MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. a Arrematação Irretratável e o Devido Processo Legal

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A ARREMATAÇÃO IRRETRATÁVEL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL Hugo de Brito Machado Segundo Advogado, Mestre em Direito pela UFC Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor) Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários Professor de Processo Tributário da pós-graduação da Unifor Professor da Faculdade Christus, e da Faculdade Farias Brito Introdução Dando continuidade a uma série de reformas efetuadas no Código de Processo Civil (CPC), inspiradas pela idéia de dar maior efetividade à prestação jurisdicional, a Lei 11.382/2006 procedeu a importantes modificações no processo de execução de títulos extrajudiciais. Dos vários aspectos dessa reforma que merecem estudo cuidadoso, especialmente no que pertine aos seus reflexos no âmbito das execuções fiscais, colhemos para análise, neste texto, aquele relativo à possibilidade de os embargos do executado não serem recebidos com efeito suspensivo, e à conseqüente irreversibilidade da arrematação dos bens eventualmente penhorados. Referimo-nos ao art. 694 do CPC, que passou a dispor: “Art. 694. Assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário da justiça ou leiloeiro, a arrematação considerar-se-á perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). § 1 o A arrematação poderá, no entanto, ser tornada sem efeito: (Renumerado com alteração do paragrafo único, pela Lei nº 11.382, de 2006). I - por vício de nulidade; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). II - se não for pago o preço ou se não for prestada a caução; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). III - quando o arrematante provar, nos 5 (cinco) dias seguintes, a existência de ônus real ou de gravame (art. 686, inciso V) não mencionado no edital; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). IV - a requerimento do arrematante, na hipótese de embargos à arrematação (art. 746, §§ 1 o e 2 o ); (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). V - quando realizada por preço vil (art. 692); (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006). VI - nos casos previstos neste Código (art. 698). (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006). § 2 o No caso de procedência dos embargos, o executado terá direito a haver do exeqüente o valor por este recebido como produto da arrematação; caso inferior ao

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Artigo sobre a natureza irretratável da arrematação feita no âmbito do processo de execução, e as conseqüências da posterior procedência dos embargos à execução, notadamente nas execuções fiscais.

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A ARREMATAÇÃO IRRETRATÁVEL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

Hugo de Brito Machado SegundoAdvogado, Mestre em Direito pela UFC

Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor)Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos TributáriosProfessor de Processo Tributário da pós-graduação da UniforProfessor da Faculdade Christus, e da Faculdade Farias Brito

IntroduçãoDando continuidade a uma série de reformas efetuadas no Código de Processo Civil

(CPC), inspiradas pela idéia de dar maior efetividade à prestação jurisdicional, a Lei 11.382/2006 procedeu a importantes modificações no processo de execução de títulos extrajudiciais.

Dos vários aspectos dessa reforma que merecem estudo cuidadoso, especialmente no que pertine aos seus reflexos no âmbito das execuções fiscais, colhemos para análise, neste texto, aquele relativo à possibilidade de os embargos do executado não serem recebidos com efeito suspensivo, e à conseqüente irreversibilidade da arrematação dos bens eventualmente penhorados.

Referimo-nos ao art. 694 do CPC, que passou a dispor:

“Art. 694. Assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário da justiça ou leiloeiro, a arrematação considerar-se-á perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

§ 1o A arrematação poderá, no entanto, ser tornada sem efeito: (Renumerado com alteração do paragrafo único, pela Lei nº 11.382, de 2006).

I - por vício de nulidade; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).II - se não for pago o preço ou se não for prestada a caução; (Redação dada pela

Lei nº 11.382, de 2006).III - quando o arrematante provar, nos 5 (cinco) dias seguintes, a existência de ônus

real ou de gravame (art. 686, inciso V) não mencionado no edital; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

IV - a requerimento do arrematante, na hipótese de embargos à arrematação (art. 746, §§ 1o e 2o); (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

V - quando realizada por preço vil (art. 692); (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

VI - nos casos previstos neste Código (art. 698). (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

§ 2o No caso de procedência dos embargos, o executado terá direito a haver do exeqüente o valor por este recebido como produto da arrematação; caso inferior ao

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valor do bem, haverá do exeqüente também a diferença. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).”

A primeira questão que pode ser suscitada refere-se à aplicabilidade dessa disposição às execuções fiscais, que, como se sabe, são regidas por lei especial (Lei 6.830/80 - LEF), sendo apenas subsidiária a aplicação das normas veiculadas no CPC.

Caso se conclua pela possibilidade de aplicação das mencionadas disposições à execução fiscal, coloca-se, então, o problema de saber como a Fazenda Pública poderá ressarcir o executado de valores que tenha recebido de forma precipitada, diante da posterior procedência dos pedidos feitos nos embargos.

É do que cuida este texto.

1. Reforma do CPC e execução fiscal1.1. Preliminarmente

Antes de iniciar o exame específico de disposições do CPC reformadas pela Lei 11.382/2006, é prudente, para avaliar a possibilidade de sua aplicação às execuções fiscais, dedicar alguma atenção às possíveis diferenças entre as execuções disciplinadas pelo CPC, e aquelas regidas pela Lei 6.830/80 (LEF). Afinal, se normas são a conseqüência da valoração de fatos, é preciso verificar se os fatos regidos pelo CPC são os mesmos – e reclamam a mesma valoração – dos disciplinados pela LEF.

1.2. Uma visão geral das reformas processuaisTambém é pertinente perceber que as alterações efetuadas no CPC pela Lei

11.382/2006 ocorreram no âmbito de um processo mais amplo de reformas, iniciado em 1994, e que provocou reflexos no processo de conhecimento, nos recursos, no processo cautelar e, agora, chega ao processo de execução. A finalidade que inspira todas essas reformas é a de tornar o processo mais simples, menos oneroso, mais célere e, acima de tudo, mais efetivo.

Em termos mais diretos, podemos dizer que foi só depois de dar às partes a possibilidade de uma tutela de conhecimento e de uma tutela cautelar mais eficazes que o legislador passou a preocupar-se, ao cabo, com uma tutela executiva também mais útil. E, aproveitando essa etapa das reformas, a Fazenda Pública busca, com elas, dar mais eficiência à execução fiscal.

Entretanto, caso o observador se distancie um pouco de cada reforma processual, e as observe em conjunto, perceberá algo curioso: de forma paralela às reformas havidas no CPC, processou-se uma outra reforma, em sentido inverso, relativa ao mesmo processo mas pertinente apenas às demandas em que a Fazenda Pública é parte. Cássio Scarpinella Bueno refere-se, a esse respeito, a uma “contra reforma processual”, eis que as alterações...

“(...) colocam no próprio Código de Processo Civil e em diversas leis extravagantes dispositivos que representam, em última análise, sua predisposição a negar efeito aos avanços que, ao sistema processual civil, têm chegado mais recentemente. Se a tônica do ‘novo processo civil brasileiro’ é, ao menos do ponto de vista daquele que pleiteia algo em juízo, a ‘efetividade’, vale dizer, a produção de

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resultados concretos e rápidos para aquele que, com uma boa dose de razão, busca amparo no Poder Judiciário, a do ‘direito processual público’ é a da inefetividade. Inefetividade pela eliminação, pura e simples, de determinadas categorias e institutos processuais para quando o Poder Público está em juízo. Regras processuais, de resto, que são ‘criadas’ para uma só das partes da relação processual, ferindo de morte o princípio do devido processo legal. Tudo para que o processo demore mais do que as precitadas leis da ‘reforma’, atendendo ao reclamo da sociedade brasileira, querem tolerar.”1

O leitor pode estar, a esta altura, se perguntando: - e qual a relação dessa “contra-reforma” com as reformas do CPC e a execução fiscal? No que um problema interfere no trato do outro?

Existem, aqui, duas relações que queremos frisar.

A primeira, mais óbvia, é a da isonomia. Por que as reformas, na parte em que cuidam do processo de conhecimento e do processo cautelar, foram acompanhadas de “contra-reformas” que as neutralizaram em relação aos feitos em que a Fazenda é parte, e, agora, que chegam ao processo de execução, serão integralmente por ela, e só por ela, apropriadas? É preciso perceber que, no processo tributário, o Estado, em regra, não se vale de processos de conhecimento, eis que declara, constitui e condena no âmbito administrativo, fabricando seus próprios títulos executivos. A tutela jurisdicional da qual se vale é a executiva. Assim, agora que a onda reformadora chega ao processo de execução, fala-se em processo de resultados, no “direito fundamental do Estado” (?) a uma tutela efetiva, quando todo esse discurso era – e ainda é – neutralizado nas demais formas de tutela, das quais se vale o cidadão, pela aludida ‘contra-reforma’.2

Mas há uma outra relação. É a de que o processo de execução só está sendo reformado, agora, porque o processo de conhecimento e o cautelar já o foram, antes. Além disso, em relação às pessoas em geral, que não as de direito público, quem é réu de uma ação de conhecimento pode, em outra, ser autor, o mesmo ocorrendo com as execuções. Assim, a reforma, além de ter havido em todas as etapas, não desequilibra a situação de ninguém. No caso do processo tributário, em que o contribuinte, para ver satisfeitas suas pretensões resistidas em face da Fazenda Pública, tem invariavelmente de se valer do processo de conhecimento, enquanto esta apenas da execução se utiliza, a aplicação das reformas apenas na fase executiva causa desequilíbrio sem igual. E, o pior, apenas na fase executiva movida pela Fazenda (e não na execução contra esta), o que torna ainda maior a desigualdade existente entre as posições do cidadão e do Estado na relação processual.

Tais aspectos não podem ser esquecidos na análise da possível aplicação subsidiária do CPC às execuções fiscais.

1 Cassio Scarpinella Bueno. O poder público em juízo. 2.ed., São Paulo: Saraiva, 2003, prefácio à segunda edição, p. XV.2 Não é o objeto deste texto, mas o leitor pode estar curioso: quais foram as tais mudanças batizadas por Scarpinella Bueno de “contra-reforma”? Podem ser referidas: i) hipertrofia da figura da suspensão de liminar e da suspensão de segurança; ii) restrição ao poder do magistrado de proferir liminares contra o Poder Público; iii) restrição ao cabimento da ação civil pública; iv) dispensa de honorários de advogado e execuções não embargadas; etc.

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1.3. Formação dos títulos executivos extrajudiciais e CDAOutro dado a ser ponderado, na comparação entre a execução regida pelo CPC e

aquela disciplinada pela Lei 6.830/80, é a forma como são constituídos os títulos executivos que aparelham uma e outra.

Os títulos que embasam uma execução disciplinada pelo CPC são, invariavelmente, constituídos pela vontade do executado. É uma nota promissória, um contrato assinado por duas testemunhas, um cheque etc. Isso faz com que a possibilidade de o valor nele representado não ser devido seja pequena.

Diversamente, a certidão de dívida ativa (CDA) é constituída de forma unilateral pelo credor. Nela consta a dívida que o credor considera existente, no montante por ele apurado. Nem é preciso dizer que, nesse caso, a possibilidade de erro, de excesso, e mais, de fundado inconformismo do executado em pagá-la, é muito maior.3

1.4. Execução pela a Fazenda Pública e contra a Fazenda PúblicaOutra distinção marcante entre a execução fiscal e aquela regida pelo CPC reside no

“caminho de volta”. Caso o exeqüente receba quantia superior à devida, como o executado poderá obter a devida reparação?

No caso de dois particulares, os mesmos meios executivos que um utiliza de forma eventualmente excessiva estão, com igual intensidade, disponíveis ao outro. E o CPC, atualmente, contém, no art. 694, antes transcrito, regra que disciplina de forma muito clara a questão. É o seu § 2.º, que dispõe: “No caso de procedência dos embargos, o executado terá direito a haver do exeqüente o valor por este recebido como produto da arrematação; caso inferior ao valor do bem, haverá do exeqüente também a diferença.”

Esse “direito de haver do exeqüente”, parece claro, há de ser exercido nos autos da própria execução; pode ser adimplido espontaneamente, e, caso haja resistência, pode haver o uso dos mesmos meios executivos antes empregados contra o executado (v.g, penhora de bens, bloqueio de contas etc.). Mas e se o exeqüente for a Fazenda Pública? Não parece haver outra forma de exigir essa recomposição, senão através do precatório. Será razoável, e não-excessivo, submeter o executado a tal situação?

1.5. Fatos, valores e normas. Situações diversas, normas diversasNos itens anteriores, procurou-se mostrar que a realidade subjacente às normas

contidas no CPC, relativas às execuções em geral, e a realidade subjacente às normas veiculadas na Lei 6.830/80 são diferentes. E essas diferenças indicam, ou mostram-se relevantes para determinar, a necessidade de um tratamento jurídico-processual também diverso, que as considere.

Dito em termos mais simples: se um credor ordinário recebe de forma rápida quantia superior à devida, mas pode ser forçado a devolver de forma também rápida o eventual excesso diante de eventual êxito dos embargos, justifica-se que estes, os embargos à execução, não tenham, ordinariamente, efeito suspensivo. Trata-se de meio adequado, necessário e proporcional em sentido estrito, vale dizer, não excessivo, de se prestigiar o

3 Nesse sentido: Igor Mauler Santiago e Frederico Menezes Breyner, “Eficácia suspensiva dos Embargos à execução fiscal em face do art. 739-A do Código de Processo Civil”, em Revista Dialética de Direito Tributário n.º 145, p. 54 e ss.

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direito do exeqüente a uma tutela jurisdicional célere e efetiva, eis que traz pouca restrição ao direito análogo que assiste ao executado. Essa justificativa, porém, não está presente na execução fiscal, pois a execução através de precatório, além de diferente, e muito menos célere, que a execução fiscal, é, em relação a certos Estados e Municípios, completamente ineficaz.

Isso faz com que a falta do efeito suspensivo, e conseqüente possibilidade de leilão antes do julgamento dos embargos, seja meio desproporcional para prestigiar o direito da Fazenda Pública a uma tutela jurisdicional efetiva. Leva às últimas conseqüências esse direito, com desnecessários e excessivos efeitos colaterais sobre o direito (também fundamental) do sujeito apontado como devedor de demonstrar (com utilidade) a inexistência da dívida.

Não queremos, contudo, fazer apenas esse (importantíssimo) exame da realidade subjacente aos dois diplomas. A avaliação em torno da possibilidade da arrematação antes do julgamento dos embargos envolve, ainda, análise cuidadosa da própria lei de execuções fiscais, aspecto ao qual é dedicado o próximo item.

2. Suspensão da execução e Lei 6.830/802.1. Embargos à execução de título extrajudicial. Efeito suspensivo

A discussão em torno da irretratabilidade da arrematação, em face da posterior procedência dos embargos, é conseqüência de uma questão anterior: o efeito suspensivo dos embargos à execução.

No período anterior à Lei 11.382/2006, o § 1.º do art. 739 do CPC determinava de forma expressa a atribuição de efeito suspensivo aos embargos, algo então incontroverso; discutia-se apenas a subsistência desse efeito suspensivo se rejeitados os embargos por decisão atacada através de recurso sem efeito suspensivo. Entendíamos que o efeito suspensivo deveria prevalecer até o final julgamento dos embargos, mas esse posicionamento terminou vencido na jurisprudência.4 Assim, poderia haver a arrematação dos bens penhorados e, em seguida, em sede recursal, os pedidos do embargante poderiam ser julgados procedentes, colocando-se a questão da irretratabilidade da arrematação.

Com o advento da Lei 11.382/2006, o mencionado art. 739 foi revogado, inserindo-se no Código um art. 739-A que dispõe:

4 Hugo de Brito Machado Segundo. Processo Tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 270 e ss. A jurisprudência terminou se firmando nos termos da Súmula 317 do STJ, que dispõe: “é definitiva a execução de título extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os embargos”. Consideramos, mesmo assim, que o citado entendimento, plenamente acolhido pela reforma da Lei 11.382/2006, deve ser reservado aos processos de execução de título extrajudicial de constituição consensual, disciplinados pelo CPC. Com relação à execução fiscal, merece destaque a observação contida no seguinte julgado, de relatoria do Ministro Gomes de Barros: “A regra de que a execução torna-se definitiva, após rejeição dos embargos, deve ser encarada com reservas, quando se trata de execução fiscal. É que, na eventualidade de o recurso vir a ser provido, após a alienação do bem penhorado, o dano sofrido pelo executado torna-se irreversível. De fato, quando o exeqüente é pessoa de direito privado, a pessoa que teve seu patrimônio injustamente alienado tem quase sempre em seu favor alguma garantia, ou, quando menos, o processo de repetição, razoavelmente ágil. Na execução promovida pelo Estado tudo é diferente. Em primeiro lugar, não é possível exigir-se caução do Estado. Depois, o processo de repetição contra a Fazenda Pública deságua na dolorosa fila dos precatórios” (Ac un da 1.ª T do STJ – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – REsp 277.852-SP – AgRg – j. em 04.09.2001. No mesmo sentido, RSTJ142/82. Cf. Thetônio Negrão e José Roberto Ferreira Gouveia, Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor, 35.ª ed, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1300)

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“Art. 739-A. Os embargos do executado não terão efeito suspensivo.

§ 1o O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução manifestamente possa causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação, e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.

§ 2o A decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada, cessando as circunstâncias que a motivaram.

§ 3o Quando o efeito suspensivo atribuído aos embargos disser respeito apenas a parte do objeto da execução, essa prosseguirá quanto à parte restante.

§ 4o A concessão de efeito suspensivo aos embargos oferecidos por um dos executados não suspenderá a execução contra os que não embargaram, quando o respectivo fundamento disser respeito exclusivamente ao embargante.

§ 5o Quando o excesso de execução for fundamento dos embargos, o embargante deverá declarar na petição inicial o valor que entende correto, apresentando memória do cálculo, sob pena de rejeição liminar dos embargos ou de não conhecimento desse fundamento.

§ 6o A concessão de efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atos de penhora e de avaliação dos bens.”

Como se vê, o efeito suspensivo dos embargos à execução agora depende de deliberação do juiz, que pode deferi-lo, ou não. Caso não seja atribuído o efeito suspensivo, poderá haver a arrematação dos bens dados em garantia, colocando-se a questão de sua irretratabilidade.

Mas é o caso de indagar: essas disposições, contidas no art. 739-A do CPC, aplicam-se à execução fiscal?

2.2. Modificação do CPC aplica-se à execução fiscal? E a Lei 6.830/80?Não. É a resposta à pergunta que encerrou o item anterior. O art. 739-A do CPC não se

aplica à execução fiscal.

Primeiro, pelas razões já apontadas no item 1 deste texto, que impõem a atribuição de tratamento diverso às execuções fiscais, dada a forma distinta como a CDA é constituída e o indébito restituído. Por conta disso, ainda que o regramento da questão pela lei de execuções fiscais permitisse o avanço da Fazenda exeqüente no patrimônio do executado, para que esta obtivesse a satisfação da quantia por ela própria apurada e tida como devida, isso não poderia ocorrer, sob pena de violação ao substantive due process of law (CF/88, art. 5.º, LIV), e aos princípios da ampla defesa e do amplo acesso ao judiciário (CF/88, art. 5.º, XXXV e LV). De fato, permitir-se-ia, com tal sistemática, que um credor obtivesse a quantia considerada devida, diretamente de quem apontasse como seu devedor, sem qualquer possibilidade de um controle jurisdicional prévio, o que implicaria o retorno, na prática, da odiosa regra do solve et repete.

Segundo, por conta do que dispõe a própria Lei 6.830/80. Afinal, o CPC aplica-se à execução fiscal de forma subsidiária, vale dizer, somente naquilo em que a lei específica for

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omissa e reclamar preenchimento, e não há omissão quanto ao efeito suspensivo dos embargos.

É conferir, primeiro, os artigos 17 e 18, segundo os quais, se houver embargos, a Fazenda será intimada para impugná-los. Se não forem oferecidos, a Fazenda será intimada para se manifestar sobre a garantia da execução. Isso significa que toda discussão em torno da garantia (e, por conseguinte, de seu emprego na satisfação do débito) é paralisada pela oposição dos embargos, sendo postergada para quando de seu final julgamento.

Mas não só. O art. 19 determina que, não sendo embargada a execução ou sendo rejeitados os embargos, no caso de garantia prestada por terceiro, será este intimado, sob pena de contra ele prosseguir a execução nos próprios autos, para, no prazo de 15 (quinze) dias: I - remir o bem, se a garantia for real; ou II - pagar o valor da dívida, juros e multa de mora e demais encargos, indicados na Certidão de Divida Ativa pelos quais se obrigou se a garantia for fidejussória. Ou seja, garantia apresentada por terceiro (v.g., fiança bancária) só pode ser usada na satisfação do débito em não sendo embargada a execução ou sendo rejeitados os embargos, o que significa que a oposição destes suspende a execução.

Em seguida, o art. 24 da LEF determina que a Fazenda Pública poderá adjudicar os bens penhorados, antes do leilão, pelo preço da avaliação, se a execução não for embargada ou se rejeitados os embargos. Vale dizer, mesmo anterior ao leilão, a adjudicação há de ocorrer somente depois de rejeitados os embargos, o que significa que tanto ela adjudicação, como o que lhe seria posterior, o leilão, dependem da rejeição dos embargos para acontecer.

Finalmente, da forma mais explícita, direta e inequívoca possível, o art. 32, § 2.° da LEF, ao cuidar da garantia da execução através de depósito, preconiza: “após o trânsito em julgado da decisão, o depósito, monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou entregue à Fazenda Pública, mediante ordem do Juízo competente.”

Está aí, de forma clara: o depósito somente será entregue à Fazenda Pública após o trânsito em julgado da decisão que rejeitar os embargos. Não quer isto dizer que eles, os embargos, têm efeito suspensivo? Parece-nos que sim.

3. Arrematação irretratável e devido processo legal3.1. Em quais circunstâncias poderia haver uma arrematação irretratável, em sede de execução fiscal?

Com as observações feitas até aqui, quanto ao efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal, entendemos que, em se tratando especificamente de execução fiscal, em nenhuma hipótese, antes do julgamento definitivo dos embargos, pode haver o leilão e a conseqüente arrematação dos bens dados em garantia.

Caso se admita a existência de efeito suspensivo nos embargos à execução somente até o seu julgamento em primeira instância, e a continuidade da execução, “como definitiva”, no caso de apelação do embargante recebida apenas no efeito devolutivo, como vinha fazendo a jurisprudência mesmo antes de vigente a Lei 11.382/2006, poderá ocorrer a arrematação de bens e o posterior provimento do recurso. O mesmo poderá ocorrer, com muito mais intensidade, caso se admita a aplicabilidade do art. 739-A do CPC às execuções fiscais, à revelia do que determina a Lei 6.830/80. Admitindo tais hipóteses, coloca-se a questão de saber como interpretar o § 2.º do art. 694 do CPC, segundo o qual “no caso de procedência dos embargos, o executado terá direito a haver do exeqüente o valor por este recebido como

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produto da arrematação; caso inferior ao valor do bem, haverá do exeqüente também a diferença.”

Como a Fazenda devolverá o valor recebido como produto da arrematação, e ainda, se for o caso, a diferença entre o valor da arrematação e o valor do bem?

3.2. Arrematação irretratável e restituiçãoConsideramos que a melhor maneira de equilibrar o direito da Fazenda exeqüente a

uma tutela efetiva no âmbito da execução, com o direito do executado a uma tutela efetiva no âmbito recursal, caso não se aceite – o que seria o mais adequado – que o efeito suspensivo dos embargos prevalece até seu final julgamento, é reservar o produto obtido com a arrematação em conta à disposição do juízo, nos termos do art. 32 da LEF, entregando-o à Fazenda Pública, ou ao executado, conforme o caso, depois do julgamento definitivo dos embargos.

Essa solução, que tem fundamento no poder geral de cautela do magistrado, decorrente do princípio da efetividade da tutela jurisdicional (CF/88, art. 5.°, XXXV), permite à Fazenda receber o valor, de forma imediata, tão logo julgados os embargos, e dispensa o executado de, vitorioso na ação de conhecimento, ter ainda de se submeter à penosa via dos precatórios. Além disso, estabelece a igualdade entre o executado que garante a execução com depósito, ou com a penhora de dinheiro, e aquele que indica bens para serem penhorados. Não há, com efeito, motivo para tratá-los diversamente, sendo certo que no caso do depósito a lei é expressa ao determinar a espera pelo trânsito em julgado (LEF, art. 32, § 2.º).

Entretanto, na hipótese de o bem ser arrematado por valor inferior ao da avaliação, a reparação devida pela Fazenda Pública não poderá ser obtida, evidentemente, com a mera utilização do valor pago pelo arrematante. A única forma de consegui-lo, à luz do art. 100 da CF/88, é através do precatório. Da mesma forma, se o magistrado entender pela não atribuição de efeito suspensivo aos embargos, realizar o leilão dos bens penhorados e não reservar o produto da arrematação para entregá-lo à Fazenda após o trânsito em julgado de sentença que eventualmente julgar improcedentes os pedidos feitos nos embargos, a restituição do patrimônio do executado terá de ser feita através de precatório.5

O precatório, ao que nos parece, deverá ser expedido em função da própria sentença proferida nos embargos, quando de seu trânsito em julgado. É uma forma de executá-la, não sendo a tanto necessário que executado mova outra ação, de “restituição do indébito”.

E nem se objete que a ação de embargos teria como pedido a “desconstituição da CDA” ou a “extinção da execução”, vale dizer, a oposição à cobrança, e não a restituição de quantias já pagas. Isso é verdade, mas se os embargos não foram recebidos com efeito suspensivo, e a execução prosseguiu a despeito dos esforços do executado em sentido contrário, tais fatos são todos supervenientes à propositura dos embargos, pelo que seria mesmo impossível que neles se postulasse qualquer devolução. Por outro lado, é a própria lei, ao prever a possibilidade de ter seguimento a execução apesar da oposição dos embargos, que afirma a necessidade devolução caso os embargos sejam julgados procedentes. Vale dizer, a

5 Essa é a razão pela qual, diversamente do que ocorre com as execuções em geral, a execução fiscal não pode deixar de ter seu curso suspenso pela oposição dos embargos. Foi o que exaustivamente procuramos mostrar ao longo deste trabalho. Aliás, mesmo que aplicável, em tese, o art. 739-A às execuções fiscais, a peculiaridade de o indébito ter de ser restituído por meio de precatório faz com que sempre esteja presente o risco de dano irreparável, a determinar a atribuição, pelo juiz, do efeito suspensivo.

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procedência dos (pedidos formulados nos) embargos tem como conseqüência automática, de acordo com o CPC, o imediato dever, por parte do exeqüente, de devolver o que recebera de forma indevida. Não é preciso propor outra ação, podendo o juízo da execução, tão logo transitem em julgado os embargos, determinar a expedição do respectivo precatório, executando a sentença proferida nos embargos.

Do contrário, em sendo realizado o açodado leilão, seria o caso mesmo de extinguir os embargos ainda pendentes de julgamento, eis que sua inutilidade seria manifesta e total. O direito (que também assiste ao executado) a uma tutela jurisdicional efetiva (em torno da validade da exigência que lhe é formulada) não comporta, razoavelmente, tamanha compressão, sendo impositivo, para que reste uma mínima efetividade à sentença prolatada em sede de embargos, que em face dela já se determine a expedição do correspondente precatório. Aliás, a realização do leilão e a satisfação do alegado débito são fatos supervenientes a oposição dos embargos que não só podem como devem ser objeto de conhecimento – que pode ocorrer até mesmo de ofício – pelo julgador.

Registre-se, ainda, que, diante do trânsito em julgado da decisão que considerar procedentes os pedidos do embargante/executado, uma alternativa deste será desistir da expedição do precatório, e postular a compensação da quantia correspondente, nos termos em que pacificamente o admite a jurisprudência.

Em qualquer caso, tais soluções, não custa insistir, somente serão cabíveis na hipótese de o caminho mais correto, proporcional e equilibrado não ser seguido, que é o de se aguardar o julgamento dos embargos para que só então se dê curso definitivo à execução.

Quanto à arrematação, a sua irretratabilidade impõe-se como conseqüência do princípio segundo o qual se deve prestigiar a boa-fé de terceiros que nada têm com a lide. O que não se deve, em nossa compreensão, é permitir a realização de um leilão antes do trânsito em julgado dos embargos. Mas, se isso vem a acontecer, a forma de remediar a açodada investida no patrimônio do executado não é o desfazimento da alienação, com grande insegurança para os que dela participaram como terceiros de boa-fé. A solução deverá ser alcançada através da indenização por parte do exeqüente. E tal indenização, convém frisar, não se há de limitar, necessariamente, ao valor obtido com a arrematação. Pode alcançar também, a diferença entre o valor do bem e o valor da arrematação, se este for inferior, e ainda outros prejuízos que o executado tenha sofrido (danos morais etc.), o que só em cada caso poderá ser aferido.

Finalmente, quanto à irretratabilidade da alienação, deve ser feita a ressalva apenas da situação em que, em vez de arrematação, ocorre a adjudicação do bem. Nesse caso, já que todos os ônus pela indevida execução devem recair sobre o exeqüente, que não é um “terceiro de boa-fé”, é natural que a adjudicação possa ser desfeita no caso de ulterior procedência dos embargos à execução.

ConclusõesEm razão do que foi visto ao longo deste texto, podemos concluir, em síntese, que:

a) em face da forma peculiar como o título executivo que aparelha a execução fiscal é constituído, e como o eventual indébito tributário é restituído, os embargos à execução fiscal devem ter efeito suspensivo ex lege, o que, aliás, é expressamente determinado pelos arts. 16, 17, 19, 24 e 32 da Lei 6.830/80, não se lhes aplicando o disposto no art. 739-A do CPC;

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b) o efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal há de prevalecer inclusive no plano recursal, não se devendo aplicar o entendimento firmado pelo STJ através da Súmula 317, que se deve restringir aos processos de execução de título extrajudicial de constituição consensual, disciplinados pelo CPC;

c) caso a jurisprudência se venha a orientar definitivamente em sentido diverso, de sorte a permitir o seguimento de execuções fiscais embargadas, com a arrematação de bens enquanto ainda não definitivamente julgados os embargos, o juiz deverá pelo menos, dentro de seu poder geral de cautela, a fim de tornar menos ineficaz eventual sentença de procedência dos pedidos em sede de embargos, reservar o produto da alienação em conta de depósito, a fim de entregá-lo à parte vitoriosa quando do julgamento definitivo. Estabelece-se, com isso, a isonomia entre os executados que oferecem distintas formas de garantia, eis que tanto o depósito como a fiança e a penhora de dinheiro têm, por expressa disposição legal, de aguardar a rejeição dos embargos para serem usados na satisfação do débito;

d) em não se procedendo da forma descrita em qualquer das conclusões anteriores, a posterior procedência dos pedidos formulados nos embargos, reconhecida por decisão transitada em julgado, ensejará a expedição de precatório a fim de que o executado seja ressarcido do valor do bem apressadamente leiloado. O mesmo deverá ocorrer com a diferença entre o valor do bem e o valor da arrematação, na hipótese deste ser inferior àquele, e com qualquer outro prejuízo que essa indevida alienação tenha trazido ao executado. Não será necessária a propositura de uma outra ação, de conhecimento, sendo suficiente aquela proferida em sede de embargos;

e) a arrematação, em qualquer caso, deverá ser considerada irretratável, nos termos do art. 694 do CPC, em proteção à boa-fé do terceiro arrematante. Somente no caso de adjudicação, pela própria Fazenda, a alienação poderá ser desfeita, eis que ao exeqüente cabe arcar com os ônus do açodado ingresso no patrimônio do executado ulteriormente vitorioso em sede de embargos.