Machado Crônicas Tragédia

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7/17/2019 Machado Crônicas Tragédia http://slidepdf.com/reader/full/machado-cronicas-tragedia 1/8 TEMAS & MATIZES - Nº 06 - SEGUNDO SEMESTRE DE 2004 71 1. INTRODUÇÃO uais as possibilidades de se abordar a crônica literária na perspectiva da análise histórica? Um cronista como Machado de Assis pode ser definido como testemunha de determinado momento histórico? Como empreender uma análise que compreenda os seus múltiplos olhares sobre o Rio de  Janeiro do final do XIX, entre eles o da representação trágica? Respostas a estas questões podem divergir em se considerando diferentes autores e seus “arsenais teóricos” aplicados sempre que procuram revisitar um tema ou um autor já considerado clássico nas letras. Os estudos em História realizados em torno da obra e da vida de Machado de Assis não fogem a esta regra. Resultado disso pode ser visto no volume de dissertações e teses, muitas delas de caráter interdisciplinar, que oferecem aos estudiosos e leitores de Machado vários filtros de interpretação histórica. Afinal de contas o historiador culto e letrado, como afirma Machado, pode ser um contador de histórias que inventa, que recria e fantasia o que se passou como se fosse um intérprete do povo. MACHADO DE ASSIS CONTADOR DE HISTÓRIAS: Claércio Ivan Schneider LITERATURA, HISTÓRIA E TRAGÉDIA NA COMPOSIÇÃO DA CRÔNICA HISTÓRIA HISTÓRIA HISTÓRIA HISTÓRIA HISTÓRIA  E  LITER LITER LITER LITER LITER A  A  A  A  ATUR TUR TUR TUR TUR A  A  A  A  A D O S  S  I  Ê Q Mais dia menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, à Rua do Ouvidor, um historiador assim é um puro contador de histórias. E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário de historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar. O certo é que se eu quiser dar uma descrição verídica da tourada de domingo passado, não poderei, porque não a vi (Machado de Assis, 1994, p. 361-362).

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1. INTRODUÇÃO

uais as possibilidades de se abordar a crônica literária na perspectiva daanálise histórica? Um cronista como Machado de Assis pode ser definidocomo testemunha de determinado momento histórico? Como empreenderuma análise que compreenda os seus múltiplos olhares sobre o Rio de Janeiro do final do XIX, entre eles o da representação trágica? Respostas

a estas questões podem divergir em se considerando diferentes autores e seus“arsenais teóricos” aplicados sempre que procuram revisitar um tema ou umautor já considerado clássico nas letras. Os estudos em História realizados em

torno da obra e da vida de Machado de Assis não fogem a esta regra. Resultadodisso pode ser visto no volume de dissertações e teses, muitas delas de caráterinterdisciplinar, que oferecem aos estudiosos e leitores de Machado vários filtrosde interpretação histórica. Afinal de contas o historiador culto e letrado, comoafirma Machado, pode ser um contador de histórias que inventa, que recria efantasia o que se passou como se fosse um intérprete do povo.

MACHADO DE ASSIS CONTADOR DE HISTÓRIAS:

Claércio Ivan Schneider 

LITERATURA, HISTÓRIA E TRAGÉDIA NA COMPOSIÇÃO DA CRÔNICA

HISTÓRIA HISTÓRIA HISTÓRIA HISTÓRIA HISTÓRIA   EEEEE  LITERLITERLITERLITERLITER A  A  A  A  A TURTURTURTURTUR A  A  A  A  A 

D O S S I Ê

Q

Mais dia menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os

dias no fundo de um gabinete escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, àRua do Ouvidor, um historiador assim é um puro contador de histórias. E repare o leitorcomo a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente ocontrário de historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que umcontador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. Ohistoriador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de históriasfoi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passoué só fantasiar. O certo é que se eu quiser dar uma descrição verídica da tourada dedomingo passado, não poderei, porque não a vi (Machado de Assis, 1994, p. 361-362).

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Neste texto procuro engendrar peloscaminhos entre a História e a Literatura,atentando as possibilidades de investigaçãohistórica que o estudo da crônica de Machadode Assis pode proporcionar discutindo algunscuidados necessários para sua interpretaçãocomo também apontando alguns

procedimentos metodológicos para o trabalhode análise deste documento. Centra-seespecial atenção à análise da representaçãotrágica que Machado de Assis lança aocontexto urbano carioca do final do séculoXIX, compreendida como recurso estilísticoamplamente utilizado por Machado de Assisao produzir enunciados sobre sua cidade. Trágico, uma vez que a leitura empreendidapor Machado de Assis foi produzida numperíodo conturbado, marcado pelas grandestransformações políticas, econômicas esociais que caracterizaram a emergência do

homem “moderno”.1  O conceito de tragédiatorna-se categoria quase que imprescindívelpara os estudos machadianos, uma vez queé a partir dela que o autor reavalia asexperiências do homem, atribuindo sentidoao mundo vivido ao repensar os diferentesproblemas da sociedade.

No entanto, a discussão do conceitode tragédia como gênero literário não bastapara entender toda a sua dimensão,principalmente quando compreendida comodimensão da existência humana. Para tanto,há uma longa bibliografia, que não interessadiscutir neste artigo, que parece serfundamental para compreender o trágico emMachado: Nietzsche e Schopenhauer, porexemplo, mais do que pensadoresimportantes sobre o trágico, surgem comoinfluências diretas na construção da obramachadiana.

2. A CRÔNICA LITERÁRIA NO EXERCÍCIO DE

INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA

Entre os historiadores a preocupaçãoem reconceituar o papel do cronista e dacrônica literária na e para a história estásempre presente a cada nova tentativa deinvestigação que a tome como fontedocumental. Margarida de Souza Neves, porexemplo, indica algumas pistas para se

pensar o caráter propriamente documenda crônica na investigação histórica.

No caso específico das crônicas carioproduzidas na passagem do século XIXséculo XX, é possível que as consid“documentos” na medida em que constituem como um discurso polifacétque expressa, de forma certamecontraditória, um “tempo social” vivido pecontemporâneos como um momentotransformações. “Documentos”, portanporque se apresentam como um delementos que tecem a novidade detempo vivido. “Documentos”, nesse sentiporque imagens de nova orde“Documentos”, finalmente, porq“monumentos” de um tempo social qconferirá ao tempo cronológico da passagdo século no Rio de Janeiro uma conotade novidade, de transformação, que cadamais tenderá a se identificar com a node “progresso” (Neves, 1992, p. 76).

As potencialidades documentais crônica acima apontadas pela pesquisadosão resultados diretos da próptransformação da sociedade cariocaconseqüentemente, de tal gênero literárAssim, pensar a crônica pressupõe pensaprópria atividade do cronista, bem como spapel de personagem urbano que bus“registrar” os acontecimentos. Nesse sentia importância do jornal, como veículo

comunicação, não pode ser desconsideraIsto porque a consolidação deste canal informação estabelece um significativo eloligação com as intensas transformações qvinham ocorrendo no Rio de Janeiro e qpor sua vez, são vistas e interpretadas penarradores daquele tempo vivido. Portanenquanto se apresentam como “imagens um tempo social” e “narrativas do cotidianambas consideradas como “construçõesnão como “dados”, as crônicas podem consideradas, ainda segundo Neves, codocumentos para a História.

As crônicas de Machado de Assiforam mais de 600 escritas ao longo de scarreira de escritor – formam uma paimportante de sua produção literária. Isto nsó porque Machado exerceu a atividade cronista por mais de 40 anos, mprincipalmente, porque a prática jornalíst

CLAÉRCIO  IVAN SCHNEIDER

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diária influenciaria sensivelmente suaatividade como escritor. Em linhas gerais, acrônica machadiana aparece diretamenteligada à imprensa carioca do século XIX — seu principal veículo de divulgação. Nesteponto, os jornais Gazeta de Notícias e A semana ,espaços nos quais publicava Machado,

mantém uma relação direta com o público aoqual se destina; no caso, a esfera públicaburguesa que está se organizando, inclusivecomo esfera pública literária. A importânciado jornal, como mostra Margarida de SouzaNeves, pode ser comparada à própriatransformação que a imprensa como um todopassa a sofrer. O processo de modernizaçãoda imprensa reflete a passagem de umaconfecção quase artesanal dos diários a umaimprensa de cunho empresarial (cf. Neves,1992, p. 80). Ou seja, a profissionalização do jornalismo, a formação de um público de

massa, a incorporação de novos meiostécnicos são características importantes aserem consideradas no momento em que sebusca compreender um dos principaisespaços de divulgação de saberes. Estatransformação pode ser observada naspalavras de Machado de Assis:

O folhetim, disse eu em outra parte, edebaixo de outro pseudônimo, o folhetimnasceu do jornal, o folhetinista porconseqüência do jornalista. Esta íntimaafinidade é que desenha as saliências

fisionômicas na moderna criação. Ofolhetinista é a fusão admirável do útil e dofútil, o parto curioso e singular do sério,consorciado com o frívolo. Estes doiselementos, arredados como pólos,heterogêneos como água e fogo, casam-seperfeitamente na organização do novoanimal (Assis, 1994, p. 959).

Veja-se, a partir desta passagem, oretrato do folhetinista e sua relação para como jornal. É a partir do folhetim que emerge acrônica em suas múltiplas possibilidades.

Ressalta-se, ademais, o tom desuperficialidade que o gênero exige e avariedade de assuntos sobre os quais ocronista é obrigado a escrever. No entanto,outros aspectos se destacam. A crônica é umtexto ligeiro, rabiscado depois da leitura do jornal e destinada a embrulhar o peixe pela

manhã. Num exercício exemplar demetalinguagem, Machado faz uma crônicasobre a escrita da crônica.

Apesar dessa atenção pública, apesar detodas as vantagens de sua posição, nem todosos dias são tecidos de ouro para

folhetinistas. Há-os negros, com fios debronze; à testa deles está o dia... adivinhem?O dia de escrever! Não parece? Pois é verdadepuríssima. Passam-se séculos nas horas queo folhetinista gasta à mesa a construir a suaobra. Não é nada, é o cálculo e o dever quevêm pedir da abstração e da liberdade – umfolhetim! Ora, quando há matéria e o espíritoestá disposto, a coisa passa-se bem. Masquando, à falta de assunto se une aquelamorbidez moral, que se pode definir por umamor ao far niente, então é um suplício... Umsuplício, sim. Os olhos negros que saboreiamessas páginas coruscantes de lirismo e deimagens, sabem às vezes o que custaescrevê-las (Assis, 1994, p. 959).

Machado discute nesta passagem opróprio exercício de sua “profissão” decronista. Destaca o grande esforço que aescrita de tal texto exige. A crônica apareceentão como um espaço de experimentação ede investigação livre da realidade carioca dotempo. No entanto, compreender a crônicana especificidade de sua constituição desde já revela sua complexidade. Seu caráter

fragmentário, seu compromisso com o aqui eo agora, com sua contingência para com o jornal (obrigação do profissional), fazem dacrônica um veículo “imperfeito”, muitas vezespermeado por contradições.

Este último aspecto, aliás, pode serconsiderado como uma das peculiaridades dacrônica. Ademais, a ligação do cronista como jornal faz com que a própria imprensa sejamatéria da crônica. No entanto, a delimitaçãodo espaço da crônica no jornal como colunaassinada é um fator que limita as relaçõespolíticas entre o periódico e o autor. Isto

porque a expressão crítica do pensamento doautor passa a ser de sua própriaresponsabilidade. A crônica, como gêneroapresenta especificidades, principalmenteem se tratando de sua versão moderna — daqual Machado é um ilustre praticante. Naspalavras de Antonio Candido:

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A crônica está sempre ajudando aestabelecer ou restabelecer a dimensão dascoisas e das pessoas. Em lugar de oferecerum cenário excelso, numa revoada deadjetivos e períodos candentes, pega o miúdoe mostra nele uma grandeza, uma beleza ouuma singularidade insuspeitadas. Ela é

amiga da verdade e da poesia nas suasformas mais diretas e também nas suasformas mais fantásticas — sobretudo porquequase sempre utiliza o humor (Candido,1992, p. 14).

A crônica é um texto breve, paraleitura rápida, entre um gole de café e outro,entre uma notícia e outra. Este caráter dacrônica se deve ao fato dela não terpretensões de durabilidade. Dessa forma, ocronista age de maneira mais “solta” e“leviana”, examinando os acontecimentos

pelo ângulo subjetivo da interpretação. Eis aliberdade do cronista. No caso de Machadode Assis, a crônica ajuda, como destacouAntonio Candido, a contemplar e arestabelecer reflexões acerca da dimensãohumana. Ou seja, o mergulho crítico naessência das coisas, a contemplação daverdade e o avanço para o fundo da existênciahumana são aspectos do olhar trágico queMachado de Assis manifestou em suascrônicas. Nas palavras de Barreto Filho, apresença do trágico é, com efeito, sintomade grande maturidade, porque está sempreligada à época clássica de uma nação, aoapogeu e equilíbrio de suas forças. O artistatrágico cria então os modelos que hão desobreviver e inspirar a alma popular,retificando a consciência e o caráter dacoletividade (cf. Barreto Filho apud Bosi,1982, p. 355).

3. A CRÔNICA E O OLHAR TRÁGICO-HISTÓRICO DO

CRONISTA

Machado de Assis (1839-1908) foi umapersonalidade ilustre na história do Brasil.Iniciou sua atividade jornalística aos 21 anos,em 1860. Publicou em vários periódicos daimprensa carioca de seu tempo, trabalho esteque se estendeu até os últimos anos de suavida, paralelamente, é claro, a outras

atividades literárias. Muitas de suas crônicforam assinadas por pseudônimos, como costume da época, uma vez que a crônera considerada um “gênero menor”portanto, os cronistas faziam questão separar a carreira jornalística da de escrit já que es ta lhes garantia muito ma

prestígio. Assim, Machado produziu textos nmais diversos gêneros literários (contpoemas, crônicas, peças teatrais, romance Também trabalhou como funcionário públifazendo parte, portanto, da elite decisória período imperial. Com o advento da Repúblisua posição não se alterou. Um dfundadores e primeiro presidente Academia Brasileira de Letras, Machado Assis morrerá recebendo pompas destinadàs autoridades e celebridades.

Mérito de sua formação intelectuade sua atuação profissional, Macha

transformou-se num observador atentocrítico das relações sociais no país, embpermaneça como um observador distanciada população, retirando-se à sua intimidafator este que não lhe tira o papel de formade opinião. Além do romance e do conMachado de Assis é considerado um mestambém neste gênero literário, a crônipraticando-o durante quarenta anpraticamente ininterruptos.2

Além de testemunhar o processo normalização da sociedade brasileira, o tede Machado se transforma num canal diálogo e de crítica para com o seu temEm suas crônicas, por exemplo, dá vozpersonagens e temas — tais como os louce a loucura — com a intenção de criticar convenções e os limites da razão. Revela implicações que a modernidade, aliada cientificismo, legou às novas exigências racionalização do espaço urbanprincipalmente no que concerne à políthigienista proposta pela medicina, tendo coresultados a instituição de novos padrões comportamento, a medicalização da socieda

e a integração da família à ordem burgueNeste contexto, Machado aparece como ucrítico cético de seu tempo. Segundo KáMuricy, estudiosa de Machado,

mais do que um aspecto da psicologiaautor, o ceticismo revela a radicalidade

CLAÉRCIO  IVAN SCHNEIDER

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texto machadiano na crítica dos mitos queajudavam a implantar no século XIX osmecanismos de normalização da vida socialbrasileira: a crença evolucionista noprogresso, as ilusões do cientificismo, apretensão humanista do pensamento liberal.Sua crítica dirige-se, assim, à articulação

mais ampla das transformaçõesnormalizadoras oitocentistas, àracionalidade burguesa moderna (Muricy,1988, p. 16).

Fruto da instabilidade social de seucontexto? Um sentimento de crise de espíritodiante dos abalos físicos e emocionais de suavida pessoal? Talvez a resposta para seu olharcético e trágico possa ser encontrada pelacombinação destes elementos. Seja como for,“as transformações sociais a que iaassistindo, e aquelas que pressentia,articulavam-se aos temas eternos,constitutivos da visão trágica da vida: airreversibilidade do tempo, a lei do perecível,a dura contingência da morte e a existênciado mal sob todas as suas formas” (BarretoFilho apud Bosi, 1982, p. 355). Questõescomplexas que se relevam, acima de tudo,na fase madura de Machado. É natural queum espírito inquieto se manifestasse atravésdo trabalho artístico, uma vez que este lhedava a oportunidade de expressar e dominarum lado sombrio da realidade de seu tempo.Acredita-se que seu sofrimento físico e moral,bem como as incertezas quanto ao futuro,

amadureceram Machado, além de aguçar seupessimismo e seu olhar trágico em relação àcrueldade da vida e à incerteza do destinohumano. Ainda de acordo com Barreto Filho,“ele se coloca subitamente no ângulo de visãoadequado à sua vocação do trágico e promovecom um gesto decidido a derrocada das

aparências, que lhe impediam o acesso àsfontes da realidade. Não mais a ilusão, nema fuga na produção idealizada. O que ele vacontemplar é a essência da vida e do homem”(Barreto Filho apud Bosi, 1982, p. 357).

As crônicas que Machado de Assisproduziu em sua fase madura — após os

quarenta anos de idade — são exemplossignificativos do olhar trágico que buscavarevelar aspectos do cotidiano de sua cidadeO desvelamento do homem e do escritor semanifestam com maior ênfase nocompromisso com o cotidiano da vida socialpolítica e cultural do Rio de Janeiro, a partirdo qual descreve as diversas faces dosproblemas de sua época. Escrever sobre ascoisas “miúdas” de seu tempo permitia-lhequestionar os valores efêmeros consideradosimportantes. Exemplo disto pode serevidenciado na compreensão aguda e

desconfiada do sentido do progresso.

 Todas as cousas têm a sua filosofia. Se osdous anciãos que o bond  elétrico atirou paraa eternidade esta semana, houvessem feitopor si mesmos o que lhes fez o bond , nãoteriam atestado com o progresso que oseliminou. É duro dizer; duro e ingênuo, umpouco à La Palisse; mas é verdade. Quandoum grande poeta deste século perdeu a filhaconfessou, em versos doloridos, que a criaçãoera uma roda que não podia andar semesmagar alguém. Por que negaremos a

mesma fatalidade aos nossos pobresveículos? Há terras, onde as companhiasindenizam as vítimas dos desastres(ferimentos ou mortes) com avultadasquantias, tudo ordenado por lei. É justo; masessas terras não têm, e deviam ter, outralei que obrigasse os feridos e as famílias dosmortos a indenizarem as companhias pelaperturbação que os desastres trazem aohorário do serviço. Seria um equilíbrio dedireitos e de responsabilidades. Felizmentecomo não temos a primeira lei, nãoprecisamos da segunda, e vamos morrendocom a única despesa do enterro e o únicolucro das orações (...). Em todo caso, nãovamos concluir contra a eletricidadeLogicamente, teríamos de condenar todas asmáquinas, e, visto que há naufrágiosqueimar todos os navios. Não senhor. A

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necrologia dos bonds  tirados a burros é assazcomprida e lúgubre para mostrar que ogoverno de tração não tem nada com osdesastres (Assis, 1994, p. 553).

Recentemente inaugurado, o bond   jáfizera suas primeiras vítimas. O cronista

reconstrói a cidade em trânsito, imprimindosentidos políticos diversos a tudo que merecesua atenção. Machado mostra que o avançoda técnica provoca alguns transtornos. O temados bonds  no Rio de Janeiro, por exemplo, éfreqüente em suas crônicas. Com um olharcontemplativo e problematizador, Machado dáao leitor, a partir do registro da aventuracotidiana da cidade, a história vivida peloshomens, o que se configura como momentoprivilegiado para o exercício de suaconsciência crítica. Num de seus passeiosde bond , Machado estabelece uma discussão

entre dois burros a respeito da substituiçãodo seu trabalho pela eletricidade.

- Tens e não tens razão, respondia o dadireita ao da esquerda. O da esquerda:- Desde que a tração elétrica se estenda atodos os bonds , estamos livres, parece claro.- Claro parece; mas entre parecer e ser, adiferença é grande. Tu não conheces ahistória da nossa espécie, colega; ignoras avida dos burros desde o começo do mundo.

 Tu nem refletes que, tendo o salvador doshomens nascido entre nós, honrando nossahumildade com a sua, nem no dia do Natalescapamos da pancadaria cristã. Quem nospoupa no dia, vinga-se no dia seguinte.- Que tem isso com a liberdade?- Vejo, redargüiu melancolicamente o burroda direita, vejo que há muito de homemnessa cabeça.- Como assim? Bradou o burro da esquerdaestacando o passo. O cocheiro, entre douscochilos, juntou as rédeas e golpeou aparelha.- Sentiste o golpe? Perguntou o animal dadireita. Fica sabendo que, quando os bonds entraram nesta cidade, vieram com a regra

de se não empregar chicote. Espantouniversal dos cocheiros: onde é que se viuburro andar sem chicote? Todos os burrosdesse tempo entoaram cânticos de alegria eabençoaram a idéia dos trilhos, sobre osquais os carros deslizariam naturalmente.Não conheciam o homem (...).

- O bond  elétrico apenas nos fará mudarsenhor.- De que modo?- Nós somos bens da companhia. Quantudo andar por arames, não somosprecisos, vendem-nos. Passamnaturalmente às carroças.- Pela burra de Balaão! Exclamou o burro

esquerda. Nenhuma aposentadorNenhum prêmio? Nenhum sinal gratificação? Oh! Mas onde está a justdeste mundo? (...) Não conheces a línguaesperança.- Pode ser, meu colega; mas a esperançprópria das espécies fracas, como o home o gafanhoto; o burro distingue-se pfortaleza sem par. A nossa raçaessencialmente filosófica. Ao homem qanda sobre dous pés, e provavelmentáguia, que voa alto, cabe a ciência astronomia. Nós nunca seremastrônomos; mas a filosofia é nossa. To

as tentativas humanas a este respeito perfeitas quimeras (Assis, 1994, p. 551-55

A referência à condição humanamergulho no âmago das coisas e o conviteexercício da reflexão parecem ser umconstante na crônica machadiana. irremediável das coisas, acima constatafaz com que se perceba freqüentementesentimento do absurdo, do mal da existêncMachado é trágico porque empreende uanálise da natureza da vida de indivíduos coletividade. Talvez a modernidade não dea mesma sorte a todos aqueles que, em snome, proclamaram a idéia do progresso

da evolução. É neste movimento de encao homem e a sua aventura cotidiana no murbano que torna Machado um agenprovocador. A partir da crônica, podeafirmar que Machado tem menpossibilidades de “se esconder”. Ou sejana crônica que o escritor estabelece com

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seu leitor um diálogo e, na mesma medida,uma cumplicidade. Toma-se como exemplouma crônica publicada na Gazeta de Notícias em 1º de junho de 1888. Nela, Machadoironiza a amargura de alguns participantesdo movimento abolicionista que se queixavampor não terem seus nomes impressos nas

festas abolicionistas.

Estando há dias a almoçar com algunsamigos, percebi que alguma coisa osamargurava. Não gosto de caras tristes, comonão gosto delas alegres; um meio termoentre o Caju e o Recreio Dramático é o quevai comigo. Senão quando, com um mododelicado, perguntei o que é que tinham.Calaram-se; eu, como manda a boa criação,calei-me também e falei de outra cousa. Foio mesmo que se os convidasse a pôr tudoem pratos limpos. Tratando-se de um

almoço, era condição primordial. Um dosconvivas confessou que no meio das festasabolicionistas não aparecia o seu nome,outro que era o dele que não aparecia, outroque era o dele, e todos que os deles. Aqui éque eu quisera ser um homem malcriado.O menos que diria a todos, é que eles tantotrabalharam para a abolição dos escravos,como para a destruição de Nínive, ou para amorte de Sócrates... Eu, com uma sabedoriasó comparável a deste filósofo, respondi quea história era um livro aberto, e a justiça aperpétua vigilante. Um dos convivas, dado a

frases, gostou da última, pediu outra e umcálice de Alicante. Respondi, servindo ovinho, que as reparações póstumas erammais certas que a vida, e mais indestrutíveisque a morte. Da primeira vez fui vulgar, dasegunda creio que obscuro; de ambassublime e bem criado (Assis, 1994, p. 493).

A busca pelo reconhecimento e pelamanutenção do status quo eram constantespor parte da elite intelectualizada do Rio de Janeiro naquele período histórico. Machado

ironiza as máscaras usadas por estespersonagens que buscam no prestígio e naornamentação pública o espaço ideal para adivulgação de uma feição civilizada. Nessesentido, a crônica machadiana torna-se umdos principais “documentos” que possibilitamreconstituir e interpretar diferentes aspectos

da cidade do Rio de Janeiro na segundametade do século XIX. É na própria obra deMachado de Assis, portanto, que está a provade seu minucioso interesse por tudo o queacontece na vida social brasileira. Umescritor que levou profundamente a sério seusdiversos deveres e soube, como nenhum

outro, retratar os impulsos e as frustraçõesdo homem engajado no fluxo dosacontecimentos.

As crônicas machadianas revelam queeste autor compreendeu seu tempo com aprofundidade de poucos, ressaltando, dentreinúmeros temas, o lado trágico da históriado homem “moderno”, entrevisto nosdescaminhos do pensamento liberal, nadesilusão imposta ao indivíduo pelamodernidade e, em muitos momentos, nodesprezo para com a nova ordem burguesaMais que isso: a crônica machadiana é o

exemplo representativo de como um gêneropode encontrar, na visão de mundo e no estilode um escritor deste porte, suatranscendência, perenidade e atualidadehaja vista que o sentido trágico instituído porMachado também é uma interpretação daexperiência acumulada pelo homem sempreque pensa a humanidade e a sociedade.

Assim, pensa-se o cronista não comoalguém que produz crônicas como “pura”atividade estética, mas que faz deste gênerouma forma de comunicação política com oleitor. A reflexão histórica torna-se possível

portanto, desde que se considere o cronistaem sua dimensão política, ou seja, como umsujeito que lida, politicamente, com asensibilidade do leitor. Talvez pelo grau desubjetividade e de crítica incorporadas àssuas afirmações, serve-se dos fatoscotidianos (do ridículo de cada dia, da arteda desconversa, do quadro de costumes etc.)para superá-los.

É, portanto, a partir do diálogoconstante entre autor, obra e ambiente socialque se pode investigar o olhar trágico-histórico

de Machado de Assis. Nesse sentidocompreender a historicidade de suasrepresentações e o modo pelo qual foramproduzidas à luz de seu contexto são questõesfundamentais para avaliar a leitura queMachado fez de sua cidade e de seuspersonagens.

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O que fica evidente a partir destasreferências é a viabilidade do estudo dacrônica como fonte para o trabalho deinterpretação histórica. A crônicamachadiana, mais do que uma fotografia da

sociedade carioca oitocentista, é uma lenterequintada e crítica que possibilita ainteligibilidade das transformações do espaçosocial, intelectual e político da capitalbrasileira na segunda metade do século XIX.Logo, nada melhor do que se deter na leiturae na análise das crônicas jornalísticas paraperceber como o escritor se posiciona comrelação aos problemas de sua época. Ocompromisso com a vida social, política ecultural da cidade e do país foram muito alémde um comentário descompromissado dospequenos sucessos e fracassos do cotidiano.As crônicas constituem uma representaçãodo real, interpretado a partir da escritura.Ou seja, o trabalho formal da composição dacrônica não se constitui numa cópia do real,mas sim numa espécie de recriação do real,provocando outras visões do tema e ummergulho no âmago das coisas.

 Texto recebido em julho de 2004.Aprovado para publicação em setembro de 2004.

4. NOTAS

1. A efervescência sócio-político deste contexto se deve as

questões que se fizeram presentes no momento de transição

do regime monárquico para o republicano: idéias do trabalho

assalariado; a emergência do saber médico; as políticas

higienistas; política imigratória entre tantos outros temas

considerados por Machado de Assis em suas crônicas.

2. Dentre os jornais em que escreveu, destacam-se: o Diário 

do Rio de Janeiro  e mais tarde A Semana Ilustrada  (1860-75);

O Futuro  (1862); A Ilustração Brasileira  (1876-78); O Cruzeiro 

(1878); e, de 1883 até 1897,  A  Gazeta de Notícias . Com

títulos diversos em seções destes jornais, publicou com os

seguintes pseudônimos: Lélio (“Balas de Estalo”); João dasRegras (“A + B”); Malvólio (“Gazeta de Holanda”); Boas Noites

(“Bons dias”); e, por fim, em  A Semana , publicou crônicas

sem assinatura (entre 1892 e 1897).

5. SOBRE O AUTOR

Claércio Ivan Schneider é Doutorando em Históna Unesp – Campus de Assis. Professor

Departamento de História na UniversidaParanaense – Campus de Cascavel.

6. REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Obra completa. OrganizaçãoAfrânio Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Agui1994 (Vol. 03).BARRETO FILHO. “Machado – o espírito da tragédia”.BOSI, Alfredo [et al .]. Machado de Assis . São PauÁtica, 1982CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In —

al .]. A crônica: o gênero, sua fixação e sutransformações no Brasil.  Campinas: Editora Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Barbosa, 1992.

MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e

questões do seu tempo. Rio de Janeiro: Compandas Letras, 1988.NEVES, Margarida de Souza. “Uma escrita do temmemória, ordem e progresso nas crônicas cariocaIn: CANDIDO, Antonio [et al .]. A crônica: o gênero,

 fixação e suas transformações no Brasil. CampinEditora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Cde Rui Barbosa, 1992.

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     ©   V   i   d  a   l   C  a  s   t  o  n   i  n

CLAÉRCIO  IVAN SCHNEIDER

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

REVISTA TEMAS & MATIZES

www.unioeste.br/saber