrudos a lembrarem-se da estria, mas no falarem sobre ela. Ento, pedamos a estes e a outros sujeitos que no haviam ouvido a estria que participassem de um experimento, em que responderiam a uma lista de cerca de setenta palavras - dez das quais eram crticas em relao estria - apertando um bulbo com a mo direita durante as associaes livres. Minha tarefa era determinar, a partir dos registros combinados das respostas motoras e verbais, quais eram as palavras crticas, quem conhecia e quem no conhecia a estria, e que estria era essa. Esse modelo de laboratrio funcionou bem. No decorrer do tempo, a aplicao mais extensiva desta tcnica fora de nosso laboratrio se deu ligada ao sistema de justia criminal. Em princpio, os psiclogos interessados no estudo das emoes sempre buscaram maneiras de produzir estados emocionais com durao e estabilidade suficientes para serem estudados. Muitas das tentativas anteriores ao nosso estudo, no entanto, no haviam obtido sucesso. Via de regra, estados emocionais agudos, como medo ou repugnncia, eram evocados artificialmente no laboratrio, disparando-se de surpresa um revlver atrs do sujeito, ou apresentando fezes perante seu nariz. Estes mtodos tinham dois inconvenientes. Em primeiro lugar, a emoo 38

no fazia parte da situao real do sujeito, sendo apenas um acidente artificial sem qualquer relao com seus propsitos e motivaes. E em segundo lugar, estados agudos evocados desta maneira so rapidamente dissipados. Decidimos que uma maneira de superar essas inadequaes de nossas pesquisas prvias, e das de outros cientistas, era trabalhar diretamente com pessoas que estavam experimentando emoes fortes na vida real. Escolhemos trabalhar com criminosos confessos ou suspeitos. Imaginamos que se pudssemos estudar criminosos logo aps sua priso, e a diversos perodos de tempo depois da priso, como por exemplo na vspera do julgamento, poderamos observar as emoes fortes que so parte integrante da vida de uma pessoa. Tais situaes geralmente produzem diversas emoes intensas: aquelas provenientes do prprio crime, aquelas provocadas pela deteno e pelo encarceramento, e as evocadas pelo medo da punio. Tambm imaginamos que se tivssemos oportunidade de estudar sujeitos que mais tarde fossem julgados inocentes, teramos um grupo contrastante, no qual o medo da priso e as emoes advindas da incerteza da situao estariam presentes, mas que no teriam qualquer conhecimento dos detalhes do crime. Estes detalhes poderiam ser usados como estmulos crticos no teste motor combinado, e poderamos utilizar os dados resultantes no sentido de reconstituir os acontecimentos e determinar o culpado. No ramos os primeiros, claro, a conceber tal trabalho com criminosos, mas os pesquisadores anteriores haviam se restringido a trabalhar com criminosos culpados, somente aps a libertao destes. Ns tnhamos a liberdade de trabalhar com sujeitos desde a priso at aps o julgamento. Durante diversos anos de estudo, coletamos dados experimentais de mais de cinqenta indivduos, a maioria dos quais eram assassinos suspeitos ou confessos. Uma das primeiras coisas que descobrimos neste trabalho que as emoes fortes impedem os sujeitos de formar respostas verbomotoras estveis e automticas, ao passo que sujeitos de inteligncia equivalente, operando em circunstncias consideradas normais, conseguem obter estas respostas aps poucas tentativas. Aparentemente, os sujeitos influenciados por emoes fortes se adaptavam a cada nova situao de maneira nica, e nunca atingiam um padro estvel de reao. Os sujeitos no s apresentavam respostas verbais motoras instveis, quando

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consideradas separadamente, como tambm pareciam incapazes de criar um sistema funcional nico que inclusse os componentes verbais e motores, atrasando freqentemente o componente verbal de suas respostas. A difuso descontnua do comportamento organizado era um impedimento descoberta da presena ou ausncia de uma fonte localizada de emoo, que seria esperada de um criminoso que tivesse conhecimento especfico do crime; a base de comparao era por demais varivel. Em todos os casos, adotamos o procedimento de comparar as respostas do sujeito a diversos estmulos: aqueles que certamente eram neutros, aqueles cuja neutralidade era duvidosa, e aqueles que estavam estreitamente vinculados ao crime. Utilizando este procedimento de comparar as respostas de um s sujeito a diferentes estmulos, freqentemente constatvamos a possibilidade de descobrir o criminoso entre os suspeitos. Como obtivemos permisso para realizar este trabalho antes do interrogatrio formal, podamos utilizar a evidncia criminal posterior para verificar nossas hipteses. Este trabalho apresentou valor prtico para os criminologistas, que obtiveram um modelo primitivo do detector de mentiras. Para ns representou a realizao do objetivo que eu tinha me proposto quando vim a Moscou: aplicar mtodos objetivos ao estudo de situaes emocionais que fossem parte integral da vida das pessoas. Ainda que fundamento terico de grande parte deste trabalho fosse por demais simplista, eu o considerava muito mais empolgante que a "reactologia" de Kornilov, que continua a desligada dos problemas da vida real. Talvez pelo fato de o estilo deste trabalho ser muito caracterstico da poca, a pesquisa granjeou interesse fora da Rssia. Max Wertheimer publicou um de meus primeiros artigos na Psychologische Forschungen. Mais tarde, esta linha de pesquisa chamou a ateno de pesquisadores americanos, um dos quais, Horsely Gantt, que havia traduzido o livro de Pavlov sobre os reflexos condicionados, traduziu meu trabalho sob o ttulo de A Natureza dos Conflitos Humanos - que foi publicado nos Estados Unidos em 1932. Agradou-me particularmente que o prefcio fosse escrito pelo eminente psiquiatra Adolph Meyer, que dizia de nosso trabalho: "Luria nos apresenta uma verdadeira psicologia, e no tautologias neurologizantes, num contato extraordinariamente prximo com o trabalho de Lashley e

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de outros pesquisadores americanos, verdadeiramente ocupado dos problemas humanos. Ele demonstra uma aplicabilidade dos mtodos do laboratrio ao ser humano muito mais ampla do que aquela que geralmente esperada em nosso ambiente intelectual, sem entregar-se a conceitos meramente psicologizantes". Encontrei Meyer pela primeira vez muitos anos depois, Agora, quarenta e cinco anos aps a publicao do livro, permaneo agradecido a este grande psiquiatra pelo apoio moral que deu primeira fase do meu trabalho. Com a perspectiva de quase meio sculo, percebo nessa pesquisa valores e limitaes. Com ela, atingi minhas primeiras metas, e ao mesmo tempo abri para mim novos caminhos de pesquisa, como as que fiz sobre a afasia e o desenvolvimento infantil, que assumiriam importncia central no meu trabalho posterior. Mesmo assim, minhas aplicaes iniciais do mtodo motor combinado tinham um valor limitado. Ao mesmo tempo em que representavam uma sntese das tcnicas e abordagens que existiam separadas antes de nossos estudos, no levaram a uma reconstruo bsica da psicologia enquanto cincia. Esta tarefa gigantesca, que estava alm de minha limitada capacidade, se apresentou a mim, inesperadamente, no ano de 1924. Nesse ano conheci Lev Semionovitch Vygotsky. Este acontecimento representou um ponto de virada em minha vida e na de meus colegas da psicologia sovitica.

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3. VYGOTSKY

No exagero dizer que Vygotsky era um gnio. Em mais de cinco dcadas de trabalho no meio cientfico, nunca mais encontrei qualquer pessoa cujas qualidades se aproximassem das de Vygotsky: sua clareza mental, sua habilidade na identificao da estrutura essencial de problemas complexos, a extenso de seu conhecimento em vrios campos, e a capacidade que tinha de antever o desenvolvimento futuro de sua cincia. Conhecemo-nos no incio de 1924, no Segundo Congresso Psiconeurolgico, em Leningrado. Esse era, na poca, o frum mais importante para os cientistas soviticos que trabalhavam com psicologia em geral. Kornilov trouxe vrios colegas mais jovens do Instituto de Psicologia, entre os quais me inclua. Quando Vygotsky se levantou para dar sua palestra, no portava consigo qualquer texto impresso, e nem mesmo notas. No entanto, falava fluentemente, e parecia nunca ter que vasculhar a memria procura da prxima idia. Fosse prosaico o contedo de sua fala, esta seria admirvel pelo encanto de seu estilo. Mas sua fala no foi, de modo algum, prosaica. Ao invs de atacar um tema menor, como talvez fosse conveniente a um jovem de vinte e oito anos que est falando pela primeira vez aos decanos de sua profisso, Vygotsky escolheu como tema a relao entre os reflexos condicionados e o comportamento consciente do homem. No ano anterior, Kornilov havia usado esse mesmo pdio para desferir um ataque s teorias introspectivas da psicologia. Seu ponto de vista havia prevalecido, e sua abordagem objetiva e reactolgica era dominante no nosso instituto. Era muito conhecida a posio de Bekhterev e Pavlov psicologia subjetiva, na qual o conceito de "cons43

cincia" era fundamental. Mesmo assim, Vygotsky defendeu a permanncia do conceito de "conscincia" na psicologia, mas propondo que fosse estudada por mtodos objetivos. Ainda que ele no tenha conseguido convencer a todos da consistncia de seu ponto de vista, tornou-se claro que este homem, de uma cidade provinciana do Oeste da Rssia, era uma potncia intelectual que no podia ser ignorada. Decidiu-se que Vygotsky seria convidado a integrar a jovem equipe do novo Instituto de Psicologia de Moscou. No outono daquele mesmo ano, Vygotsky chegou ao Instituto, e iniciamos ento uma colaborao que duraria at sua morte, uma dcada depois. Antes do congresso de Leningrado, Vygotsky havia lecionado num colgio de professores em Gomei, uma cidade do interior, no muito longe de Minsk. Era um crtico literrio, por formao e sua dissertao sobre o Hamlet de Shakespeare at hoje considerada um clssico. Nesse seu trabalho, assim como nos estudos que havia feito em torno de fbulas e outras obras de fico, revelava-se uma capacidade impressionante de realizar anlises psicolgicas. Havia sido influenciado pelos eruditos que se interessavam pelos efeitos da linguagem nos processos de pensamento. Remetia-se aos trabalhos do russo A. A. Potebnya e de Alexander von Humboldt, que havia formulado pioneiramente a hiptese de Sapir-Whorf acerca da relatividade lingstica. O trabalho de Vygotsky na escola normal o colocara em contato com crianas que sofriam de defeitos congnitos - cegos, surdos e deficientes mentais e tambm com a necessidade de ajudar essas crianas a realizarem suas potencialidades individuais. Procurando solues para esses problemas, interessou-se pela psicologia acadmica. Quando Vygotsky chegou em Moscou, eu ainda estava realizando experimentos com o mtodo motor combinado junto com Leontiev, um antigo aluno de Chelpanov com quem estou associado desde ento. Reconhecendo suas raras habilidades, Leontiev e eu nos regozijamos quando conseguimos inclu-lo em nosso grupo de estudo, que chamvamos a "troika". Tendo Vygotsky como nosso lder reconhecido, empreendemos uma reviso crtica da histria e do status da psicologia na Rssia e no resto do mundo. Nossa meta, excessivamente ambiciosa maneira caracterstica da poca, 44

era a criao de uma nova abordagem abrangente dos processos psicolgicos humanos. Desde o princpio, compartilhvamos a opinio de que nem a psicologia subjetiva proposta por Chelpanov nem as tentativas de reduzir a atividade consciente como um todo a esquemas simplistas baseados nos reflexos representavam um modelo satisfatrio da psicologia humana. Era necessria uma nova sntese das verdades parciais existentes at ento. Vygotsky foi o primeiro a antever o esboo dessa nova sntese. Estudando intensivamente textos alemes, franceses, ingleses e americanos, Vygotsky desenvolveu uma anlise daquilo que denominava a crise na psicologia. Discutiu essas idias em diversas conferncias, e chegou a transform-las em texto no ano de 1926, quando foi hospitalizado para tratamento de tuberculose. Infelizmente, esse trabalho nunca foi publicado; o manuscrito foi perdido durante a Segunda Guerra, e no se encontrou qualquer cpia at 1960, ocasio em que o trabalho retornou a seus arquivos. De acordo com a anlise de Vygotsky, a situao da psicologia mundial no incio do sculo vinte era extremamente paradoxal. Durante a segunda metade do sculo dezenove, Wundt, Ebbinghaus e outros haviam conseguido transformar a psicologia numa cincia natural. Estratgia bsica de seu enfoque era a reduo de eventos psicolgicos complexos a mecanismos elementares que pudessem ser estudados no laboratrio atravs de tcnicas experimentais exatas. Desconsiderava-se o "sentido" ou "significado" dos estmulos complexos, com o propsito de neutralizar a influncia de experincias extra laboratoriais, que o experimentador no poderia controlar ou avaliar. Sons e luzes isolados e slabas desprovidas de significado eram os estmulos mais usados para deflagrar o comportamento. A meta dos pesquisadores passou a ser a descoberta das leis reguladoras dos mecanismos elementares que possibilitavam esse tipo de comportamento em laboratrio. Mesmo reconhecendo o sucesso de tal iniciativa, Vygotsky indicava que a conseqncia essencial dessa estratgia era a excluso de todos os processos psicolgicos superiores, como a ao consciente, a ateno voluntria, a memorizao ativa e o pensamento abstrato, da esfera da cincia. Tais fenmenos eram ignorados (como nas teorias derivadas dos princpios dos reflexos) ou abandonados 45

descrio idealista (como na noo de percepo, formulada por Wundt). Os psiclogos naturalistas, ao fracassarem na tentativa de incorporar ao seu trabalho as funes humanas complexas, estimularam Dilthey, Spranger, e outros, a buscarem uma abordagem alternativa. Estes tomaram como objeto de estudo exatamente aqueles processos que os cientistas naturais no conseguiam abarcar: valores, vontade, atitudes, raciocnio abstrato. Mas todos esses fenmenos eram tratados de maneira puramente descritiva e fenomenolgica. Argia-se que a explicao era impossvel em princpio. Para enfatizar essa dificuldade, colocariam a questo: "Podemos perguntar POR QU a soma dos ngulos de um tringulo 180o?" Examinando essa situao, Vygotsky observou que a diviso de trabalho entre os psiclogos de cincias naturais e os psicolgos fenomenolgicos havia levado a um acordo tcito em torno da idia de que as funes psicolgicas complexas, as mesmas que distinguem o ser humano dos outros animais, no podiam ser estudadas cientificamente. Os naturalistas e os mentalistas haviam desmembrado artificialmente a psicologia. A criao de um novo sistema que sintetizasse essas abordagens conflitantes era seu objetivo, e nossa tarefa. Provavelmente no possvel avaliar tudo que nos influenciava em 1925, quando realizamos essa grandiosa reviso da psicologia. Mas conheo algumas das nossas fontes. Para a base cientfica natural, nos voltamos para o estudo de Pavlov a respeito da "atividade nervosa superior". Pavlov e seus colaboradores estavam ento estudando as unidades estruturais bsicas que produziam mudanas de adaptao ao meio ambiente, em sua estao experimental prxima de Leningrado. A psicofisiologia pavloviana era o fundamento materialista de nosso estudo da mente. Vygotsky sentia-se particularmente impressionado pelo trabalho do russo V. A. Wagner, um eminente especialista no estudo comparativo do comportamento animal. Wagner era um cientista que aplicava um amplo enfoque biolgico ao comportamento animal. Suas idias sobre a evoluo impressionaram muito a Vygotsky, e os dois mantiveram uma extensa correspondncia. Lamos muito de psicologia propriamente dita. Mesmo discordando de muitas de suas idias tericas, vamos muito mrito no trabalho de nossos contemporneos ale46

mes, especialmente Kurt Lewin, Heinz Werner, William Stern, Karl e Charlotte Buhler e Wolfgang Kohler, muitos dos quais so muito pouco conhecidos por meus colegas americanos. Aceitvamos sua nfase na natureza emergente das complexidades de muitos fenmenos psicolgicos. Os reflexos pavlovianos serviam como fundao material da mente, mas no refletiam a realidade estrutural do comportamento complexo, ou das propriedades dos processos psicolgicos superiores. Mesmo sabendo que a gua composta por dois tomos de hidrognio e um tomo de oxignio, no podemos pretender deduzir da o conjunto de suas propriedades. Da mesma maneira, o conhecimento dos mecanismos celulares de reao a estmulos estranhos no suficiente para esclarecer completamente as propriedades de um processo psicolgico, como a ateno voluntria. Em ambos os casos, as propriedades do "sistema" - gua ou ateno voluntria - devem ser vistas como sendo qualitativamente diferentes das propriedades de suas unidades componentes. Tambm mostramos que comportamentos aparentemente semelhantes no refletem necessariamente os mesmos mecanismos psicolgicos. No estudo de crianas de diferentes idades ou de pessoas de diferentes culturas, era necessrio um cuidadoso exame da natureza e do desenvolvimento dessas aparncias superficiais, para verificar a possvel existncia de diferentes sistemas determinantes. Quando tomamos conhecimento do Linguagem e Pensamento Infantil, de Piaget, estudamo-lo cuidadosamente. Uma diferena fundamental, referente interpretao da relao entre pensamento e linguagem, distinguia nosso trabalho do desse grande psiclogo suo. Mas consideramos o estilo de sua pesquisa altamente compatvel com nossa meta de descobrir as diferenas qualitativas entre crianas de diferentes idades - especialmente o uso que fazia do mtodo clnico no estudo dos processos individuais de cognio. Vygotsky tambm era nosso principal terico marxista. Em 1925, quando publicou a aula que deflagrara sua vinda a Moscou, incluiu nela uma citao de Marx, que era um dos conceitos-chave do corpus terico que nos apresentou: "A aranha realiza operaes que lembram as de um tecelo, e as caixas que as abelhas constroem no cu podem tornar sem graa o trabalho de muitos arquitetos. 47

Mas mesmo o pior arquiteto se diferencia da abelha mais hbil desde o princpio, em que, antes de construir com suas tbuas uma caixa, ele j a construiu na sua mente. No final do processo de trabalho ele obtm algo que j existia na sua mente antes que ele comeasse a construir. O arquiteto no s modifica as formas naturais, dentro das limitaes impostas por essa mesma natureza, mas tambm realiza um propsito prprio, que define os meios e o carter da atividade qual ele deve subordinar sua vontade" (Capital, Parte 3, Captulo 7, seo 1). Claro est que esse tipo de afirmao geral no era suficiente para definir um conjunto detalhado de procedimentos para a criao de uma psicologia experimental das funes psicolgicas superiores. Mas, nas mos de Vygotsky, os mtodos de Marx desempenharam papel vital na formao da nossa trajetria: Influenciado por Marx, Vygotsky concluiu que as origens das formas superiores do comportamento consciente estavam nas relaes sociais do indivduo com o meio externo. Mas o homem no s um produto de seu meio ambiente; tambm um agente ativo na criao desse meio ambiente. O vo existente entre as explicaes cientficas naturais dos processos elementares e as descries mentalistas dos processos complexos no poderia ser transposto at que descobrssemos como os processos naturais, como a maturao fsica e os mecanismos sensoriais se interligavam com os processos culturalmente determinados para produzir as funes psicolgicas adultas. Precisvamos, por assim dizer, tomar uma certa distncia do organismo, para descobrir as fontes das formas especificamente humanas de atividade psicolgica. Vygotsky gostava de chamar essa abordagem de psicologia "cultural", "instrumental" ou "histrica". Cada um desses termos refletia uma caracterstica diferente da nova abordagem que ele props para a psicologia. Cada qual enfatizava uma das facetas do mecanismo geral pelo qual a sociedade e a histria social moldam a estrutura daquelas formas de atividades que distinguem o homem de outros animais. O termo "instrumental" se referia natureza basicamente mediada de todas as funes psicolgicas complexas. A diferena dos reflexos bsicos, que podem ser caracterizados como um processo de estmulo-resposta, as funes superiores incorporam estmulos auxiliares. O adulto 48

no se limita a responder aos estmulos apresentados por um pesquisador ou por seu ambiente natural; modifica ativamente esses estmulos, fazendo destas modificaes um instrumento do prprio comportamento. Os costumes populares, como, por exemplo, o hbito de se amarrar um fio no dedo para evitar o esquecimento, nos proporcionam algum conhecimento dessas modificaes. Mas muitos exemplos bem menos prosaicos desse mesmo princpio foram revelados nos estudos que fizemos das mudanas no pensamento de crianas de trs a dez anos. O aspecto "cultural" da teoria de Vygotsky tinha a ver com os modos socialmente estruturados pelos quais a sociedade organiza as tarefas que so propostas criana, e com as ferramentas, fsicas e mentais, que so oferecidas criana para que domine essas tarefas. Um dos instrumentos-chave inventados pela humanidade a linguagem, e Vygotsky conferia linguagem um lugar muito importante na organizao e no desenvolvimento dos processos do pensamento. O elemento "histrico" fundia-se ao cultural. As ferramentas usadas pelo homem para dominar seu meio ambiente e seu prprio comportamento no surgiram, completamente prontas, da mente de Deus. Foram inventadas e aperfeioadas no curso da histria social do homem. A linguagem carrega em si os conceitos generalizados que so o repositrio da cultura humana. Determinados instrumentos culturais, como a escrita e a aritmtica, expandiram extraordinariamente os poderes do homem, tornando a sabedoria do passado analisvel no presente e aperfeiovel no futuro. Este raciocnio tinha uma implicao: se estudssemos a maneira pela qual as diversas' operaes do pensamento se estruturam em sociedades cuja histria cultural no tivesse produzido uma ferramenta como, por exemplo, a escrita, encontraramos uma organizao diferente dos processos cognitivos superiores, mas uma estruturao semelhante dos processos elementares. Tive a oportunidade de avaliar estas idias no princpio da dcada de 30. Os trs aspectos da teoria so aplicveis ao desenvolvimento de crianas. Desde o momento do nascimento, as crianas esto em constante interao com adultos, que ativamente procuram incorpor-las sua cultura e a seu corpus de significados e condutas, historicamente acumulados. No princpio, as respostas da criana ao mundo so 49

dominadas por processos naturais, ou seja, aqueles proporcionados por sua herana biolgica. Mas, atravs da interveno constante de adultos, processos psicolgicos mais complexos e instrumentais comeam a tomar forma. De incio, esses processos s se do no transcorrer das interaes entre a criana e os adultos. Como disse Vygotsky, os processos so interpsquicos; isto , so compartilhados entre indivduos. Neste estgio, os adultos so agentes externos que medeiam o contato da criana com o mundo. No decorrer do crescimento da criana, os processos que antes eram compartilhados com os adultos passam a se dar no interior da prpria criana. Isto , a resposta mediada ao mundo se transforma num processo intrapsquico. A natureza social do indivduo se imprime em sua natureza psicolgica atravs desta interiorizao dos modos historicamente determinados e culturalmente organizados de operar com informaes. Quando comeamos esse trabalho, ns trs - Vygotsky, Leontiev e eu - costumvamos encontrarmo-nos uma ou duas vezes por semana no apartamento de Vygotsky, para planejar a pesquisa que seria necessria para desenvolver suas idias. Revamos cada um dos principais conceitos da psicologia cognitiva - percepo, memria, ateno, fala, soluo de problemas e atividade motora. Dentro de cada uma dessas reas, tnhamos que criar novos arranjos experimentais, que incorporassem a noo de que a formao dos processos superiores acarreta numa modificao global do comportamento. Nessa poca, eu era diretor do Laboratrio de Psicologia do Instituto Krupskaya de Educao Comunista, que recebera esse nome em homenagem esposa de Lenin, que, aps a Revoluo, dera um apoio extraordinrio ao trabalho educacional na URSS. O instituto era vizinho do que era ento conhecido como Segunda Universidade de Moscou (hoje Instituto Pedaggico). Chamando estudantes da universidade, formei um crculo estudantil de psicologia, onde discutamos as idias de Vygotsky. Cada um dos estudantes e colegas de Vygotsky tomou para si a tarefa de inventar modelos experimentais do comportamento instrumental. O desenvolvimento da memria tornou-se incumbncia especial de Alexei Leontiev. Trabalhando com crianas normais e retardadas, de diversas idades, Leontiev concebeu uma atividade onde o sujeito poderia usar estmulos 50

auxiliares para ajud-lo a lembrar-se de uma srie de estmulos apresentados pelo experimentador. Alm disso, Leontiev demonstrou que o domnio da memria voluntria vem de um processo longo e difcil. A criana nova, de incio, quando defrontada com estmulos evocadores explcitos de cerca de uma dzia de palavras simples, como, por exemplo, a figura de um tren para ajudar na lembrana da palavra "cavalo", no d qualquer ateno a esses estmulos auxiliares. Essas crianas podem at recordar duas, trs ou quatro palavras, mas de maneira assiste mtica, e sem aparentar engajar-se numa atividade que garanta o processo de lembrana. Chamamos esse tipo de comportamento de "lembrana natural", uma vez que o estmulo parece ser recordado atravs de um processo de impresso simples e direto, no mediado. Com um pouco mais de idade, a criana pode comear a prestar ateno nos "estmulos auxiliares". Os estmulos auxiliares alguma vezes ajudavam a criana; mas, com igual constncia, no cumpriam o papel de evocar o estmulo para o qual foram designadas. Ao invs, a criana a incorporaria a uma corrente de associaes. Dessa maneira, o estmulo-auxiliar "tren" poderia sugerir criana a palavra "neve", e no "cavalo". Crianas um pouco mais velhas passariam a utilizar esses evocadores de maneira bem eficiente, mas esse processo de uso de estmulos auxiliares ainda era externo criana, pois a conexo entre os estmulos a serem recordados e os evocadores ainda era feito pelo sentido convencional das palavras, isto , pela cultura. S bem mais tarde, com uma idade de nove ou dez anos, comearamos a observar a mediao internalizada, quando a criana passava a criar seu prprios estmulos evocadores, de modo que praticamente qualquer estmulo auxiliar teria sucesso em assegurar a recordao. Essa idia de usar dois conjuntos de estmulos - um conjunto primrio, que tem de ser dominado, e o outro, um conjunto auxiliar que pode servir como um instrumento para o domnio sobre o primeiro conjunto - tornou-se a ferramenta metodolgica central de nossos estudos. Os experimentos anteriores que procuravam descobrir como so feitas as escolhas complexas empregavam adultos treinados, a quem se pedia que apertassem uma ou mais teclas de telgrafo quando defrontados com um estmulo. Comparando a velocidade de uma resposta simples a um estmulo simples com o tempo necessrio para 51

escolher entre dois ou mais estmulos, muitos pesquisadores esperavam estudar a psicologia da escolha nica, e distingu