Manual de Leitura Platónov final

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  • de Anton Tchkhov

    traduo Antnio Pescada

    encenao Nuno Cardoso

    cenografia F. Ribeiro

    figurinos Storytailors

    desenho de luz Jos lvaro Correia

    movimento Marta Silva

    assistncia de encenao Victor Hugo Pontes

    preparao vocal e elocuo Joo Henriques

    interpretao

    Antnio Fonseca Porfrii Seminovitch Glagliev

    Daniel Pinto Ossip

    Fernando Moreira Ivan Ivnovitch Triltski

    Hugo Torres Mikhail Vasslievitch Platnov

    Joo Castro Timofei Gordievitch Bugrov

    Jorge Mota Abram Abrmovitch Venguervitch

    Jos Eduardo Silva Kirill Porfrievitch Glagliev

    Lgia Roque Anna Petrovna Vointseva

    Lus Arajo Issak Abrmovitch Venguervitch

    Marta Gorgulho Aleksandra Ivnovna (Sacha)

    Micaela Cardoso Sofia Egrovna

    Paulo Freixinho Guerssim Kuzmitch Ptrin

    Pedro Almendra Nikolai Ivnitch Triltski

    Pedro Frias Pvel Petrvitch Scherbuk; Marko

    Sandra Salom Maria Efmovna Grkova

    Srgio Praia Serguei Pvlovitch Vointsev

    coordenao de produo Maria Joo Teixeira

    assistncia de produo Mnica Rocha

    assistncia de produo e de encenao Rita Figueiredo (estagiria)

    direco tcnica Carlos Miguel Chaves

    direco de palco Rui Simo

    direco de cena Ricardo Silva, Pedro Manana

    cenografia (coordenao) Teresa Grcio

    maquinaria de cena Filipe Silva (coordenao), Adlio Pra, Joaquim Marques,

    Jorge Silva, Ldio Pontes, Paulo Srgio

    som Joel Azevedo, Joo Oliveira

    luz Filipe Pinheiro (coordenao), Ablio Vinhas, Jos Carlos Cunha, Jos Rodrigues

    adereos e guarda roupa Elisabete Leo (coordenao); Teresa Batista (assistente);

    Patrcia Nunes (pesquisa e compra de materiais); Celeste Marinho (mestra costureira);

    Nazar Fernandes, Ftima Roriz, Virgnia Pereira, Esperana Sousa (costureiras);

    Isabel Pereira (aderecista de guarda roupa); Guilherme Monteiro, Dora Pereira,

    Nuno Ferreira (aderecistas)

    auxiliar de camarim Carla Martins

    produo TNSJ

    dur. aprox. [3:50] com dois intervalos

    classif. etria M/12 anos

    ter sb 21:00

    dom 16:00

    Teatro NacionalSo Joo

    17Julho3 Agosto2008

    apoios

    Viveiroplantas Abel de Pinho Moreira, Lda.

    Casa Barral Barral de Almeida, Lda.

    apoios divulgao

    agradecimentos

    Polcia de Segurana Pblica

    DREN Direco Regional de Educao do Norte

    Eng. Dulce Miranda

    Ivo C. Faro Tcnicos de Electrnica

    Manuel Correia Antiqurio

    Mal Patrcio

    edio Centro de Edies do TNSJ

    coordenao Joo Lus Pereira

    documentao Paula Braga

    design grfico Joo Faria, Joo Guedes

    fotografia Joo Tuna, Julien de Rosa (retrato

    de Joo Branco e Luis Sanchez)

    impresso LiderGraf, Artes Grficas, SA

    Teatro Nacional So Joo

    Praa da Batalha

    4000 102 Porto

    T 22 340 19 00 F 22 208 83 03

    Teatro Carlos Alberto

    Rua das Oliveiras, 43

    4050 449 Porto

    T 22 340 19 00 F 22 339 50 69

    Mosteiro de So Bento da Vitria

    Rua de So Bento da Vitria

    4050 543 Porto

    T 22 340 19 00 F 22 339 30 39

    www.tnsj.pt

    [email protected]

    No permitido filmar, gravar ou fotografar

    durante o espectculo. O uso de telemveis,

    pagers ou relgios com sinal sonoro incmodo,

    tanto para os actores como para os espectadores.

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    O desencanto um oximoro, uma contradio que o intelecto no pode resolver e s a poesia capaz de exprimir e preservar, porque diz que o encanto est ausente mas no deixa de sugerir, pelo modo e o tom em que o diz, que apesar de tudo existe e pode ressurgir quando menos o esperamos. Uma voz diz que a vida no tem sentido, mas o seu timbre profundo o eco desse sentido. A ironia de Cervantes, que desmascarou o fim e a torpeza da cavalaria, exprimiu tambm a poesia e o encanto da cavalaria.

    O desencanto, que corrige a utopia, refora o seu elemento fundamental, a esperana. O que posso esperar?, interroga se Kant na Crtica da Razo Pura. A esperana no nasce de uma viso do mundo tranquilizadora e optimista, mas sim da dilacerao da existncia vivida e sofrida sem vus, que cria uma irreprimvel necessidade de resgate. O mal radical a radical insensatez com que se apresenta o mundo exige que o perscrutemos em profundidade, para podermos afront lo com a esperana de o superarmos. Charles Pguy considerava a esperana a maior de todas as virtudes, precisamente por ser to profunda e to forte a propenso para desesperar, e por ser to difcil, como afirma no seu Prtico do Mistrio

    da Segunda Virtude, recuperar a fantasia da infncia, assistir ao rumo que as coisas vo tomando e acreditar ainda assim que amanh tudo ser melhor. []

    O desencanto uma forma irnica, melanclica e aguerrida da esperana; modera o seu pathos proftico e generosamente optimista, que subestima facilmente as pavorosas possibilidades de regresso, de descontinuidade, de trgica barbrie latentes na histria. Talvez no possa existir um verdadeiro desencanto filosfico, mas tos potico, porque apenas a poesia capaz de representar as contradies sem resolvlas conceptualmente, compondo as numa unidade superior, elusiva e musical. Talvez por isso, o livro maior do desencanto, A Educao Sentimental de Flaubert o livro de todas as desiluses, como j o definiram , tambm, na melodia do seu fluir melanclico e misterioso como o do tempo, o livro do encanto e da seduo de viver. Todo o mito revive e refulge apenas quando se desmistifica o seu esteretipo, o seu fascnio de papelo. Os mares do sul convertem se numa paisagem da alma nas pginas de Melville ou de Stevenson, que desmontam com crueza qualquer pretenso cenrio de paraso intacto. Apenas criticando um mito se pode colocar em evidncia a fascinao a que se resiste. O verdadeiro sonho, escreve Nietzsche, a capacidade de sonhar sabendo que se sonha.

    A histria literria ocidental dos ltimos dois sculos uma histria de utopia e desencanto, da sua inseparvel simbiose. A literatura coloca se frequentemente face histria como o outro lado da lua, o lado que deixa na sombra o curso do mundo. Este sentido da existncia de uma grande falha na vida e na histria no mais do que a exigncia de algo irredutivelmente distinto, de uma redeno messinica e revolucionria, falida ou negada por cada revoluo histrica. O indivduo denuncia uma ferida profunda que lhe coloca dificuldades na realizao plena da sua personalidade face evoluo social, levando o a sentir a ausncia da verdadeira vida. O progresso colectivo evidencia o malestar do indivduo; ambicionar viver coisa de megalmanos, escreve Ibsen, querendo com isto dizer que s a conscincia do rduo e temerrio que aspirar vida autntica pode permitir que nos aproximemos dela.

    ClaudioMagris Utopa y Desencanto. In Utopa y Desencanto: Historias, Esperanzas e Ilusiones de la Modernidad. Barcelona: Anagrama, cop. 2001. p. 15 16.

    Platnov Esta magnfica recomendao basta me para ter o direito de lhe perguntar, Sofia Egrovna, como passa? Como vai a sua sade?SofiaEgrovna Em geral vivo muito sofrivelmente, mas a sade no est l muito boa. E voc, como vai? O que faz agora?Platnov O destino pregou me uma partida que eu nunca poderia supor naquele tempo em que voc via em mim um segundo Byron, e eu me via como um futuro ministro e um Cristvo Colombo. Sou um mestre escola, Sofia Egrovna, nada mais.SofiaEgrovna Voc?Platnov Sim, eu (Pausa.) Talvez seja um pouco estranhoSofiaEgrovna Isso incrvel! Mas porqu Porque no conseguiu melhor?Platnov Uma frase no chega para responder sua pergunta, Sofia Egrovna(Pausa.)SofiaEgrovna Ao menos terminou a universidade?Platnov No. Desisti.SofiaEgrovna Hum Em todo o caso, isso no o impede de ser um homem?Platnov Desculpe No percebi a sua perguntaSofiaEgrovna Eu no me exprimi com clareza. Isso no o estorva de ser um homem de trabalhar, quero dizer, por exemplo no campo da liberdade, da emancipao das mulheres Isso no o impede de servir uma ideia?Triltski ( parte.) Fala de mais!Platnov ( parte.) Esta agora! Hum (Para ela.) Como hei de dizer? Talvez isso no me estorve, mas estorvar de qu? (Ri se.) A mim nada me pode estorvar. Eu sou como uma pedra imvel. As pedras imveis so para estorvar

    AntonTchkhov Platnov

    Bravo, bravo! Escuta, Arkdi a est como devem expressar se os jovens de hoje! E, claro, como no hode eles segui lo! Dantes os jovens tinham de estudar; no queriam passar por ignorantes e por isso trabalhavam mesmo contrariados. Mas agora basta lhes dizer: tudo no mundo absurdo! e est o assunto arrumado. Os jovens ficam encantados. E na verdade, outrora eram uns papalvos, mas agora tornaram se de sbito niilistas. Vejo que o senhor foi trado pelo to gabado sentido da dignidade pessoal disse Bazrov, fleumtico, enquanto Arkdi se inflamava e lanava chispas pelos olhos. A nossa discusso foi demasiado longe Parece me melhor terminla. Eu estarei disposto a concordar consigo acrescentou ele, levantando se quando me apresentar ao menos uma instituio na nossa existncia contempornea, familiar ou social, que no suscite uma recusa completa e implacvel. Eu apresento lhe milhes delas exclamou Pvel Petrvitch , milhes! Veja, por exemplo, a comunidade.Um frio sorriso de mofa crispou os lbios de Bazrov. Bem, no que se refere comunidade disse ele , melhor falar com o seu irmo. Parece que ele agora j conhece na prtica o que a comunidade, a cauo solidria, a abstinncia e coisas que tais. A famlia, finalmente, a famlia tal como ela existe entre os nossos camponeses! exclamou Pvel Petrvitch. E tambm esse assunto, melhor ser para o senhor no o analisar em pormenor. O senhor j ouviu talvez falar das noras escolhidas pelos sogros? Escute, Pvel Petrvitch, dedique uns dois dias ao assunto e imediatamente descobrir alguma coisa. Examine as nossas classes sociais e medite bem sobre cada uma delas, e entretanto eu e o Arkdi vamos Escarnecer de tudo exclamou Pvel Petrvitch. No, dissecar rs. Vamos, Arkdi. Adeus, senhores!

    IvanTurguniev Pais e Filhos [1862]. Lisboa: Relgio Dgua Editores, cop. 2007. Trad. Antnio Pescada. p. 62 63.

    Vista pelo seu lado cmico, a vida obrigatoriamente mais objectiva do que vista pelo lado trgico. Se a olharmos com uma certa distncia, vemos que qualquer acontecimento, do nascimento morte, tem a sua faceta cmica. Enquanto mdico, Tchkhov no podia deixar de ver a realidade impregnada desse matiz cmico.

    Na Rssia, em Frana e em Inglaterra construiu se o cone chavo de uma Rssia feita de lcool, melancolia e lgrimas, e essa imagem ganhou razes no corao das pessoas. Durante muito tempo, todos os aspectos cmicos foram obliterados, em lugar deles havia as lentides, os longos silncios para mostrar a que ponto a vida era montona. Apresentavam se pessoas desvitalizadas e muito belas. Trata se de um grande erro em relao realidade, vida tal como Tchkhov a via: claro que as condies de tdio e frustrao, em vez de desvitalizarem as pessoas, do lhes vontade de dramatizar a mais pequena coisa e isso gera uma imensa vitalidade. ridculo e trgico ao mesmo tempo. Essa imensa vitalidade esbanjada para nada

    At h uma dezena de anos, em Inglaterra (no sei como era em Frana), Tchkhov apresentava se como uma msica triste e sentimental; subitamente, deu se uma reaco e comeou se a representar os mesmos textos em tom de farsa, por vezes com um cheiro a regionalismo. O melhor Tchkhov que conheo o filme russo Pea Inacabada para Piano Mecnico [realizado por Nikita Mikhalkov em 1977, a partir de Platnov], onde se vem personagens representar com uma imensa alegria de viver, num stio onde nem h vida, nem alegria. uma exploso de alegria que no tem rumo.

    PeterBrook La cerisaie, une immense vitalit. Thtre en Europe. N. 2 (Avr. 1984). p. 50 53.

    Trad. Regina Guimares.

    Platnov, Bazrov, vitalidade, utopia e desencanto

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    Uma pea sem ttulo

    tido como certo que Tchkhov escreveu em 1878 uma pea intitulada (Bezotsvschina rfo de Pai), que referida numa carta do seu irmo Mikhail, datada de Outubro desse ano. Mas no h provas conclusivas de que seja Platnov esse rfo.

    O manuscrito desta pea, que tem sido apresentada como Platnov, foi encontrado nos arquivos do autor e nele faltava a pgina de ttulo. Permaneceu, assim, a incerteza sobre se este texto era o mesmo a que Mikhail Tchkhov se referia na citada carta.

    H no entanto a certeza de que esta, Platnov, a pea referida mais tarde pelo mesmo Mikhail Tchkhov: Ainda em estudante [A. Tchkhov] escreveu uma pea que esperava ver representada no Mali Teatr de Moscovo, tendo mesmo apresentado o texto actriz Maria Ermlova. Era uma pea bastante densa, com uma linha frrea, ladres de cavalos e o linchamento de um cigano. Platnov, sem qualquer dvida, e foi proposta a Ermlova durante o ano lectivo de 1880 1881.

    Contudo, a primeira edio do texto, publicada pelo Arquivo Central da ento Unio Sovitica em 1923, apresenta o simplesmente como .. (Pea indita de A.P. Tchkhov). E uma edio recente (2006) de todas as peas de Tchkhov num s volume, que inclui, alm das peas de grande formato, as peas em um acto (com a nica excepo de Tatiana Rpina), d lhe ainda o ttulo Bezotsvschina.

    No entanto, praticamente todos os espectculos feitos com este texto, tanto na Rssia como noutros pases, aparecem com o ttulo de Platnov. Mas h excepes. Por exemplo, o encenador russo Lev Ddin encenou com esta pea em Petersburgo, em 2004, um espectculo a que chamou (Pea Sem Ttulo).

    Platnov nos teatros do mundo

    Durante dcadas, esta pea foi relativamente desprezada pelos tea tros, em parte talvez por ser demasiado extensa. Se representada a totalidade do texto, sem cortes, daria um espectculo de pelo menos seis horas o jovem Anton Tchkhov no tinha ainda a experincia viva do teatro. Mas possivelmente tambm por ser considerada uma obra de juventude, sem a maturidade e a perfeio formal das quatro mais clebres peas do autor [A Gaivota, As Trs Irms, O Tio Vnia, O Cerejal]. E a verdade que ao longo dos tempos tem sido muito menos representada do que as quatro.

    No entanto, principalmente a partir da segunda metade do sculo XX, Platnov teve um reconhecimento e uma aceitao cada vez maiores por parte dos profissionais e dos pblicos de teatro. No apenas na Rssia, mas tambm em Frana a partir de 1956, e em Inglaterra a partir de 1960, num espectculo em que o actor Rex Harrison desempenhou o papel principal, no Royal Court Theatre.

    Desde ento, no parou de ser representada e editada um pouco por todo o mundo, tendo sido mesmo apresentada em Portugal na dcada de 1990, traduzida do francs e com encenao de Rogrio de Carvalho.

    Ainda na dcada de 1970, o cineasta Nikita Mikhalkov inspirou se principalmente na pea Platnov para o seu delicioso filme Pea Inacabada para Piano Mecnico.

    A pea conheceu entretanto outras adaptaes, devidas por certo sua grande extenso, mas tambm sua grande riqueza. Assim, o Teatro Polaco de Wroclaw apresentou em 1998, no Festival Tchkhov de Moscovo, um espectculo s com o quarto acto da pea. Mais recentemente, j neste ano de 2008, o actor e encenador russo Aleksandr Dornin estreou em Moscovo, no Teatro Acadmico Juvenil da Rssia, um espectculo intitulado Platnov. III Acto, com a durao de hora e meia, em que encenava, como bvio, apenas o terceiro acto. Assim provando, se necessrio fosse, que uma grande obra, grande no apenas em extenso mas tambm em densidade, permite diferentes formas de abordagem. Porque embora uma obra seja em geral maior do que a soma das suas partes, tambm acontece algumas partes de algumas obras valerem por si mesmas e conquistarem uma certa autonomia. No faltam exemplos.

    Platnov e o sentido da vida

    Obra de juventude, Platnov contm j alguns dos elementos que iriam ser desenvolvidos nas peas posteriores e enriquecerse, enriquecendo as. Aqui, como nas outras peas, e de resto em toda a sua obra, Anton Tchkhov faz o retrato social de uma certa camada da sociedade russa de uma determinada poca. Essa camada social inclui elementos da pequena nobreza arruinada ou em vias de o ser no falta nas peas de Tchkhov o latifundirio falido , alguns intelectuais e elementos da burguesia em ascenso, no fundo, aquilo a que hoje chamaramos a classe mdia, consciente da crise profunda da sociedade, mas incapaz de apontar sadas para vencer essa crise. Embora tenham a conscincia mais ou menos clara de que vivem um perodo de ruptura, de que a vida no poder continuar assim, no tm uma perspectiva clara de futuro. Limitam se a sonhar com a mudana, com uma vida melhor e mais justa. Mas no passam da. E parecem no perceber que os sonhos de uma vida diferente e melhor no bastam para mudar a vida.

    Gorki escreveu que Tchkhov, atravs das suas personagens, est a dizer sociedade do seu tempo: Meus senhores, vocs levam uma vida detestvel. E no lhes diz mais. Mas a grandeza de Tchkhov est em que as suas personagens e as relaes entre elas vo muito alm das circunstncias histricas em que vivem, para expressar os dramas, os conflitos e as contradies inerentes natureza humana. isso que define os autores clssicos, desde os gregos at aos actuais.

    Um trao caracterstico de toda a obra de Tchkhov, tanto dramatrgica como ficcional, a grande humanidade com que trata as suas personagens. Mesmo quando fazem as piores tropelias, no lhes grita, nem grita para mostrar ao espectador ou ao leitor como so terrveis as coisas que elas dizem e fazem. Limita se a mostr las, a faz las falar. como se nos dissesse a ns, espectadores: vejam, so apenas humanos, como vocs.

    Platnov, pobre Don Juan rural, no tendo mais que fazer, seduz e humilha as mulheres, que por seu lado se deixam humilhar e seduzir, apesar da humilhao ou por causa dela. Mas se a vida s isto, para qu viver? Em A Gaivota, Trplev, perdido o sentido da vida, encontra a sada no suicdio. Mikhail Platnov, prisioneiro das suas contradies, embora conscientemente no queira morrer, procura inconscientemente a morte. E acaba por encontr la, talvez de onde menos se esperava.

    Mas so esses os dramas e as contradies inerentes natureza humana que fazem a eternidade das obras de Tchkhov.

    A vida de PlatnovAntnioPescada

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    AlexandraMoreiradaSilva Nas entrevistas que deu nestes ltimos dois, trs anos, o Nuno evoca com alguma frequncia Tchkhov, como um dos autores que gostaria de encenar, e refere o desejo de abordar, num futuro prximo, uma obra concreta: A Gaivota. Eu comearia por lhe perguntar as razes que o levaram a fazer aquilo que me pareceu ser um desvio no seu projecto tchekhoviano inicial, abandonando A Gaivota, e a encenar aquela que a obra inaugural de Tchkhov.NunoCardoso No se trata de um desvio, porque a vontade de encenar Platnov existia antes de A Gaivota. Eu comecei por descobrir Platnov com Point Blank, dos STAN [espectculo que se estreou em Agosto de 1998, no Festival Citemor, MontemoroVelho], que era uma verso muito trendy, muito blas de Platnov. E fiquei desde logo muito fascinado pela personagem. Andei muito tempo at descobrir uma traduo e quando finalmente a encontrei e li, o meu entusiasmo arrefeceu um bocadinho: no compreendi muito bem a traduo e achei a obra dispersa. Mas Point Blank levoume a ler toda a obra dramtica de Tchkhov, e fui descobrindo ligaes precisas entre o universo que ele evoca e o meu prprio universo. Isto porque no me considero uma pessoa muito citadina, apesar de as minhas encenaes evocarem esse lado de vivncia urbana. Eu sou um rural, se quisermos, nasci e cresci na provncia. Todo o meu imaginrio est ligado a uma sociedade rural: estratificada, fechada, logo, clinicamente observvel. E como s trabalho coisas que tm que ver com as minhas ressonncias, tudo isso me ligou muito a Platnov. A Gaivota surge no tanto ligada quilo que encontrei e continuo a encontrar em Tchkhov, que uma partilha de olhares sobre a sociedade, mas a uma viso sobre aquilo que ns, as pessoas do teatro, fazemos. E sim, j tive uma vontade brutal de a encenar, mas a oportunidade de fazer Platnov surgiu primeiro. Eu, semelhana do Joo Garcia, que quer escalar todas as grandes montanhas do mundo, quero encenar a totalidade da obra dramtica de Tchkhov. Gostava de ter a sorte de o fazer.

    Essa vontade extensvel a outros autores, ou est circunscrita a Tchkhov?H obras de outros autores que eu quero muito fazer, como por exemplo O Inimigo do Povo, de Ibsen, Hamlet e Henrique IV, de Shakespeare, esta ltima porque quero trabalhar a personagem de Falstaff. Gostava de fazer Racine, quero voltar a squilo, tenho uma vontade imensa de regressar aos textos da Antiguidade Clssica, porque quero trabalhar com Frederico Loureno, que uma pessoa que admiro muito como tradutor. Resumindo e concluindo, tenho planos de trabalho at idade da reforma. [Risos.] Quero fazer muita coisa, posso at falarlhe de um programa, mas da maneira como evoluiu o contexto cultural portugus, nomeadamente na rea das artes performativas, impossvel a um encenador novo, que surge e cresce neste contexto, desenvolver um programa. Quando muito, pode concretizar projectos, o que resulta numa inverso importante e digna de reflexo por quem de direito, j que completamente antittica em relao aos princpios do teatro portugus contemporneo, sustentado no trabalho de companhias fundamentadas por programas que as definem e tm mais ou menos norteado e caucionado o seu percurso e projectos.

    Podemos ento dizer que, neste momento, o Nuno vai concretizando projectos do seu programa?Exactamente o contrrio. Eu vou fazendo projectos e, volta e meia, olho para trs e penso que talvez tenha um programa. No sei.

    Platnov, tendo em conta as suas caractersticas uma obra de juventude, inacabada, problemtica, muitas vezes considerada falhada e irrepresentvel , tem dado origem a inmeras verses cnicas. Quais as diferenas fundamentais entre o texto integral traduzido por Antnio Pescada e a verso cnica? E, j agora, aproveito para lhe perguntar se a verso cnica tambm foi trabalhada com o Antnio Pescada. Em termos de estrutura, a verso cnica segue muito de perto a verso integral. Fiz alguns cortes, sobretudo nos momentos em que a obra me parece excessivamente digressiva e descritiva palavrosa, se quisermos. Eliminei coisas que me pareceram dispensveis, como um determinado nmero de convenes que esto plasmadas no texto e que, a meu ver, no so necessrias no teatro actual.

    Mas que so, tambm, caractersticas da obra de Tchkhov, complicada como um romance, diz o autor, a propsito de As Trs Irms, numa carta actriz Kommissarjevskaia O abandono do drama s perverses do romance parece-me bastante evidente em PlatnovSim, uma obra quase eufrica no sentido da descoberta da escrita teatral, ainda contaminada por pedaos de narrativa que no pertencem, digamos, ao dizer e ao fazer teatrais. Os cortes foram feitos por mim, com a completa anuncia do Antnio Pescada. Mas devo confessar que fiquei um bocadinho insatisfeito com eles, porque obedeceram a uma estratgia muito racionalizada, obviamente com um fundo prtico: ao fazlos eu estava a imaginar a cena, mas no foram experimentados. Comearam a ser feitos antes e foram finalizados nos primeiros ensaios.

    Foi a falta de tempo que determinou essa opo?Obviamente, porque nos falta sempre tempo. Cada vez mais sinto vontade de experimentar, sem a necessidade de chegar a um resultado. Poderamos chamar a estes dois meses e meio de ensaios um sprint final com vista a um resultado. Mas fiquei triste por no ter conseguido encontrar, no meu processo criativo, uma possibilidade para os experimentar, para os testar com os actores. Mas os cortes esto a funcionar bem, e os actores tm sido fantsticos, tm trabalhado muito.

    Tambm a partir das entrevistas que foi dando, parece-me poder concluir que a deciso de encenar uma determinada pea depende bastante da relao que pode estabelecer entre o texto e algumas das preocupaes que a contemporaneidade lhe suscita. Isso tambm se aplica no caso de Platnov? Ou seja, Platnov para si, como alis dito na pea, o melhor exemplo da moderna indefinio?Quando olhamos para uma mulher bonita pensamos imediatamente em agarrla. Acontece exactamente o mesmo com um texto dramtico. O texto que me apetece fazer tem de se parecer com uma mulher muito bonita. [Risos.] Agora mais a srio: um texto desperta a minha curiosidade quando me leva a questionar a minha conduta como

    cidado, como artista. No caso concreto desta pea, aquilo que desde logo me agarrou foi a personagem de Platnov. Ele o retrato fiel, ou se quisermos, uma caricatura, uma alegoria do homem contemporneo. Ontem, em casa, estava a pensar que vivemos to esmagados pela globalizao, to angustiados por essa completa facilidade de sabermos tudo o que se passa, a todo o momento, em todo o lado, vivemos to absorvidos pelo aquecimento global, pelas guerras, que de repente nos desresponsabilizamos completamente da nossa individualidade, das nossas vivncias no nosso pequeno burgo, no nosso bairro, na nossa famlia. A pea comeou por chamarse rfo de Pai, e a sociedade portuguesa continua a dizer s pessoas da minha gerao que no somos propriamente rfos de pais, mas antes que no somos bem vistos pelos nossos pais, e viceversa. H uma imensa fenda de incomunicabilidade. Estamos rfos de referncias. Esta sociedade produz muitos falhados

    Como Platnov?Exactamente. Corremos o risco de sermos uns falhados tonitruantes, com estilo, uns putativos artistas de gaveta, que pululam cada vez mais por a. Vivemos numa sociedade em que as relaes de seduo so predominantes, em que glorificado na televiso o estilo, o bronzeado, em que se fala mau portugus nas sries juvenis, e aqui falar mal no falar com sotaque, mas falar mal gramaticalmente e isso valorizado. uma sociedade sem responsabilidade, sem memria, ou melhor, que renega a sua memria. Mas a memria viva tambm renega aquilo que gerou, estamos um bocadinho neste reino de possibilidades, em que a seduo e o arrependimento valem por si mesmos, e tudo acaba muito subitamente. A cidade do Porto uma boa amostra deste estado de coisas, porque uma cidade sem memria. No h memria das companhias teatrais da dcada de 90, no h memria do mito fundador que foi Antnio Pedro, e por a fora. uma cidade que est sempre no mesmo stio, que est sempre a comear do zero. A sociedade de Platnov vampiresca, tambm nunca sai do mesmo stio, nunca. Quando Anna Petrovna lhe diz qualquer coisa como voc andou a seduzir outra vez e, como no ano passado, anda sempre bbado, ficamos com a sensao de que Platnov est a rever o filme da temporada anterior: ele hiberna durante seis meses e depois, sem memria, volta a fazer a mesma coisa, nunca sai do mesmo stio. Tem o seu momento de seduo, de dor, de catarse, etc., e depois regressa toca.

    E tudo isso redunda na ligeireza dos propsitos e das conversas, que indispensvel quela tribo para de certa forma esconder a verdade das relaes, que so efectivamente mais complexas do que aparentam, nomeadamente quando envolvem questes relacionadas com a propriedade, o dinheiro, o amor. E, no entanto, a nica personagem que vai dizendo algumas verdades PlatnovSim e no. Ptrin tambm diz muitas verdades, mas muito unvoco, ele s pensa no dinheiro e vai dizendo o que pensa realmente disso. Platnov , no fundo, um enfant terrible, e como todos os enfants terribles diz as verdades como se fossem mentiras, mas sem consequncias. como um bobo. Ao bobo eralhe permitida fazer a escatologia do rei, porque era ano, feio, no fazia parte da realidade. Eralhe permitida a crtica, mas essa crtica no tinha uma consequncia imediata na sociedade. Platnov assume esse papel no primeiro acto, bem como

    o papel do sedutor, o Don Juan, o Hamlet. Alis, Hamlet escolhe a loucura, pese fora da realidade para dizer a verdade.

    As aluses a Hamlet so, alis, bastante evidentes, Tchkhov no esconde a importncia dessa refernciaAquilo que lhe despertou o interesse pelo teatro foi precisamente uma representao de Hamlet que ele viu muito jovem em Taganrog, a sua cidade natal. Don Juan tambm outra personagem fora da realidade. Todos elas so inconsequentes, como alis o presidente da Assembleia Geral da ONU absolutamente inconsequente quando confrontado com a realpolitik. As pessoas que tm consequncias reais so aquelas que produzem efectivamente mudanas. Na pea, os seres reais so Venguervitch, Ptrin e Bugrov. Triltski, que uma espcie de negativo de Platnov, tambm diz as verdades e dilas a ele, acontece que Platnov no as quer ouvir. Eles funcionam quase como uma s personagem. Anna Petrovna tambm tem momentos de verdade, de tenso. H pouco falou em ligeireza, mas eu preferiria falar em vitalidade. Aqui, a vitalidade usada como estratgia de morte, e isto curioso porque Tchkhov era mdico: algumas horas antes de morrer, qualquer ser vivo tem uma injeco de vitalidade, so as chamadas melhoras da morte. A estratgia desta pea passa muito por essa noo de vitalidade da morte, e quando ela aparece uma surpresa.

    O Platnov do seu espectculo cnico e blas ?Um bocadinho. Acho que um Platnov um bocadinho contemporneo, um bocadinho ftil, se quiser. Podia ser um bocadinho mais incisivo, talvez. Mas no encontro em mim, nem na sociedade que me rodeia, mais profundidade do que isso.

    Como que procurou traduzir em termos cnicos essa actualidade, ou se preferir, essa atemporalidade que tem vindo a referir?Eu prefiro falar em atemporalidade. No teatro que tenho visto ultimamente, encontro muitas coisas construdas a partir de trabalhos conceptuais dos anos 60, que so importados das artes plsticas e transpostos para o palco. As dramaturgias, encenaes e cenografias, ou a reunio de todas elas, pegam num conceito, voltam a sintetizlo, montamno e inscrevemno no quotidiano contemporneo, com um toque conceptual. O que torna os espectculos imediatamente reconhecveis para o espectador. Na minha opinio, so falsamente actuais, so meros fenmenos de moda. Esse tipo de encenaes rouba tempo s pessoas, porque a identificao to imediata que depois toda a estratgia de montagem da pea se faz em termos de efeitoschoque. E porqu? Porque isso fere de morte a condio essencial para a fruio da arte, que a existncia de tempo para o pensamento. No o caso da boa arte conceptual, que aquela que concede ao espectador tempo de interpretao. Nesse sentido, ideologicamente, as peas esto inscritas na sociedade que criticam, porque se tornam instrumentos de seduo, roubando ao espectador tempo de reflexo, convencendoo de que aquele objecto faz parte da sua vida, enviandoo satisfeito para o seu quotidiano, tambm ele um quotidiano alicerado na ausncia de tempo. Tudo isto glorificado e potenciado pelas estruturas de programao europeias, isto porque tambm elas no tm tempo, tm de responder a mecanismos econmicofinanceiros: aquilo que lhes pedido o sucesso imediato.

    O quarto pEntrevista com NunoCardoso . Por AlexandraMoreiradaSilva .*

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    Como que o Nuno contraria essa tendncia e, ao mesmo tempo, inscreve essa atemporalidade nos seus espectculos?Eu procuro colocarme num lugar que no nem o passado nem o futuro o teatro. So aqueles jogos, aquele tempo em que tudo feito em cima da percepo do espectador. Nesta pea, o principal actor o espectador, sem ele aquilo desmontase: ela pede constantemente ao espectador que se instale e interprete.

    O que acaba de dizer faz-me pensar numa entrevista que o encenador italiano Romeo Castellucci deu recentemente, onde ele afirma que a misso do artista no consiste tanto em dar a sua viso ou em transmitir a sua mensagem, mas muito mais em suscitar o poder de criao do espectador. Concorda com esta afirmao?Completamente de acordo. Alis, tenho vindo a aprender uma coisa: aquilo que eu penso interessa muito pouco nas minhas encenaes. Interessa no sentido em que me d o impulso inicial e a vontade constante de as trabalhar. Se pensar demais, comeo a fazer legendas, e isso no interessa a ningum. H alguns criadores fantsticos que conseguem uma sntese elegante entre aquilo que pensam e aquilo que as outras pessoas podem vir a pensar das suas criaes. Mas isso muito difcil de fazer. A nossa tentao inicial cair numa lgica de efeito que produz ondas de choque, que produz resultados, e isso uma lgica publicitria.

    Voltando questo do espao e do tempo nos seus espectculos, em Ricardo II, de Shakespeare, que o Nuno encenou o ano passado no Teatro Nacional D. Maria II, o espao cnico era muito concreto, de uma grande actualidade: um campo de futebol. O que que acontece em relao a Platnov? Essa actualidade funciona tambm em funo da escolha do espao onde situa a aco?Funciona, mas no funciona com as mesmas regras de Ricardo II, onde arrisquei muito, onde estive pouco preocupado com aquilo que as pessoas iam pensar. Foi um trabalho intuitivo, nesse sentido. Era uma metfora do jogo e um campo de futebol uma referncia bsica. Pois , e depois? A questo conseguir ou no jogar com ela. O espao cnico de Platnov igualmente metafrico, transportanos para um lugar que no real. Os lugares de aco em Platnov no so complexos: a sala de estar, a escola e a floresta. Eu e o cengrafo F. Ribeiro trabalhmos a partir da ideia de fim do caminho. Queramos que toda aquela movimentao acontecesse num espao desconfortvel, que fosse a um tempo contextualizado e descontextualizado. Da as linhas, os carris do comboio.

    Simbolicamente, significa que todas as personagens esto em trnsito, para o futuro

    mas que o risco de descarrilamento iminenteSim.

    Aquilo que pude ver nos ensaios a que assisti permitiu-me perceber que o trabalho do Nuno assenta bastante numa dimenso coreogrfica, muito determinada por uma espcie de partitura mltipla corporal, rtmica e musical. Pareceu-me que, neste caso, a msica teria como principal funo organizar a materialidade dos corpos no espao. Foi neste sentido que procurou rentabilizar os conhecimentos dos actores neste domnio?As minhas peas de ensemble tm sempre uma dimenso coreogrfica e tendencialmente escolho textos que partida me parecem partituras musicais. Olho para Platnov como uma sinfonia de vozes. Mas cada vez menos me interessa trabalhar com msica, e esse movimento comeou com Boneca [a partir de Uma Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, 2007], onde cortei muitos minutos banda sonora. Isto porque me pareceu um pleonasmo: a pea j msica, o texto j msica. Em Platnov, e isso notrio no primeiro acto, o conjunto de actores que vai criando uma polifonia de palavras, de movimentaes, que acabam por nos conduzir a uma ideia de grupo, de calor, de provncia

    de tribo.Exactamente. De maneira que a dada altura no sabia o que fazer com a msica. A primeira ideia foi convidar um msico de rua para vir tocar connosco: ao mesmo tempo que trabalhvamos nas improvisaes, ele ia tocando e a coisa iase fazendo. Abordei duas ou trs vezes um msico de rua, pergunteilhe se queria vir tocar no espectculo, disselhe que pagava, obviamente, mas ele fugiu de mim como o diabo foge da cruz. Ou no acreditou em mim ou, ento, achou que o dinheiro que eu lhe oferecia era muito pouco. Comecei ento por colocar instrumentos musicais na sala de ensaios, e a msica foi ganhando aquele ar absolutamente catico e aleatrio, que eu no quero disciplinar. E este gesto de no interferncia significa um grande passo em frente para mim. Pela primeira vez, deixo um elemento por trabalhar num espectculo. Acho que esse aspecto lhe d uma vitalidade incrvel. sempre a mesma msica, a cano Bsame Mucho. Acho que foi uma escolha muito acertada, e acho at que ela tem qualquer coisa de pirandelliano, no sei explicar bem porqu, como alis esta pea tem algo de pirandelliano em termos coreogrficos, so dezasseis personagens procura no de um autor, mas de um desenlace. E esse ambiente comeou a desenvolverse semelhana de uma jam session jazzstica, com muita improvisao mistura. Todos os actores, felizmente, sabem cantar e tocar, e fantstico para um encenador ter actores assim, porque permitenos brincar ainda mais.

    Mesmo quando d uma ateno muito particular a outras linguagens, o texto e a palavra so os elementos primordiais dos seus espectculos? na palavra que eu me referencio, mas vejoa como aco. A palavra, no teatro, precisa de ser corpo, e precisa de ser imperfeita. Para existir, a palavra no precisa de ser perfeita. por isso mesmo que eu adoro actores com pronncia, acho que as palavras ganham uma outra vida.

    Kamikazes de emoes

    Peter Stein, para quem Tchkhov o autor de referncia, de tal modo que afirma que encenar um Tchkhov de cinco em cinco anos para ele uma necessidade, uma questo de higiene na vida e na arte um sortudo!

    [Risos.] Stein diz, e cito: A sua dramaturgia sem aco repousa no tanto no que dito, mas muito mais na maneira como dito. nesse sentido que tem trabalhado com o elenco?Em Tchkhov perigoso fazer com que a palavra que o actor diz em palco corresponda exactamente quilo que ele pensa, tal como acontece connosco no diaadia. No quotidiano, so as palavras que nos definem, so sempre os nossos primeiros escudos de proteco, so uma parte decisiva da nossa estratgia de sobrevivncia, so a maneira de conseguirmos levar a gua ao nosso moinho. E usamolas quase sempre nos antpodas daquilo que verdadeiramente queremos dizer.

    Isso acontece muitas vezes com as personagens tchekhovianas, uma forma de se defenderem da realidade e da complexidade das relaes, da tambm a transio constante do dilogo para a conversao. Como refere muito justamente Jean-Pierre Ryngaert, nas peas de Tchkhov a conversa indispensvel ao jogo social, ela mascara e evita os confrontos, e d s personagens a iluso de existiremPor vezes, a forma como as outras personagens dizem as palavras que definem uma personagem que est em silncio. E isso, que aparentemente to simples, transformase por vezes na maior armadilha de um texto cria coisas absolutamente ttricas. Um exemplo: aquilo que diz o fantasma do pai de Hamlet no fundamental, a no ser para o prprio Hamlet. Na esmagadora maioria das encenaes de Hamlet, o fantasma fala com aquela voz espectral, o que faz com que os espectadores se concentrem mais no fantasma do que em Hamlet. Isto tem que ver com uma percepo completamente distorcida daquilo que eu acho que pode ser o funcionamento

    da palavra em palco. Tchkhov tinha uma percepo muito aguda do funcionamento das palavras e dos silncios, e os mltiplos sentidos que eles podem gerar em cena, da ele ter batido tanto nas encenaes que faziam das suas peas. Tchkhov observa, mas no observa s o que as pessoas dizem: aquilo que est nos seus textos no o que as pessoas dizem, o que ele diz, o seu olhar, o que ele pensa. O tom das palavras, a carne, o calor, o ritmo, so como que bocados que ele foi arrancar aos seus pacientes, s pessoas que frequentavam as escolas que ele mandou construir, aos reclusos da Ilha de Sacalina, etc. Ele tirou o cheiro, a carnalidade, e o resto ele, obviamente. Ele tira fotografias, esvaziaas e tornaas a encher. Estou inteiramente de acordo com Peter Stein: o fundamental a maneira como as palavras so ditas.

    Assume-se como um criador para quem a experimentao, o laboratrio e as improvisaes so essenciais na forma como aborda o texto, a cena e, diria mesmo, a arte teatral em geral. Por exemplo, nos seus trabalhos a distribuio no decidida antecipadamente, resultando antes de um primeiro tempo de trabalho laboratorial, e o que dele resulta de interessante, criativo e inventivo investido depois no trabalho de encenao. O que que em Platnov resultou deste tipo de abordagens?Em Platnov, ao contrrio de outras encenaes minhas, houve uma prdistribuio. A pea demasiado extensa e o tempo era curto para eu conseguir fazer esse trabalho prvio de laboratrio. Mas ainda assim houve correces em cima das improvisaes. H aqui um aspecto decisivo: quando trabalhamos com o corpo, a voz e a imaginao de outros precisamos de experimentar, da a improvisao. Isto nada tem de extraordinrio. Um carpinteiro toca na madeira para perceber se tem ali matria para construir uma cadeira.

    O actor matria, para si?O actor matria e eu, enquanto encenador, sou matria para os actores. Quando trabalho como actor, considero o encenador como matria, passo muito tempo a observar os seus tiques. Porqu? Porque preciso de perceber quem aquela pessoa.

    Stanislas Nordey diz, num texto que li recentemente, uma coisa muito curiosa: O corpo do encenador um corpo exposto, um corpo impudico, justamente porque exprime a necessidade de fazer ouvir um determinado texto e, nesse sentido, um corpo que se revela aos actores.Ao observar o encenador, percebo melhor o que que ele quer, mais at do que a partir das suas palavras. Quando h pausas nos ensaios, eu fico a observar o encenador, para tentar perceber o que ele quer que eu faa, para me moldar a ele. Sou um actor muito obediente. Ningum me contrata, certo, mas verdade. [Risos.] Mas voltando sua pergunta: no se consegue trabalhar nada apenas a partir de uma ideia rgida e ao mesmo tempo antittica. Porque estamos a trabalhar com outros corpos, outros eus. E no caso de Platnov, esses outros eus so muitos. E mais: qualquer pea funciona enquanto dinmica de grupo. As pessoas podem dizer nos teatros de repertrio, onde h muitos actores residentes, no existem dinmicas de grupo. Existem, sim senhor. H uma dinmica de grupo que decorre precisamente da existncia de uma estrutura. No Teatro de Arte de Moscovo, por exemplo, que composto por pessoas das mais variadas provenincias, a dinmica est fixada h mais de cem anos. Esta ideia de companhia residente tem vindo a ser renegada na Europa ocidental, isto apesar de existirem alguns casos isolados, como o caso da aposta, em anos recentes, do Teatro Nacional So Joo. Acontece que h cada vez menos dinheiro para manter uma companhia residente.

    Gostava de trabalhar com uma companhia residente?Acho que qualquer encenador tem como sonho trabalhar com uma companhia residente.

    Talvez essa vontade explique o facto de recorrer frequentemente a um determinado conjunto de actores para os seus espectculos, o que me suscita duas

    perguntas. Que qualidades tem de ter um actor para lhe interessar? Trata-se de um processo de identificao, no sentido em que, sendo tambm actor, se identifica com determinadas formas de trabalhar mais prximas da sua? Quais as qualidades que um actor tem que ter? Coisas muito simples. Antes de mais, no deve ter medo do ridculo, e isso funciona desde logo como um crivo apertado. Tem de estar disponvel para criar uma ligao imediata entre o texto, o corpo, a voz e a imaginao. Tem de estar disposto a trabalhar muitas horas seguidas. E no tem de estar apto para ter conversas etreas, uma vez que o actor essencialmente um trabalhador, o teatro , antes de mais, um trabalho. Mas acima de tudo, tenho de identificar neles uma centelha de criana. Como deve ter reparado, os ensaios so muito estpidos, muito engraados, no h uma relao hierrquica entre encenador e actores.

    Confesso que imaginava os seus ensaios mais sinistros. [Risos.] Fiquei bastante surpreendida quando descobri que existia, para alm de uma tenso de trabalho, uma atmosfera de criatividade ldica, o que parece estar de acordo com aquilo que o Nuno espera do trabalho dos actores.Os meus ensaios, modstia parte, devem ser dos mais divertidos. So muito relaxados, no sentido em que no h presses do tipo h esta ideia e temos de ir por a, etc. As coisas funcionam de uma forma pragmtica: temos de fazer a pea, chegmos a este caminho pela dramaturgia, agora vamos experimentar. Quando trabalhamos, trabalhamos. Eu fico muito irritado quando os actores chegam um quarto de hora atrasados, ou quando falam ao telemvel durante os ensaios, esse tipo de coisas. Mas no me irrito quando um actor faz em cena uma coisa de que no gosto. H muitas coisas de que no gosto, mas aceitoas quando percebo que foi a maneira que o actor encontrou para a fazer, que resultou da maneira como ele v e sente a personagem. Um exemplo: nunca pensei o Ptrin como o Paulo Freixinho o est a fazer, achavao muito mais sinistro. Mas um dia ele fez uma coisa quase Groucho Marx, numa cena da noite selvagem, e aquilo resultou muito divertido. Ento resolvemos voltar atrs e seguimos a sua intuio.

    Muitos encenadores contestam o mtodo das improvisaes e Thomas Ostermeier [director artstico da Schaubhne de Berlim] um exemplo paradigmtico, o que poder ser explicado luz da tradio da escola alem , porque consideram que deixar os actores improvisar pode querer dizer que o encenador no sabe muito bem por onde vai nem aonde quer chegar. O que que representa para si a direco de actores?O que Thomas Ostermeier diz uma das maiores asneiras que eu j ouvi em toda a minha vida, at porque ele tambm improvisa. A recusa da improvisao como metodologia no existe de todo. Existe sempre improvisao, o que no quer dizer que ela tenha de ser necessariamente livre. Uma improvisao aplicada a um texto de repertrio uma operao de hermenutica, um estudo. Nesse sentido, a improvisao surge ligada a um mtodo de trabalho que os msicos usam muitas vezes. Quando um pianista estuda um scherzo de Chopin, aquilo que ele comea por fazer, depois das escalas, lanarse numa primeira leitura com base na improvisao, e nesse processo deixa cair algumas notas. Ele tenta, inicialmente, compreender a estrutura e o clmax da composio. Porque isso dlhe uma fora suplementar para comear a interpretar. Quando um trabalho, como o caso de Platnov, alicerado na forma de dizer, na estrutura de interpretao, o corpo, a voz e a imaginao tm de estar aquecidos para interpretar o texto. Para descobrir o qu? A dimenso irracional, no reflectida do comportamento. Isto fundamental para que exista o mistrio teatral, aspecto decisivo para agarrar um texto. A improvisao tem como objectivo, num primeiro momento, despertar o corpo, a voz e a imaginao do actor para aquela temperatura. Depois, o actor pode ler o texto e criar em cima dele. Mas antes de tudo isso existe um aturado trabalho de dramaturgia, em que o encenador,

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    os actores e todos os criativos celebram uma espcie de pacto, criam uma gramtica e uma referncia crtica comuns, que permite a todos trabalharem em unssono. Improvisar no significa que o encenador se demita das suas ideias iniciais. s um percurso que o conduz at elas, um estudo de prexpressividade, no vale por si s. Posteriormente, quando a massa est criada, com um tom, com uma temperatura, o encenador parte para a mise en place, que outra coisa completamente diferente. E a surgem naturalmente rasgos de movimentao, de ritmo, de tempo, de pausas, etc. A partir da muito mais simples ao encenador dirigir o actor e criar ento a estrutura do espectculo. Com a improvisao ou com a mise en place, ou aplicando ambos os mtodos, como o meu caso, podemos chegar, se formos suficientemente afortunados, a um bom espectculo.

    Como acontece frequentemente nas obras de Tchkhov, as personagens em Platnov parecem fechar-se aos movimentos do tempo, como se decidissem imolar-se, ainda que simbolicamente, e talvez por isso elas descrevam aquilo que vivem atravs de sensaes: o calor, a fome, o aborrecimento. Sacha diz a Triltski, a dada altura: Tu no tens tanta vontade de comer como de provocar uma cena!. Eu vejo cada uma destas personagens, e senti isso durante os ensaios, como kamikazes de emoes: estamos sempre espera que carreguem no detonador e expludam. Elsa Triolet [autora da primeira traduo integral de Platnov em lngua francesa] dizia que nas peas de Tchkhov ouvimos as personagens no a falar, mas a sentir. Este espectculo, partindo do princpio de que o texto tambm funciona assim, uma espcie de laboratrio de sentimentos e de emoes?Espero bem que sim. O ensaio de domingo passado [22 de Junho] correu mal. Porqu? Fizemos ensaios parcelares, demos dois passos atrs. Nestas duas ltimas semanas, os actores andam um bocadinho desencorajados porque eu ando implicativo, recuso muitas coisas. Porque precisamente j estvamos demasiado balanceados em direco a esse caminho que a Alexandra sugeriu na sua pergunta, e esse objectivo deveria ter sido a ltima coisa a nascer. Esse um dos riscos da improvisao,

    porque a determinada altura comea a nascer primeiro aquilo que devia nascer no fim, e suja tudo, o processo tornase cansativo. Agora estamos numa fase de mastigar, mastigar, mastigar. Mas respondendo sua pergunta: vejo as personagens de Platnov como garrafas de champanhe na iminncia de estoirar, e no quarto acto elas estoiram todas ao mesmo tempo. Essa tenso permanente tem de estar sempre muito presente, mas no pode ser forada, e a que reside a maior dificuldade.

    Shakespeare, Ibsen e Tchkhov: trs monstros do repertrio clssico que encenou num curto espao de tempo. Prepara-se para encenar um quarto, Brecht. Coragem, ousadia ou inconscincia?Hum coragem ousadia inconscincia Sorte! isso: sorte. E alguma inconscincia e muita coragem de quem programa.

    Esta bulimia textual uma forma de se destabilizar? que isto pressupe, imagino, um movimento permanente, fsico, intelectual, esttico mais uma forma de viver. Quando paro de trabalhar, no sei muito bem o que que devo fazer, excepto talvez tirar frias. Ou fazer o trabalho de dona de casa, que uma das minhas outras valncias. [Risos.] Isto um bocadinho um ciclo vicioso, porque quanto mais trabalho menos possibilidades tenho de ser outra coisa. Mas eu preciso e quero muito trabalhar. Tenho 37 anos e estou a receber convites irrecusveis: a seguir a Platnov vou encenar no Centro Dramtico Galego A Boa Alma de Setsuan, de Brecht; depois vou fazer um espectculo baseado em textos de Ibsen em Frana, no Thtre National de Bordeaux en Aquitaine.

    No tem medo de se repetir?Claro que tenho.

    E tenta encontrar estratgias para evitar precisamente que aconteam essas repeties?A estratgia fundamental passa por parar e aprender. Ver peas, ler, experimentar coisas com outros criadores, ser dirigido por outros encenadores. Eu estreio A Boa Alma de Setsuan a 24 de Outubro e depois s volto a encenar em Maio, em Bordus. Tenho ali um curto espao de tempo para parar. E pensar.

    Na forma como pensa as suas encenaes de textos clssicos e de textos contemporneos, o gesto de encenao, o princpio esttico que est na base do seu trabalho, o mesmo? No, porque o que me fascina em alguns textos contemporneos no a sua ressonncia universal, no o que os programadores ou os crticos fazem deles. O que me interessa nessas obras o seu carcter conjuntural: o aqui e agora. E esse lado mais imediatista reflectese obviamente nas encenaes. Foi isso que me seduziu em Purificados [de Sarah Kane/2002], Parasitas [de Marius von Mayenburg/2003] ou em Plasticina [de Vassili Sigarev/2006], o tal ciclo dos trs ps

    Assiste aos seus espectculos?Todos.

    Gosta de ver aquilo que faz?No, assisto porque faz parte do meu trabalho: tenho que estar l, tenho de tomar notas. No consigo ver os meus espectculos como um espectador normal. Durante alguns meses os actores fizeram tudo e mais alguma coisa para chegarem ao espectculo e agora eu tenho uma responsabilidade para com eles. Tenho que fazer tudo para os proteger, sempre que eles precisarem. Para mim, a estreia no existe, no sentido em que no o fim de um processo de trabalho.

    mais uma etapa? outra etapa.

    Em Platnov, o quarto p, o que que construiu para si e o que que construiu para os espectadores?Espero que tudo! Tudo para mim e tudo para os espectadores. Porque seno alguma coisa no est bem. Confesso que nunca estive to rasca para acabar um espectculo. No porque seja difcil ou porque tenha problemas com os actores. Nada disso. porque muito longo, so quatro horas. um esforo gigantesco. Para mim mais fcil, porque tenho tudo na cabea. Mas para os actores brutal. No ensaio de ontem, estivemos a trabalhar o ltimo quarto de hora do espectculo e depois voltmos ao princpio, e no meio deste vaivm eu fico espera que os actores se lembrem das duas marcaes. Neste momento [25 de Junho], Platnov como um souffl: est todo batido,

    mas agora tanto pode crescer como desabar. esse o grande problema dos espectculos longos.

    Em Portugal no temos essa tradio dos espectculos longos, os espectadores no esto habituados, os actores tambm no esto habituadosNingum est habituado. a tirania da hora e meia!

    Vai fazer A Gaivota?Vou, mais tarde ou mais cedo. Vivo projecto a projecto, e cada projecto est dependente de um convite. Como diz o povo, o futuro a deus pertence, e neste caso deus ser um programador qualquer. E bem feito: cada um tem o deus que merece

    * Investigadora em estudos teatrais, tradutora e docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

    Transcrio e edio JooLus Pereira

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    Os livros de Tchkhov parecem tristes queles que tm sentido de humor; quero dizer com isto que s o leitor possuidor de sentido de humor est verdadeiramente em condies de apreciar a sua tristeza. Certos escritores evocam um barulho que est algures entre o riso abafado e o bocejo muitos deles so humoristas profissionais, por exemplo. Outros evocam algo que se situa entre a risadinha e o soluo o caso de Dickens. H tambm esse gnero de humor execrvel, conscientemente introduzido por um autor para criar um escape puramente tcnico depois de uma boa cena trgica mas tal expediente est bastante longe da verdadeira literatura. O humor de Tchkhov no tinha nada a ver com isso; era puramente tchekhoviano. Para ele, as coisas eram tristes e alegres ao mesmo tempo, mas era preciso ver o lado divertido para perceber a tristeza, porque ambos os lados estavam ligados.

    Os crticos russos escreveram que o estilo de Tchkhov, a escolha das palavras e por a fora no revelavam nenhuma das preocupaes artsticas particulares que obcecavam Ggol, Flaubert ou Henry James.

    O vocabulrio que utiliza pobre, o ordenamento das palavras quase banal o fragmento audacioso, o verbo saboroso, o adjectivo de estufa, o epteto gnero licor hortel servido em tabuleiro de prata eram lhe estranhos. Tchkhov no era um criador verbal no sentido em que Ggol o foi; o seu estilo literrio sai rua com roupa de trazer todos os dias. Tchkhov um bom exemplo para quem tenta explicar que um escritor pode ser um artista consumado sem contudo dar mostras de uma tcnica verbal excepcional e sem se preocupar por a alm com a construo das frases. Quando Turguniev se senta para falar de paisagem, preocupa se com o vinco das calas da sua frase; cruza as pernas deitando uma olhadela cor das pegas. Ao passo que Tchkhov no se interessa por esse tipo de detalhes, no por lhe parecerem destitudos de importncia eles so natural e maravilhosamente importantes em escritores cujo temperamento a isso se presta , mas porque o seu temperamento estranho a toda a inveno verbal. Um leve desvio gramatical, uma frase num estilo jornalstico descontrado no eram coisas que o inquietassem.1 Mas e isso que mgico embora Tchkhov tolerasse defeitos que um brilhante principiante teria evitado, ou ainda que se contentasse com a linguagem do homem da rua, com as palavras da rua, conseguia todavia criar uma impresso de beleza artstica em muito superior de inmeros escritores que se julgavam conhecedores em matria de bela e rica prosa. E conseguia isso colocando cada palavra na mesma luz e na mesma tonalidade de cinzento uma tonalidade que fica entre a cor de um velho tapume e a cor de uma nuvem baixa. A diversidade dos seus humores, a cintilao do seu esprito, a economia profundamente artstica das suas descries de personagens, a cor do pormenor e a tal vida humana derramada como aguarela tudo caractersticas tchekhovianas so reforadas pelo facto de se banharem numa bruma verbal delicadamente irisada.

    O seu humor calmo e subtil impregna o cinzento das vidas a que d existncia. Para o crtico russo com ideias filosficas ou sociais, Tchkhov era o intrprete nico de um tipo nico de personagem russa. me relativamente difcil explicar o que era, ou o que , esse tipo de personagem, porque se encontra intimamente ligado histria psicolgica e social da Rssia do sculo XIX. No perfeitamente exacto dizer se que Tchkhov se ocupava de seres encantadores e ineficazes. Ser um pouco mais rigoroso dizer que os homens e as mulheres de que se ocupava so encantadores porque so ineficazes. Mas aquilo que realmente atraa o leitor russo era que, nesses heris de Tchkhov, ele reconhecia o tipo do intelectual russo, do idealista russo, criatura bizantina e pattica pouco conhecida no estrangeiro e que no poderia existir na Rssia dos Sovietes. O intelectual de Tchkhov era um homem que aliava o respeito humano mais profundo incapacidade quase ridcula de pr em prtica os seus ideais e os seus princpios; um homem dedicado causa da beleza moral, que levava a peito o bem do seu povo e o bem do universo, mas era incapaz de fazer fosse o que fosse de til na sua vida privada, desbaratando a sua existncia provinciana numa bruma de sonhos utpicos, sabendo perfeitamente reconhecer o que bom, o que vale a pena ser vivido, mas, ao mesmo tempo, atolando se na lama de uma existncia montona, infeliz no amor, irremediavelmente ineficaz um homem bom que nada pode fazer de bom. Eis a personagem que atravessa sob a mscara de um mdico, de um estudante, de um professor primrio de aldeia todas as narrativas de Tchkhov.

    Aquilo que muito agastava os crticos mais eivados de esprito poltico que, em parte nenhuma na sua obra, o autor atribua a

    esse tipo de personagem um partido poltico preciso, ou um programa poltico preciso. E precisamente esse o cerne da questo. Os idealistas inteis de Tchkhov no eram terroristas, nem sociais democratas, nem bolcheviques debutantes; no se enquadravam nos numerosos efectivos dos inmeros partidos revolucionrios da Rssia. O importante era que esse heri tchekhoviano fosse detentor de uma vaga mas bela verdade humana, fardo esse que ele no podia carregar nem evitar carregar. Aquilo que vemos em todas as novelas de Tchkhov um homem que tropea porm, se tropea, porque olha para as estrelas. Esse homem infeliz e torna os outros infelizes; no gosta dos seus irmos, dos que esto mais prximos de si, mas sim dos que esto mais afastados. A triste condio de um negro num pas longnquo, de um carregador chins, de um operrio nos confins dos montes Urais, provoca nele uma dor mais viva do que as desgraas do vizinho ou os problemas da esposa. Tchkhov deleitou se particularmente no prazer de pintar o intelectual russo do antes da guerra e do antes da revoluo nas suas variantes mais subtis. Esses homens podiam sonhar; no podiam governar. Desfizeram as suas vidas e as vidas dos outros; eram obtusos, fracos, vos, um pouco loucos, mas, como Tchkhov nos d a entender, bendito seja o pas que produz esse gnero de homens! Perdiam todas as oportunidades, furtavam se a qualquer aco, passavam noites em claro a conceber mundos que no podiam construir; porm, o simples facto de tais homens, cheios de um tal fervor, animados por tal ardente abnegao, tal pureza de intenes, tal elevao moral, terem vivido e viverem porventura ainda na impiedosa e srdida Rssia actual uma promessa de amanhs melhores para o mundo inteiro porque a sobrevivncia do mais fraco talvez a mais admirvel de todas as admirveis leis da natureza.

    Era nesse esprito que aqueles que se interessaram tanto pelo sofrimento do povo russo como pela glria das letras russas apreciavam Tchkhov. Sem nunca tentar fazer passar uma mensagem social ou moral, o gnio de Tchkhov, involuntariamente ou quase, revelava a sombria realidade composta de camponeses russos esfaimados, embrutecidos, servis, descontentes, mais do que faziam mirades de escritores tais como Gorki, que ostentavam as suas ideias sociais num cortejo de manequins maquilhados. Iria mesmo mais longe declarando que quem prefere Dostoievski ou Gorki a Tchkhov nunca conseguir captar a essncia da literatura russa, nem, coisa que bem mais importante, a essncia da arte literria universal. Para os russos, classificar os amigos e conhecidos como admiradores ou caluniadores de Tchkhov era um verdadeiro jogo. Os que no amavam Tchkhov no eram boas pessoas.

    Recomendo vivamente que leiam to frequentemente quanto possvel os livros de Tchkhov (mesmo nas tradues que eles foram sofrendo) e que, ao correr das pginas, se entreguem ao devaneio, porque para isso que eles foram feitos. Nesta era de Golias rubicundos, muito til ler qualquer coisa sobre os franzinos Davids. As paisagens desoladas, os salgueiros mortos nas bermas das estradas tristonhas e lamacentas, os corvos cinzentos dilacerando os cus cinzentos com as suas asas cinzentas, o vapor de alguma lembrana inesperada emanando subitamente de uma banalssima esquina de rua, a penumbra pattica, a fraqueza encantadora, todo esse mundo tchekhoviano cor de cinza, cor de rola, merece ser preciosamente conservado face ao brilho ofuscante desses mundos fortes, independentes, que os adoradores dos Estados totalitrios nos fazem vislumbrar.

    1 Vladimir Nabokov tinha comeado por escrever no tanto e, a seguir, uma formulao que nos parece interessante evocar aqui, apesar de ele a ter suprimido: No eram coisas que o inquietassem tanto como Conrad, por exemplo, quando este procurava (segundo Ford Madox Ford) uma palavra de duas slabas e meia no duas, no trs, mas exactamente duas e meia que lhe pareciam absolutamente indispensveis para acabar uma descrio. Como Conrad era Conrad, tinha toda a razo em faz lo, pois era essa a natureza do seu talento. Tchkhov teria terminado a frase com um j no ou um nunca sem se preocupar com isso e Tchkhov era um escritor bem maior do que o caro velho Conrad.

    * Anton Tchekhov: 1860 1904. In Littratures II: Gogol, Tourguniev, Dostoevski, Tolsto, Tchekhov, Gorki. Paris: Fayard, cop. 1985. p. 355 359.

    Trad. Regina Guimares.

    Personagens encantadoras porque ineficazes

    VladimirNabokov*

  • 12

    Comit de leitura

    No final de tarde da primeira semana de trabalho, os actores saltaram da mesa para o cho da sala de ensaios. Baixou o centro de gravidade das operaes em curso: da cabea para o corao, e deste em direco ao estmago. Das leituras especulativas para um bem mais proletrio ofcio de terraplenagem dramatrgica. Platnov obra acidentada, cheia de altos e baixos, s transitvel se os actores aceitarem ser por alguns meses veculos todo oterreno. Aqui (como em todas as peas de Tchkhov, como notou Stanislavski) no h heris triunfais, nada daqueles papis perseguidos por actores em busca de empregos seguros.

    O pragmatismo comove, quando desestabiliza lugarescomuns. Como o pragmatismo de Anton Tchkhov, obliterado por sucessivas dcadas de desfocagens poticas, nas tradues como nas encenaes. O bom velho Tchkhov dos vaporosos e melanclicos chs das cinco era afinal um furioso e objectivo fazedor de teatro, sempre obcecado com as necessidades do palco. Aconselhava ele a um dramaturgo debutante: Nunca deves colocar em cena uma arma carregada se ningum a vai disparar. Em Platnov, que onde comea todo o teatro de Tchkhov, a arma est l, est carregada e disparada duas vezes. O teatro de Tchkhov s poderia ter comeado assim, com este saturado desenho preparatrio do que haveria de vir. Comear assim, com estrondo, com o credo na boca e as costuras mostra Hamlet de Shakespeare e D. Joo de Molire cabea. A revoluo alimenta se sempre da tradio.

    preciso fazer as coisas, diz se repetidas vezes em O Tio Vnia. Tchkhov um dramaturgo pragmtico que escreve personagens pragmticas mas inconsequentes. Contraditrias, portanto, e insatisfeitas. A insatisfao alimenta e paralisa. Dizem muitas vezes Para Moscovo! Para So Petersburgo!, mas acabam por ficar sempre no mesmo stio. Mas naquele final de tarde de Maio, foi mesmo preciso comear a fazer as coisas: Platnov deixou de ser um caderno de argolas com anotaes e sublinhados coloridos e fez se estrada. Para o Porto! Platnov agora uma abstraco que caminha, com corpo, voz e imaginao. E na sala de ensaios comeou, finalmente, a cheirar a carne humana.

    Prefcio do encenador: Atirem se uns aos outros. Definam objectivamente os vossos alvos. Perguntem se a cada momento quem so e o que querem. Por aqui s h desejo e sarilhos, e o desejo no dever ser um sentimento psicolgico nascido da reflexo, antes um sentimento fsico, como o frio e o calor. Friccionem se as pedras e o fogo vir por si. semelhana de Platnov, Nuno Cardoso no acredita em tudo aquilo a que chegarem com a vossa inteligncia. O palco, quando chegar, vai ser um lugar de ordem. At l, preciso moldar aquela massa informe de transaces amorosas e/ou comerciais, que em Platnov so quase sempre sinnimos de afectos e crditos malparados.

    A pginas tantas, Anna Petrovna pe a circular a pergunta inadivel. Platnov comeou por ser Joo Pedro Vaz, que adoeceu e no recuperou a tempo de voltar a ser Platnov; depois foi, vez, Nuno Cardoso, Victor Hugo Pontes, Lus Arajo e Jos Eduardo Silva, at se fixar, terceira semana de ensaios, em Hugo Torres. Neste sobressalto identitrio, nas pginas como no cho, Platnov foi uno e divisvel, tocou a todos, porque a todos seduz e a todos transtorna. A personagem central estilhaa se, mas reconstitui se atravs da interaco de diferentes vozes iguais.

    Quem , que espcie de homem, em vossa opinio, esse Platnov? um heri ou no? Devolvemos a pergunta a este notvel e improvisado comit de leitura. Para nos ajudar a ler esta to desaparafusada mquina Platnov. Ler e no decifrar, porque Platnov afinal uma Esfinge sem mistrio. A insatisfao no um enigma impenetrvel. A insatisfao, como todos sabemos, uma coisa em forma de assim

    JooLus Pereira

    Quem , que espcie de homem, em vossa opinio, esse Platnov? um heri ou no?

  • 13

    Situao

    D. Joo No, no, ningum dir, acontea o que acontecer, que sou capaz de arrependimento. Vamos, segue me.1

    D. Joo tem conscincia da sua natureza, no h hesitaes at ao fim. Ele serve uma moralidade clara: no ouviu os bons conselhos e punido por tal. O edifcio metafsico parece slido. Deus, sob a forma de esttua, de pedra milenar, est vigilante e compensar os justos, tal como castigar os pecadores. O Soberano, brao de Deus na terra, agir em conformidade, pelo que a Ordem Natural das coisas dever seguir imperturbvel. Talvez Esganarelo com a sua conduta, falsamente materialista pois a ironia o seu trao distintivo, contrarie um pouco esta lgica, linear, em que sobretudo o que cativa, e embaraa, a potncia do mito, dessa estranha natureza de D. Joo, a que poderamos aplicar, putativamente, as palavras de Platnov a propsito do pai: tranquila e honesta.

    Platnov Eu no o respeitava, ele considerava me um indivduo ftil, e ambos tnhamos razo. No gosto desse homem! No gosto porque ele morreu tranquilamente. Morreu como morrem os homens honestos.

    Poder se rebater o argumento dizendo que D. Joo no morre tranquilamente e que a sua vida um desatino de conquistas, uma cavalgada alexandrina em direco ao abismo, mas, parece me, a tranquilidade a que Tchkhov se refere no passa, necessariamente, por evitar o fogo do Inferno, nem a honestidade sinnimo de fidelidade, mas antes de coerncia de pensamento. D. Joo coerente at ao fim, j Platnov um novelo de hesitaes.

    Se a frase p s e ao p voltars inspira uma certa humildade, isso no quer necessariamente dizer f, pelo que poderamos conceber o desatino de Platnov como, em primeiro lugar, uma crise de f e, decorrente desta, uma crise moral.

    Tal como James Dean em Rebelde Sem Causa,2 Platnov no tem uma causa, exibe uma rebeldia, rejeitando tudo o que se aproxima no s da correco moral como, at, da sensatez ele

    mentar. Rebelde insensato, politicamente e socialmente incorrecto, a personagem antecipa a figura do desesperado James Dean, capaz de arrebatar coraes a duzentos hora e morrer espatifado contra uma rvore no deserto. Mas Platnov no conhecia James Dean, nem o clima do Nevada, pelo que, em boa medida, so Molire e Dostoievski que o inspiram.

    Por um lado, Napoleo inspira Rasklnikov, no seu sobressalto paranico,3 que por sua vez inspira Platnov a inspirar se em D. Joo, na sua deriva absurda, prisioneiro dessa virilidade totmica, que pressupe um triste fim. Rasklnikov e Platnov, a serem primos, talvez no estejam muito afastados, pois entre a parania de um e a neurastenia do outro s, talvez, a psicanalista do Tony Soprano descobrisse as diferenas. Em todo o caso, infelizmente, no existiam centros comerciais como escapatria para compensar as disfunes identitrias quer de um, quer do outro.

    Platnov encontra se, assim, entre D. Joo e James Dean, no mago de uma ciso, dupla, tripla, qudrupla: do indivduo com Deus, do indivduo com o Soberano, do indivduo com o Corpo, consigo prprio e a sua Morte.

    Definio

    Sofia Egrovna Ao menos terminou a universidade?Platnov No. Desisti.[] SofiaEgrovna [] Isso no o impede de servir uma ideia?[] Platnov [] Como hei de dizer? Talvez isso no me estorve, mas estorvar de qu? (Rise.) A mim nada me pode estorvar. Eu sou como uma pedra imvel. As pedras imveis so para estorvar

    Platnov define se como um obstculo, uma pedra. Esta pedra est, aparentemente, imvel. Mas a geologia ensina nos que no assim. As entranhas da terra esto em permanente movimento, imperceptvel no espao temporal de uma vida humana, mas decisivo na caracterizao do mundo em que nos movemos. Por outro lado, a pedra a unidade mnima de uma cons

    truo, uma pedra representa um empreendimento tectnico potencial, uma iniciativa, seja no gesto de David para derrotar Golias, seja no remate de um arco em ogiva. Uma pedra representa a potncia de algo decisivo, a sua perenidade coloca nos em estado de alerta.

    Platnov [Em resposta a Ptrin] De um modo geral desaconselho o de falar comigo sobre matrias elevadas Faz me rir e francamente no acredito. No acredito na sua sabedoria senil e caseira.

    Em certa medida, D. Joo reencarnou misturado com Esganarelo, nesta figura que tem tanto de platnico como de pattico. O seu rosto est sempre a mudar numa espcie de palimpsesto facial; rosto que se torna pedra, que se torna, qui, a mscara de Deus. E conhecemos, pelo menos desde que Perseu voltou o espelho do escudo para o rosto da Medusa, o terrvel poder das mscaras. A mscara torna se demencial no sentido em que o seu poder se volta contra o prprio. Platnov situa se, nessa medida, no territrio do auto retrato e dos seus excessos, dessa mscara em que o Eu agoniza numa eroso de sentido.

    Anna Petrovna [Sobre Platnov] Um Don Juan e um pobre cobarde num mesmo corpo.

    Movimento

    Platnov resiste, enfiado nas vestes insuportveis do mito que o empedernira, e tem foras, ainda, para, num golpe de teatro, destruir a esttua, mas no tem fora para reinventar os cacos numa forma nova que, no mimando a forma antiga, ao menos retomasse a estabilidade de um modelo.

    Ossip [Para Sacha, a propsito de Platnov] Na sua presena no o mato Deixo o vivo! Mato o depois!

    Como Mick Jagger, perdido nas ruas da cidade, quando pergunta na cano Anybody Seen my Baby,4 Platnov, esse estorvo ltico, anda

    frentico, buscando a a ela, a musa, a cidade, a mesma de No mais, Musa, no mais,5 os versos impossveis de Cames Algum a viu? Em permanente metamorfose, em ecrs disparando imagens atrs de imagens Nomes a seguir a nomes. E a Baby? Onde ests, musa intangvel? Angelina Jolie antes de ser Angelina Jolie, quando eras apenas musa e cidade Esta infeliz demanda talvez seja apenas de si mesmo, Platnov, a soluar por uma unidade desfeita que no volta a reencontrar Um amor que saudades de si, que inebria e adoa a inevitvel sensao de decadncia da civilizao que a nossa.

    Lancei cordas de campanrio a campanrio; guirlandas de janela a janela; cadeias de ouro de estrela a estrela, e dano.6

    E se danamos at exausto Se por instantes sentimos o absoluto, no porque nenhuma espcie de estabilidade ocorra, no porque saibamos a forma do nosso tempo, mas, to s, porque nos mantemos a rolar, esculpidos pelas mars.

    1 Edio da Campo das Letras/Teatro Nacional So Joo da pea D. Joo, traduzida por Nuno Jdice (Molire, 2006: 124).

    2 Rebel Without a Cause, 1955, realizao de Nicholas Ray, com James Dean e Natalie Wood.

    3 Passou se o seguinte: eu quis tornar me Napoleo, por isso matei J percebes, agora? Crime e Castigo, traduo de Nina Guerra e de Filipe Guerra (Dostoievski, 2007: 390). Esta confisso de Rasklnikov , a meu ver, reveladora de uma identidade rarefeita em permanente sobressalto e em secreto compromisso; se os abalos de Hamlet parecem antecipar a questo da identidade, eles parecem, quase, pueris quando comparados com os impulsos paranicos de Rasklnikov: assiste a este ltimo uma dose de humor que o torna, de uma maneira bizarra, familiar.

    4 Anybody Seen My Baby teledisco dos Rolling Stones (http://br.youtube.com).

    5 Os Lusadas, Canto X, CXLV.6 Edio bilingue da Assrio & Alvim de Illuminations

    e Une Saison en Enfer, traduzida por Mrio Cesariny (Rimbaud, 1989: 40).

    * Dramaturgo e encenador, director artstico do Teatro da Garagem.

    CarlosJ. Pessoa*

    Platnov rock & roll

    No campo, deita se s dez horas, levanta se s nove; com to longo sono, os miolos ficam lhe colados ao crnio; depois, a seguir refeio, dorme ainda uma sesta e, at vir a noite, so s pesadelos de olhos abertos.

    As pessoas casam se porque os dois parceiros no tm outra deciso a tomar.

    Quanto mais culto, mais infeliz s. Na provncia, s o corpo que trabalha,

    no o esprito. Havia nele uma sede de vida, parecia lhe

    que tinha vontade de beber e foi vinho que bebeu.

    Estas pequenas notas tiradas dos cadernos de Anton Tchkhov onde todas elas so curtas, aceradas e lcidas traam como que um esquisso de Mikhail Platnov, um homem nada tolo, instrudo (Vointsev, Acto II, primeiro quadro, cena 5), que admirado ou estimado, um tipo original, um sujeito interessante (Acto IV, cena 9), mas que, como Triltski indirectamente constata, no age em concordncia com o que diz. Glagliev interroga o seu eventual estatuto literrio: ele seria o heri do melhor romance moderno, infelizmente ainda por escrever (Acto I, cena 3)

    Com efeito, esse grande filsofo, esse sbio (Acto I, cena 13) , segundo Glagliev, um exemplo expressivo da moderna indefinio, encarnando assim o estado de uma socieda

    de em que est tudo extremamente misturado, confuso (Acto I, cena 3). Quando entra em cena, hibernou durante seis meses, perodo de durao do longo e frio Inverno russo, est entorpecido por esse Inverno e pelo tempo passado desde que parou os estudos e se casou. Sentese esmagado pela imensido do espao russo, escolheu perder se numa provncia do Sul da Rssia que Tchkhov, o jovem autor de Taganrog, conhece bem. Est traumatizado por uma sociedade que se desagrega e pelo dio do seu pai desaparecido. No fim da pea, uma mquina avariada e di lo.

    Um segundo Byron, como julgava Sofia Egrovna, Tchatski (heri de A Infelicidade de Ter Esprito, de Aleksandr Griboidov, que um pouco como o nosso Misantropo), como dizia Venguervitch filho, Platnov tambm sucessivamente comparado a Hamlet e a Don Juan. Recorrendo a diferentes referncias, Tchkhov procura assim situar a sua personagem. Com efeito, se outrora Platnov se identificou com esses heris, se para os outros continua a ser uma encarnao dessas figuras, em tamanho natural e depois em miniatura, doravante ele prprio j no sabe quem , nem o que quer. A sua vitalidade, a sua energia de estudante, deixou a extinguir se aos vinte e sete anos, embora ela ainda se exprima atravs de mpetos de amor louco (Gosto de toda a gen

    te!, Acto IV, cena 11). Essa energia vital que ele no soube conservar explode ainda episodicamente sob a forma de provocaes, escndalos, crises pblicas que pontuam a obra. Mas a apatia alcolica na qual soobra materializa o vazio que nele se instalou por reaco aos rigores do clima, incomensurabilidade do espao russo e das tarefas a levar a cabo. Professor primrio numa longnqua provncia, homem de asas quebradas, Platnov parece ser o centro de um pequeno mundo provinciano, bem como da pea torrente, da pea romance escrita por um Tchkhov de dezoito anos. Mas esse centro aparente to s um turbilho que a si prprio se suga, se autodestri e prejudica todos quantos dele se aproximam. Sedutor que apenas seduz para logo desiludir, j nem sequer tira proveito do prazer. Moralista, fala no vazio de uma sociedade que j no tem mo na realidade, na histria. Platnov composto por vrios fragmentos de seres que s no se desintegram graas ao amor que as mulheres lhe tm e pura incoerncia de que a sua pessoa urdida. Platnov a matriz de todas as personagens tchekhovianas vindouras. Decadente, sem carcter nem vontade, ainda tenta representar todos os papis. Que papel est a representar?, pergunta lhe Anna Petrovna no incio da pea. S no fim responder: Um canalha extraordinrio. Mas s ele acredita nisso. No, Platnov no o heri

    da pea de Tchkhov indevidamente intitulada Platnov, porque a pea no tem heri.

    Se a pea tem como ttulo um neologismo que designa um fenmeno de sociedade rfo de Pai1 porque o jovem Tchkhov se dedica ao estudo desse mal num texto que se apresenta como um retrato de um grupo que lhe prximo e como anlise geracional em forma de dilogo. Cada uma sua maneira, todas as mulheres querem salvar esse ser bizarro e sofredor, cujo passado brilhante. Elas so o centro desdobrado da pea inaugural da obra de Tchkhov, inteiramente assente no princpio coral, que oscila entre comdia e tragdia, desaguando num melodrama (denunciado por uma das personagens), e que, curiosamente, tem um desenlace semelhante ao do Revisor de Ggol: personagens fulminadas No fim de contas, Platnov que, tal como Khlestakov, j no aparece no eplogo (um morreu, o outro fugiu) no ser, dentro do seu gnero e do gnero teatral que Tchkhov est a inventar, um estranho impostor? E, tal como Khlestakov, um impostor criado pelo olhar dos outros?

    1 A pea que chegou at ns sem ttulo assim designada numa carta de Tchkhov ao irmo.

    * Directora de investigao no Centre National de la Recherche Scientifique (Paris, Frana).

    BatricePiconVallin*

    Um estranho impostor?

  • 14

    pergunta de Anna Petrovna A propsito, quem , que espcie de homem, em vossa opinio, esse Platnov? um heri ou no? responderei com algumas reticncias: . Mas, pelas fontes em que bebe, um heri literrio. Neste estaleiro que contm o germe de todas as figuras cnicas e textuais da sua obra futura, o jovem Tchkhov parece recorrer aos heris que o precederam na literatura para esboar uma figura central que caracterizasse o homem indeciso e alheado da sociedade do seu tempo. Assim, a figura de Platnov tem a sua origem mais antiga no heri Hamlet (em ambos se coloca a questo da identidade e da ausncia do pai); e constri se em volta de uma ideia geral, muito tpica da literatura russa, a da era dos filhos sem pai, e de um heri passivo levado a reagir a situaes que no desejou; e continua a saga dos heris crticos, cnicos e entediados da literatura russa quase desde os seus incios, nem que seja para os desmentir e catapultar para o tempo deles. O irrepresentvel Platnov (no entanto, cada vez mais representado pelos encenadores modernos) uma experincia de palco que pe em cena um heri sem referncias paternas (Sem Pai, ttulo da variante inicial), isto , no se baseia na transmisso de valores; rejeita radicalmente o romantismo, as psicologias preestabelecidas e a compartimentao em categorias sociais rgidas. A partir daqui, temos razes para interrogar Platnov: poders ainda ser um heri? Se na pea se assiste efectivamente destruio do heri romntico, assiste se tambm encenao da procura de um heri novo, um heri dos seus tempos.

    Antes de avanar, direi que Tchkhov no tardaria a abandonar esta ideia de heri e mesmo, liminarmente, o conceito de heri em geral, mais ainda no teatro do que nos contos. Depois de Platnov, apenas Khruchiov, de O Silvano (1889), representa mais uma tentativa de criar uma personagem central herica. Ora, O Silvano seria o ponto de partida de O Tio Vnia

    (1897), em que Tchkhov rejeita esta imagem herica, e pinta a mesma personagem (o strov de O Tio Vnia) de uma maneira muito diferente e que, embora tornada mais subtil, atirada para segundo plano. Ou seja, no primeiro plano fica o no heri. Sobre strov: Tem clara conscincia da quase inutilidade dos seus esforos, da impossibilidade de mudar o sistema degradante e destruidor da vida. [] J no aquele homem implacvel que exprobrava os outros: Tchkhov mostra as fraquezas da personagem, f la mais realista e complexa. (Cristina Guerra: Anton Tchkhov. De O Silvano a O Tio Vnia, para Histria do Teatro, Faculdade de Letras de Lisboa, 2007.) O aniquilamento do heri como centro do palco, reduzido a mais uma personagem que se debate entre o falar, falar, falar e o trabalhar, trabalhar, trabalhar, passou a ser norma nas grandes peas da maturidade de Tchkhov.

    Voltando a Platnov e procura do heri. Na tradio literria russa, existe um heri chamado homem a mais, o alheado e renegado voluntrio da sociedade por fora da sua atitude crtica em relao a essa mesma sociedade (o Onguin de Pchkin, o Petchrin de Lrmontov o seu romance chama se significativamente Um Heri do Nosso Tempo; o primeiro foi Tchtski, da comdia A Desgraa de Ser Inteligente, de A. Griboidov). Em que consistia a caracterstica destes heris? Na revolta verbal, no discurso crtico, ou seja, na sua atitude de pura negao da ordem existente. Nas condies da Rssia da primeira metade do sculo XIX, parecia suficiente. Ainda por cima tratavase de fidalgos, ou mesmo de aristocratas. Mas, nos tempos de Tchkhov, quando o estrato social denominado intelectualidade j era misto, desenvolveu se a noo da necessidade da obra prtica, do fazer alguma coisa em prol do pas e do povo. E, ao mesmo tempo, imps se a sensao de impotncia, da inutilidade de qualquer esforo. Trabalhar, trabalhar, trabalhar

    vo repetir obsessiva e inutilmente as personagens das obras de Tchkhov.

    A pergunta de Anna Petrovna, no plano concreto das relaes humanas, pelos vistos apenas um pretexto para falar do amante. Mas h por trs outro contexto, para o qual nos remete a resposta do seu interlocutor: as referncias literrias. Eis a resposta de Glagliev: Como lhe hei de dizer? Acho que Platnov o melhor exemplo da moderna indefinio o heri do melhor romance moderno, infelizmente ainda por escrever (Ri se.) [] Os romances so pssimos, artificiais e triviais at mais no e no admira! Est tudo extremamente misturado, confuso. A este propsito, a mais evidente correspondncia ser com o heri dos nossos tempos, Petchrin, do romance de Lrmontov. Cnico, com um crebro brilhante, muitssimo atraente para as mulheres, implacvel no seu discurso em relao s pessoas que o rodeiam. A diferena essencial entre ele e Platnov que este est privado do conforto de que desfrutava o rico aristocrata. Petchrin, com plena conscincia da sua inutilidade (da o tdio), no precisava da auto realizao para a sobrevivncia material, nem de lutar para obter posio na sociedade. Foram lhe dadas a priori as condies para poder despejar com todo o conforto o seu veneno e o seu cinismo sobre o meio mesquinho que o rodeava. J a Platnov calhou viver em tempos de mudana. O facto de ser ningum e ter conscincia disso j desconfortvel em todos os sentidos, inclusive no da inevitabilidade de arrastar a vida numa misria vulgar, sem vislumbre de qualquer sada. Petchrin mordaz, Platnov bilioso. O papel de heri amante de Petchrin cria lhe, no pior dos casos, problemas morais (de que sabe livrarse excelentemente); Platnov, neste papel, muito mais prosaico e quase ordinrio, o amor humilha o e no o enaltece (Depois serei gordo e negligente, vem o entorpecimento, a completa indiferena por tudo o que no seja a carne, e

    por fim a morte! A minha vida est perdida! [] Como poderei levantar me?). Esvai se a elegncia, o toque romntico. As suas grandes capacidades intelectuais so canalizadas, no fundo, para o namoro com quatro mulheres. A humilhao e o ridculo so a sua tragdia. Como possvel, ento, ser heri? ( evidente que falamos de literatura, do heri literrio; e que esse heri perdura literariamente em Platnov. Mas Tchkhov nunca esqueceu, desde sempre, o estado social que interage com a literatura. Ento: outros tempos, outras exigncias, e o heri do tipo homem a mais j impossvel.)

    Ser possvel um outro? Em termos gerais, o homem novo dever ser til. o ideal da nova intelectualidade russa, educada durante decnios na conscincia do seu dever para com o povo simples e sofredor. Mas isso no passa de palavras, provou o Tchkhov logo em Platnov. Esboou com Platnov um heri angustiado mas lcido, de origem puramente literria, sonoro e vazio (Platnov: No gosto dos sinos que tocam sem parar e sem tino! [] Eu sou um sino e voc um sino.), continuou o com O Silvano e clarificou tudo em O Tio Vnia, destruindo definitivamente a figura do heri.

    * Tradutor. Com Nina Guerra, tem vindo a traduzir directamente do russo obras de autores como Tchkhov, Dostoievski e Ggol.

    FilipeGuerra*

    procura do heri

    A certa altura da pea, Glagliev, ao evocar nostalgicamente outros tempos, em que havia pessoas que amavam e pessoas que odiavam e, por conseguinte, se indignavam e desprezavam, parece estar a intentar a excluso de Platnov de um certo latifndio moral, de uma certa solidez de formao, despromovendo o condio desprestigiada de heri cado dos novos tempos. O prprio Glagliev vem a afirmar mais tarde: Acho que Platnov o melhor exemplo da moderna indefinio o heri do melhor romance moderno, infelizmente ainda por escrever. Mutato nomine, a esse romance chama se habitualmente Madame Bovary. Mais tarde, porm, o comentrio rude de Platnov em relao ao prprio Glagliev merece deste ltimo, no uma resposta indignada perante a insensibilidade do primeiro, mas a sua admirao, precisamente porque a frontalidade desagradvel do novo heri lhe recorda a tmpera vigorosa dos cavalheiros da sua nostalgia. Desconfiamos, assim, que a franqueza cavalar de Platnov , paradoxalmente, elevada por Glagliev condio de verticalidade moral, e a rusticidade moderna equivale, afinal, a uma urbanidade antiga que se perdeu, juntamente com os seus cdigos de honra e de conduta. De facto, Glagliev, desiludido pela perda de um certo romantismo, j se havia identificado com Platnov, ao elogiar a sua tomada de posio em matria de mulheres: Ns aprendemos mais sobre as mulheres, mas isso significa arrastar nos na lama. Plat

    nov, pelos vistos, nada aprendeu das mulheres, ou de si com relao a elas, pelo que a aristocracia em declnio dos mulherengos, de que Platnov um ldimo representante, simbolicamente aproveitada em Tchkhov para dar conta de uma transio social mais ampla, uma certa decadncia que compreende, por exemplo, a delapidao da propriedade rural.

    Platnov o Don Juan que Hemingway nunca escreveu. A sano que lhe advm das suas Dalilas equivale nele a uma perda gradual de sade psquica, estranhamente somatizada, embora no mundo de princpios platonoviano sade equivalha a carcter. A obsesso generalizada em inquirir sobre o estado de sade de uns e de outros releva, no fundo, desta equivalncia moral. A certa altura, ressabiado pela morte tranquila de seu pai, Platnov observa: A morte de homens honestos uma morte tranquila. Precisamente, e como sinal da sua intranquilidade no que toca a mulheres, a sade de Platnov vai se deteriorando medida que ameaa a concretizao das suas derivas platnicas. Ou se quisermos, e tomando uma imagem mais piscatria, Platnov uma efmera platnica que acaba sempre por se metamorfosear numa truta particular e essa sim passageira. De facto, quando Platnov se queixa do calor abafado e de que comea a ter saudades do frio, ele age como animal sensvel que , pressentindo no fim da sua hibernao o despertar gradual da inclinao voluptuosa que consigo h de trazer o seu

    lento declnio. A intromisso de trivialidades acerca do estado do tempo e de termmetros, num exemplo do tpico no acontecimento tchekhoviano, acabaria, em O Cerejal, por decidir o futuro entre Vria e Lopkhin. Para Vria o termmetro estava estragado, para Platnov quem dera estivesse. Tambm o falhano da sua carreira intelectual se deve, de resto, a uma perturbao feminina: Os homens ocupam se de problemas universais e eu de mulheres. As queixas deste anti heri fraco de peito so, alis, muitas. Elas importam a uma espcie de psicodrama de personagem que, contrariamente ao teatro maduro de Tchkhov, essencialmente sugestivo, se arrima num dbito discursivo que entope a pea e serve a sublimao de uma descarga libidinosa, poderosamente concentrada neste espao sobrepovoado. Platnov enferma de uma peculiar infestao de personagens e de falas. Elas invadem o plateau e so sugestivas da pulso libidinosa que percorre a pea e que a faz corresponder com preciso a uma pulso dramtica formal.

    Este albergue dramtico onde tudo cabe, inclusive essa excntrica personagem chamada Ossip, um div colectivo para ociosos, sentimentais e lnguidos, a partir do qual as intrigas amorosas se tornam de alguma maneira correlativas das intrigas financeiras. Platnov serve como smbolo de vcio e como observatrio de moral. Ele resume uma espcie de eroso colectiva em curso identificada na degenerescncia

    autocomplacente dos seus pares. No havendo um homem em quem se possa repousar os olhos, e perdido o vapor da mulher, resta a diluio pelo vapor etlico, uma espcie de dilvio por onde escoa um meio cultural cujas complexidades so brutalmente elididas em trocas estreis de etiqueta social e na vulgarid