MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na...

12
1 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História ISSN 2178-1281 MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) Bárbara Rebeka Gomes de Lira 1 RESUMO: Esta comunicação se propõe a analisar as práticas da prostituição na cidade de Manaus em seu pleno período de ascensão econômica, social, cultural e política. Neste período, a cidade de Manaus vivia uma grande transformação urbana e social. Usos e costumes eram questionados através da imprensa pelos agentes da modernidade. Na imprensa, combatia-se o que se considerava indesejável para os novos tempos. E, entre esses combates, a imprensa questionava as prostitutas e suas práticas de afetividade e de sociabilidade. Vistas e pensadas como degeneradas, mulheres de péssimos hábitos, espalhafatosas, mal educadas, perigosas, imorais são imagens reincidentes encontradas nas páginas dos periódicos manauaras. Combatidas pelos agentes modernizantes, estas mulheres viam-se diante de espelhos construídos pelos discursos morais, religioso, médico, éticos e jurídicos. PALAVRAS-CHAVE: Prostituição; Manaus; discursos; exclusão; imprensa. Introdução O recorte temporal de nosso trabalho corresponde a parte de um período de grandes transformações urbanas na cidade de Manaus no final do século XIX e inicio do século XX. Impulsionada pela extração do látex a cidade tinha seus contornos questionados. No olhar da elite determinadas práticas de sociabilidade e afetividade eram objetos de questionamento através da imprensa. Prostitutas, meretrizes, marafonas, esbrogues, mulheres de má vida, são vários os nomes dados à essas mulheres para legitimar que suas práticas não correspondiam ao ideal de mulher preconizado pelo discurso médico, jurídico, moral e religioso da época. Neste sentido, trabalharemos as imagens reincidentes encontradas nas fontes, permitindo-nos analisar e refletir a respeito das diversas realidades vivenciadas por estas mulheres, bem como suas práticas e representações e os discursos produzidos. Segundo João Batista Mazzieiro 2 a prostituição se constitui em uma prática anterior ao 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Amazonas; Bolsista CAPES. Email: [email protected].

Transcript of MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na...

Page 1: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

1

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920)

Bárbara Rebeka Gomes de Lira1

RESUMO:

Esta comunicação se propõe a analisar as práticas da prostituição na cidade de Manaus em seu

pleno período de ascensão econômica, social, cultural e política. Neste período, a cidade de

Manaus vivia uma grande transformação urbana e social. Usos e costumes eram questionados

através da imprensa pelos agentes da modernidade. Na imprensa, combatia-se o que se

considerava indesejável para os novos tempos. E, entre esses combates, a imprensa

questionava as prostitutas e suas práticas de afetividade e de sociabilidade. Vistas e pensadas

como degeneradas, mulheres de péssimos hábitos, espalhafatosas, mal educadas, perigosas,

imorais são imagens reincidentes encontradas nas páginas dos periódicos manauaras.

Combatidas pelos agentes modernizantes, estas mulheres viam-se diante de espelhos

construídos pelos discursos morais, religioso, médico, éticos e jurídicos.

PALAVRAS-CHAVE: Prostituição; Manaus; discursos; exclusão; imprensa.

Introdução

O recorte temporal de nosso trabalho corresponde a parte de um período de grandes

transformações urbanas na cidade de Manaus no final do século XIX e inicio do século XX.

Impulsionada pela extração do látex a cidade tinha seus contornos questionados. No olhar da

elite determinadas práticas de sociabilidade e afetividade eram objetos de questionamento

através da imprensa.

Prostitutas, meretrizes, marafonas, esbrogues, mulheres de má vida, são vários os

nomes dados à essas mulheres para legitimar que suas práticas não correspondiam ao ideal de

mulher preconizado pelo discurso médico, jurídico, moral e religioso da época. Neste sentido,

trabalharemos as imagens reincidentes encontradas nas fontes, permitindo-nos analisar e

refletir a respeito das diversas realidades vivenciadas por estas mulheres, bem como suas

práticas e representações e os discursos produzidos.

Segundo João Batista Mazzieiro2 a prostituição se constitui em uma prática anterior ao

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Amazonas; Bolsista

CAPES. Email: [email protected].

Page 2: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

2

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

capitalismo, porém essa prática assume características inseridas nesse próprio contexto

social. Para Michel Foucault3, o nascimento da moral burguesa resultou em um

enquadramento da sexualidade, sendo que a mesma era transferida unicamente para dentro de

casa. Figura-se nesse momento a transmutação dos espaços, ou seja, o espaço para a

sexualidade corresponde ao espaço privado.

A sexualidade feminina sempre foi alvo de olhares repressivos e controladores, no

âmbito do discurso religioso, a mulher primeiramente teria um único objetivo de vida que

seria o de ser mãe. Submissa, fraca, doce, eram classificações utilizadas para descrever a

mulher, de acordo com Emanuel Araújo4, a inferioridade feminina centra-se a partir do erro

cometido por eva, a primeira mulher que conduz Adão ao pecado, inferioridade essa que se

instala como uma espécie de castigo eterno.

Segundo Foucault na obra já citada, a partir do século XVII ocorreu a denominada

“explosão discursiva” em torno do sexo. Onde se controlam as palavras, e ainda defini-se o

lugar e hora para falar de sexualidade. No século XVIII essa explosão discursiva é acelerada,

resultando na proliferação dos discursos em torno do sexo no âmbito do próprio poder.

Outra forma de controle nascida no âmbito do discurso religioso, é o controle das

ações, através das confissões. Através da culpa a confissão representa uma ferramenta de

controle da Igreja, onde tudo deve ser dito, pensamentos, ações, desejos e movimentos.

Considerando as mudanças sociais que passara a população na cidade de Manaus, a

urbanização funcionou como mecanismo de organização espacial e estratégia política. A

grande influência na vida do cidadão, bem como lazer, cotidiano, trabalho, nas relações

sociais e na sociabilidade individual.

No início do século XX, aproximadamente 50 mil habitantes, ou seja, grande parte da

população manauara, era desempregada ou de baixa remuneração. O espaço urbano torna-se

sinônimo de desigualdade e abre espaço para as tensões sociais. A partir disso, o discurso

jurídico se apresenta na forma, dos códigos de posturas, seguidos de formas restritivas, esses

códigos eram direcionados para a população esquecida, prostitutas, mendigos, ambulantes etc.

2 MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade criminalizada: Prostituição, Lenocínio e outros delitos – São

Paulo 1870/1920. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, 1998.

3 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

4 ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.)

História das Mulheres no Brasil. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2008.

Page 3: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

3

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

Pois numa cidade dita organizada e higienizada não poderia atender a todos5.

Denominadas de “câncer social” para as grandes autoridades e para as famílias, as

prostitutas eram representadas como uma espécie de vilã para o poder público, onde todas as

malésias à elas eram atribuídas. Os profissionais da saúde por sua vez, construíam discursos

voltados para formas de manter relações sexuais ou com quem não se deve ter relações.

Uma das formas de controle pertinente ao discurso médico, eram exigir das prostitutas

exames regulares, controles sanitários e inspeções regulares de agentes de saúde aos

domicílios. Este último se dá por vários fatores sendo um deles, que a prostituição causava

forte apreensão por parte das esposas, que de certa forma tinham ciência que seus maridos

poderiam ser clientes e frequentadores dos clássicos bordéis depois do trabalho.

Segundo Margareth Rago6, as prostitutas eram consideradas mulheres anormais,

originadas de classes empobrecidas, sendo que a explicação para tal atividade precede de uma

debilidade psíquica. Essa anormalidade é definida a partir da pressão colocada sob a mulher,

de todas as regras de comportamento que lhe eram impostas, e quem as contrariasse eram

considerados seres anormais. Esta representação construída sob a imagem feminina é refletida

no seio da sociedade, onde podemos observar claramente nas fontes que utilizaremos.

Relatórios de saúde, revistas, códigos de posturas, fontes documentais e sobretudo os

jornais serão nossas fontes que nos ajudarão a realizar a hermenêutica de nosso trabalho e a

identificar as representações dessas mulheres através do olhar do outro, isto é, “compreender

como o outro compreende” como sugere Paul Ricoeur7.

As prostitutas, a cidade e o poder

Com as mudanças econômicas e arquitetônicas decorrentes do surto da borracha,

Manaus era representada como uma cidade de grandes oportunidades de mudança de vida,

ocorrendo assim um aumento demográfico surpreendente. Entre os anos de 1880 e 1890 a

5 DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto. Manaus – 1890 – 1920. 2ª edição. Manaus: Editora

Valer, 2007.

6 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

7 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Page 4: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

4

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

cidade possuía aproximadamente 38.720 habitantes8. Quanto mais o mercado da borracha

crescia, aumentava-se o número de habitantes.

Esse aumento populacional era fomentado pela vontade de enriquecer através do

mercado gumífero, este fato causava grandes tensões por parte do poder público, devido o

grande número de ocorrências de vadiagem, prostituição e roubos no espaço urbano, e esses

fatores não ajustavam-se no ideal de cidade que era planejada.

Segundo Ivonete Pereira9, o poder público preocupava-se com a organização da

cidade, pois a mesma representava um lugar comercial e deveria parecer limpa e desenvolvida

para os grandes comerciantes, e com isso criava mecanismos de controle através da polícia e

dos demais elementos do poder, atingindo assim não só as prostitutas, mas todas a população

subalterna.

Segundo Mary Del Priore10

no início do século XIX observamos dois tipos de prostitutas:

as “cocotes” e as “polacas”. Aquelas representavam o luxo e estas a miséria, que se refere ao tipo de

prostituição mais popular. Por sua vez, a prostituta que se denominava “francesa” vem do fato de ser

freqüentadora de lugares luxuosos. Estas prostitutas refinadas eram encontradas em pouca quantidade.

Em nosso recorte frisado, a prática da prostituição era abundantemente presente,

nossa fontes mostram as representações que vamos analisar.

Em uma edição do Jornal do Commercio11

de 1904, jornal este caracterizado de

grande circulação, numa nota denominada “Echos do dia”, apresenta-se a indignação da

população quanto a prostituição pública. A nota de protesto expõe a repulsa quanto à essa

prática, nota-se que as prostitutas estavam em grande parte da cidade. Nos grandes bairros,

nas praças e casas.

A nota também faz referência às casas de tolerância que aparecem em grande número.

Fato que impossibilita famílias de alugarem boas casas, impede das boas moças olharem pela

janela, pois lá se encontram as prostitutas, fazendo confusões, gestos obscenos, usando

linguagens inapropriadas entre outras coisas.

8 DAOU, Ana Maria. A Belle Époque amazônica. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

9 PEREIRA, Ivonete. “As decaídas”. Prostituição em Florianópolis. (1900-1940). Florianópolis: UFSC,2004.

1 0 PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.

1 1 Jornal do Commercio. Data: 11 de março de 1904. Disponível do Instituto Geográfico e Histórico do

Amazonas – IGHA.

Page 5: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

5

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

Por fim, é feita a retratação as prostitutas como “A essas infelizes que fazem da

prostituição um modo de vida, nem é penosa a sua situação; - vivem vida folgada, dão-se

rendez-vous às portas das casas, dahi chamam transeuntes, com estes gracejam

licenciosamente, dão reuniões e bailes immoraes, à vista do publico, e pouco se estãe

importando com a moralidade e com as famílias”.

Invocam-se a moral pública e as autoridades necessárias, uma vez que muitas vezes

protestos, pedidos e repúdios foram feitos, e segundo o próprio jornal citado acima expõe:

“Quando a tempos reclamàmos, a policia não foi todo inerte. Chamou essas infelizes à

ordem, mas duma forma branda, anodina, inefficaz”.

Uma das diretrizes para hotéis, hospedarias, estalagens ou afins, era a obrigação de

envios regulares uma espécie de relatório, que deveria conter todas as informações pertinentes

ao livro de inscrições de hóspedes, inclusive aqueles que teriam se hospedados por apenas

uma noite. A grande ressalva é que os hotéis que que recebessem prostitutas como hóspedes

seriam fechados pela Superintendência Municipal12

.

Enquanto a população protestava através da imprensa que pedia uma “limpeza moral”,

o poder público preocupava-se em pensar algo para melhorar a vida da população elitizada,

não seria possível exterminar as prostitutas da cidade, porém, seria possível controlá-las

através da subordinação de exames periódicos, a códigos de posturas e multas.

Podemos observar essa realidade no livro de Serviço de Saneamento e Prophilaxia

Rural no Estado do Amazonas referente ao ano de 1925, que é um livro de controle sanitário

voltado para o meretrício. Que possui informações como, número de matrícula, data, nome,

cor, idade, estado civil, nacionalidade, naturalidade, filiação, profissão do pai, se sabe ler, a

idade com que foi deflorada, por que foi deflorada e a profissão do deflorador. E mais as

informações medicinais, como Reação de Wassermann (diagnóstico de sífilis), anamnese,

observações feitas no primeiro exame e outros exames ginecológicos e microscópicos.

O corpo feminino inserido no discurso médico abordado nas obras de Rago e Magali

Engel13

é tratado como algo naturalmente inferior, sendo alvo de controle e disciplinarização,

sobre o qual as representações analisadas eram de cunho patriarcal. Para que a mulher fosse

1 2

DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto. Manaus – 1890 – 1920. 2ª edição. Manaus: Editora

Valer, 2007.

1 3 ENGEL, Magali. Meretrizes e Doutores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São

Paulo: Editora Brasiliense,1989.

Page 6: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

6

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

aceita, mesmo com suas debilidades naturais impostas por esse pensamento, seu único

objetivo de vida deveria ser a maternidade.

A cerca do discurso médico, os jornais também apresentam notas pertinentes a tal

discurso, como meio de protesto, na forma que todas as doenças que se espalhavam eram

atribuídas às prostitutas.

No periódico de nome “O chicote14

”, jornal alternativo de caráter cômico, referente ao

ano de 1913 , apresenta uma nota de nome “O Syphilis em Manáos”, a nota demonstra a

existência das inúmeras tentativas de combater a doença. “O syphilis como todos sabem, é

uma molestia demasiadamente contagiosa, e por isso seria de grande utilidade que os

poderes competentes lançando suas vistas sobre este mal, fizessem desapparecer d'aqui

quanto antes, em primeiro logar, esta infimidade de meretrizes que são as verdadeiras

importadoras deste grande mal, que tanto acabrunha a mocidade do Amazonas”.

As vertentes de controle apresentadas acima, em casos de luta contra as doenças

venéreas incorporaram-se numa forma de conhecer as práticas e o cotidiano das prostitutas.

Os outros meios de poder através do controle se davam por meio da polícia e outras

autoridades da cidades. O livro de Chefatura de Polícia (1910) do Estado do Amazonas

coletado contém ocorrências policiais e oficios do mesmo gênero, dos quais apresentam uma

regularidade de ocorrências registradas envolvendo prostitutas, as representações são diversas,

elas aparecem em casos de insultos, roubos, multas por ofensas à moral e agressões.

Em outro livro de registros de ocorrências policiais encontramos um registro de

agressão à uma prostituta, o documento é referente a 23 de maio de 191315

que contém a

seguinte ocorrência. “O agente Abel Moraes, da Delegacia do 2o. Districto, scientificou a

esta que, hontem às 5 e ½ horas da tarde, encontrara um individuo de nome Antonio

espancando uma meretriz, o qual, ao ser preso, evadiu-se em um automóvel”.

Na mesma linha de documentos de ocorrências policiais encontramos denúncias que

nos reflete um pouco do cotidiano dessas mulheres. “Alberto de Almeida queixou-se de que

algumas mulheres de vida facil, andam em trajes menores pela rua, sem guardarem o menor

1 4

O Chicote. Orgam critico e noticioso. Data do jornal: 13 de julho de 1913. Disponível do Instituto

Geográfico e Histórico do Amazonas – IGHA.

1 5 Chefatura de Polícia do Estado do Amazonas – 1913. Disponível do Arquivo Público do Estado do

Amazonas.

Page 7: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

7

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

decoro a ninguem. Chamadas á Polícia forma rigorosamente admoestadas16

.”

Margareth Rago cita Foucault para complementar a idéia de que as tentativas de

controle da prostituição de propagava muito rápido entre chefes de polícia e os outros

instrumentos do poder. Fato que de certa forma transpõe o contexto das políticas públicas,

pois a prática da prostituição estava explicitamente ligada ao risco de vida, doenças e afins, a

partir de então se construía uma nova designação sobre o sexo.

Outra contribuição apresentada por Rago é a concepção do dr. Alberto Seabra, que

segundo ele, as mulheres mais humildes que utilização da prática da prostituição como uma

forte de renda extra, eram perseguidas pelas autoridades, em suas formas de controles

sanitários, exclusão social entre outros. Enquanto isso, a prostituição luxuosa era procurada

pelos homens do poder.

A influência do processo de urbanização da cidade de Manaus no estilo de vida da

sociedade era algo cada vez mais claro, tendo em vista que as mudanças econômicas afetavam

os outros âmbitos correspondentes a esse estilo de vida. No momento que o poder público

apresentava estratégias de tirar das vistas elitizadas as práticas do submundo, as mudanças

sociais eram apresentadas.

Nesse contexto, a prostituta era a figura que perpassava o imaginário social de forma

fantasmagórica, por seus comportamentos que cada vez mais ocupavam lugares em jornais e

discursos. Na edição de 13 de março de 1901 do Jornal do Commercio17

, foi publicada uma

nota denominada, “NA RUA 24 DE MAIO. Scenas pouco edificantes. Polygono da

prostituição”, que demonstra a insatisfação com os comportamentos escandalosos das

prostitutas e também a localidade que era tida como um local de grande rotatividade de

prostituição.

“Hontem, às 4 horase trinta e cindo minutos da tarde, duas mulheres de má vida à rua

24 de Maio no. 17, Cecilia M. Da Rocha e Antonica de Tal, engalfinharam-se por motivos de

ciume. Do duello sahiu ferida a primeira, na região frontal, pois foi de encontro a parede da

casa. Foram dar parte do ocorrido à chefatura os srs. Aristides Ferreira da Rocha, Luiz

Marques Netto e Alfredo da Silva. A auctoridade de permancencia tomou conhecimento do

1 6

Chefatura de Polícia do Estado do Amazonas – 09 de agosto de 1913. Disponível do Arquivo Público

do Estado do Amazonas.

1 7 Jornal do Commercio. Data: 13 de março de 1904. Disponível no Instituto Geográfico e Histórico do

Amazonas.

Page 8: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

8

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

ocorrido. Essa rua 24 de Maio faz parte do polygono fatal das indecencias provocadas por

meretrizes e sobre o qual temos chamado a attenção das auctoridades policiaes”.

Nossas fontes, mostram a realidade de revolta da população manauara com essas

mulheres, nos jornais são apresentadas notas de repúdio, reclamações, pedidos às autoridades,

informativos e até piadas com suas práticas.

Em outros casos, como a edição com a nota de nome “Echos do dia” do Jornal do

Commercio18

, que demonstra a satisfação por um lado quanto as providências tomadas pelas

autoridades, em relação aos escândalos promovidos pelas prostitutas, mas por outro lado,

pede-se por medidas mais drásticas quanto outros tipos de comportamentos.

“Parece que as nossas palavras encontraram écho no esclarecido espirito de s. Exc.,

pois que nos apraz verificar que as mulheres toleradas entraram já n'uma outra compostura,

certamente menos escandalosa, exercendo o seu triste mister dentro das suas casas, e não

afrontando a população. Parece que se pôz um freio á sua licenciosidade, tornando-as mais

respeitosas e accommodadas.”

Primeiramente, observamos a representação da população em partes satisfeita, pelo

número reduzido de escândalos e brigas nas ruas, o comportamento público se certa forma foi

contido, mas por outro lado, as mesma fonte nos revela que a insatisfação ganha cunho

privado, isto é, mesmo dentro de suas casas ou das casas de tolerância suas práticas geram

manifestações através da imprensa.

A mesma nota mostra que esse pequeno fator de melhora não representa tudo o que a

população deseja, sugere-se que as prostitutas façam uso de uma liberdade controlada, que

elas pudessem realizar suas práticas nos âmbitos dos quais elas já ocupavam, ou seja, os

bairros e ruas onde a prostituição era predominante.

“Que ás infelizes toleradas se permitta um certo numero de liberdades , fechando-se

os olhos aos rigores da moralidade, nas ruas e bairros quasi que só por ellas habitados,

comprehende-se. Mas, no coração da cidade, nas linhas de bond, nos meios das familias, não

se pode admittir.”

Podemos compreender a partir disso que construía-se uma idealização de cidade, e

devido as práticas do submundo essa idealização não seria permitida, mas contudo, podia-se

afastar cada vez mais essas práticas do cotidiano manauara. A partir de então temos

1 8

Jornal do Commercio. Data: 16 de março de 1904. Disponível no Instituto Geográfico e Histórico do

Amazonas.

Page 9: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

9

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

claramente a construção da idéia de remoção de práticas, ou seja, como não se pode extinguir

por total a prática da prostituição, cria-se mecanismos de transferi-las para lugares menos

assistidos.

Mesmo com a concepção da mulher meretriz ser anormal, pois o ideal de mulher era

definido através da maternidade. Muitas prostitutas eram mães, e em alguns casos algumas

aparecem em denúncias e ofícios da vara de família do Estado do Amazonas19

.

As denúncias são referentes a maus tratos, castigos severos, ou em alguns casos

apenas fazendo referências as prostitutas. Providências são solicitadas quanto a guarda das

crianças, pois a mãe além de ser prostituta, ainda possui o vício da embriaguez. Em outro

documento, pede-se providências pela guarda de duas crianças que viviam com sua mãe

Antonia D'Oliveira, a qual era prostituta. “Que as trata com maior rigor a ponto de expol-os a

castigos barbaros como foram...”.

Dessa forma, a figura da prostituta ganhava mais força quanto seu aspecto

fantasmagórico, das várias representações que eram formadas no imaginário social, toma-se

como representação coletiva, a figura da mulher pública, sinônimo de doenças, de brigas, de

escândalos, de notícias em jornais, denúncias e afins.

Podemos concluir que a prática da prostituição de acordo com nossa historiografia , se

apresenta no aspecto mais cultural ao longo do tempo. As prostitutas faziam parte do meio

social tanto na Idade Média quanto na contemporânea, seguindo os mesmos rastros. As

mulheres que entravam na prostituição seguiam a necessidade econômica, a ânsia de serem

inclusas na vida do auto-sustento.

Em questões dos âmbitos social e político, a prostituição era vista como uma prática

subalterna, porém nos encontramos com a questão dicotômica da temática, pois a prática da

prostituição deveria se manter escondida, porém considerada um mal necessário. Fabiane dos

Santos20

complementa a concepção da forma que a prostituição se encontrava como um meio

de subsistência entre as mulheres.

Mesmo com os fatores apresentados, as representações coletivas dessa prática eram

1 9

Documentos da 2a vara de família do Estado do Amazonas. Referentes aos anos de 1903, 1904 e

1905. Disponíveis no Arquivo Público do Estado do Amazonas.

2 0 SANTOS, Fabiane Vinente dos. Mulher que se admira, mulher que se deseja e mulher que se

ama: sexualidade e gênero nos jornais de Manaus. (1890-1915). Manaus: UFAM, 2005. Dissertação de

mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia.

Page 10: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

10

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

menosprezadas, não se tinha a visão de subsistência, muito menos de forma de trabalho.

Como podemos observar em mais uma nota do Jornal do Commercio21

, denominada de

“Echos do dia: A bem da Moral”, a nota representa mais uma manifestação quanto a

população subalterna, que são denominados de “gente de má vida e sem profissão”,

referenciando as prostitutas e seus gerenciadores, cuja a prática é também denominada de

“caftismo”. Como retrata a nota: “A cidade está invadida por individuos de fóra e dentro do

paiz, que teem por único meio de vida a exploração das mulheres infelizes que inundam

Manáos”.

“Epaminondas, Saldanha Marinho, Matriz, Itamaracá, 10 de Julho, 24 de Maio, para

de outras não falar, sendo ruas centraes, são ninhos de prostituição barata, com todos os

inconvenientes do lupanar franqueado aos viandantes”.

Sejam em quais forem os lugares, no espaço público ou privado, a prática da

prostituição esteve presente, e sem dúvida como podemos observar no trabalho apresentado

somatizado com as fontes estudadas, a produção das várias representações a cerca da prática

da prostituição.

Seu cotidiano apresentado através do olhar do outro, produz as representações que

analisamos ao longo do trabalho, assim como os discursos produzidos. Peter Burke22

destaca

que a população elitizada não se diferencia muito da camada popular no que diz respeito à

cultura. Este autor fez um histórico referente à história cultural bem como aos níveis culturais,

os quais são entendidos de diferentes formas ao longo do tempo.

Burke nos conceitua a representação como uma construção de uma realidade social.

Neste caso, a imagem refletida das prostitutas nos jornais é uma representação daquele âmbito

social, que perpassa primeiramente sob o imaginário de quem produz a fonte.

Portanto, podemos concluir que os fatores de mudanças do estilo de vida manauara,

foram elementos preponderantes nas produções dos discursos a cerca da prática da

prostituição, a ânsia de se construir uma cidade modelo, o ideal de uma cidade

economicamente moderna aos moldes de Paris, resultou em um grande fenômeno de exclusão

das camadas menos favorecidas, em alguns casos a Belle Époque ainda é retratada como um

2 1

Jornal do Commercio. Data: 29 de janeiro de 1904. Disponível no Instituto Geográfico e

Histórico do Amazonas.

2 2 BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

Page 11: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

11

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

período épico das mudanças na cidade, em termos de beleza e economia .

Porém as fontes e a historiografia nos revela uma Manaus de exclusão, de controle e

idealizações para as camadas elitizadas. Onde as práticas de sociabilidade e afetividades das

prostitutas eram cada vez mais colocadas nos âmbitos da escuridão, inseridas no que

denominamos dos espelhos edificados através do poder.

Referências

ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary

Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2008.

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

Chefatura de Polícia do Estado do Amazonas – 1913. Disponível do Arquivo Público do

Estado do Amazonas.

DAOU, Ana Maria. A Belle Époque amazônica. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto. Manaus – 1890 – 1920. 2ª edição. Manaus:

Editora Valer, 2007.

Documentos da 2a vara de família do Estado do Amazonas. Referentes aos anos de 1903,

1904 e 1905. Disponíveis no Arquivo Público do Estado do Amazonas.

ENGEL, Magali. Meretrizes e Doutores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro

(1840-1890). São Paulo: Editora Brasiliense,1989.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,

1982.

Jornal do Commercio.1904. Disponível do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas –

IGHA.

MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade criminalizada: Prostituição, Lenocínio e outros

delitos – São Paulo 1870/1920. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, 1998.

O Chicote. Orgam critico e noticioso. 1913. Disponível do Instituto Geográfico e Histórico do

Amazonas – IGHA.

PEREIRA, Ivonete. “As decaídas”. Prostituição em Florianópolis. (1900-1940).

Florianópolis: UFSC,2004.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Page 12: MARAFONAS E A CIDADE: MANAUS (1900-1920) (69).pdf · A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das Mulheres no Brasil. 9ª edição.

12

Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.

RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

SANTOS, Fabiane Vinente dos. Mulher que se admira, mulher que se deseja e mulher que se

ama: sexualidade e gênero nos jornais de Manaus. (1890-1915). Manaus: UFAM, 2005.

Dissertação de mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia.