Maior abandonado

4
DOMINGO, 23 DE SETEMBRO DE 2012 - Quando a vida começa aos 18 Fernando Poffo [email protected] P elo menos 5 mil ado- lescentes brasileiros convivem com a pers- pectiva de sair do abri- go sem qualquer amparo legal ao completarem a maioridade, depois de passar a vida, ou par- te dela, sob a tutela do Estado. Atualmente, 41.166 pessoas, entre bebês, crianças e jovens estão abrigados. Alguns espe- ram a adoção, outros, a volta para a família e muitos deles li- dam com a incerteza de chegar à maioridade e ter de se susten- tar sozinho, já que legalmente o Estado não tem qualquer obri- gação de acolher adultos. “Ge- ralmente se desvincula o jovem da entidade e ele vai ter que se virar por meios próprios. O que se busca é que seja preparado”, diz o presidente da Comissão de Direito à Adoção da OAB- -SP, Antônio Carlos Berlini. Prestes a completar a maioridade, cerca de 5 mil adolescentes que moram em abrigos ainda não têm para onde ir. Vivem sob a angústia do "maior abandonado" Se dependesse exclusiva- mente dos projetos do governo, Josenilton Ferreira dos Santos, que está fora da estatística atu- alizada em julho pelo Conse- lho Nacional de Justiça (CNJ), não teria onde morar. Criado em abrigo “desde as fraldas”, como ele mesmo define, aos 20 anos e com a responsabili- dade de criar o irmão um ano mais novo e com deficiência intelectual, Santos não está na rua graças ao trabalho desen- volvido pelo abrigo em que cresceu, mantido pela Liga Solidária, organização social sem fins lucrativos. Desempregados, Santos e o irmão vivem em um aparta- mento alugado pela Liga Soli- dária. Com eles mora um ami- go do abrigo que, por ser maior de 18 anos e estar trabalhando, já colabora com as contas da casa, dentro de um projeto que pretende acelerar o processo de autonomia dos jovens. “Nós E AGORA?: Ao completar 18 anos, jovem abrigado se depara com os obstáculos de um mundo ainda desconhecido DEMETRIO KOCH 12 e special

description

Prestes a completar a maioridade, cerca de 5 mil adolescentes que moram em abrigos ainda não têm para onde ir. Vivem sob a angústia pois vão ser obrigados a viver sozinhos aos 18 anos de idade

Transcript of Maior abandonado

Page 1: Maior abandonado

DOMINGO, 23 DE SETEMBRO DE 2012 -

Quando a vida começa aos 18

Fernando [email protected]

Pelo menos 5 mil ado-lescentes brasileiros convivem com a pers-pectiva de sair do abri-

go sem qualquer amparo legal ao completarem a maioridade, depois de passar a vida, ou par-te dela, sob a tutela do Estado. Atualmente, 41.166 pessoas, entre bebês, crianças e jovens estão abrigados. Alguns espe-ram a adoção, outros, a volta para a família e muitos deles li-dam com a incerteza de chegar à maioridade e ter de se susten-tar sozinho, já que legalmente o Estado não tem qualquer obri-gação de acolher adultos. “Ge-ralmente se desvincula o jovem da entidade e ele vai ter que se virar por meios próprios. O que se busca é que seja preparado”, diz o presidente da Comissão de Direito à Adoção da OAB--SP, Antônio Carlos Berlini.

Prestes a completar a maioridade, cerca de 5 mil adolescentes que moram em abrigos ainda não têm para onde ir. Vivem sob a angústia do "maior abandonado"

Se dependesse exclusiva-mente dos projetos do governo, Josenilton Ferreira dos Santos, que está fora da estatística atu-alizada em julho pelo Conse-lho Nacional de Justiça (CNJ), não teria onde morar. Criado em abrigo “desde as fraldas”, como ele mesmo define, aos 20 anos e com a responsabili-dade de criar o irmão um ano mais novo e com deficiência intelectual, Santos não está na rua graças ao trabalho desen-volvido pelo abrigo em que cresceu, mantido pela Liga Solidária, organização social sem fins lucrativos.

Desempregados, Santos e o irmão vivem em um aparta-mento alugado pela Liga Soli-dária. Com eles mora um ami-go do abrigo que, por ser maior de 18 anos e estar trabalhando, já colabora com as contas da casa, dentro de um projeto que pretende acelerar o processo de autonomia dos jovens. “Nós

E agora?: Ao completar 18 anos, jovem abrigado se depara com os obstáculos de um mundo ainda desconhecido

dem

etri

o k

oc

h

12

especial

Page 2: Maior abandonado

- DOMINGO, 23 DE SETEMBRO DE 2012

De interno a educador

damos um apoio estratégico até que eles tenham 100% de auto-nomia, sem um prazo predeter-minado para que isso ocorra”, explica o o coordenador dos abrigos da Liga Solidária, Ma-riano Gaioski.

O valor do aluguel é pago pela Liga e, gradativamente, os rapazes vão assumindo tari-fas públicas. As despesas com objetos pessoais ficam com eles desde os tempos do abrigo, se-gundo Gaioski

O trabalho de instituições não governamentais é prati-camente a única saída para quem completa a maioridade em abrigos. O governo trata apenas como diretrizes para os municípios, e não como uma lei, a responsabilidade pelo acolhimento de maiores de idade por um período nas chamadas repúblicas. No caso de Josenílton, por exemplo, só por estar desempregado ele já não seria aceito em república institucionalizada e cheia de regras, isso porque é de São Paulo, rara ci-dade que segue a reco-mendação federal e conta com 37 vagas em seis repúblicas.

“O trabalho dos abrigos é o de acolher e promover a reapro-ximação dessas crianças com os familiares. A república só vai existir quando a gente falhar completamente na proposta de

reintegrá-lo ou fazê-lo ser integrado em

família substi-tuta antes dos 18 anos”, declara Valé-ria Brahim, gerente de prog ramas sociais na organização

não governamental Terra dos Homens, que trabalha no Rio de Janeiro com crianças e ado-lescentes com direitos violados. “Com filhos ou crianças de abrigo deve-se ensinar a ser au-tônomo desde a infância, o ideal é que o plano político pedagógi-co seja para a autonomia e não para a tutela”, acrescenta.

Outra opção para quem vive em abrigos é a adoção, o que vai ficando mais difícil con-forme a criança fica mais velha. A orientação pública é que as crianças fiquem no máximo por 2 anos no abrigo e a cada 6 meses tenha a situação avaliada por um juiz. Mas, se não houver reaproximação com familiares ou esses seguirem sem condi-ções de acolhimento, o juiz au-toriza que ela siga no abrigo.

Bem estruturados, os abri-gos garantem a preservação

dos direitos das crianças, mas começam a encaminhar os ado-lescentes para a vida autônoma quando ele já tem 15 ou 16 anos. Ou seja, em pouco mais de 3 anos o adolescente preci-sa aprender a ser independente justamente num período de in-certezas, própria dessa fase da vida. É nessa época que apren-de tarefas domésticas, escolhe e é encaminhado a cursos de qua-lificação profissional, tenta a in-serção no mercado de trabalho e, claro, continua estudando.

“Eu deixei o abrigo como criança de classe média e mi-mada, bem longe da minha realidade. Lá tinha de tudo e, quando não tinha, iam atrás. Até para a praia a gente ia umas dez vezes por ano. Eu digo que saí como um bur-guesinho babaca”, comenta Carlos Henrique Francis-

Carlos Eduardo Francisco, de 24 anos, foi para o abrigo com os irmãos ainda na infância. Chegou a sair para ficar com a mãe, mas teve de voltar quando a perdeu para o álcool. O pai ele não conhece, mas diz não sentir qualquer rancor dele. Passou a maior parte da vida com os irmãos gêmeos, Luís Henrique e Fred (28 anos), o ca-çula Robson (20), e as mulheres Paula (32) e Graziela (30). Depois de conviver e ver alguns problemas na família, inclusive com drogas, hoje é educador, faz faculdade de Serviço Social e vive com amigas em uma república particular, onde as despesas são divididas.

o objetivo é reinserir no meio familiar, social ou apadrinhamento. Quando não acontece, incluimos o garoto (a partir dos 15 anos) em programas sociaise procuramosinseri-lo no mercado de trabalho

Erica Chaves, coordenadora da Associação irmão Sol, em Belo

horizonte (mG)

MAIS DE 40 MIL

BEBÊS, CRIANÇAS E

JOVENS AGUARDAM

POR UM FUTURO

INCERTO DENTRO

DE UM ABRIGO

aDoÇÃo: meninas de um centro de acolhimento de téofilo otoni (mG), cidade que tem o maior número de meninos e meninas adotados por estrangeiros

Ae

André m

ourA

especial 13

Page 3: Maior abandonado

DOMINGO, 23 DE SETEMBRO DE 2012 -

co, de 24 anos, que morou em abrigo a maior parte da vida e passou por muita dificuldade quando teve de deixá-lo.

“Quem vive em lar de ver-dade não fica abalado por qualquer falta de carinho, mas a maioria do pessoal do abrigo sofre de amor possessivo, tem medo da rejeição e se casa na primeira relação. Aí não sabe lidar com a perda, a frustração. Quando eu perdi meu casa-mento foi assim. A gente come-ça a questionar nossa existên-cia. Eu vivi todos esses estágios: leva à depressão, ao álcool, à droga, você pensa em suicídio. Muita gente fica pelo caminho. Eu fui me isolar do mundo, mas agora estou bem, faço análise há 2 anos”, relatou o agora edu-cador Carlos Francisco, citando a dificuldade que enfrentou e

Somente diretrizes municipais e estaduais são pouco para aqueles que, de repente, têm todas as responsabilidades da vida adulta nas mãos. A autonomia não se conquista com uma data de aniversário

Nilson Defaveri, coordenador de projetos do instituto dom Bosco

A mãe não tinha como criá-lo

Josenílton Ferrei-ra dos Santos, de 20 anos, não sabe exata-mente com que ida-de chegou ao abrigo e não tem qualquer informação que pos-sa levar ao paradei-ro dos pais. Tudo que sabe está em seu histórico: tem mais quatro irmãos, três deles no exterior e uma na Bahia.

É nesse mesmo histórico que está a informação sobre a razão que o teria le-vado a morar em um abrigo. Diz o docu-mento que sua mãe não tinha condições de criar os filhos, nem ele, nem os irmãos.

Santos conta que já já se comunicou com a irmã que mora na Bahia e pediu ao juiz um contato com os outros irmãos, mas ainda espera por uma resposta.

preocupado com o futuro dos meninos que cuida, já que os vê com mais regalias ainda, em ra-zão das mudanças nas políticas de assistência social, agora com mais garantias para a defesa dos direitos da criança.

Apesar de se considerar mi-mado e sem preparo ao deixar o abrigo, Carlos lembra que tinha afazeres a cumprir no período em que foi criado por laristas – hoje substituídos por educado-res profissionais – e ainda tem na bagagem diversos cursos de qualificação profissional, como eletricista, encanador, cozinhei-ro e cabeleireiro. Algo que não vê ocorrer atualmente. “O edu-cador faz tudo para os meninos,

que ficam sem vida própria e não têm qualquer obrigação.”

O desafio para educadores, sociólogos e psicólogos, espe-cialmente para quem vai com-pletar a maioridade e buscar independência forçada, passa pela tênue linha entre incentivar a autonomia e respeitar os direi-tos das crianças – que jamais de-vem ser exploradas ou trabalhar nos abrigos, apesar de demons-trarem o desejo de ajudar com o trabalho no local que conside-ram ser sua casa. Por exemplo, como o educador vai proibir a criança de lavar um prato, se esse for o desejo dela? Em uma sociedade na qual jovens cria-dos em lares tradicionais já têm

dificuldade para sair de casa e se tornar independente de fato, como acelerar o processo de au-tonomia?

“Não há uma receita de su-cesso que dê certo com todos. Mas nunca perder de vista a provisoriedade da permanência no abrigo, até mesmo para que não se produza comodismo, é um bom começo”, indica Nil-son Defaveri, coordenador de projetos do Instituto Dom Bos-co, que mantém abrigos para crianças, adolescentes e tam-bém repúblicas para maiores de idade em São Paulo.

Defaveri aponta os seguin-tes pilares para a autonomia dos jovens: independência eco-nômica, política e intelectual. “Queremos jovens capazes de pensar por si mesmos, a agir no espaço público e a adquirir pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência ma-terial”, afirma.

Além dos trabalhos dentro dos abrigos, a participação da comunidade para a inser-Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

Número de moradores de abrigos

Dados do CNJ mostram que a maioria dos jovens abrigados no País tem entre 0 e 15 anos

O ESTíMULO

à AUTONOMIA

INFANTIL ESBARRA

NA DEFESA DOS

DIREITOS DA

CRIANÇA

dem

etri

o k

oc

h

14 especial

Page 4: Maior abandonado

- DOMINGO, 23 DE SETEMBRO DE 2012

como o jovem vai sair para a vida logo que completa 18 anos? Vai alugar uma casa para morar assim, sozinho? é meio louco isso

Lídia Weber, coordenadora do núcleo de Análise de

comportamento da universidade Federal do Paraná

Orgulho por ter uma família

Da vida real para o sucesso na TV

Thiago Costa da Silva tem 29 anos e cresceu com o irmão Felipe, um ano mais novo. Ele não sabe nem nunca demonstrou interesse em saber as origens da família ou quem são seus pais. Amparado em abrigo desde a infância, aproveitou oportunidades em cursos profissionalizantes, onde, aos 14 anos, conheceu Adriana, com quem se casou aos 23 anos. Depois de passar por um tempo em uma espé-cie de república, com o irmão e ami-gos, casou-se e comprou um apar-tamento no Jardim Arpoador, zona sul de São Paulo. Hoje, ele tem duas filhas. “Quero o melhor para elas. Todo o carinho e o afeto que não tive jamais vão faltar para elas”, garante.

Depois de morar na rua e passar por unida-des da antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), Carlinhos Silva foi para o abrigo aos 7 anos. Arteiro e brincalhão, fez “tudo que é curso para ver se ficava mais cal-mo”. Hoje, aos 32 anos, acha que a experiência foi superpositiva e não concorda com as rega-lias que vê atualmente para as crianças quando visita o abrigo. Pai de Arthur Henrique, de 1 ano e 2 meses, e separado da mulher, Carlinhos avi-sa que nunca vai desistir de ficar perto do filho.

ção desses jovens na sociedade é fundamental. Diferentemen-te do que ocorria no passado, quando o abrigo parecia uma prisão, no modelo atual os in-ternos saem para estudar, fazer cursos e têm horário livre, ape-sar de dever satisfação. Ao sair para um curso de marcenaria, o então adolescente Thiago Cos-ta da Silva, hoje com 29 anos,

conheceu Adriana Aragão, um ano mais nova e aluna de con-feitaria, com quem se casou e formou família.

Além da abertura para os jo-vens se integrarem com a comu-nidade, os abrigos costumam firmar parcerias com empresas para empregar os internos. Os adolescentes que aproveitam a oportunidade podem alçar voos inimagináveis, como o humo-rista Carlinhos Silva, conhecido como “Mendigo”, que come-çou como office-boy na rádio Jovem Pan e, além de já ser pai e ter independência financeira, construiu uma carreira de su-cesso na televisão. Aos 32 anos, ele integra a equipe do “Tudo É Possível”, da TV Record.

Mas os casos de sucesso são raros. O humorista, que teve de sair do abrigo ainda menor de idade, dá dicas para quem vive em abrigos. “Não se acomode com o que a lei te beneficia. O negócio é estudar, estudar, estudar, correr atrás e nunca desistir, porque os sonhos são sempre possíveis”, disse, lem-brando saber bem que não é brincadeira ter que morar na rua – destino hoje reservado a quem completa 18 anos.

Foto

S: d

emet

rio

ko

ch

especial 15