Manuel de Pontes Câmara (1815-1882): exemplo de um emigrante português que não quis voltar...

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1 3º Festival de História • Diálogos Oceânicos – Braga, Portugal – 20 a 23 de maio, 2015 Manuel de Pontes Câmara (1815-1882): exemplo de um emigrante português que não quis voltar “brasileiro” Os portugueses e o Brasil O século XIX português, especialmente a sua segunda metade como ainda as três ou quatro primeiras décadas da vigésima centúria foi indelevelmente marcado pela presença de uma espécie de figura romanesca que a voz do povo batizou como “brasileiros”, umas vezes por extrema admiração, outras por sentimentos adversos a esta 1 . Referia-se essa vox populi, secundada na admiração ou na afronta por jornalistas, políticos ou escritores, a um conjunto de homens que, tendo emigrado para a outra margem do Atlântico, para a antiga América portuguesa, à procura do seu El Dorado, ali enriqueceu. Senhores de grandes fortunas, voltaram à pátria-mãe em busca de um estatuto que não levavam consigo à partida e de um reconhecimento que não raramente alcançaram. A região noroeste de Portugal, numa área que costuma ser balizada como o “entre Vouga e Minho”, foi o território de onde essas partidas mais aconteceram 2 . Estes homens, um pequeno grupo que no início do último quartel de oitocentos era composto por cerca de 5% do total das centenas de milhar que haviam partido 3 , 1 A presença maciça de portugueses em Terras de Vera Cruz iniciou-se poucas décadas após a chegada ao território de Pedro Álvares Cabral, em 1500. Desde então, os que ali enriqueciam e ricos voltavam ao continente, transformaram- se em grandes benfeitores das comunidades de onde eram oriundos, passando, após o seu regresso, a ser apelidados de “brasileiros”. Para um melhor conhecimentos dos atos de caridade deste grupo de indivíduos durante o período moderno pode ler-se Araújo, Maria Marta Lobo de, “Os brasileiros nas Misericórdias do Minho (séculos XVII-XVIII)”, in Araújo, Maria Marta Lobo de (org.), As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal-Brasil (séculos XV- XX), Cuiabá, Carlino & Canioto, 2009, pp. 229-260. 2 Veja-se Alves, Jorge Fernandes, Emigração e Retorno do Porto Oitocentista, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1993; Cruz, Maria Antonieta, “Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuição para o estudo da emigração portuguesa na segunda metade do século XIX”, Revista de História: Instituto Nacional de Investigação Científica (vol. 7), Porto, Universidade do Porto, 1986-1987, p. 16. 3 Segundo um estudo de Fernando de Sousa e Isilda Monteiro, a emigração portuguesa para o Brasil atingiu, entre 1876 e 1974, o número de 1.588.346 de cidadãos, que partiram quer do continente quer das ilhas. Estes investigadores recordam que a população portuguesa era, nos anos sessenta do século XIX de apenas 4 milhões de indivíduos, e de 6 milhões em 1921. Cf. Sousa, Fernando de, Monteiro, Isilda, “A Emigração Portuguesa e Italiana para o Brasil – Uma

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Se ao longo de vários séculos quer como colonos quer, após a independência, como emigrantes, muitos portugueses enriqueceram no Brasil por processos pouco lícitos, e é provável que isso tenha acontecido em terras brasileiras como ocorreu em todos os quatro cantos do mundo tivessem os infratores a nacionalidade que tivessem, a verdade é que, como diz o adágio, “a árvore não se pode confundir com a floresta”. A genuína honestidade de Manuel de Pontes Câmara enquanto negociante que foi durante mais de cinco décadas, como as benfeitorias em favor dos menos abastados a quem, através de instituições várias e em especial da Misericórdia do Rio de Janeiro, destinou parte da sua enorme fortuna, é apenas um exemplo pálido da contribuição e do empenho que a comunidade portuguesa residente no Brasil legou ao país que a recebeu de braços abertos.

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    3 Festival de Histria Dilogos Ocenicos Braga, Portugal 20 a 23 de maio, 2015

    Manuel de Pontes Cmara (1815-1882): exemplo de um

    emigrante portugus que no quis voltar brasileiro

    Os portugueses e o Brasil

    O sculo XIX portugus, especialmente a sua segunda metade como ainda as trs ou

    quatro primeiras dcadas da vigsima centria foi indelevelmente marcado pela

    presena de uma espcie de figura romanesca que a voz do povo batizou como

    brasileiros, umas vezes por extrema admirao, outras por sentimentos adversos a esta1.

    Referia-se essa vox populi, secundada na admirao ou na afronta por jornalistas,

    polticos ou escritores, a um conjunto de homens que, tendo emigrado para a outra

    margem do Atlntico, para a antiga Amrica portuguesa, procura do seu El Dorado, ali

    enriqueceu. Senhores de grandes fortunas, voltaram ptria-me em busca de um estatuto

    que no levavam consigo partida e de um reconhecimento que no raramente

    alcanaram. A regio noroeste de Portugal, numa rea que costuma ser balizada como o

    entre Vouga e Minho, foi o territrio de onde essas partidas mais aconteceram2.

    Estes homens, um pequeno grupo que no incio do ltimo quartel de oitocentos era

    composto por cerca de 5% do total das centenas de milhar que haviam partido3,

    1 A presena macia de portugueses em Terras de Vera Cruz iniciou-se poucas dcadas aps a chegada ao territrio de

    Pedro lvares Cabral, em 1500. Desde ento, os que ali enriqueciam e ricos voltavam ao continente, transformaram-

    se em grandes benfeitores das comunidades de onde eram oriundos, passando, aps o seu regresso, a ser apelidados de

    brasileiros. Para um melhor conhecimentos dos atos de caridade deste grupo de indivduos durante o perodo moderno pode ler-se Arajo, Maria Marta Lobo de, Os brasileiros nas Misericrdias do Minho (sculos XVII-XVIII), in Arajo, Maria Marta Lobo de (org.), As Misericrdias das duas margens do Atlntico: Portugal-Brasil (sculos XV-

    XX), Cuiab, Carlino & Canioto, 2009, pp. 229-260. 2 Veja-se Alves, Jorge Fernandes, Emigrao e Retorno do Porto Oitocentista, Porto, Faculdade de Letras da

    Universidade do Porto, 1993; Cruz, Maria Antonieta, Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuio para o estudo da emigrao portuguesa na segunda metade do sculo XIX, Revista de Histria: Instituto Nacional de Investigao Cientfica (vol. 7), Porto, Universidade do Porto, 1986-1987, p. 16. 3 Segundo um estudo de Fernando de Sousa e Isilda Monteiro, a emigrao portuguesa para o Brasil atingiu, entre 1876

    e 1974, o nmero de 1.588.346 de cidados, que partiram quer do continente quer das ilhas. Estes investigadores

    recordam que a populao portuguesa era, nos anos sessenta do sculo XIX de apenas 4 milhes de indivduos, e de 6

    milhes em 1921. Cf. Sousa, Fernando de, Monteiro, Isilda, A Emigrao Portuguesa e Italiana para o Brasil Uma

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    impuseram-se socialmente quando voltaram s suas pequenas aldeias e vilas de origem,

    ou s cidades maiores onde, aps o regresso, decidiram fixar-se, comprando ou mandado

    erigir magnficos palacetes, adotando modos de vida social que antes s tinham paralelo

    nos palcios da fidalguia ou nas casas das burguesias citadinas e distribuindo

    liberalidades s mos-cheias queles que delas precisavam e s terras de onde haviam

    abalado, quase sempre quando crianas de doze para catorze anos. s suas terras de

    origem ofereceram estradas, igrejas e capelas, casas de espetculos, escolas, asilos ou

    hospitais, conquistando, atravs desses atos de benemerncia, no apenas a admirao das

    comunidades bafejadas pelos seus atos filantrpicos, como o reconhecimento oficial,

    tantas vezes traduzido na atribuio de uma comenda, religiosa ou civil, quando no na

    elevao ao baronato ou ao viscondado, ttulos cujos smbolos usavam com garbo e s

    vezes at com exagerada vaidade, ajudando, com o pagamento dos direitos de merc de

    tais honrarias, as finanas pblicas nacionais4. certo que, em determinados meios e

    situaes tambm foram destratados. Jornalistas, poetas e romancistas ridicularizaram-

    nos nos seus escritos e a designao de brasileiro foi muitas vezes sinnimo de

    pacvio, agiota, imbecil ou analfabeto. Mas o tempo, que para a historiografia

    material imprescindvel ao bom julgamento de pessoas a atos, acabou por desconstruir

    essa imagem e hoje, quando falamos de brasileiros, referimo-nos, em geral, a um grupo

    de indivduos, homens e mulheres, que se constituram como portugueses admirveis,

    dados a enormes gestos de filantropia, senhores e senhoras de bons modos e, na sua

    grande maioria, cultos muito acima da mdia do seu tempo5.

    Nesta comunicao no nos iremos debruar sobre a obra incomparvel que estes

    antigos emigrantes realizaram em Portugal aps o seu regresso, quer no foro das obras

    civis e religiosas, quer no campo assistencial. Sobre o tema podem ler-se os muitos

    anlise comparativa (1876-1974), in Sousa, Fernando de, et (coord.), Um Passaporte Para a Terra Prometida, Porto, CEPESE/Fronteira do Caos Editora, 2011, p. 521. Outra informao preciosa a do ento governador civil do Porto,

    Tabner de Morais, citado por Jorge Fernandes Alves, que estimava, num inqurito parlamentar datado de 1873, que ao

    terminar o terceiro quartel do sculo XIX apenas 40% a 50% dos que tinham partido regressavam ptria; que, destes,

    cerca de 20% regressavam pobres, to ou mais pobres do que quando partiram, enquanto cerca de 15% vinham com

    capitais que lhes permitiam, c chegados, comprar alguns terrenos ou dedicar-se ao pequeno comrcio, assim

    garantindo o seu sustento e o da famlia. Ainda segundo a mesma fonte, do total dos que haviam partido prenhes de

    sonhos, apenas cerca de 5% regressavam ricos ou mesmo muito ricos. Eram estes ltimos os considerados realmente

    brasileiros, porque os que regressavam com pouco capital apenas mereciam a classificao de abrasileirados. Cf. Alves, Jorge Fernandes, Prefcio, in Arajo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra, Coelho, Jos Ablio; Franco, Renato (coords.), Os brasileiros enquanto agentes de mudana: poder e assistncia, Braga/Rio de Janeiro,

    CITCEM/Fundao Getlio Vargas, 2013, pp. 9-15. 4 Alves, Jorge Fernandes, De Relance O Baro de Trovisqueira, Catlogo da Exposio Baro da Trovisqueira Reencontro, Vila Nova de Famalico, Museu Bernardino Machado, 2001, disponvel em http://ler.letras.up.pt/ uploads/ficheiros/artigo11191.pdf [acesso em 07.04.2015] 5 Coelho, Jos Ablio, Saraus, visitas, merendas, passeios e viagens: a vida social dos brasileiros nos finais do sculo XIX e na primeira metade do sculo XX, in Arajo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra; Silva, Ricardo, Coelho, Jos Ablio (coords.), Sociabilidades na Vida e na Morte (Sculos XVI-XX), Braga, CITCEM, 2014, pp. 359-373.

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    trabalhos que de h dcadas a esta parte vm sendo publicados. Vamos, antes, abordar,

    ainda que ao de leve dada a exiguidade de tempo disponvel, a vida de um desses

    emigrantes que, embora mantendo at morte a nacionalidade portuguesa, que sempre se

    honrou de ser, escolheu o Brasil para residir, trabalhar e enriquecer sem jamais pensar em

    regressar definitivamente ptria, ali investindo quase tudo quanto foi conseguindo

    amealhar. E tendo a boa moral como candeia com que alumiou os seus caminhos.

    Este , alis, em nossa opinio, um aspeto da emigrao portuguesa no Brasil ainda

    longe se encontrar devidamente estudado, pois que o papel benemerente destes homens

    no aconteceu apenas em Portugal, aps o regresso, deixando os mesmos, na terra que os

    recebeu, importantes marcas da sua estada. Dos Asilos de Invlidos s Sociedades

    Beneficentes, dos Liceus Portugueses aos Reais Gabinetes de Leitura, dos Grmios

    Literrios aos Hospitais Portugueses de Beneficncia ou s Santas Casas da Misericrdia

    espalhadas um pouco por todo aquele imenso pas, muitas so as marcas da doao destes

    emigrantes que, enquanto tal, construram ou ajudaram a fundar e cujo funcionamento

    garantiram, tendo inclusive, muitos deles, ao elaborarem os seus testamentos em Portugal,

    doado a essas casas a que estiveram ligados boas somas de dinheiro, prdios e outros bens

    de raiz que por l haviam mantido em sua posse. Recorde-se, entre muitos e muitos outros

    e apenas como plido exemplo do que dissemos, os casos do mercador Manuel Neto da

    Silva Castelo, natural de Paos de Ferreira e estabelecido em Belm, que, quando foi

    preciso comprar sede para a recm-criada Academia de Direito do Par, garantiu o

    emprstimo, sem dele cobrar qualquer juro, dos 50 contos de ris que custou o edifcio

    para instalar to importante instituio6; do viseense Jos Marques Merino, homem que

    tendo partido de Portugal como simples ferreiro, na ento capital do imprio se

    transformou em fabricante de instrumentos cirrgicos e que, quando o Rio de Janeiro se

    viu atacado, na dcada de 1870, por mais uma malfadada epidemia de varola, dotou os

    Hospitais da Caixa de Socorros D. Pedro V de todo o material necessrio para o bom

    funcionamento das suas enfermarias, vindo, por esse gesto de elevada doao cidade, a

    ser condecorado com a Cruz Humanitria, poca a mais alta distino dada aos que

    lutavam em favor da sade pblica7; ou o de Antnio Ferreira Lopes, nascido na Pvoa

    de Lanhoso e que no Brasil trabalhou durante cerca de trs dcadas, o qual, mesmo j

    fisicamente afastado do Brasil h muito perto de quarenta anos, legou, quando em

    Portugal mandou lavrar o seu testamento, em 1927, importantes verbas Santa Casa da

    6 Album Photo-Biografico Portuguezes no Brazil, Porto, ano 1, n 2, s/d, p. 6. 7 Album Photo-Biografico Portuguezes no Brazil, Porto, ano 1, n 6, s/d, p. 5.

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    Misericrdia do Rio de Janeiro e ao Hospital da Beneficncia Portuguesa, razo pela qual

    o seu retrato, de corpo inteiro e dimenso natural, se encontra ainda hoje entre os dos

    grandes benemritos de ambas as instituies8.

    Para alm do mais, muitos destes brasileiros, antes de regressarem a Portugal para,

    no torro natal, gastarem nos restos das suas vidas os bons cabedais no Brasil

    conquistados, foram, do lado de l do mar Oceano, dirigentes e contribuintes ativos em

    todas essas obras de bem-fazer, tendo alguns deles o hbito de custearem por longos

    perodos, que chegavam a atingir um ms por ano, tantas vezes durante vrios anos, as

    dietas dos internados de todo um hospital ou os custos de ensino dos muitos alunos de

    um liceu portugus, encontrando-se tambm ligados s mais variadas irmandades e

    confrarias religiosas que ajudaram a sustentar com largueza. essa histria do importante

    papel dos portugueses no Brasil, brasileiros aps o regresso ptria de origem, que

    ainda se encontra quase integralmente por fazer e da qual no nos devemos esquecer,

    certos de que o cabal conhecimento da sua doao ao pas que os recebeu de braos

    abertos e lhes permitiu o caminho de muitos sucessos, far deles seres ainda mais dignos

    de grande admirao no s em Portugal, que essa j a conquistaram fruto da investigao

    que nas ltimas dcadas tem sido produzida e divulgada, mas tambm do lado de l, onde,

    infelizmente, hoje como no sculo XIX, h quem os continue a estigmatizar como

    usurrios, sovinas, oportunistas e exploradores9.

    Na presente comunicao pretendemos dar a conhecer um desses portugueses que,

    tendo, como a maioria dos demais compatriotas emigrantes, partido da terra de

    nascimento, a ilha da Madeira, quando era ainda menino, viria a conseguir no Rio de

    Janeiro, fora de muito trabalho, edificar um verdadeiro imprio, sem jamais ter pensado

    em voltar definitivamente a Portugal. O seu nome, Manuel de Pontes Cmara, bem como

    a marca de cafs por si criada e que ficou conhecida pelo seu apelido Cafs Cmara

    so, ainda hoje, um padro sinalizador da sua estada naquele territrio.

    8 Arquivo Histrico da Santa Casa da Misericrdia da Pvoa de Lanhoso (doravante ASCMPL), Testamento de Antnio

    Ferreira Lopes, Caixa dos testamentos, s/paginao. 9 No Brasil, o emigrante portugus tambm teve, entre literatos e cronistas, os seus detratores, que ora os tratavam

    como comerciante rico, explorador e usurrio, ora como burro de carga que, ao aceitar (estupidamente) condies de trabalho que o brasileiro (esperto e malandro) recusaria, praticava uma concorrncia desleal no mercado de

    trabalho. Cf. Rowland, Robert, Manuis e Joaquins: A cultura brasileira e os portugueses, Etnogrfica, vol. V (1), 2001, pp. 157-172; Maria Antonieta Cruz, ao descrever a lusofobia que se gerou no Brasil na segunda metade do sculo

    XIX, manifestada em regies como Porto Alegre, Pernambuco, Cear, Baa, Par, S. Paulo, etc., recorda que os

    portugueses eram apelidados, entre outras designaes menos prprias, de negros brancos, marinheiros safados ou, j no sculo XX, tamanqueiros, ps-de-chumbo, galegos, burros sem rabo, etc.. Cf. Cruz, Maria Antonieta, Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuio para o estudo da emigrao portuguesa na segunda metade do sculo XIX, disponvel em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6489.pdf. [Acesso em 05.10.2013].

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    Manuel de Pontes Cmara: apontamento biogrfico

    Quando Manuel de Pontes Cmara10 nasceu na freguesia das Achadas da Cruz, ilha da

    Madeira, aos dezasseis dias do primeiro ms de 1815, j a Corte portuguesa se havia

    transferido para o Rio de Janeiro, em resultado da primeira invaso napolenica, em

    novembro de 1807.

    A instalao da famlia real levou a que os portos do Brasil se tenham escancarado ao

    comrcio e navegao internacionais e que, em 1810, fossem assinados com a Inglaterra

    dois acordos, um comercial e outro poltico: o primeiro, tempos depois apelidado de

    ominoso, cumpria inicialmente a misso de permitir a importao, a partir da Europa

    amiga, dos gneros e manufaturas de que a terra no dispunha, mas tambm a de escoar,

    para o continente europeu, a produo agrcola e natural do Brasil. O segundo,

    atualizando a secular aliana luso-britnica, tinha por objetivo garantir a integridade

    de um reino que o rei abandonara frgil autoridade de uma regncia, colocando, na

    realidade, o continente sob o domnio de estranhos. Com a chegada da paz geral, em

    1814, resultante da derrota de Napoleo, os continentais portugueses esperavam que o

    jugo poltico-militar ingls pudesse ser afastado, do mesmo modo que ansiavam a

    recuperao do monoplio do mercado brasileiro para a metrpole. Nada disso aconteceu

    e Portugal continental, remetido desde a partida da famlia real, na prtica, situao de

    colnia, vivia um penoso perodo econmico-financeiro, quer dado as receitas antes

    resultantes do comrcio externo terem sofrido acentuadssima quebra, quer devido ao

    pagamento de uma enormssima dvida pblica, para a qual todos eram obrigados a

    contribuir11.

    Filho de um casal de remediadas posses, em 1821, com seis anos de idade, Manuel de

    Pontes Cmara entrou como interno num colgio madeirense onde se manteve at aos

    onze, apesar de, entretanto, ter ficado rfo de pai e de sua me ter contrado um segundo

    matrimnio. Por sua vontade, viria a afirmar o prprio num manuscrito redigido muitas

    dcadas depois, e dando deste logo indicaes de que iria ser pela vida fora um self-made

    10 Cmara um dos mais antigos apelidos utilizados na Madeira, tendo sido seu primeiro utilizador Joo Gonalves da

    Cmara, filho primognito do descobridor e primeiro capito donatrio do Funchal, Joo Gonalves Zarco. Resultaria

    da carta rgia de 4 de Julho de 1460, atravs da qual lhe era conferido ttulo de nobreza e concedido o respetivo braso

    de armas. O apelido manteve-se na ilha at atualidade, tendo ao longo dos sculos sido utilizado por algumas das

    mais distintas famlias da regio. Cf. Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidrio

    Madeirense, vol. 1, A-E, edio dos Autores, 1921, pp. 384-387. 11 Bonifcio, Maria da Ftima, A Monarquia Constitucional. 1807-1910, Lisboa, Texto Editores, 2010, pp. 19-23.

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    man, o rapazinho decidiu abandonar os estudos para se empregar como marano, na vila

    de Porto Moniz, a fazendo o seu tirocnio comercial.

    Portugal, descontente com a ausncia da famlia real e sobretudo com o estado de

    penria que no continente se vivia, tinha feito implantar, em 1820, revelia da Coroa, um

    novo regime: o Liberalismo12. No obstante essa mudana poltica, que se em muitos

    portugueses renovou o sonho do regresso do rei ao continente e a reconquista do estatuto

    de sede de negcios do reino para Lisboa, mas tambm o retorno do Brasil ao modelo que

    vigorara anteriormente a 1808, no matou noutros o esprito aventureiro, a mesma sina

    que desde havia vrios sculos levara tantos a partir, fazia-os agora sonhar com a travessia

    do Atlntico em busca da riqueza que a prpria terra de nascimento lhes negava. Como

    se disse, se os anos que se seguiram partida da Coroa foram de extrema dificuldade, o

    dealbar do primeiro liberalismo, em 1820, trazendo profundas transformaes no

    melhorou a situao. Entre as radicais mudanas que afetaram Portugal, pelo significado

    que teve na vida destes homens que viam na ento Amrica portuguesa a sua terra da

    promisso, relembramos a perda definitiva do Brasil em 7 de setembro de 182213. Sete

    anos depois do Grito do Ipiranga, Manuel de Pontes Cmara quis, ainda, seguir o rumo

    dos antigos colonos, agora como emigrante, embarcando para o Rio de Janeiro em finais

    de 1829, quando contava apenas 14 anos de idade14.

    Na cidade maravilhosa empregou-se de imediato no comrcio de fazendas, onde

    amealhou algum peclio. Pouco mais de um ano depois de ali se encontrar, isto , quando

    em abril de 1831 ocorreram os levantamentos que levaram D. Pedro I a renunciar coroa

    imperial brasileira e dado o clima de mal-estar que contra os defensores portugueses do

    imperador se viveu na cidade15, Pontes Cmara decidiu mais uma vez fazer-se ao mar,

    desta vez com destino frica portuguesa. Durante um ano percorreu os portos martimos

    de Benguela, Novo Redondo e Luanda e quando, menos de um ano volvido e

    aproveitando os nimos mais calmos na capital do novo Imprio decidiu regressar ao Rio,

    12 Sobre a implantao do Liberalismo em Portugal ler entre outros S, Victor, Instaurao do Liberalismo em Portugal,

    Lisboa, Livros Horizonte, 1987. 13 Sobre a independncia do Brasil e seus efeitos em Portugal, pode ler-se Proena, Maria Cndida, A Independncia

    do Brasil, Lisboa, Edies Colibri, 1999. 14 Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, datilografado, s/paginao.

    Agradeo Dr. Lucia Sanson, neta em quarto grau de Manuel de Pontes Cmara e residente no Rio de Janeiro, a

    cedncia de uma cpia deste documento. 15 Sobre a renncia de D. Pedro I e as divergncias entre portugueses e brasileiros, pode ler-se Pandolfi, Fernanda

    Cludia, A abdicao de D. Pedro I: espao pblico da poltica e opinio pblica no final do Primeiro Reinado, Assis,

    2007, dis. de doutoramento policopiada, pp. 24-64.

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    levava consigo alguns centos de milhares de ris, reunidos em negcios feitos durante

    a viagem16.

    Contava ento apenas 17 anos de idade, mas pensava e agia j como um comerciante

    de larga experincia. Vejamos, como o prprio anotou ao referir-se aos centos de

    milhares de ris que tinha conseguido angariar na sua passagem pela frica, a garra que

    levava consigo:

    Precisando fazer produzir estes fracos cobres, tomei logo o expediente de ir

    comprar alguns cereais nos subrbios da cidade para ir vend-los na Corte. Neste

    pequeno comrcio obtive regular interesse, mas como no era negcio estvel,

    estabeleci no mesmo ano de 1832 um negcio de loua que produzia regular

    resultado, mas que pouco me aproveitou, porque os emigrados portugueses que aqui

    se achavam e que na mxima parte no queriam trabalhar, comiam sob o pretexto de

    benefcio patritico no s o pouco que eu ganhava, mas at o pequeno capital de

    que dispunha17.

    Esta sua primeira experincia f-lo relutar em relao aos compatriotas, que durante

    muitos anos deixou mesmo de empregar, afirmando que, desse modo, comeou a tirar

    bons resultados do seu trabalho. Descontente tambm com o pouco lucro do negcio dos

    cereais, encetou, no ano seguinte de 1832, uma parceria comercial com Vicente Estcio,

    em que ambos entraram com algum capital para se dedicarem venda de louas, o que

    resultou em alguns lucros. Passou a viajar para outras cidades brasileiras, comprando e

    vendendo, sempre em busca de bons e lucrativos negcios. No era um mascate, um

    vendedor ambulante de miudezas, para usarmos palavras de Gilberto Freyre18, antes

    um negociante de viso larga e algum investimento, o que lhe trouxe no s significativos

    lucros mas lhe granjeou tambm grandes amizades, capazes de lhe garantirem crdito e

    bom nome. Entre estas amizades, que continuar a cultivar pela vida fora, encontrava-se

    o padre Antnio Ferreira Vioso, depois bispo de Mariana, que em 1835 conheceu em

    Ilha Grande e se transformou numa referncia para toda a sua vida19.

    16 Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao. 17 Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao. 18 Cf. Freyre, Gilberto, Vida Social no Brasil nos Meados do Sculo XIX, p. 81. 19 D. Antnio Ferreira Vioso, religioso Vicentino, nasceu em Portugal a 13 de maio de 1787. Ordenado sacerdote em

    1818, foi professor em vora antes de embarcar para o Brasil, aos 32 anos. Em 1843 foi nomeado bispo de Mariana,

    tendo, enquanto tal, promovido uma profunda reforma do clero e fundado vrias obras de caridade e educao, entre

    as quais o primeiro colgio feminino de Minas Gerais. Reconhecido humanista e lutador contra a escravatura, escreveu,

    em 1840, um livro intitulado A escravatura ofendida e defendida. Foi um dos principais mentores da luta desenvolvida

    contra o liberalismo dos Imperadores na chamada questo religiosa. Morreu em 1875. Pelas suas virtudes, foi em julho

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    Figura 1

    Pontes Cmara com a esposa e as duas filhas mais velhas, Elisa e Elvira

    Fonte: Coleo do autor

    No mesmo ano viajou para Porto Alegre, de onde regressou um ano volvido, numa

    viagem de que tirou bons lucros. Em 1850, na qualidade de administrador de uma massa

    falida, Pontes Cmara deslocou-se a Santa Catarina. Dois meses volvidos retornava

    capital com bom resultado da sua misso. Antes e depois desta data, continuou a

    dedicar-se ao comrcio, fazendo sociedades vrias que abarcavam negcios de loua e

    miudezas, de peixe fresco, carnes verdes, cereais, fabrico de cal, casas de pasto, trapiche,

    negcios de tapioca, refinao de acar, fabrico de chapus, cultivo de caf, botequins

    ou negcios de carvo em pedra. Mas os negcios que lhe deram grande fama e maior

    proveito foram, sem sombra de dvidas, o das comisses e o dos cafs.

    de 2014 declarado beato pelo Papa Francisco. Cf. Padres Vicentinos, disponvel em http://padresvicentinos.org/pt/d-

    antonio-ferreira-vicoso/ [Acesso em 28.09.2014]

  • 9

    A sua vida de comerciante mante-se durante mais de cinco dcadas, umas vezes com

    lucros, outras com prejuzos. Para podermos fazer uma ideia do seu percurso enquanto

    negociante, vejamos o resumo da atividade desenvolvida, que o prprio deixou anotada

    (ver quadro 1).

    Quadro 1 Negcios em que Pontes Cmara teve sociedade, 1832-1878

    Incio Scios Produtos Resultado

    1832 Joaquim Alves da Silva Louas e miudezas Lucros

    1832 Joo de Deus Peixe fresco Lucros

    1833 Jos Francisco Pedro Carnes verdes Prejuzo

    1833 Vicente Estcio da Silva Louas e outros Lucros

    1834 Jos Pedro da Silva Cereais Prejuzo

    1836 Jos Joaquim Leite Bastos,

    Jos Cndido Pereira Salgado

    Canuto Maria Pereira de Macedo

    Fbrica de cal Lucros

    1836 Joo Dias Vilares Louas e miudezas Lucros

    1839 Jos Dias Pinto Aleixo Especulao de contas Muito lucro

    1843 Toms Pereira da Rosa Cereais Lucros

    1844 Antnio Moreira Betencourt Casa de pasto Lucros

    1848 Joaquim Jos de Oliveira Bastos Cereais Lucros

    1848 Jos da Silva Gajeiro Casa de pasto Prejuzo

    1849 Jos Domingos da Costa Cereais e especulao Prejuzo

    1850 Manuel Alves Oliveira Queiroz Trapiches e comisses Lucros

    1851 Joo Antnio Ferreira Guimares Tapioca Prejuzo

    1853 Francisco Mazar

    Agostinho Sommer

    Refinaria de acar Prejuzo

    1853 Francisco da Silva Betencourt

    Joaquim Jos Simes

    Cereais Muito lucro

    1858 Antnio Alves Carreira Fbrica de chapus Prejuzo

    1858 Jos Neves Pinto Cereais Prejuzo

    1858 Toms Alves de Oliveira Cereais Prejuzo

    1858 Jos Pinto de Figueiredo Vilhena

    Joaquim Domingos da Costa

    Especulao Prejuzo

    1860 Rafael Jos Lopes de Andrade Trapiche e comisses Muito lucro

    1863 Jos Alves Pereira Fazenda de caf Muito lucro

    1860 Domingos Lopes Quintas Botequim Lucros

    1864 Francisco Joaquim Gomes Caf e cereais Muito lucro

    1867 Joaquim Fernandes Moura Caf Lucros

    1868 Vicente Cavalcante de Orem Cereais Lucros

    1868 Jos Rodrigues da Silva Cereais Prejuzo

    1872 Joaquim Matos Vieira Caf e cereais Lucros

    1872 Antnio Ferreira Lopes Cereais Lucros

    1878 Antnio Rodrigues da Silva

    Mascarenhas

    Antnio Coelho Fortes

    Belmiro Antnio Rodrigues

    Carvo em pedra Lucros

    1878 Manuel Ribeiro

    Justino Albano

    Joaquim

    Caf Lucros

    Fonte: Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao.

  • 10

    Como se pode observar pelo quadro apresentado, Pontes Cmara teve quatro dezenas

    de scios ao longo da sua vida comercial. Com uns tive lucros e com outros prejuzos,

    escreveu o prprio em 1880, mas com nenhuns deles tive dvidas em contas, tendo-me

    separado de todos na melhor harmonia achando-me de contas saldadas com todos20.

    Entre estes scios, encontravam-se pelo menos trs dos seus futuros genros: Antnio

    Ferreira Lopes, Francisco Joaquim Gomes e Antnio Coelho Fortes.

    No dia 24 de dezembro de 1851, aos 36 anos e j abastado negociante, Manuel de

    Pontes Cmara casou-se com Guilhermina de Matos Vieira, de apenas 15 anos de idade,

    natural do Rio Grande do Sul21. Volvido pouco mais de um ano sobre o casamento, isto

    , a 14 de abril de 1953, nascia a primeira filha do casal, Elisa22. A 10 de abril de 1856 o

    emigrante portugus embarcou para a Europa com a mulher, grvida de quatro meses, e

    a filha, de tenra idade. Instalada a famlia na cidade do Porto, na rua 23 de julho da

    freguesia de Santo Ildefonso, partiu o comerciante para Frana, no Porto nascendo, na

    sua ausncia23, a segunda filha, Elvira de Pontes Cmara24.

    O casal Cmara permaneceu na capital do norte de Portugal at ao dia 2 de junho de

    1860, data em que, na companhia da esposa e das filhas, embarcou de regresso ao Rio de

    Janeiro. As viagens eram demoradas, chegando a gastar-se, para cada travessia do

    Atlntico, entre um a dois meses. O que justificava que quando estes homens viajavam

    prolongassem as estadas no exterior.

    De regresso capital do imprio do Brasil, Pontes Cmara encontrou a casa comercial,

    que deixara em franco crescimento quatro anos antes, em situao de falncia. Achei-a

    20 Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao. 21 Curiosa confidncia feita por Pontes Cmara no seu manuscrito Factos mais notveis: No dia 24 de Junho de 1836, decidi terminar, por carta, algumas ideias de casamento que tivera com uma respeitvel moa, participando-lhe

    que com ateno minha posio e estado no estava resolvido a tomar estado. nesse mesmo dia de Junho que o

    calendrio religioso dedica a So Joo Baptista que, na cidade capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre e por uma

    coincidncia que se no pode explicar, nasceu aquela que mais tarde veio a ser minha mulher. Cf. Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao. 22 Viria a casar-se em 10 de Setembro de 1867, com 15 anos incompletos, com Francisco Joaquim Gomes, desde 1864

    scio do sogro na casa Cmara & Gomes. Este casal no deixou descendncia. Uma segunda filha de Guilhermina e Manuel de Pontes Cmara, cujo nome se no conhece, morreu com apenas uma semana de vida. Nasceu a 30 de Maro

    de 1855, no Bairro das Laranjeiras, onde o casal habitava, e faleceu a 7 de Abril, tendo sido batizada em casa para que

    no morresse sem sacramentar. 23 No seu manuscrito Manuel de Pontes Cmara refere: esta a nica filha a cujo nascimento no assisti. Embora o no afirme claramente, Pontes Cmara estaria envolvido amorosamente com uma francesa (e note-se que so

    constantes, ao longo da sua vida as viagens Europa e especialmente a Frana), pois indica que a 13 de Novembro

    desse ano de 1856, nasceu em Paris, pelas seis horas e quatro minutos da tarde, outra minha filha. Esta criana foi tambm batizada na igreja de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, aos 28 dias do ms de Julho de 1859, com o nome

    de Emma Edouina Rita Emmuella, sendo padrinhos Jos Cardozo Pinto Montenegro e D. Rita Accia Lopes. Faleceu

    a 18 de Fevereiro de 1867. Cf. Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes

    Cmara, s/paginao. 24 Arquivo Distrital do Porto, Livro de assentos da parquia de Santo Ildefonso, 1856, fl. 44.

  • 11

    envolvida de tal forma que no s supus a minha fortuna perdida, mas em risco de no

    pagar por inteiro aos credores. Mas conseguindo separar a Sociedade, mediante a

    responsabilidade de mil e alguns contos de ris, consegui pagar por inteiro e apesar de

    perder na liquidao cerca de quatrocentos contos ainda me ficou alguma fortuna que

    manejada com critrio me colocou ainda em posio desassombrada pelo que resta dar

    graas a Deus25.

    No obstante as amargas provaes de que diz ter sido vtima, este homem, que aos

    14 anos de idade, sem resguardo algum se fez ao mundo e foi capaz de, como era seu

    desejo ao partir da ilha natal, fazer fortuna por si mesmo, a tudo resistiu, fruto da sua

    inteligncia, da sua capacidade para os negcios e dos seus rgidos princpios morais,

    como adiante veremos. Recuperada a posio, custa de muito dinheiro perdido,

    reaplicou-se na gesto das suas empresas e, muito rapidamente, viu a sua posio no s

    recuperada, mas fortalecida.

    Adquiriu ento um palacete, com capela, na rua Olinda, onde passou a habitar com a

    esposa e as filhas Elisa e Elvira. Ali nasceram e cresceram os restantes filhos do casal26.

    No dia 24 de agosto de 1874, aos 38 anos de idade e aps vinte e dois de casamento,

    Guilhermina de Matos Vieira faleceu no Rio de Janeiro, deixando Manuel de Pontes

    Cmara, que contava ento 59 anos de idade, vivo.

    Empreendeu, aps da morte da mulher, mais algumas viagens Europa, onde trs dos

    seus filhos estudavam, tendo a ltima dessas viagens ocorrido maro de 1882. Vindo do

    Rio de Janeiro, permaneceu alguns dias em Lisboa, acompanhando uma filha e um genro

    portugus que ali se instalaram numa espcie de lua-de-mel tardia. At que, no dia 31

    desse mesmo ms, embarcou sozinho no vapor Douro, da Mala Real Inglesa. O seu

    destino era a cidade inglesa de Southampton, de onde, aps visitar uma das filhas mais

    novas que na Gr-Bretanha estudava, retornaria ao Brasil para retomar a conduo dos

    seus negcios. Mas, desta vez, a fortuna que Manuel Pontes Cmara tantas vezes

    invocava como sinnimo de sorte e felicidade, no o acompanhava. Pelas onze da noite,

    25 Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao. 26 A 23 de julho de 1861, nasceu Edeltrudes, que em 16 de Janeiro de 1878 casou com Antnio Rodrigues da Silva

    Jnior; a 13 de agosto de 1863, Ernestina, que vir a casar, na capela do colgio das Irms da Caridade, em 9 de julho

    de 1879, com Antnio Coelho Fortes, casamento do qual nasceram duas filhas; a 11 de novembro de 1866, nasceu

    Maria Estefnia, que viria a casar-se, j depois da morte dos pais, com Jos Mendes de Oliveira Castro, 2 Baro de

    Oliveira Castro e scio de seu sogro desde antes do casamento; a 22 de janeiro de 1869, nasceu Guilhermina, na cidade

    de Petrpolis. Viria a falecer aos dez anos de idade, em 28 de maro de 1879, sendo sepultada no cemitrio de S. Joo

    Baptista; por ltimo, em 21 de agosto de 1870, nasceu, na rua Olinda, Manuel, o nico filho e tanto desejado varo do casal. Por ser o nico rapaz e ter ficado rfo muito jovem, teve uma vida de aventureiro. Casou muito cedo, teve

    um filho, e viveu viajando. A histria da famlia refere que atravessou o Atlntico trinta e oito vezes, a ltima das quais, morto, para ser sepultado no Brasil. Cf. Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao.

  • 12

    navegando o Douro ao largo do cabo Finisterra, na Galiza, levando nos seus pores

    75.000 libras que trouxera do Brasil e mais 25.000 carregadas em Lisboa, para alm de

    outra carga pesada entre a qual 15.600 sacos de caf, foi violentamente abalroado pelo

    vapor espanhol Yrurac-Bat, que, da Corunha, seguia rumo a La Habana27. A noite estava

    escura e as ondas tumultuosas. O desastre levou o Douro para o fundo do oceano em

    pouco mais de meia hora. Mesmo assim, muitos dos passageiros de ambas as embarcaes

    conseguiram salvar-se, dada a rpida interveno de outro barco que mesma hora

    passava por perto. No foi o caso de 57 passageiros de ambas as embarcaes, entre as

    quais Manuel de Pontes Cmara, um dos trs passageiros da primeira classe do Douro

    que, aos 67 anos de idade, encontrou eterna sepultura no fundo do Atlntico28. O seu

    corpo jamais foi recuperado. No dia 14 de abril de 1882, isto , duas semanas aps o

    desastre, a pedido da famlia ou por imposio da companhia seguradora do vapor em que

    viajava, era publicado no jornal Faro de Vigo um anncio nos seguintes termos:

    Por la localizacin de un cadver. El consignatario en esta ciudad de la

    Compaa Mala Real Inglesa, seor don Estanislao Durn, ofrece una buena

    gratificacin al que encuentre o d noticia del cadver del comendador Dn. Manuel

    de Pontes Cmara, el cual ha sido vctima en el naufragio del vapor Douro. Las seas

    del finado son las siguientes: estatura regular, delgado, edad 67 aos, usaba toda la

    barba. Vesta pantalones, chaleco y gabn todo de pao negro, sombrero de coco y

    botinas cortas con elstico. Debe tener en el bolsillo del gabn una cartera con

    documentos donde consta su nombre as como tarjetas de visita. La ropa blanca que

    vesta tiene las iniciales M. P. C.29.

    Na memria oral familiar ficou a notcia, talvez fantasiosa, talvez no, de que Manuel

    de Pontes Cmara ter dado o seu lugar no bote a que os passageiros de primeira classe

    tinham direito, a uma pobre mulher que viajava em classe econmica com um filho de

    tenra idade30.

    27 Muerte en el mar de Finisterre, disponvel em http://www.farodevigo.es/gran-vigo/2012/04/05/muerte-mar-finisterre/638250.html [acesso em 11.04.2015] 28 Cf. Calvo-Sotelo, Juan Campos, Nufragos de Antao. Los grandes naufragios en la Costa de la Muerte en el siglo

    XIX, Barcelona, Editorial Juventud, 2002, pp. 205-222. 29 Cf. Jornal Faro de Vigo, disponvel em http://www.farodevigo.es/opinion/2012/04/14/hemeroteca-decano /640438.

    html [acesso em 11.04.2015]. 30 Informao prestada pela Dr. Lucia Sanson, trineta de Pontes Cmara, residente no Rio de Janeiro.

  • 13

    A criao de um colosso comercial

    Aps a viagem por terras africanas que lhe permitiu regressar ao Brasil com alguns

    centos de milhares de ris, tinha ento apenas 17 anos de idade, Manuel de Pontes

    Cmara iniciou uma vida comercial de sucesso que, como j vimos, lhe garantiu ligao

    a mais de uma trintena de negcios, umas vezes como scio solidrio, outras como

    comanditrio.

    O Brasil, que nos anos que se seguiram independncia teve que se adaptar a novas

    circunstncias, no apenas reorganizao de todos os servios pblicos do novo imprio

    mas tambm aos efeitos negativos que esse facto acarretou, que fez crescer muito os

    compromissos econmicos para com o exterior, viveu um perodo algo conturbado e

    difcil. No obstante, a riqueza dos seus solos e a vontade de levantar uma nova nao

    levaram a que, sobretudo a partir de meados do sculo XIX, o pas entrasse numa fase de

    enorme crescimento, organizando-se modernamente com grandes empresas comerciais,

    financeiras e industriais. As indicaes desse crescimento eram j notrias na primeira

    metade da centria de oitocentos, mas, ao longo da sua segunda metade, mudou

    radicalmente para melhor, sobretudo com a verdadeira revoluo que se operava na

    distribuio das suas atividades produtivas, decaindo as lavouras tradicionais como a da

    cana-de-acar, algodo ou tabaco e ressurgindo, apoteoticamente, outras produes que

    anteriormente eram de pequena importncia. Dentre estas ltimas, destacar-se-ia o caf,

    que acabar por figurar quase isolado na balana econmica brasileira31.

    E foi exatamente neste setor, o do caf, que a partir da dcada de sessenta Manuel de

    Pontes Cmara ir jogar toda a sua experincia, o saber alicerado num trilho com j

    quase trs dcadas ligado a negcios vrios, ao fundar, em 2 de janeiro de 1864, sob a

    designao de Cmara & Gomes, um emprio comercial que o tinha como scio

    maioritrio e como minoritrios um genro, Francisco Joaquim Gomes e um cunhado, o

    baro de Matos Vieira32. Dedicando-se tambm aos negcios dos couros e dos cereais,

    era contudo no caf que a Cmara & Gomes tinha o seu principal mercado. A sociedade

    deve ter sucedido a um negcio mais pequeno, talvez do mesmo ramo, que Manuel de

    Pontes Cmara possua na rua de S. Bento, j que o seu nome surgia individualmente

    31 Jnior, Caio Prado, Histria Econmica do Brasil, acessvel em http://minhateca.com.br/PalavraeTeologia/

    LIVROS+DIVERSOS/Caio-Prado-Junior-Historia-Economica-Do-Brasil,30602957.pdf [acesso em 11.04.2015] 32 O Brasil, Rio de Janeiro, S.te de Publicit Sud-Americaine Monte Domec & Cie, vol. 1, 1919, pp. 51-56.

  • 14

    cadastrado como negociante estrangeiro nas pginas do Almanak da Corte e Provincia

    do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 186433.

    A Cmara & Gomes atingiu, rapidamente, fruto da experincia do seu scio

    maioritrio e do esforo de todos os que com ele trabalhavam, o estatuto de grande casa

    comercial da capital do Imprio34. Poucos anos volvidos, j no comercializava apenas

    aos balces da rua de S. Bento. Tinha-se envolvido em negcios de comisses, comrcio

    de cereais, couros e outros produtos nacionais e importados, torrefao, moagem e

    ensaque de caf, assegurando operaes que iam crescendo de vulto, irradiando a todo

    o pas, do Norte a Sul e ao Estrangeiro, exportando especialmente para a Europa35, onde,

    no ano de 1874, colocou 500 sacas de 60 quilos de caf, situando-se entre os setenta

    primeiros exportadores de todo o Brasil, devendo referir-se que entre as primeiras cem

    empresas exportadoras a esmagadora maioria eram inglesas ou francesas36. O enorme

    crescimento da casa obrigou a que, mantendo o estabelecimento da rua de S. Bento,

    abrisse depsitos e balces nas ruas dos Beneditinos, da Sade, Frei Caneca e avenida

    Mem de S. O Caf Cmara tornou-se famoso no Rio, existindo a marca, ainda hoje,

    noutras mos. Nos incios do sculo XX e j aps a morte de Manuel de Pontes Cmara,

    a empresa, onde se mantinham como operacionais ou comanditrios alguns dos seus

    genros, mandou construir um dos grandes edifcios da ento recm-inaugurada avenida

    Central, mais tarde avenida de Rio Branco, possuindo, em 1919, o capital social de

    1.250.000 ris e girando anualmente a soma de 120 mil contos de ris37.

    Fortuna, riqueza e bem-fazer

    Manuel de Pontes Cmara tinha alcanado a honorabilidade de comendador. Como tal

    o referem as vrias notcias que do conta da sua morte por afogamento. Desconhecemos,

    porque ainda no tivemos oportunidade de aceder a documentao elucidativa, em que

    data a alcanou e se a honraria lhe ter sido atribuda pelo Estado brasileiro, se pela Igreja,

    dadas as suas estreitas ligaes a altos dignitrios catlicos, entre as quais se refere

    monsenhor D. Miguel Ferrini, bispo italiano que na dcada de 1870 foi representante de

    33 Almanak da Corte e Provincia do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 1864 fundado por Eduardo von

    Laaemmerk, Rio de Janeiro, Eduardo & Henrique Laemmert, 1864, p. 527. 34 O Brasil, p. 51. 35 O Brasil, p. 51-56. 36 Retrospecto Commercial de 1877, Revista do Jornal do Comrcio, Rio de Janeiro, Typographia Imperial e

    Constitucional de J, Villeneuve & C., 1878, pp. 31-32. 37 O Brasil, p. 52.

  • 15

    negcios da Santa S no Brasil e que, pela amizade que o prendia ao madeirense, presidiu

    ao casamente de uma das suas filhas38. Para alm de D. Ferrini, Pontes Cmara foi amigo,

    desde muito jovem, do padre Antnio Ferreira Vioso, em 1843 nomeado bispo de

    Mariana e figura de proa da questo religiosa no Brasil ps independncia39. tambm

    certo que o negociante portugus pertencia a um conjunto de irmandades religiosas das

    quais, logo desde muito jovens, fizeram tambm parte trs das suas oito filhas: Elvira

    entrou para a Ordem de Nossa Senhora do Carmo aos 12 anos de idade; Edeltrudes para

    irm da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo aos oito anos; Ernestina para irm

    da Ordem de S. Francisco da Penitncia aos sete; Maria Estefnia, que foi pelo casamento

    baronesa de Oliveira Castro, para a mesma Ordem de S. Francisco quando contava apenas

    trs anos de idade. No ato de batismo delegou em santas da sua devoo a qualidade de

    madrinhas, ou protetoras, de alguns dos filhos: Eliza teve como madrinha Nossa Senhora

    de Santa Rita; Maria, Nossa Senhora da Conceio; e Manuel, dito Maneco, seu filho

    nico e mais novo, Nossa Senhora das Dores. A filha Ernestina, que casou em 9 de julho

    de 1879 com Artur Coelho Fortes, teve a oficializar a cerimnia de casamento o ento

    bispo diocesano do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda40.

    Desconhecemos o testamento integral deste portugus natural da ilha da Madeira, mas

    sabemos que, em vida, praticou [no Brasil] atos da mais assinalada benemerncia, que

    mandou reerguer, numa das suas passagens pela ilha que lhe serviu de bero, a capela de

    Nossa Senhora das Achadas, que fez uma doao de cinco contos de ris Misericrdia

    do Funchal e que legou quase inteiramente a tera dos seus bens a casas de caridade,

    especialmente Misericrdia da cidade do Rio de Janeiro, ficando os seus filhos com o

    remanescente da sua grande fortuna41.

    Manuel de Pontes Cmara foi, como se viu, um riqussimo e poderoso comerciante da

    praa do Rio de Janeiro. Falava pelo menos mais duas lnguas para alm do portugus,

    38 Monsenhor Miguel Ferrini morreu no Rio de Janeiro em 13 de fevereiro de 1875, vtima de febre-amarela, sendo

    sepultado no cemitrio da Venervel Irmandade de S. Pedro, no Caj, Rio de Janeiro. Italiano, doutor em Teologia e

    Direito Civil e Cannico foi internncio e desde 6 de junho de 1874 Encarregado de Negcios da Santa S no Brasil.

    Apesar de ter falecido repentinamente de doena diagnosticada pelos mdicos, o jornal O Apostolo, do Rio de Janeiro,

    aproveitando o mau ambiente vivido entre D. Pedro II e a Santa S, no mbito do processo que ficou para a histria

    como a questo religiosa brasileira, atribuiu a sua morte prematura a uma indisposio depois de ter sido recebido pelo

    imperador e pelo seu ministro dos Negcios Estrangeiros. O jornal considerou mesmo D. Ferrini como mais uma victima da politica execranda da maonaria Imperial. Cf. O Apostolo, n 35, de 16 de fevereiro de 1875, p. 1; Alves, Jos Luiz, Noticia sobre os Nuncios, Internuncios e Delegados Apostolicos que desde o ano de 1808 at hoje representaram a Santa S no Brazil Reino Unido, no 1 e 2 Reinados e na Republica Federal, Revista Trimestral do Instituto Histrico e Geogrfico Brazileiro, Tomo II (I), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1900, p. 268. 39 Ver nota nmero 19. 40 Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao. 41 Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidrio Madeirense, vol. 1, A-E, edio dos

    Autores, 1921, p. 26.

  • 16

    era leitor dos clssicos da poca42, viajou dezenas de vezes para Portugal, Frana,

    Inglaterra, Blgica e Holanda, foi um extraordinrio benfeitor de instituies de caridade

    brasileiras, destacando-se o seu legado Misericrdia do Rio de Janeiro43.

    Cabe, pois, aqui uma pergunta: ter sido Pontes Cmara, como tantas vezes se tentou

    fazer crer sobre estes antigos emigrantes portugueses, um usurrio, um sovina, um

    oportunistas, um explorador44?

    Utilizemos, em jeito de resposta a esta nossa questo, um discurso, redigido pelo seu

    prprio punho em abril de 1875, para, nessa mesma data, ser por si lido aos seus scios e

    empregados na casa comercial Cmara & Gomes. Nele comea por justificar a partida

    para uma viagem Europa, com sada a 24 desse mesmo ms e ano, onde visitaria alguns

    dos seus filhos que em colgios europeus estudavam. Confessa-se cansado fsica e

    psicologicamente, j que acabara de ficar vivo e com vrios filhos para acabar de formar.

    Mas remete para a filosofia crist que ensina o homem a lutar constantemente contra as

    contrariedades, a forma de encontrar foras para resistir. Depois de historiar alguns

    grandes problemas que os seus negcios viveram aquando de outras sadas ao estrangeiro,

    afirma confiar nos seus scios e em todos aqueles que o servem como empregados. Traa-

    lhes, seguidamente, uma lio sobre honradez, afirmando:

    () Se o crdito pessoal no representa por si s um capital representa sem

    duvida e pelo menos uma machina aperfeioada e quaseque infalvel com aqual se

    pode adequirir muito desse capital ou riqueza sem grande dificuldade, sendo por

    isso que vulgarmente se diz que quem possue credito possue capital ou riqueza ().

    Mas o credito moral mais sublime. Este crdito alem de cooperar para essa

    acumulao de bens terrestres to desejado pela maxima parte dos homens, acresce

    que elle conveniente acquisio dos bens celestes, e que por um lado satisfazendo

    as necessidades do corpo satisfaz pelo outro as aspiraes da alma. (). O Crdito

    Material obtem-se e conserva-se quando se trabalha com assiduidade, dedicao e

    intelligencia, quando s se emprehendem os negocios que esto nos limites dos

    nossos meios e circumstancias, quando eles so contractados e concludos com

    circumspo e prodencia ().

    42 Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidrio Madeirense, p. 26. 43 Cmara, Manuel de Pontes, Factos mais notveis da vida de Manoel de Pontes Cmara, s/paginao. 44 Conferir nota 29.

  • 17

    O Credito Moral, to raro na nossa poca, por isso mais apreciado e tanto quanto

    difcil de conseguir-se bem como de conservar, mas como o querer , segundo o

    proverbio poder, este crdito tambm se obtem com mais dificuldade quando se quer.

    Para ganhar-se () preciza-se antes de tudo que seja elle mesmo moralizado na

    sua vida publica e particular e que dessa moral d claros exemplos a sua famlia, a

    seus fmulos, e ate aquelles com quem transigir ou conviver. (). Que na concepo

    e realizao de qualquer negocio comercial, civil, ou moral tenha como principio

    inaltervel no entrar nelle sem convencer-se primeiramente que o negcio licito,

    legal e honesto45.

    Apesar de longo, no quisemos deixar de transcrever este trecho de um escrito de

    Manuel de Pontes Cmara. Atravs dele desejava aos que o escutavam isto , a alguns

    dos seus genros, scios e empregados, sobre todos os quais afirma saber possurem as

    boas qualidades que acabara de referir que enriquecessem de bens terrenos, mas que,

    acima de tudo, deviam colocar sempre em primeiro lugar a seriedade e a boa moral46.

    Consideraes finais

    Se ao longo de muitos sculos, quer como colonos quer, aps a independncia, como

    emigrantes, muitos portugueses enriqueceram no Brasil por processos pouco lcitos, e

    provvel que isso tenha acontecido no Brasil como, ao longo dos tempos, ocorreu em

    todos os quatro cantos do mundo, tivessem os infratores a nacionalidade que tivessem, a

    verdade que, como diz o adgio, a rvore no se pode confundir com a floresta. A

    genuna honestidade de Manuel de Pontes Cmara enquanto negociante que foi durante

    mais de cinco dcadas, como as benfeitorias em favor dos menos abastados a quem,

    atravs de instituies vrias e em especial da Misericrdia do Rio de Janeiro, destinou

    parte da sua enorme fortuna, apenas um exemplo plido da contribuio e do empenho

    que a comunidade portuguesa residente no Brasil legou ao pas.

    Mas, como dissemos, conhecer devidamente esse processo, o completo mecanismo do

    deve e do haver, um caminho ainda longo a ser percorrido. Era pois utilssimo, para a

    histria de ambos os pases, que algo fosse feito nesse sentido. E que as instituies se

    45 Arquivo de Lucia Sanson, Carta de Manuel de Pontes Cmara aos amigos e scios da Camara & Gomes, Rio de

    Janeiro, 1875, documento datilografado, s/paginao. 46 Arquivo de Lucia Sanson, Carta de Manuel de Pontes Cmara aos amigos e scios da Camara & Gomes, /paginao.

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    unissem no apoio a essa investigao, para que, como ocorreu j com grande parte do

    recheio do vapor Douro em cujo naufrgio Pontes Cmara pereceu h 133 anos, pudesse

    ser feita luz mais clara sobre muitas sombras que anatematizam, desde h muito perto de

    duas centrias a esta parte, a vida destes emigrantes no alm Atlntico.