Mary Del Priore a Importância Dos Arquivos Para o Historiador

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9 Fazer história, interrogar documentos e fundar a memória: a importância dos arquivos no cotidiano do historiador Mary Del Priore* REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002 A cena é clássica: ao final da graduação em História, o professor sugere um trabalho de final de curso. O rosto de alguns alunos se ilumina. O de outros, fecha-se numa interrogação. Como lidar com documentos primários, como freqüentar arquivos e selecionar fontes, enfim, como fazer história? – perguntam-se alguns deles. Para responder a estas questões gostaria de co- meçar por uma pergunta aparentemente simples, mas que segue nos inter- pelando. O que é história? Resposta simples: história é o que faz o historia- dor. Como já disse Antoine Prost 1 , a disciplina chamada História não é uma essência etérea, uma idéia platônica. É uma realidade histórica situada no tempo e no espaço, feita por homens que se dizem historiadores e reconhe- cidos como tais, recebida e apropriada como história por um público variado. Não existe uma história sub spécie aeternitatis, cujas características atraves- sariam imutáveis as vicissitudes do tempo, mas produções diversas que os contemporâneos de uma determinada época se acordam em considerar his- tória. Isto quer dizer que antes de ser uma disciplina científica, como preten- de ser e até certo ponto é, a História é uma prática social. Essa asserção pode tranqüilizar o historiador que, como nós, toma a decisão de refletir sobre sua disciplina; ela o remete àquilo a que está acostu- mado a fazer: o estudo de um grupo profissional, de suas práticas, de sua evolução. Há vários grupos de historiadores que invocam tradições, constitu- em escolas, reconhecem regras constitutivas de seu ofício comum, respei- tam uma deontologia, praticam ritos de incorporação e exclusão. Homens e mulheres que se dizem historiadores e que possuem a consciência de per- tencer a uma comunidade, fazem história para um público que os lê ou os escuta, os discute e os acha importantes, por vezes interessantes. Historiado- res são também movidos pela curiosidade intelectual, o amor da verdade, o * Coordenadora Geral de Pesquisa e Difusão da Informação do Arquivo Nacional. 1 Prost, Antoine. Douze lessons d’histoire. Paris: Seuil, 1996. Empresto deste autor várias das questões que serão aqui tratadas.

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Fazer história, interrogar documentose fundar a memória: a importância dos

arquivos no cotidiano do historiador

Mary Del Priore*

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

A cena é clássica: ao final da graduação em História, o professor sugereum trabalho de final de curso. O rosto de alguns alunos se ilumina. O deoutros, fecha-se numa interrogação. Como lidar com documentos primários,como freqüentar arquivos e selecionar fontes, enfim, como fazer história? –perguntam-se alguns deles. Para responder a estas questões gostaria de co-meçar por uma pergunta aparentemente simples, mas que segue nos inter-pelando. O que é história? Resposta simples: história é o que faz o historia-dor. Como já disse Antoine Prost1, a disciplina chamada História não é umaessência etérea, uma idéia platônica. É uma realidade histórica situada notempo e no espaço, feita por homens que se dizem historiadores e reconhe-cidos como tais, recebida e apropriada como história por um público variado.Não existe uma história sub spécie aeternitatis, cujas características atraves-sariam imutáveis as vicissitudes do tempo, mas produções diversas que oscontemporâneos de uma determinada época se acordam em considerar his-tória. Isto quer dizer que antes de ser uma disciplina científica, como preten-de ser e até certo ponto é, a História é uma prática social.

Essa asserção pode tranqüilizar o historiador que, como nós, toma adecisão de refletir sobre sua disciplina; ela o remete àquilo a que está acostu-mado a fazer: o estudo de um grupo profissional, de suas práticas, de suaevolução. Há vários grupos de historiadores que invocam tradições, constitu-em escolas, reconhecem regras constitutivas de seu ofício comum, respei-tam uma deontologia, praticam ritos de incorporação e exclusão. Homens emulheres que se dizem historiadores e que possuem a consciência de per-tencer a uma comunidade, fazem história para um público que os lê ou osescuta, os discute e os acha importantes, por vezes interessantes. Historiado-res são também movidos pela curiosidade intelectual, o amor da verdade, o

* Coordenadora Geral de Pesquisa e Difusão da Informação do Arquivo Nacional.

1 Prost, Antoine. Douze lessons d’histoire. Paris: Seuil, 1996. Empresto deste autor várias das questõesque serão aqui tratadas.

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culto da ciência, mas o seu reconhecimento social, assim como o seu salário,depende da sociedade que lhe acorda um status e uma remuneração. Umduplo reconhecimento, o dos pares e o do público, consagra o historiadorcomo tal. Eis porque o discurso historiográfico dos historiadores emana deuma história indissociavelmente social e cultural.

Tudo o que os historiadores de uma época ou de uma escola dizem de suadisciplina exige uma dupla leitura: num primeiro nível a leitura remete ao con-ceito de história definido pelo autor; num segundo nível, atenta para tal defini-ção, ela remete a um contexto intelectual e político onde o método utilizadopelo autor se explicita. Um exemplo: Novo Mundo nos trópicos, de GilbertoFreyre2. Num primeiro nível refere-se a uma interpretação do Brasil, destacandoa questão do mulatismo e da tropicalidade. Num segundo, é um debate emvários níveis contra a centralização do poder exigida pela ditadura Vargas, umacrítica ao modernismo cosmopolita proposto pelos paulistas, uma reação contraa invasão cultural americana. As duas leituras mostram que não apenas o histori-ador é debitário daqueles que o precederam e de seus contemporâneos, masque ele se bate em relação a outros grupos científicos pela dominação do cam-po social e científico3. Sendo assim, fica claro que a história é uma prática socialantes de ser uma prática científica, ou melhor, porque sua ambição científica étambém uma forma de tomar posição na sociedade, a epistemologia da história4

é ela também parte desse processo que descrevemos.Parte integrante desta prática é a pesquisa histórica. Esta – como ensina

José Honório Rodrigues5 – é a descoberta cuidadosa, exaustiva e diligente denovos fatos históricos, a busca crítica da documentação que prove a existên-cia dos mesmos, sua incorporação ao escrito ou narrativa histórica ou a revi-são e interpretação nova da História.

A expressão é de origem espanhola, significando uma atividade de atua-ção probatória no sistema processual medieval com o fim de obter provasnum caso controvertido. O trabalho de indagação – inquisitio, pesquisia – sepraticava por fieles exquisitores ou pesquisadores nomeados pelo própriotribunal. A evolução posterior do processo de administração da justiça por

2 Freyre, Gilberto. Novo Mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.

3 No caso, Gilberto empresta de Unamuno uma série de teses para discutir as fronteiras brasileiras e aimportância da regionalização, e de Franz Boas, alemão imigrado nos EUA, a idéia de que não se estudaraça, como queria a antropologia física do século XIX, mas cultura, e, dentro da cultura aquilo que lhedá lógica própria e autonomia.

4 O conjunto de conhecimentos que tem por objetivo o conhecimento científico.

5 Rodrigues, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional / MEC,1978 (a primeira edição é de 1952), p. 21.

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introdução do direito romano na Península Ibérica6 fez desaparecer a pesqui-sa no processo civil, conservando-a apenas no processo criminal. O triunfodo processo inquisitorial na Baixa Idade Média e a centralização política ad-ministrativa fez com que a pesquisa se tornasse um processo de atuação dosórgãos judiciais supremos em assuntos de interesse público. Desde então, ossoberanos, especialmente os de Castela, ordenavam pesquisas nas povoa-ções feitas pelos alcaides perqüisidores, e se impunha aos juízes ordináriosfazer pesquisa de todos os delitos cometidos nas suas jurisdições.

Na Espanha e nos países hispano-americanos, o vocábulo não foi em-pregado na indagação histórica, preferindo-se a palavra investigação, forma-da de forma erudita da palavra investigar, isto é, seguir vestígios. No Brasil,nos começos do chamado Instituto Histórico e Geográfico não se empregounem “investigar” nem “pesquisar”. Seus primeiros documentos utilizam, em1839, as palavras “metodizar e coligir” para referir-se à necessidade de man-dar vir de Portugal os manuscritos afeitos à nossa história. Rodrigues diz tam-bém que muito provavelmente por influência inglesa a palavra researchpassou a ser traduzida e incorporada ao cotidiano do historiador. Diferente-mente da época em que o grande historiador publica seu A pesquisa histó-rica no Brasil 7 (1952), em que pouco se fazia pesquisa histórica, ela é, hoje,amplamente adotada. Inúmeros cidadãos freqüentam as instituições eruditasem busca de informações e o ensino universitário tornou-se um grande pro-pulsor da ação de pesquisadores8.

Dentro da pesquisa histórica vamos nos deparar com o que durante muitotempo se constituiu em sua âncora: o fato e a crítica histórica. Se existe umaconvicção bem enraizada na opinião pública é a de que onde há história, há fatos;e que é preciso conhecê-los. Essa convicção está na base, inclusive, das críticas econtestação a vários programas de história, exprimindo-se na exclamação habitual:“mas os alunos não sabem nada!”. Em história há coisas a saber, e tais coisas sãofatos e datas. Para o grande público a história não passa de um esqueleto constituí-do de datas e memorizar. Para ele, aprender de cor é aprender história.

Percebe-se aqui a diferença maior entre ensino e pesquisa, entre ahistória que se expõe didaticamente e aquela que se elabora. No ensino osfatos são fatos. Na pesquisa é preciso construí-los.

Tal como aprendemos em muitas salas de aula, a história procede em

6 Em Portugal, desde Afonso III (1248-1279).

7 Rodrigues, op. cit.

8 Ibidem, p. 23.

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dois tempos: primeiro conhecer os fatos. A seguir, explicá-los, amarrando-osnum discurso coerente. Essa dicotomia entre o estabelecimento dos fatos esua interpretação foi teorizada, no final do século passado, pela escola “me-tódica” e notadamente por Langlois e Seignobos9. Ela estrutura uma obra,hoje clássica como monumento de época, Introdução aos estudos históri-cos (1897), citada por todos os teóricos. Os autores franceses não conside-ram os fatos como fatos. Eles passam bastante tempo a explicar quais regrasdevem rigorosamente ser seguidas para construí-los. Mas, no seu espírito,assim como no da escola metódica que eles formalizaram, uma vez constru-ídos, os fatos são definitivos. Donde a divisão de trabalho em dois tempos eem dois grupos profissionais: os pesquisadores – ou seja, os professores uni-versitários – estabelecem fatos; os professores de escola os utilizam. Os fatossão como pedras com os quais se constroem os muros da história, ajudando,segundo Seignobos, a descartar mitos e anedotas10.

A importância então acordada ao trabalho de construção dos fatos seexplica por uma preocupação central: como dar ao discurso do historiadorum estatuto científico? Como assegurar que a história não é uma cadeia deopiniões subjetivas que cada um poderia ou não aceitar, mas expressão deuma verdade objetiva que se impõe a todos?

Colocada há mais de cem anos, a questão não pode ser consideradasupérflua, inútil ou caduca11. Basta lembrar o papel do historicismo negacio-nista na França e Alemanha para compreender como o tema ainda é impor-tante. Ora, dentro do discurso do historiador fatos são o elemento duro, são oque resiste à contestação. A preocupação com os fatos é também a da admi-nistração da prova, assim como está indissociável da referência. Daí o usoobrigatório de notas de rodapé, capazes de explicitar o saber contido, reuni-do sobre tal e qual fato mencionado pelo historiador. Não se pode pedir queo leitor acredite na palavra do historiador, daí as notas, graças às quais o autordá ao leitor a oportunidade de verificar o que ele está dizendo. Da escolametódica à Nova História, notas são uma regra comum da profissão. EmApologia da História, Marc Bloch faz um elogio às notas, apresentando-ascomo “força da razão” contra a subjetividade do historiador12.

9 Langlois, Charles Victor; Seignobos, Charles. Introduction aux études historiques. Paris: Hachette, 1897.

10 Excelente síntese sobre a escola metódica encontra-se em Bourdé, Guy; Martin, Hervé. Les écoleshistoriques. Paris: Seuil, 1983.

11 Empresto a Antoine Prost suas idéias, especialmente as do capitulo IV, “Les questions de l’historien”(Prost, op. cit., p. 79-99).

12 Bloch, Marc. Apologie pour l’histoire ou métier d’historien. Paris: Armand Collin, 1960.

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A idéia da busca pelo historiador de certa “verdade objetiva” extraída dosfatos repousa sobre uma vasta discussão que não vamos explorar totalmente;importante é reter que historiadores renegam informações sem provas, paraevitar simplismos, forjando uma base essencial para o seu trabalho: nenhumaafirmação sem provas, ou melhor, não há história sem fatos. O problema passaa ser outro: como estabelecer fatos? Que procedimento seguir? A respostareside no chamado método crítico que remonta ao De Re Diplomática, deMabillon (1681)13. A princípio julgava-se necessário construir fatos sobre do-cumentos escritos. Embora o campo do historiador tenha alargado o repertó-rio documental, a maior parte dos historiadores continua a trabalhar com essetipo de fonte, sem desqualificar as demais. Como diz bem Arlette Farge, oshistoriadores se reconhecem no “gosto pelo Arquivo”. E tal gosto, responsá-vel pela valorização do documento, incita Farge a ponderar que:

o gosto pelo arquivo passa por um gesto artesanal, lento e fecundo,

graças ao qual copiam-se textos, parte após parte, sem transformar

nem forma, nem ortografia, nem mesmo a pontuação. Sem pensar

muito. Mas, pensando nisso o tempo todo. Como se ao fazê-lo, a mão

permitisse ao espírito tornar-se cúmplice e simultaneamente estran-

geiro ao tempo e a estes homens e mulheres que se contam.14

A seguir, confronta-se o documento escolhido a tudo que se conhecesobre o período e o tema. Essa forma de crítica é histórica em si, pois elaafina e aprofunda o que já se sabe. Vejamos como. Através da crítica externaao documento o historiador deverá estar atento a suas características materi-ais: tipo de papel, de tinta, selo. A crítica interna remeterá à coerência dotexto, à compatibilidade entre data e fatos. Medievalistas, por exemplo,sofrem com documentos apócrifos. Daí a importância das disciplinas auxi-liares. A paleografia revela se a grafia de um documento corresponde aoperíodo. A diplomática, se as convenções às quais ele se prende são perti-nentes (como começavam, como estavam dispostos, como se designava osignatário). A epigrafia, as regras segundo as quais se dispunham os túmu-los na Antigüidade. Enfim, assim armada, a crítica permite distinguir um

13 Marc Bloch via no ano de 1681 “uma grande data na história do espírito humano”. O beneditino DomMabillon é o primeiro a elaborar uma erudição metódica, servindo-se de dicionários, numismática eepigrafia, para fazer uma história sem preconceitos contra a Igreja. Ver “L’histoire érudite de Mabillon aFustel de Coulanges”, em Bourdé e Martin, op.cit., p. 126-155.

14 Farge, Arlette. Le gôut de l’archive. Paris: Seuil, 1989, p. 25.

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documento verdadeiro de um falso15.Mais além, o historiador deve submeter o documento à crítica da since-

ridade e da exatidão. Através desta o historiador dará atenção às palavrasutilizadas, às repetições, às lacunas, e seguindo de perto a construção dasfrases ele encontrará ai uma representação, uma mentalidade, uma idéia.Independentemente de o texto ser um testemunho sincero, é preciso nãose enganar sobre seu sentido. Daí a importância de outra crítica, a da inter-pretação. Termos ou conceitos que parecem transparentes não o são. MarcBloch chegou a sugerir que se incluísse a lingüística como disciplina auxiliarde história. Um exemplo: a palavra “burguês” não designa a mesma coisanum texto medieval, num manifesto romântico ou no texto de Marx. “Polí-cia” é outro termo usado equivocadamente por um historiador brasileiro paradesignar outra coisa que não era no século XVIII: civilidade.

As regras da crítica, ao contrário do que parecem, nada têm de artificial.Achar que são prescindíveis é falso. As regras da crítica e da erudição, a obriga-ção de dar referências, não são normas arbitrárias. Elas, em primeiro lugar,distinguem o historiador do romancista; elas têm por função educar o olhar queo historiador tem sobre o documento.. É uma atitude não espontânea queajuda o historiador a formar-se no seu ofício. Essa atitude é tão mais importantequanto a história é o conhecimento através de restos, ou como diz J. Cl. Passe-ron, “um trabalho sobre objetos perdidos”. Ela decorre de análise sobre “vestí-gios solidários com contextos não diretamente observáveis”, como explicaBloch. Normalmente, tais vestígios são documentos escritos: arquivos, periódi-cos, livros; mas podemos pensar também em objetos materiais: moedas, umpedaço de cerâmica funerária, a bandeira de um sindicato, utensílios de traba-lho. Não importa. O historiador efetua um trabalho sobre as marcas e os restospara reconhecer os fatos. Este trabalho é constitutivo do fazer-história.

Compreende-se melhor o que é um fato histórico: ele é o resultado doraciocínio feito a partir de restos e indícios, segundo as regras da crítica.

Mas não só; neste raciocínio reside o X do problema: a questão. Se não háfatos, também não há história sem questão, ou melhor, problema. O problematem um lugar decisivo na construção da história. A história não se define peloseu objeto, nem pelos documentos que lhe permitem reencontrar o fato, maspela pergunta, o problema que é colocado aos documentos. Podemos e faze-mos a história de tudo: do amor à morte, da vida material, técnicas, arte, insti-tuições, emoções, paisagem etc. Mas é a questão que ajuda a recortar um

15 Nos próximos parágrafos resumo idéias de Prost, op.cit., especialmente o capítulo III, “Les faits et lacritique historique”, p. 55 passim.

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objeto original no universo sem limite dos fatos e dos documentos possíveis.Do ponto de vista epistemológico, ela preenche uma função fundamental, nosentido etimológico, pois ela funda e constitui o objeto histórico. Como dizemos historiadores franceses: uma história vale o que vale sua questão.

Tal questão não é ingênua: ninguém se pergunta sobre o sentimentoface à natureza do homem de Cro-Magnon, pois esta é uma questão ociosapor falta de traços. Objetivo, Robin Collingwood, em seu The idea of History,diz que cada vez que um historiador se coloca uma questão, ele já intui comorespondê-la16. Não há, então, documento sem questão. É a questão que,instaurada pelo historiador, erige os restos do passado em fontes históricas. Odocumento sozinho, isolado, não existe se não houver intervenção da curio-sidade do historiador. Collingwood resume por uma frase definitiva:“Everything in the world is potential evidence for any subject whatever”.Tudo pode servir na condição de que o historiador seja capaz de interpretar.O início de uma pesquisa não é a contemplação de fatos brutos, mas o fatode se colocar uma questão que deslancha o processo de coleta de informaçõescapazes de respondê-la na forma de um raciocínio autenticamente histórico;caso contrário isso não passa de uma curiosidade. Dizer que uma questão podeser colocada significa que ela tem um laço, uma ligação lógica com produçõesanteriores. Na condição, insisto, na condição de que o historiador saiba comoutilizar esta conexão, este laço. Lucien Febvre já dizia que a parte mais apai-xonante do trabalho do historiador é fazer falar as coisas mudas17.

Tais coisas mudas podem ser tudo: documentos escritos, mas, também, dizele, paisagens, telhas, formas dos campos e ervas daninhas; tudo o que, perten-cendo ao homem, vem do homem, serve ao homem, exprime a presençahumana na ausência de documento escrito. Historiador deve fabricar seu mel.

O primado da questão sobre o documento tem duas conseqüências:1) não se pode fazer jamais a leitura definitiva de um documento. Ohistoriador não esgota jamais um documento; ele pode interrogá-locom outras questões ou fazê-lo falar com outros métodos. Uma denún-cia do Santo Ofício da Inquisição, por exemplo, a despeito de sua exi-güidade, permite fazer um retrato sociológico dos diferentes grupossociais: suas crenças, atividades profissionais, mobilidade geográfica. Vê-se, aí, o papel fundamental da questão na construção do objeto histórico;2) a solidariedade indissociável entre a questão, o documento e o pro-

16 Ver Collingwood, Robin. The idea of History. Londres: Clarendon Press, 1946.

17 Ver Febvre, Lucien. Combats pour l’histoire. Paris: Armand Collin, 1953.

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cedimento de tratamento desse último explica que a renovação doquestionamento leve à renovação dos métodos. À medida que o histo-riador coloca novas questões, ele cria novos cenários históricos, que,por sua vez, levam a novas questões, numa bola de neve. Passamos dedocumentos escritos no século XIX aos documentos da cultura material,aos relatos orais, à lingüística. A renovação do questionário é o motor daevolução da disciplina. Não por capricho dos historiadores, mas porquequestões se encadeiam, se polinizam, as curiosidades coletivas se mo-vimentam numa ou noutra direção, etc.Devemos, contudo, observar que a validade das perguntas também

varia; é a corporação que determina seu status científico. A válida – subli-nhe-se – é aquela que faz avançar a disciplina. Mas o que isso significa –fazer avançar a disciplina? A verdadeira lacuna, segundo Antoine Prost,não é o objeto suplementar cuja história não foi feita, mas as questõespara as quais os historiadores ainda não têm resposta. E como as questõesse renovam, há lacunas que se apagam sem terem sido, sequer, preenchi-das. Há questões que deixaram de ser feitas antes de serem respondidas.Essa constatação leva a duas conseqüências.

A primeira é que jamais cessamos de escrever história. Os historiadores doséculo XIX achavam que seu trabalho era definitivo. Isso era um sonho. Toda ahistória é uma relação com os avanços feitos sobre o seu objeto até o momentopresente. Donde resulta que toda a história é, ao mesmo tempo, uma história dahistória. Isso quer dizer que o trabalho histórico não encontra sua legitimidadediretamente nos documentos: um estudo de primeira mão, feito diretamenteem cima de documentos, pode não ter qualquer interesse científico se nãotem respostas nem questões. Um estudo de segunda mão, a partir de trabalhosanteriores, pode ter grande pertinência se forem feitas questões inovadoras.

Exemplo disso é a biografia histórica. Idolatrada pela história positivista,foi abominada pelos Annales por sua incapacidade de apreender os conjun-tos sociais e econômicos. Entre anos 50 e 70, a biografia individual e singularfoi substituída pela história total. A demanda do público, na Europa, todavia,seguia pedindo biografias. Coleções inteiras conheceram sucesso. Editorassolicitaram aos historiadores trabalhos nesse sentido. O belíssimo São Luiz18,de Jacques Le Goff, não escapa a esta fórmula e nasce neste contexto. Simul-taneamente, a configuração da história mudava. A esperança de uma históriasintética e total, permitindo uma compreensão completa da sociedade e de

18 Ver Le Goff, Jacques. São Luiz. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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sua evolução, se esvaziava. Tornava-se mais interessante compreender opassado a partir de casos concretos, de funcionamentos culturais, sociais ereligiosos específicos, e nesse contexto a biografia, sobretudo aquela de anô-nimos, muda de estatuto e encontra legitimidade. Não mais a mesma biogra-fia, nem mais as dos grandes homens. Ela menos busca determinar a influên-cia dos indivíduos sobre os fatos e mais compreender, através deles, a inter-ferência das lógicas e articulações de redes complementares.

Mas, para além do problema e de sua inserção num determinadotempo histórico, não se pode deixar de ver, na definição dos novos campose das novas questões, os jogos do poder no interior da profissão. Esclareça-mos de uma vez por todas: as posições de poder dentro da profissão sãoaquelas que decidem quais são os questionamentos pertinentes. Revistastemáticas que recebem ou recusam artigos são um desses lugares. Linhasde pesquisa em conhecidos departamentos e notórias faculdades, também.As editoras universitárias ou os postos relevantes dentro de fundações deapoio à pesquisa, igualmente. As tensões que se estendem a diferentesabordagens, a diferentes linhas de pós-graduação ou escolas designam osconflitos sobre os quais se fundam identidades profissionais. Confrontostrazem ganhos e perdas – materiais e simbólicos –, influência nas carreirase em postos de prestígio. Logo, a história da história se define, além daciência e do social, ou seja, dos grupos de inserção, pelo enraizamentosocial das questões históricas, ou seja, pela demanda social. No Brasil aindaprecisamos fazer a reabilitação de camadas inteiras, sem falar em regiõesinteiras, que não têm merecido o interesse de nossos colegas.

A historicidade das questões é um fato: Voltaire, com O século de LuísXIV, mais responde ao interesse dos leitores pela transformação dos moresna corte francesa do que por sua curiosidade sobre a vida do rei19. Michelet,por sua vez, insere-se no movimento Romântico, que fazia do povo o heróicoletivo. Mesmo a escola “metódica”, que almejava a absoluta objetividadedestacada das contingências sociais, sofre a contaminação de questões políti-cas do tempo. Crise econômica e luta de classes, no primeiro quartel doséculo XX, fazem Ernest Labrousse debruçar-se sobre as origens econômicasda Revolução Francesa20. Na atualidade, vemos Jean Delumeau preocupar-

19 Terminada em 1739 e publicada em 1751, em Berlim, a obra contou com a colaboração de cortesãos que lhederam seu depoimento. Ver, também, Pomeau, Rene. Voltaire par lui même. Paris: Armand Collin, 1965.

20 Ver o seu La crise de l’économie française à la fin de l’Ancien Regime. Labrousse não pertence estrita-mente a nenhuma escola, preferindo beber em diferentes tradições. Contemporâneo de Braudel, éleitor de Marx e, por meio de estatísticas minuciosas, cria a “história serial”.

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se com temas tais quais catolicismo, religião e história, etc21. Por fim, até amoda da psicanálise existencial desemboca nos ensaios de ego-história22.

Mais além dos fumos do tempo e do lugar, o ofício de “intelectual”coloca em relevo a personalidade de cada um. Não se estuda durante anossem que o estudo tenha uma significação pessoal. O inconsciente tambémdeve fazer aí a sua parte. Num ensaio notável, Roland Barthes analisa o gostoe a fascinação visível de Michelet por sangue, descrevendo sua obra comouma “rede organizada de obsessões”23. Ao debruçar-se sobre a vida e a mortedos homens no passado, o historiador debruça-se sobre a sua própria. Odeslocamento de sua curiosidade ao longo do tempo, e da idade, dá a medi-da de sua identidade. Donde a necessidade de tomada de consciência que seimpõe aos engajamentos sociais, políticos e religiosos de cada intelectual.Paixões, acertos de contas e voluntarismos são riscos no trabalho. A históriatem, portanto, necessidade de recuo. Mas ele não provém do distanciamen-to no tempo e não basta desejá-lo para que ele exista. Em história contem-porânea isso é tão mais importante quanto fazer a história a partir de docu-mentos e não apenas de lembranças. É preciso quebrar a imediatidade daatualidade e o historiador deve buscar mediações entre a história que estáfazendo e a própria história. Então, como já disse, o recuo não é distância notempo, mas distância do objeto. A história cria o recuo. As implicações pesso-ais não são necessárias apenas para a história do tempo presente, pois, comolembrou Croce, “toda a história é contemporânea”: “todo problema autenti-camente histórico [ao que Croce opunha a anedota nascida da pura curiosida-de] mesmo que diga respeito a um passado longínquo, é também um dramaque existe, hoje, na consciência do homem: é uma pergunta feita pelo histo-riador na situação de sua vida, de seu meio e seu tempo”.

O historiador precisa apenas buscar certa racionalidade para elucidarsuas implicações com o objeto. Os riscos fora dessa démarche, segundoPhilippe Boutry24, são de uma hipertrofia da relação objeto-historiador: “en-quanto o ego do historiador ocupa em senhor absoluto o lugar onde anteshavia o fato bruto, enquanto se procurar trocar os modelos explicativos porexperiências lúdicas, o historiador perde as engrenagens da sua disciplina”.

21 Ver seu artigo “Que reste-t-il du paradis?” em Michaud, Yves (Dir.). L’Université de tous les savoirs:L’histoire, la sociologie, l’anthropologie. Paris: Odile Jacob, 2000, p. 185-200.

22 Ver “Foucault révolutionne l’histoire!” em Veyne, Paul. Comment on écrit l’histoire. Paris: Seuil, 1971.

23 Barthes, Roland. Michelet par lui même. Paris: Seuil, 1954. Ver também “Les Moyen Age de Michelet” emLe Goff, Jacques. Pour un autre Moyen Age. Paris: Gallimard, 1977.

24 Citado por Prost, op. cit., p. 220.

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O alerta vai contra a reivindicação, proclamada aos berros por alguns grupos,em favor da subjetividade do historiador e do “eu” no discurso histórico.Fazer história a partir dos textos não é “recopiar o real”. Pelas escolhas eaproximações que faz, o historiador dá um sentido inédito às palavras queele arranca ao silêncio dos arquivos. A captura da palavra responde à preocu-pação de reintroduzir existências, singularidades no discurso histórico e dese-nhar cenas que são também eventos. A presença da citação dentro do textohistórico modificou totalmente seu sentido. Ela não é mais ilustração de umaregularidade; ela indica uma interrupção, uma clivagem, uma diferença, umasingularidade entre o que diz a fonte e o que diz o historiador.

A questão do historiador passa, portanto, pelo subjetivo e pelo objetivo. Pro-fundamente enraizada na personalidade de quem a formula, ela não se formula quesolidária com documentos onde ela possa encontrar respostas. Inserida nas teorias, àsvezes nas modas que atravessam a profissão, a questão preenche, como vimosuma função profissional, uma questão social e uma função pessoal mais íntima.

Em resumo, o problema em história fundamenta a seriedade da discipli-na e aporta luz ao problema recorrente da objetividade na história. A objeti-vidade não pode vir do ponto de vista adotado pelo historiador, pois a situa-ção desse é obrigatoriamente subjetiva. Melhor do que falar em subjetivida-de é falar em imparcialidade e verdade; elas só podem ser conquistadas pelotrabalho laborioso do historiador. Elas estão no final do seu trabalho e não noinício. O que reforça a importância das regras do método.

Last, but not least, seria importante lembrar, neste percurso, o papel dosarquivos. A existência destes que são o fundamento do saber histórico, damemória da nação e da construção do Estado nos adverte para o fato seguinte:o ofício do historiador não se aprende lendo manuais ou livros de história,mesmo se num estágio mais avançado da carreira o historiador se permiteescrever sínteses ou livros de vulgarização. O ofício se aprende em contatocom documentos, e, no mais das vezes, documentos escritos. A estes o histo-riador acrescenta testemunhos orais, imagens fixas ou animadas. Não tenhoqualquer dúvida sobre a emoção suscitada pela leitura de um velho testamen-to, a abertura de um processo ou a consulta a uma desgastada coleção dejornais. As folhas adormecidas depois de tanto tempo conservam os restos demuitas vidas, de paixões silenciadas, de conflitos esquecidos, de análises inter-rompidas, de contas obscuras. Vidas humanas, com suas grandezas e misérias,enterraram metodicamente nestas pastas conservadas, seus segredos25.

25 Mais uma vez, empresto idéias a Prost, de seu artigo “Les practiques et les méthodes” em Prost,Antoine. L’Histoire aujourd’hui. Paris: Sciences Humaines, 1999, p 385.

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A primeira lição que a aprendizagem do arquivo dá ao futuro historiador éa de que ele não deve contentar-se com o que os outros escreveram sobre o seutema de pesquisa. Ele deve “ir ver com seus próprios olhos”, ir às fontes, chegara uma conclusão pessoal. Ele deve buscar nos papéis respostas para suas ques-tões, garimpando em tal e qual fundo. O arquivo, por seu turno, devolve-lhe oesforço, modificando suas perguntas e problemáticas, enriquecendo suas infor-mações, ajudando-o a definir uma intriga e a definir um cenário.

Guardião da memória e da documentação histórica, pela abundância evariedade de fundos públicos e privados que, ao longo de quilômetros, secolocam à disposição do cidadão, o arquivo dá conta das mudanças ocorridasno Brasil ao longo dos séculos nas instituições, na economia, nas mentalida-des e na sociedade. Sem paralelos, essa documentação oferece ao interessede muitos de nós um infinito campo de investigações; campo, diga-se, pre-parado pelo labor de anônimos arquivistas que contribuem para classificar etornar úteis milhares de impressos e manuscritos.

O afluxo sem precedentes de nova documentação, sobretudo aquela icono-gráfica ou composta por documentos sonoros e de imagens, deve-se, em parte,ao alargamento do campo intelectual da pesquisa histórica. A abertura progressivadesta última aos domínios da vida econômica e social, da etnologia histórica e doscomportamentos individuais ou coletivos reflete-se numa coleta diversificada embenefício de todas as ciências humanas. Não são apenas os “papéis” provenientesde administrações públicas e jurídicas que têm direito aos arquivos. Hoje, arquivosde empresas, além dos privados, suscitam uma fabulosa fome de pesquisa26.

Fazer história, interrogar documentos e fundar a memória, pensar a impor-tância dos arquivos no cotidiano do historiador, são tarefas do ofício. Nunca édemais lembrar que o discurso histórico precisa aderir à matéria documental semque a utilização das fontes torne as citações inadequadas. “Quem escreve histó-ria” – lembra Evaldo Cabral de Mello27, um dos nossos maiores historiadores –“sabe que não é problema empregar fontes de maneira expressiva, fazendodelas não uma demonstração de erudição, mas a própria carne e o sangue daobra”. Contra “os que não querem sujar as mãos com papel velho”, Mello contra-põe o ridículo dos demais que preferem “uma página de Althusser para compre-ender como foi a escravidão em Conceição do Mato Dentro”. Judicioso conselho!

Praia do Flamengo, abril de 2002.

26 Ver Archives contemporaines et histoire. Paris: Archives Nationales, 1995.

27 Ver seu prefácio em Mello, José Antônio Gonçalves de. Tempo dos Flamengos. Rio de Janeiro: Top-books, 2001.

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Resumo

A imprensa apareceu no Brasil em 1808, massomente em 1921 é que as tipografias se espa-lharam pelo país. Em Mato Grosso, especifica-mente em Cuiabá, a aquisição de material im-presso aconteceu mais tarde. O primeiro e mai-or meio de acesso à leitura em Cuiabá foi ojornal. De 1839 a 1939 circularam aí mais de120 jornais.

Palavras-chave:

Leitura – Mato Grosso – Século XX

Abstract

Printing press first appeared in Brazil in 1808 butit was only in 1821 that letter press factoriesspread all over the country. In the state of MatoGrosso, particularly in Cuiabá, the acquisition ofprinted material occurred even later. Newspapersused to be the first and major means of access toreading. From 1839 to 1939 more than 120 news-papers used to circulate there.

Keywords:

Reading – Mato Grosso – 20th Century

A imprensa mato-grossenseantes da era do rádio

Otávio Canavarros*Graciela Rodrigues da Silva**

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

* Professor da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT/ICHS/CUR e do Programa de Pós-Gradu-ação em História da UFMT/ICHS/Cuiabá. Mestre e doutor em História Econômica pela USP.

** Professora em Rondonópolis-MT, licenciada em Letras pela UFMT/ICHS/CUR, ex-bolsista do PIBIC/UFMT/CNPq.

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A História do Brasil às vezes nos surpreende e ainda reserva bons mo-tivos de alegria àqueles que se aventuram por suas veredas. Ao pesquisar-mos sobre o processo de aquisição de material impresso na sociedade mato-grossense, desde a instalação da imprensa no Brasil, deparamo-nos com umfenômeno curioso: a imprensa foi o grande meio propagador de idéias, deentretenimento, enfim, de informação para o público leitor no Brasil. Nós, oscontemporâneos da moderna mídia eletrônica, não temos a menor idéia dosignificado da imprensa, principalmente daquela local, no século anterior àradiofonia. No caso de Cuiabá, a expressão do seu vulto chama atenção nãoapenas pela importância, como também pela intensidade e quantidade depequenos e efêmeros jornais que reluziam em algumas poucas edições.

Numa sociedade majoritariamente constituída de analfabetos, como abrasileira do Segundo Reinado e da Velha República, cuja tradição de oralida-de na comunicação social (na aquisição de informação) era acentuada, causaespanto um jornalismo ativo. De fato, parece que a partir da chegada dedom João VI e da instalação da Imprensa, ou melhor, da Impressão Régia noRio de Janeiro, destampou-se uma panela sob pressão, pois não houve jor-nais no Brasil-Colônia, como se sabe. Assim, quando saiu a Gazeta do Rio deJaneiro (oficial), em setembro de 1808, foi a maior novidade. No entanto, aprática da censura ainda permaneceu até abril de 1821, quando da volta dorei a Lisboa e da verdadeira explosão da imprensa brasileira.

“Os jornais não noticiavam: produziam acontecimentos”. Era “o oceanoverbal da Independência, com suas disputas radicais” disse Isabel Lustosa noseu magnífico Insultos impressos1. Como já havia notado Oliveira Lima, “aliberdade de imprensa (....) provocou em redor deste episódio do Fico umtorneio de opúsculos por publicistas de valor (....) as tipografias começarama abrir-se e as folhas a aparecer”2.

Essas folhas, pasquins de papel almaço, se não pretendiam educar opovo iletrado, como um todo, pelo menos as elites, o verdadeiro público-alvo.No entanto, não deveríamos descartar a hipótese da assídua leitura coletiva(oral e para o grupo), prática européia muitas vezes apontada por Roger Char-tier em vários de seus livros3. Discutia-se tudo nesses jornais, principalmente

1 Lustosa, Isabel. Insultos impressos. A guerra dos jornalistas na Independência – 1821-1823. São Paulo:Companhia das Letras, 2000, p. 16-17.

2 Lima, Manuel de Oliveira. O movimento da Independência. O Império brasileiro (1821-1889). 4. ed. SãoPaulo: Melhoramentos, 1921, p. 138.

3 Cf. Wittmann, Reinhard. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: Chartier, Roger;Cavallo, Guglielmo (Orgs.). História da leitura no mundo ocidental. v. 2. São Paulo: Ática, 1998, p. 141.

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política, mas não apenas. Aliás, essas fontes há muito são utilizadas pelos cien-tistas sociais, v.g., Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre em seus clássicos, EuláliaM. Lahmeyer Lobo na sua história de preços4, e, do lado cuiabano, por, entreoutros, Luiza Volpato, com a sua história dos Cativos do Sertão5.

No caso da imprensa mato-grossense, fundada no longínquo ano del839 com o surgimento do jornal Themis Mattogrossense, oficial como o con-gênere e pioneiro brasileiro publicado no Rio de Janeiro, o que despertainicialmente a curiosidade é a quantidade e a fugacidade das edições. Pesqui-sadores do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional daUniversidade Federal de Mato Grosso (NDIHR) computaram cerca de 349títulos de periódicos que circularam em Mato Grosso até 1994, dos quais 125foram microfilmados, perfazendo 17.077 edições até 19696. Do universomicrofilmado, 83 títulos são de periódicos (jornais e revistas) cuiabanos, per-fazendo 66,4%, dois terços, portanto. Em se considerando que Cuiabá tinhacerca de 12.000 habitantes em meados do século XIX e cerca de 50.000 umséculo depois, esses dados parecem extravagantes.

De fato, como é possível a uma pequena cidade interiorana, distante ummês de navegação a vapor da Corte, a partir do fim da guerra do Paraguai,possuir tão numerosos jornais? Eis aí uma questão, eis aí o problema, diriaLucien Fèbvre. Seria um caso isolado? Acreditamos que não. A vila de Meya-Ponte, em Goiás, já tinha imprensa desde 1832, pelo menos. Entretanto, ébom lembrar que Hercules Florence, residindo em Campinas na década de1830, inventou a fotografia para registrar os seus relatos e desenhos de via-gem, pois não apenas em São Carlos da época, mas em toda a Província de SãoPaulo, em 1833, só havia uma impressora, a do jornal Pharol Paulistano7.

Outro aspecto que chama a atenção é a brevidade da existência dessasfolhas. Do acervo microfilmado (125 títulos), a média aritmética aponta paraapenas 136 edições por órgão. Caso todos fossem bissemanais, teriam tidouma existência média não superior a 15 meses. Pura fugacidade!

4 Lobo, Eulália Maria Lahmeyer et al. Evolução dos preços e do padrão de vida no Rio de Janeiro (1820-1930). Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 25, n. IV, dez. 1971.Nessa pesquisa os autores trabalharam com séries contínuas de preços e salários, pesquisadas no Jornaldo Comércio do Rio de Janeiro, publicado desde 1828 até os dias atuais.

5 Volpato, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão – vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850/1888. SãoPaulo: Marco Zero / Cuiabá: EdUFMT, 1993.

6 Calháo, Antônio Ernani P. et al. Imprensa periódica mato-grossense (1847-1969). Catálogo de microfil-mes do NDIHR. Cuiabá: EdUFMT, 1994, p. 3.

7 Kossoy, Boris. Hércules Florence –1833 –A descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: DuasCidades, l980, citado por Guariglia, Ana Maria. O pai esquecido da fotografia. Fim de semana e Eu(suplemento Valor), São Paulo, edição de 8/10 de junho de 2001.

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Vejamos, pois, mais de perto essa imprensa mato-grossense. Comece-mos com as impressões dos viajantes, dos de fora. Estas são geralmente asmelhores, visto que comparativas, verdadeiros juízos de valor. Pois bem, LuizAmaral, jornalista carioca, em seu livro de 1927, diz simplesmente o seguinte:

Bons jornais são, de resto, o luxo de Mato Grosso. Na Capital, exis-

tem creio que seis jornais de apresentação agradável e redação apu-

rada. Não deixa de causar pasmo essa abundância de imprensa no

Estado considerado ficção geográfica excessivamente longe dos cen-

tros de cultura e de população escassa (grifo nosso).8

Razões estruturais, ou conjunturais mais profundas, devem existir paraelucidar este quase-paradoxo. A primeira delas é que vivia-se ainda a “era doimpresso”, pois a “era do rádio”, muito diferenciada, enquanto mídia, tardariauma dúzia de anos para acontecer em Cuiabá. Isso só ocorreu em 1939, daí orecorte do nosso texto. Na “era do impresso”, a linguagem era outra e a infor-mação última, derradeira ou mais urgente, tinha a forma telegráfica, essencial esincopada, que a poesia de Oswald de Andrade da década de 1920 tentaraexpressar. Tudo passava pela imprensa, absolutamente tudo. Era o registrovivo do cotidiano significativo das cidades. D’abord, as questões partidárias,lógico, pois não havia correntes de opinião sem o seu jornal. Só nas primeirasdécadas do século XX, identificamos sete órgãos, assumidamente partidários.

Até os grêmios estudantis possuíam os seus panfletos periódicos. Con-tamos nove deles no mesmo período. Houve o caso de um grêmio denormalistas, o “Júlia Lopes”, que editou uma revista de muitíssimas edições.Outros participaram em edições de revistas dos estabelecimentos de ensi-no, tanto públicos como privados. Agitar a pachorrenta sociedade cuiabanadevia ser a norma, pois, livres-pensadores-maçons, positivistas, liberais devários matizes, espíritas, evangélicos, além de católicos da Liga Social, to-dos pugnavam por espaços na imprensa.

Outra razão, talvez de natureza geográfica, corroborava com esse espo-car de folhas impressas. Os jornais do litoral que mais rápido chegavam aMato Grosso vinham de Porto Alegre, em barcos que demoravam quinzedias subindo o Rio da Prata e afluentes. É pitoresca e até folclórica a conhe-cida história da chegada das notícias da Proclamação da República em Cuiabá

8 Amaral, Luiz. A mais linda viagem. São Paulo: Melhoramentos, 1927, apud Póvoas, Lenine. História dacultura mato-grossense. Cuiabá: s.ed., 1982, p. 72.

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a 9 de dezembro de 1889. Os futuros convictos republicanos bailavam numafesta, provavelmente pelo natalício do imperador ocorrido a 2 de dezembro,quando tomaram conhecimento do grande evento. Muitos de lá saíram paraorganizar o governo republicano estadual.

Havia também uma razão diferente para a proliferação do impressojornalístico local, esta por parte da demanda: havia leitores-compradores. Aocontrário dos livros, caros, volumosos e sem rede de distribuição especializa-da (eram raras as livrarias e poucas as papelarias), os jornais eram práticos(podia-se lê-los em qualquer lugar, a qualquer hora), de leitura fácil, diver-sificada, ilustrada e, por muitos motivos, motivadora. Para o letrado de poucosrecursos e sedento de informações, o jornal diário ou semanal satisfazia plena-mente. Além do mais, eles eram verdadeiros almanaques (muito populares noBrasil), trazendo variado leque de informações curiosas: horóscopos, necroló-gios, efemérides, hagiografia, culinária, literatura e crônica da cidade e do país(política, cultural, policial etc.). E, por último, ainda serviam para embrulhosapós a leitura. Estamos no tempo dos compradores de jornais velhos e garra-fas vazias de litro e quartilho. No tempo das quitandas e açougues.

Vale lembrar, nesta altura da exposição, que para existir jornal local emCuiabá havia necessidade de tipografias. Eram indispensáveis. Eis o que ocatálogo já citado sobre a imprensa periódica mato-grossense nos esclarece arespeito. Em Cuiabá do século XIX encontramos referências a dez tipografi-as, sendo sete de jornais (de O Povo, Echo Cuiabano, A Situação, O Liberal,O Porvir, A Província de Mato Grosso e A Tribuna). Das três restantes, umaera particular (Tipografia de Souza Neves e Cia.) e durou de 1859 até 1887,pelo menos, e outras duas oficiais (as tipografias provincial e estadual).

No século XX, até a década de 1940, ainda na Capital, registramospela amostragem (incompleta), baseada no referido catálogo de jornaismicrofilmados, nove referências às tipografias, sendo quatro de jornais (deA Cruz, O Pharol, A Reação e O Mato Grosso), uma oficial (da EscolaIndustrial) e quatro particulares (da Livraria Globo, de Epaminondas, deEmygdio R. de Lima e de Calháo).

Lista visivelmente incompleta, pois falta referência à Tipografia do Di-ário Oficial do Estado de Mato Grosso, que, no dia 14 de agosto de 1939, datado centenário da Gazeta Oficial (nascida Themis Mattogrossense) inaugura-va uma moderna rotativa em suas instalações9. Outra ausência notável é a daTipografia do Liceu de Artes e Ofícios São Gonçalo. O colégio dos salesianos

9 Póvoas, op. cit., p. 62.

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possuía, como se sabe, oficinas e laboratórios, entre os quais, uma gráfica eum observatório. Naquela, provavelmente, se confeccionava a revista O MattoGrosso (mensal de ciências, letras e variedades), editada entre 1907 e 1915,a primeira da cidade. Este precedente teria estimulado o aparecimento deuma outra, atualmente a mais antiga, a Revista do Instituto Histórico e Geo-gráfico de Mato Grosso. A ela se refere um seu pesquisador:

A partir de 1919, com o primeiro número da Revista, de circula-

ção semestral, tendo um corpo editorial, o periódico vem se man-

tendo apesar de conhecer alguns períodos de crise, tendo, às ve-

zes, de interromper sua circulação por longo tempo, como aconte-

ceu de 1955 a 1976, num espaço de 21 anos. Vencendo as crises,

a Revista do Instituto Histórico ainda em circulação, vem conti-

nuando com sua proposta inicial, servindo de fonte imprescindí-

vel para quem pesquisa a história de Mato Grosso.10

Iremos, agora, tecer algumas considerações sobre opiniões de entrevis-tados, leitores residentes em Cuiabá e Rondonópolis, arrolados pela nossapesquisa sobre a História das Práticas de Leituras em Mato Grosso do sécu-lo XX, investigação há dois anos em andamento, de caráter interdisciplinar doICHS, Campus de Rondonópolis da UFMT, sob a coordenação da Dra. Fran-celi Aparecida da Silva Mello, professora do Departamento de Letras.

Até o momento, entrevistamos aproximadamente 30 pessoas, de vá-rias faixas etárias, leitoras notórias ou de qualificações ligadas ao livro (pro-fessores, estudantes, escritores, acadêmicos, advogados, médicos, livreirosetc.). Pretendemos ampliar ainda mais esse nosso universo de consulta.Nessas enquetes utilizamos a metodologia da chamada História Oral e pre-paramos o nosso roteiro geral de perguntas personalizadamente, isto é,adaptando-o à história de vida conhecida do entrevistado. Em geral, come-çamos pela formação do leitor, as experiências da alfabetização e da pri-meira escolaridade; vivências infantis com o livro e a prática de leitura;família, escola, igreja, biblioteca, livraria, banca de jornal etc. Tudo é consi-derado pela memorização do entrevistado tendo em vista nuançar os me-canismos estimuladores e inibidores da formação da prática de leitura.

Num segundo momento, já com o hábito de ler incorporado às ativida-

10 Assis, Edvaldo de. Índice analítico da Revista do Instituto Histórico de Mato Grosso. Cuiabá: EditoraUniversitária, 1992.

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des sociais daquela pessoa, perguntamos acerca das preferências de leituras,assim como das formas de ler e de aquisição do material impresso. Questio-namos aí as políticas e as práticas institucionais dos governos e estabeleci-mentos culturais, as carências dos leitores e as insuficiências dos recursos atéchegarmos ao mercado editorial e ao mundo do mercado consumidor.

À pergunta sobre as formas de aquisição do livro em Cuiabá d’antanho,os entrevistados mais idosos (septuagenários e octogenários) responderamque quando não encontravam localmente o livro desejado, encomendavam-no através do serviço de reembolso postal. Procedimento que resultava. Eisaí uma dimensão dos Correios que não pode ser subestimada, mormentepara as cidades interioranas. Função livraria, pelo reembolso e/ou funçãobiblioteca, pelos círculos de livros.

Consideramos, como referimos acima, que este aspecto da aquisição domaterial impresso teria influenciado a preferência pelos jornais. No entanto,esta preferência não é apenas cuiabana, vale dizer, do grande interior, masnacional, litorânea. É o que nos declara o senhor Ottaviano de Fiore, secretáriode política cultural do Ministério da Cultura em paper eletrônico de agostoúltimo11. Nesse texto, diz-nos que a média brasileira de produção de livros percapita/ano é de apenas 2,4 livros (a francesa é de 7). Pior, que é de apenas 0,7a média de produção dos não-didáticos (leia-se, dos vendidos e comprados).Lembra-nos com todas as letras que “boa parte da leitura do Brasil não é feitaem livros mas em jornais e revistas (....) O brasileiro informa-se essencialmentepela televisão e oralmente com as poucas vantagens e as muitas desvantagensdeste fato”. Observe-se que a oralidade como fonte de informação continuaforte, mesmo na “era da televisão”, nos últimos quarenta-trinta anos.

Mas voltemos à nossa “era do impresso”. Um dos entrevistados, profes-sor universitário, confessou-nos que seu hábito maior de leitura, desde aadolescência, sempre fora a imprensa: pela praticidade e pela novidade danotícia. Que o jornal possuía aquela imediatez da crônica dos acontecimen-tos, com início, meio e fim, cujo conteúdo estava mais ligado ao real, en-quanto as leituras consideradas de lazer eram mais ficcionais, próprias de umsaber por ele definido como ornamental.

Já outro professor universitário, mais jovem e ficcionista assumido, re-porta-nos que até recentemente no interior do Estado de Mato Grosso ospoucos livros vendidos (maioria didáticos) e os muitos gibis, eram-no numa

11 Fiore, Ottaviano de. Livro, biblioteca e leitura no Brasil. Disponível pela internet em: www.minc.gov.br/textos/of01.htm.

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papelaria local. De vez em quando passavam uns ambulantes ofertando en-ciclopédias, dicionários e as famosas coleções (tipo Tesouro da Juventude,Grandes Romances Universais etc.). Mesmo assim, o mascate não se decep-cionava, pois sempre vendia alguma. Então questionamos:

– E o jornal, tinha?

– Não, não chegavam jornais.

– Mas Guiratinga tinha jornal?

– Não, Guiratinga teve jornal entre os anos 20, 30 e 40 e depois só

nos anos 80...

Neste enredo de perguntas/respostas notamos alguns problemas daimprensa local já tratados. Isto é, quando a cidade se encontrava isolada,ou, melhor dizendo, era de difícil acesso, havia todo um espaço no merca-do para a sobrevivência do jornal local, anos 20, 30... tudo antes do rádio,da televisão e das estradas pavimentadas. Depois disso, como concorrercom esses meios e ainda com os jornais e revistas nacionais? O espaço quesobra é muito diminuto, próprio à crônica da cidade, como acontece tam-bém em Rondonópolis atualmente.

Na entrevista com um renomado historiador cuiabano perguntamos sobrea aquisição de material impresso na região. Ele nos disse que “Cuiabá começoua modificar em 1870, quando acabou a guerra do Paraguai”. Foi a época daabertura da navegação do rio Paraguai provocando transformações significativasna economia e cultura mato-grossenses. Grandes lojas importadoras e bancoseuropeus vieram para a região. O Governo Imperial decretou por dez anos oporto de Corumbá como zona livre de comércio, isento do imposto de exporta-ção, por exemplo. Essa situação permitiu um contacto direto entre Cuiabá e ascidades do Prata, além de Porto Alegre, Santos e Rio de Janeiro, provocando,com isso, uma verdadeira “revolução cultural” em Corumbá e Cuiabá.

De fato, é a época da criação dos grandes estabelecimentos de ensinona capital de Mato Grosso. O Liceu Cuiabano foi fundado em 1880, o LiceuSão Gonçalo (salesiano) em 1894, e, em torno de 1910, a Escola de Apren-dizes Artífices (federal, hoje Escola Industrial), a Escola Modelo Barão deMelgaço, a Escola Normal Pedro Celestino e o Grupo Escolar Senador Azere-do. Dessa época também é a inauguração da Biblioteca Pública de MatoGrosso, cujo acervo hoje pertence à Fundação Cultural do Estado.

Enfim, lembrou-nos o entrevistado, foi um período de grandes transfor-mações esse de 1870 a 1930, caracterizado também por forte fluxo imigrató-

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rio de italianos e árabes, chegados pelo Prata, juntamente com motores eturbinas que moveram as numerosas usinas de açúcar ribeirinhas e ilumina-ram Cuiabá com energia elétrica. A economia passava de um extrativismomineral e vegetal para um pecuarismo industrializado de exportação. Duasestradas de ferro foram construídas em Mato Grosso no início do século XX,uma delas ligando Bauru a Corumbá (NOB), religando Mato Grosso ao mer-cado nacional, vale dizer, de São Paulo.

Tudo isso refletiu-se imediatamente nos hábitos da população e, parti-cularmente, na questão da aquisição de material impresso, facilitado pelaimportação de máquinas (tipografias mais modernas) e de livros. Até umjornal de opositores ao governo, A Reação, era editado em Assunção e envi-ado rio Paraguai acima. O exemplo maior dessa belle époque mato-grossensefoi a confecção em Hamburgo de primoroso Album Graphico do Estado deMatto Grosso, em 1914, todo em papel-seda, ilustrado com belíssimas fotosdo cotidiano, inclusive do porto de Corumbá com vários cargueiros e vapo-res para passageiros vindos de Montevidéu e Buenos Aires. Certamente teri-am causado forte impressão no público-alvo (empresários e governos), nãofosse a eclosão, naqueles angustiados dias, da primeira guerra mundial. Hoje,esse Álbum, verdadeiro arquivo concentrado, é, para os historiadores, umtestemunho eloqüente de um estado de espírito da época, a nos dizer daspotencialidades de uma história abortada.

Os entrevistados mais velhos lembraram, como herança para Cuiabádesse período, a inauguração de duas livrarias: uma, a Globo (com tipogra-fia), e outra a de Rubens de Carvalho, professor contratado em São Paulopara dar assistência pedagógica às novas escolas. Enfim, facilitava-se a aqui-sição de material impresso.

A partir da década de 1940, com o estabelecimento das linhas aéreasregulares, esse mercado se nacionalizou, quer dizer, o mercado editorial naci-onal de livros, revistas e jornais passou a predominar, agravado ainda com aconcorrência de nova mídia, a radiofonia, pela fundação, em 1939, da rádio AVoz do Oeste, a famosa PRH 3 – ZYZ 5, que veio disputar público informa-tivo (com programas tipo “Bandeirantes no Ar”, com o vozeirão de AugustoMário Vieira) e de entretenimento (com programas de calouros, tipo “Do-mingo Festivo na Cidade Verde”) com as fontes escritas. Chegava finalmentea Cuiabá a “era do rádio” e da imprensa nacional, com O Cruzeiro, dosDiários Associados, à frente.

Como disse um desembargador, em entrevista: “os jornais, por exem-plo, vinham todos de avião (....) Ah, chegava regularmente. Anteriormente,

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na década de 20, 30, era vida doméstica, não sei que mais (....) Aí, depois era OCruzeiro né, vinha regularmente aqui, eu ia comprar ali na livraria” (grifo nosso).

“Vida doméstica”, eis um conceito-síntese, como aquele outro, extraídode contexto forâneo: no tempo das diligências. Por vida doméstica, o desem-bargador entende os negócios locais, a indústria local, a crônica local. Acabou-se o tempo do monopólio do jornalismo provinciano, em duplo sentido, repre-sentado por aquela manchete de um jornal da Capital sobre a morte de umcarroceiro atropelado pelo seu próprio carro de bois: “Causou profunda cons-ternação nesta cidade o passamento trágico”. Isso ocorria em meados dos anos30, quando a nossa vida doméstica urbana despedia-se do carro de bois.

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O imaginário da morteatravés dos testamentos*

Maria Aparecida Borges de Barros Rocha**

Resumo

Os testamentos são documentos privilegiados nainvestigação das relações do homem com a morte.Geralmente efetuados pelos moribundos nos mo-mentos de agonia, apresentam as principais preocu-pações do mesmo voltadas para a preservação outransmissão do patrimônio familiar, assim como paraas determinações dos cuidados com o corpo e coma alma. Os testamentos oitocentistas utilizados nes-te artigo oferecem diversas possibilidades de leitu-ra que permitem identificar indícios da vida social,econômica e religiosa da população da Província deMato Grosso na segunda metade do século XIX.

Palavras-chave:

Testamento – Mato Grosso – Século XIX – Morte

Abstract

Wills are important documents when investigatingthe relationship between men and death. Theyare usually done by the dying during the deaththroes. They show the person’s main worries con-cerning the protection or transmission of thefamily’s estate as well as the procedures to betaken with the dying’s body and soul. The 19th

Century wills shown in these articles offer manypossibilities which allow the reader to identifytraces of the social, economic and religious livesof the population in the Mato Grosso Provinceduring the second half of the 19th Century.

Keywords:

Wills – Mato Grosso – 19th century – Death

* Texto elaborado a partir de um capítulo da dissertação de mestrado intitulada Igrejas e Cemitérios: Astransformações nas práticas de enterramentos na cidade de Cuiabá – 1850 a 1889.

** Mestre em História pelo programa de pós-graduação do Instituto de Ciências Humanas e Sociais daUniversidade Federal de Mato Grosso.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

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O objetivo deste artigo é apresentar algumas análises resultantes denossa investigação em torno dos testamentos do século XIX, cuja preocupa-ção central é a compreensão do imaginário da morte na cidade de Cuiabá,capital da Província de Mato Grosso, no período referenciado.

Procuramos destacar aspectos em nosso entender mais relevantes quantomais aproximados de nosso intuito de compreender os testamentos enquan-to fontes privilegiadas para o entendimento das relações do homem com amorte, assim como para análise das principais preocupações dos moribundosdiante das práticas de enterramento e suas transformações. Desse modo,nossa análise centra-se sobre os testamentos em especial, traduzindo-se,portanto, num recorte da discussão pretendida.

O testamento pode ser definido como um ato revogável que possibilitaa alguém, através de um ato jurídico, dispor de seus bens, no todo ou emparte, para depois de sua morte. É uma medida geralmente utilizada poraqueles que não têm herdeiros legítimos ou que procuram dispor do todo oude parte de seus bens dentro do previsto por lei1.

Uma das fontes mais utilizadas nos estudos do comportamento dos ho-mens diante da morte, os testamentos não raramente são efetuados nos mo-mentos que a precedem, expressando as últimas vontades do testador quantoaos seus bens materiais, assim como quanto às necessidades da sua alma2.

Os testamentos, por sua forma de elaboração, podem ser definidoscomo ordinários e extraordinários ou especiais, sendo que os testamentosordinários ainda se diferenciam em público ou cerrado, particular ou privado.

Os testamentos utilizados nesta pesquisa foram redigidos por oficial decartório de notas e na presença de testemunhas, definidos, assim, como decaráter público e aberto.

Maria Luiza Marcílio considera os testamentos a partir de uma certapadronização: “(....) há duas partes bem nítidas presentes. Na primeira apare-cem as cláusulas religiosas e na segunda as materiais”3, pois algumas cláusu-las são dedicadas a deixar resolvidas questões de ordem material, enquantooutras dedicar-se-ão às questões religiosas.

Ana Sílvia Scott analisa os testamentos sob duas perspectivas: uma que

1 Daumard, Adeline et al. História Social do Brasil – teoria e metodologia. Curitiba: UFPR, 1984, p. 190-191.

2 Scott, Ana Silvia Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no Noroeste Português – séculosXVIII e XIX. Guimarães, Portugal: Éden, 1999, p. 324.

3 Marcílio, Maria Luiza. A morte de nossos ancestrais. In: Martins, José de Souza. A morte e os mortos nasociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 68.

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privilegia informações sobre o destino dos bens materiais, enquanto a outracontém as indicações que se voltam para os legados pios, os bens da alma,os tipos de enterro e mortalhas utilizadas4.

Eduardo Paiva considera a divisão dos testamentos em quatro ou cincopartes principais bem definidas5, que pudemos confirmar: logo em suas pri-meiras linhas, eles costumam trazer um registro, através de um calendárioreligioso, da data de sua elaboração.

Não raras vezes essa indicação se faz com uma invocação da SantíssimaTrindade – Padre, Filho e Espírito Santo – pois até o século XIX a redação deum testamento era um ato civil e religioso:

Saibam quantos estes virem, que no ano do nascimento de Nosso

Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oitenta e dois, nos dois dias do

mês de maio, nesta cidade de Cuiabá (...).6

Em seguida, temos a identificação do testador ou testadora, indicando,além de sua naturalidade, a sua ascendência legítima, assim como seu domi-cílio e estado civil, com registro também do nome do cônjuge e dos filhos:

Declaro que sou natural desta província, nascida e batizada na cida-

de de Mato Grosso, que sou filha legítima dos finados Coronel Antô-

nio Joaquim de Vasconcelos Pinto e dona Gertrudes Adelaide Peixoto

Capelo Pinto.6

O testamento registra também o local específico e as condições em que taldocumento é lavrado, assim como o estado de saúde e de sanidade mental dotestador, para que não reste, no futuro, nenhuma dúvida sobre a validade jurídicado ato que se registra: “Em casa de morada e residência de Jacintho PereiraMendes, aonde eu tabelião a seu rogo vim, sendo ele dito, e é de mim conheci-do do que dou fé e, estando de cama doente, mas em seu perfeito juízo”7.

Após a identificação, no testamento, temos uma forma de reafirmaçãode sua condição religiosa, através de uma declaração acerca de suas práticas:“Declaro que sou cristã, católica, em cuja fé pretendo viver e morrer”6.

4 Scott, op. cit., p. 327.

5 Paiva, Eduardo França. Discussão sobre fontes de pesquisa histórica: os testamentos coloniais. Revistade História, UFOP, Departamento de História, n. 4, 1993/1994, p. 93.

6 Testamento de Augusta Carlota de Vasconcelos Pinto.

7 Testamento de Jacinto Pereira Mendes, de l3 de agosto de 1883.

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Alguns testamentos trazem de forma explícita a solicitação dos testado-res de ajuda por parte de advogados divinos, identificados nos santos daIgreja Católica, para interceder pela sua alma, como protetores ou facilitado-res, na busca do descanso eterno. Dentre os mais utilizados aparecem onome da Virgem Maria e do Senhor Jesus Cristo, mais indicados no sentido de“negociar” com o Pai Eterno o perdão dos pecados.

Em seguida, os testamentos trazem indicação dos testamenteiros, geral-mente escolhidos dentre os familiares restritos a um círculo bastante limita-do8, assim como os nomes dos herdeiros universais, além das orientaçõesconsideradas necessárias para o bom cumprimento do testamento, de acor-do com as últimas vontades do testador ou testadora.

O cumprimento das disposições testamentárias era cobrado das autorida-des eclesiásticas, assim como das autoridades judiciárias, as quais cobravam dotestamenteiro as providências necessárias para a máxima satisfação das vonta-des do testador. Para ter validade jurídica, o testamento deveria conter assina-turas de algumas testemunhas, assim como o reconhecimento do 1º tabelião.

Mesmo quando efetuados em situações extraordinárias ou afastadas dequalquer condição de validade jurídica, os testamentos não eram discutidos.Pelo contrário, recebiam o cumpra-se.

A esse respeito, Ana Sílvia Scott, em seu estudo sobre desigualdades navida e na morte no noroeste português, declara:

Quando a morte se aproximava ou, por algum motivo, os paroquia-

nos eram levados a exprimir os seus desejos quanto à realização dos

seus bens da alma, ou à atribuição de um bem a um parente, os

livros de testamentos revelavam as suas últimas vontades.9

No século XIX, a prática de testar era usual entre as elites do ImpérioBrasileiro. Os testamentos oitocentistas, além de conter indicações de carátereconômico, traziam também demonstrações de religiosidade, além de deter-minações para a organização do funeral do testador, a partir do objetivoprincipal de encaminhar sua alma no caminho da salvação.

O principal motivo ou preocupação, ao se fazer um testamento, erao temor do pós morte, assim como as preocupações que envolviam odestino da alma. “Mais do que a morte, nossos ancestrais temiam o Juízo

8 Scott, op. cit., p. 337.

9 Ibidem, p. 328.

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Final, a punição do além e os suplícios do inferno”10, já que a morte eraconsiderada natural, fato inexorável.

O testamento era providenciado quando o testador se achava enfermo oude alguma forma em perigo de morte. No entanto, alguns testamentos foramfeitos em situação diversa, em que o testador se achava com plena saúde, masmovido por outras preocupações, como, por exemplo, o desejo de determinarem vida seus herdeiros, preservando os bens de prováveis aventureiros.

Nos testamentos as famílias são representadas como um conjunto debens, um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico herdado,preservado e transmitido11. A herança formada pelos bens familiares é parti-lhada através dos testamentos. Entretanto, este não se reduz a simples distri-buição de bens. A herança exerce também uma função aglutinadora e man-tenedora de vínculos, através da distribuição de obrigações e responsabilida-des, benefícios e regalias12.

A hora da morte era também hora de assegurar a vida eterna, momentode acerto de contas, de pagamento de dívidas, de distribuição de esmolas,de encomendar missas, velas e orações. Tempo de retrospectiva de vida,permitindo o desnudamento de relações pessoais e familiares, repartindo,relembrando, reparando, recompensando ou punindo.

Os testamentos do século XIX exprimem as relações familiares maispróximas, assim como sua interação com parentela e agregados, revelandotambém o papel social do moribundo presidindo a própria morte, ditandonormas e organizando as pompas fúnebres.

Na oportunidade, os testadores costumavam nomear os santos esco-lhidos como padroeiros ou advogados divinos, indicavam a mortalha ou otraje que consideravam de sua preferência, além de estabelecerem e, nãoraras vezes, pagarem antecipadamente o número de missas que julgassemconveniente. Além desses cuidados, podiam ainda recomendar o númerode padres acompanhando o féretro, assim como qual a cerimônia de enter-ramento e o local da sepultura13.

Os testamentos eram considerados como última oportunidade para umbom encaminhamento da alma no caminho da salvação. Geralmente ditados

10 Duby, Georges. Ano 1000, ano 2000 – na pista de nossos medos. São Paulo: UNESP, 1985, p. 123.

11 Perrot, Michelle. Funções da Família. In: Perrot, Michelle. História da Vida Privada: da RevoluçãoFrancesa à Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 105.

12 Ibidem, p. 114.

13 Reis, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: Alencastro, Luiz Felipe de (Org.).História da vida privada no Brasil. v. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 102.

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pelos moribundos, os testamentos expressavam preocupações e ansiedadesenfrentadas pelos doentes diante da iminência da morte, revelando, portan-to, indícios do imaginário social de uma época:

Declaro que deixo o usufruto de minha casa, sito à Rua da Boa Morte

desta cidade à Antonia Maria Joseti, mulher que vive em minha com-

panhia, sob a condição de satisfazer as despesas de meu funeral e

bem de minha alma, em recompensa pelos serviços que me tem pres-

tado durante a minha enfermidade.14

Logo que eu falecer, se faça o enterro de meu cadáver do modo mais

simples que permite a Igreja e que depois sejam celebradas três missas

em sufrágio de minha alma.15

Peço que no dia do meu passamento sejam celebradas duas missas de

corpo presente e dez posteriormente por minha alma. Peço e muito

recomendo aos meus filhos e herdeiros aqui reconhecidos toda har-

monia e união.16

Além das dificuldades materiais enfrentadas por aqueles que vieram des-bravar as fronteiras da região oeste do Império no século XIX com o intuito decolonizá-las, mantinha-se entre eles a constante preocupação de resguardarseus próprios rituais de morte, voltando-se principalmente para a elaboraçãode testamentos e para a confissão e extrema-unção. Para isso fazia-se necessá-rio trazerem consigo capelães para atender a essas necessidades religiosas17.

A lembrança da morte como algo ordinário, que podia ocorrer a qualquermomento, pode ser considerada como estímulo à confecção de testamentos,principalmente entre as elites. Quando se dava o confronto inevitável entre opecador e a iminência da morte através de perigosas enfermidades, tornava-sedesejável um testamento cristão que obedecesse aos preceitos da IgrejaCatólica e que, em troca, oferecesse certa tranqüilidade para enfrentar omomento da morte. Afinal, “a morte ideal não devia ser uma morte solitária,

14 Testamento de João Augusto Rondon, de 1 de março de 1885.

15 Testamento de Joana Francisca de Souza, de 8 de maio de 1883.

16 Testamento de Antonio de Cerqueira Caldas, de 27 de junho de 1892.

17 Souza, Laura de Mello. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras enas fortificações. In: Souza, Laura de Mello (Org.). História da vida privada no Brasil. v. 1. São Paulo:Companhia das Letras, 1997, p. 54.

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privada. Ela se encontrava mais integrada ao cotidiano extra-doméstico davida, desenhando uma fronteira tênue entre o público e o privado”18.

Muitos testamentos deixaram polpudas quantias em benefício de igrejas,assim como destinadas às missas, obras pias e outras atividades ou instituiçõesreligiosas. Através dessas doações os moribundos buscavam negociar um bomlugar para sua alma ou uma permanência menos longa no purgatório.

O testar envolvia distribuição de obrigações e benefícios aos herdeirosalém da negociação com Deus visando a salvação da alma – que através delepodia ser efetuada por intermédio da interseção dos santos de devoção domoribundo – ou do comprometimento dos herdeiros, devidamente solicita-dos pelos moribundos. Como exemplo de negociação com os herdeiros po-demos citar o caso do testamento de Dona Antonia Maria Ferreira da Silva,que declara ter feito doação causa mortis, de uma casa situada na rua Co-mandante Antonio Maria a Edvirges Antonia de Arruda Penteado. Mas, con-forme seu testamento,

Com a condição de ficar a donatária obrigada a tratar dela, testado-

ra, durante toda a sua vida, tanto no estado de saúde, como nas

enfermidades que viesse a sofrer, e tendo a donatária faltado inteira-

mente a esta condição, pois que, além dos maus tratos dados à sua

pessoa, com o intuito talvez de abreviar a sua existência, levou a

mesma donatária o seu procedimento ao ponto de obrigar ela, testa-

dora, a procurar agasalho e conforto em lugar diverso. Declara por

estas razões revogada a mencionada escritura de doação.19

Philippe Ariès, ao tratar dos testamentos europeus do século XVIII,considera que

(...) o testamento continuava a ser um ato religioso em que o testador

exprimia, através de formalidades mais espontâneas do que se crê, a

sua fé, a sua confiança na intercessão da “corte celeste”, e dispunha

do que lhe era ainda mais caro: o seu corpo e a sua alma. A parte

mais longa do texto continua a ser a profissão da fé, a confissão dos

pecados e a reparação das más ações, a escolha da sepultura, e final-

mente, as numerosas disposições a favor da alma: missas, orações,

18 Reis, 1997, p. 104.

19 Testamento de Antonia Maria Ferreira da Silva, de 14 de agosto de 1891.

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que começavam desde a agonia e eram distribuídas por datas fixas,

perpetuamente.20

A importância do momento da confecção do testamento se prende,normalmente, ao fato de o mesmo representar uma possibilidade de fazerreparações morais do passado do testador, que, só então, poderia pleitearum descanso eterno junto do Criador. Seria, portanto, necessário que houves-se tempo para que esses acertos fossem efetuados, através do testamento.De acordo com João José Reis,

(...) a boa morte significava que o fim não chegaria de surpresa para

o indivíduo, sem que ele prestasse contas aos que ficavam e também

os instruísse sobre como dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus

bens terrenos.21

Os testamentos levantados neste trabalho trazem referências a acertosde contas e pagamentos a credores, além de outros elementos referentes adívidas e promessas não cumpridas em vida, que seriam acertadas principal-mente através de missas, consideradas como a principal “moeda do além”22.

O momento da morte era também um momento de reparação moral,quando “fazer justiça aos que ficavam significava limpar-se para enfrentar ajustiça divina, velhos pecados da carne eram corrigidos na hora da morte,quando pais reconheciam filhos tidos de relações ilícitas”23.

No século XIX, a hora da morte era momento único, solene e decisivo,em que se tornava impossível ludibriar alguém. Momento de uso da verda-de, “entre os limites da vida, da morte e do além, quando as disposições decada testador expressam, explícita e implicitamente, o seu passado e o quenele ficou bem ou mal resolvido”24.

O momento da morte exigia, além dos cuidados especiais com o testa-mento, cuidados também com o corpo e com a alma, pois, além das cerimô-nias de enterramento, faziam-se necessárias cerimônias de extrema-unção,geralmente recebidas pelo moribundo em casa, em meio aos familiares.

Através dos testamentos é possível identificar algumas questões relaci-

20 Ariès, Philippe. O homem diante da morte. v. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 117.

21 Reis, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 92.

22 Reis, 1997, p. 103.

23 Ibidem, p. 104.

24 Paiva, op. cit., p. 95.

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onadas ao imaginário dessas pessoas em busca de recursos ou estratégiaspara minimizar seus sofrimentos e apreensões diante do momento da morteou ainda vislumbrando a possibilidade de descanso eterno num bom lugar.

Ainda que a prática de confecção de testamentos seja pertinente àscamadas privilegiadas da população, encontramos nesses documentos ele-mentos das camadas populares, assim como dos despossuídos, escravos elibertos, que deles participam de forma indireta, recebendo benefícios diver-sos, como cartas de alforria, imóveis, jóias, esmolas, ou mesmo, em casosmais raros, dispondo de seus bens ao fazer redigir seus próprios testamentos.

O Testamento de D. Ignez Maciel Fontes

Em 8 de fevereiro de 1864 compareceu à casa de morada de D. IgnezMaciel de Fontes, situada no número 22 da rua da Mandioca, o Sr. AndréLeiva Pereira Guimarães, primeiro tabelião do Cartório Judicial e de Notas daCidade de Cuiabá, a pedido da proprietária25.

Ao adentrar a referida residência, foi-lhe entregue um papel dizendoser esse o testamento escrito e assinado, a seu rogo, por Antonio PereiraCatilino da Silva, por ela, D. Ignez, não saber ler nem escrever.

O tabelião tomou o papel de quatro páginas nas mãos, viu, mas nãoleu. Reconheceu a autenticidade do documento feito e assinado a rogo datestadora que, embora doente, deitada em uma rede, foi considerada emperfeito juízo e entendimento de seus atos.

O papel escrito continha cinqüenta e nove linhas, contando com a assina-tura, não sendo nele encontrado qualquer borrão, entrelinha ou qualquer outracoisa que pudesse levantar dúvidas sobre a validade de tal documento.

O tabelião inquiriu D. Ignez se o testamento era representativo desuas últimas vontades, recebendo a resposta de que, sem dúvida, ela otinha por “bom, firme e valioso”, e para isso pedia que fosse lavrado oinstrumento de aprovação.

Isso feito, o cidadão Antonio Pereira Catilino da Silva assinou pela testa-dora, que, conforme dito, não sabia ler nem escrever, seguido das testemu-nhas reverendo José Martins da Cruz Marcelino Rodrigues Lisboa, ManoelAntonio Fernandes de Queiroz, Manoel Batista Carvalho, Eurico Batista Lis-

25 O testamento de Ignez Maciel Fontes foi registrado no Livro nº 001, de acordo com artigo 28 doregulamento nº 03, de 30 de Dezembro de 1882.

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boa e André Leiva Pereira Guimarães.O ato de formalização dos últimos desejos de uma pessoa, na cidade de

Cuiabá do século XIX, permite que alguns aspectos dessa realidade sejaminvestigados e reconstruídos. A doente era uma mulher que contava comamparo legal e emocional, pois deliberava sobre seus bens em testamentocercada por um grupo de pessoas atentas aos acontecimentos e ao seu esta-do de saúde, porquanto não considerava desejável a morte sem a participa-ção e assistência dos familiares.

Um aspecto que extrapola a mera legalidade é o da religiosidade en-volvida no ato. Ao abrir mão de seus bens, distribuindo-os, a moribunda pro-cura desfazer-se pouco a pouco de todos os vínculos materiais que a ligam àterra e passa a preocupar-se e preparar-se para uma outra etapa, onde sótêm validade as coisas da alma26.

Os últimos momentos da vida de Dona Ignez contaram com a pre-sença do padre José Martins da Cruz Marcelino Rodrigues Lisboa, que,além de exercer a função de testemunha, cumpria a piedosa obrigaçãode preparar a moribunda para a passagem para além da vida. Após ouvira confissão da enferma, dá-lhe a absolvição dos pecados seguida da ex-trema-unção, com objetivo de garantir-lhe uma morte tranqüila, a partirda certeza do descanso eterno em um bom lugar.

Natural da província de Mato Grosso e da paróquia de Nosso SenhorBom Jesus de Cuiabá, filha legítima dos finados Teodoro José das Neves e deD. Ignez Maciel de Fontes, Ignez fora casada com Miguel de Souza Lima, dequem era viúva há muitos anos e com quem não teve filhos. Portanto, pode-ria deliberar ou dispor com total liberdade sobre os bens que possuía.

Católica praticante, sentindo sua saúde debilitada e em seu juízoperfeito, sente necessidade de registrar suas últimas vontades em umtestamento, pois temia a morte repentina. Um dos meios de se prepararpara esse momento, principalmente entre as pessoas mais abastadas, eraredigir um testamento.

Presidindo sua morte, D. Ignez delibera em seu testamento sobre oscuidados que julga necessários para com o seu corpo, assim como os rituaisindispensáveis para a sua alma, expondo, deste modo, os costumes e aspreocupações morais e religiosas de uma época, além de outras questõesmateriais que também a preocupavam. Quem deveria herdar determinada

26 Duby, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988,p. 17.

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propriedade? Quem teria mais direito a receber determinado benefício?Ao libertar-se dos bens materiais era preciso um cuidado especial em

relação a alguns critérios, pois, além de elencar os herdeiros havia a necessi-dade de se efetuar antecipadamente o pagamento das missas e de outrosencargos ligados aos atos fúnebres, considerados necessários para o benefí-cio da alma da moribunda, que fez também as recomendações necessáriaspara o enterramento de seu corpo.

A leitura do testamento de D. Ignez permite o levantamento de váriasinformações a respeito das relações do homem e da mulher do século XIXdiante da morte, em Cuiabá. Objeto de estudo da História das Mentalidades,que analisa o fenômeno culturalmente, pois, conforme Vovelle, “nada é maiscultural do que a morte”27. Observam-se, nesse acontecimento, atitudes cons-cientes e inconscientes, onde a mentalidade e a cultura revelar-se-ão muitomais através de atos do que de palavras.

O testamento de Dona Ignez Maciel Fontes, contando com seis pági-nas, inclusive o auto de aprovação, foi ditado pela moribunda e redigido, nomesmo momento, pelo tabelião José Ferreira Mendes, com o objetivo deregistrar as últimas vontades da testadora, uma mulher da elite cuiabana que,por esse documento, dispõe de seus bens de acordo com sua vontade.

Esses documentos têm por isso limitações enquanto expressão dos

valores e sensibilidades de seus titulares. Mas, por maior que tenha

sido a influência dos escrivões e outras pessoas em redigi-los, eles

revelam uma parte importante da alma de quem os ditava.28

Nesse documento, D. Ignez procurava atender seus anseios de mulherreligiosa do século XIX:

(...) em nome da santíssima trindade, padre filho e espírito santo três

pessoas realmente distintas e um só deus verdadeiro (...).29

Assim se inicia o testamento de D. Ignez, fazendo uma simples e breveinvocação às três principais figuras do cristianismo, indicativa de sua forma-ção religiosa, confirmada quando a testadora é então identificada:

27 Vovelle, Michel. Ideologias e Mentalidades. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 134.

28 Reis, 1997, p. 93.

29 Testamento de Ignez Maciel Fontes, de 16 de abril de 1884.

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Eu, Ignez Maciel de Fontes, natural desta Província e freguesia desta

Paróquia, filha legítima dos finados Teodoro José das Neves e D. Ig-

nez Maciel de Fontes, como cristã Católica Apostólica Romana que

sou, em cuja religião nasci, cresci e fui educada, e em que felizmente

tenho convivido e espero morrer (...).30

Ela se declara como uma mulher que se encontra diante da morte e que,apesar de provavelmente debilitada pela doença, pode dispor do que é seu:

(...) Achando-me doente, mas em meu perfeito juízo. Faço aqui as

minhas últimas declarações e disposição pela forma e maneira se-

guinte (...).30

A partir dessas considerações iniciais, vêm as recomendações referen-tes aos cuidados a serem tomados com seu corpo e sua alma, após seufalecimento:

(...) logo que eu faleça e tenha o meu corpo de dar a sepultura reco-

mendo que seja envolvido em um hábito do Carmo e conduzido em

caixão para ser enterrado em cova da irmandade do Senhor Bom

Jesus dessa cidade de que sou indigna irmã, é minha vontade que

não haja por minha morte senão os sinais de toques de sinos reco-

mendados pelo setor da Santa Igreja em tais circunstâncias e as reco-

mendações ou encomendações que a mesma ordena em toda simpli-

cidade e humanidade própria do cristão.30

Frente à iminência da morte os cristãos costumam utilizar-se de todos ossacramentos oferecidos pela Igreja, buscando minimizar as tensões que envol-vem esse momento. É quando mesmo aqueles das posições mais privilegiadas,que viveram com as pompas e facilidades de uma classe social privilegiada,parecem se transformar. É o momento em que muitos buscam simplicidade ehumildade. Entretanto, fazem recomendações especiais visando a tranqüilidadee a salvação da alma, enquanto que o corpo deve receber os paramentos usuais.

(...) os bens da alma ocupavam um lugar importante não só ao nível

puramente religioso, mas constituíam também um forte traço de dis-

30 Idem.

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tinção social e econômica. (...) Ao falecer, não só era necessário pro-

curar garantir a passagem para a vida eterna com o apoio de toda a

corte do céu e de todos os santos, como também cumprir, diante da

comunidade, no mínimo, os usos e costumes da esfera social em que

estavam integrados.31

Dona Ignez recomendava alguns cuidados especiais para com seu cor-po, devendo ser o mesmo amortalhado e inumado de acordo com seus dese-jos, envolto em um hábito do Carmo, indicando o costume dos defuntosserem enterrados vestidos de mortalhas de santos.

Nos testamentos aqui analisados foram encontradas indicações de pre-ferências pela utilização do hábito de São Francisco, entre os homens, e dohábito de Nossa Senhora, entre as mulheres.

Existe também, permeando o imaginário desse cristão, o medo do fogodo inferno ou dos infortúnios do purgatório, um terceiro espaço entre o céue o inferno, o que implica, conforme Le Goff, na crença da imortalidade daalma e na concepção de julgamento dos vivos e dos mortos32.

A variedade de julgamentos que compreende a existência de um pur-gatório é muito original. Apóia-se, com efeito, na crença de um julgamentoduplo, o primeiro no momento da morte e o segundo no fim dos tempos.

É em virtude de muito temerem esse último julgamento do final dostempos que os cristãos se apegam a determinadas práticas de “negocia-ção” com o além. Para aquele que crê nos fundamentos cristãos, faz partede sua vida, e principalmente dos últimos momentos dela, o preocupar-secom o pós-morte; afinal, para o homem religioso o além é um grandehorizonte, pois a vida do crente transforma-se quando ele pensa que nemtudo fica perdido com a morte33.

D. Ignez pede que seu corpo seja inumado em cova da Irmandade doSenhor Bom Jesus de Cuiabá, a irmandade mais antiga da cidade, que con-gregava homens e mulheres brancos.

O Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus de Cuiabá podeser o que a caracteriza como uma confraria representativa da elite cuiabana,composta por brancos abastados, pois vedava, através de altos valores cobra-dos por jóias e mensalidades, qualquer possibilidade de participação a gru-

31 Scott, op. cit., p. 328.

32 Le Goff, Jacques. A bolsa e a vida – a usura na idade média. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 74.

33 Ibidem, p. 90.

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pos sociais formados por pardos e negros34.O artigo número 5 do Compromisso da Irmandade afirma que dela

participará número ilimitado de irmãos e irmãs, os quais deverão ser pessoasbrancas, cristãs e batizadas. Não podem ser infames, devem ser pessoas deboa consciência, tementes a Deus, que não sejam envolvidas em juízo quemereça pena vil e, finalmente, que possua boas condições de sobrevivênciapara que as jóias e outros encargos ou anuidades designados pela irmandadenão lhe sejam de difícil pagamento35.

Esse artigo confirma a característica elitista da Irmandade do SenhorBom Jesus, pois enumera todos aqueles que não poderiam participar de seugrupo seja por motivos religiosos, sociais, econômicos ou étnicos. A irmanda-de evocava um perfil ideal para os irmãos se enquadrarem. Pergunta-se serealmente esse padrão era observado por todos os seus integrantes.

As determinações a serem observadas quando do enterramento dosirmãos são enumeradas no artigo 24 do Compromisso da Irmandade:

Terá esta irmandade cinquenta sepulturas sagradas para serem en-

terrados irmãos e mais pessoas a que a irmandade deve dar sepultu-

ra, não se tirando a liberdade que cada um tem de mandar enterrar

seu corpo no Adro ou Cemitério que bem lhe parecer, conforme sua

devoção, e estas sepulturas serão no Consistório que desde os princí-

pios da igreja do Cuiabá tem servido para os ajuntamentos dos devo-

tos do Bom Jesus, a fim de em nada prejudicarem os direitos paroqui-

ais, até que possam ser mudadas para um Cemitério decente como

por Vossa Majestade já está determinado. Será o esquife adornado

com decência para nele se conduzir os corpos à sepultura e terá doze

opas roxas à custa da irmandade para os irmãos saírem com elas nas

procissões, acompanhamentos e outras funções da irmandade.35

D. Ignez certamente foi enterrada pela irmandade do Bom Jesus, rece-bendo todos os cuidados e honrarias devidos ao seu corpo e à sua alma, deacordo com as determinações do compromisso da irmandade, sendo seu cor-po transportado por um esquife adornado especialmente para esse momento.

As preocupações com o além-túmulo determinavam que muitos cris-

34 Siqueira, Elizabeth Madureira. A irmandade do S. Bom Jesus, padroeiro de Cuiabá: devoção, resistênciae poder. Cuiabá, 1993. (Mímeo).

35 Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, de 1865.

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tãos procurassem, de acordo com suas posses, solicitar a celebração de gran-de quantidade de missas. A Irmandade do Bom Jesus trazia em seu compro-misso uma determinação a respeito:

Será esta irmandade obrigada a mandar dizer sete Missas pela alma

de cada irmão ou irmã que falecer e o seu corpo será acompanhado

pelo Capelão e irmãos, conduzido no esquife da irmandade para se

dar à sepultura.35

No entanto, D. Ignez foge totalmente à determinação acima, quandopede que em sufrágio de sua alma, sejam celebradas 400 missas distribuídasde acordo com sua vontade, conforme indica seu testamento.

(...) é minha vontade, que o meu testamenteiro mande celebrar em

sufrágio de minha alma 400 missas, incluindo nesse número as de

corpo presente que se vão de celebrar no dia do meu falecimento,

terceiro, sétimo e trigésimo em cujos dias celebrarão todos os sacer-

dotes que se acharem presentes nessa cidade e queiram celebrar (...).36

Ela parecia temer bastante o que lhe reservava o pós-morte, ou talvezsua grande religiosidade e consciência cristã lhe determinassem a necessida-de de tantas missas em datas diversas. Percebe-se uma esperança de bene-fícios nessa permuta espiritual.

Após a leitura de vários testamentos, constata-se que era realmentecomum a preocupação do testador em solicitar um certo número de missas.No entanto, esse número dificilmente chegava a dez por cento daquele so-licitado por D. Ignez. Daí uma questão: por que a solicitação de um númerotão expressivo de missas em sufrágio de sua alma? Que pecado teria come-tido D. Ignez para justificar seus últimos atos?

O oferecimento de cartas de liberdade ou de alforria a determinados escra-vos, era expediente relativamente comum de negociação, afinal a paz eternapoderia ser conquistada a partir da gratidão de beneficiados mais humildes.

Essa liberdade poderia ainda ser proporcionada através de um contratode quartamento realizado ou firmado entre o escravo e o seu senhor.

No testamento de D. Ignez encontram-se algumas informações sobreesse procedimento:

36 Testamento de Ignez Maciel Fontes.

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(...) Ana Criola deixo quartada pelo preço e quantia de trezentos mil

réis, Joana Parda pela quantia de trezentos mil reis, cujas quantias

entregaram ao prazo de dois anos ao meu testamenteiro e esse lhes

passará suas respectivas cartas de liberdade e se neste caso por algum

motivo justo não derem a dita quantia ao testamenteiro, lhes conceda

mais a metade do dito prazo e se ainda nesse prazo não apresentarem

o valor dos seus quartamentos serão vendidas e seus produtos depois

de satisfazer todas as disposições do presente testamento, será entre-

gue ao supremo eclesiástico para este aplicar a terceira parte do rema-

nescente em obras de modo que mais possa aproveitar a minha alma

duas outras partes mandará celebrar em missas por minha alma (...).37

O contrato de quartamento que envolve as escravas Maria Criola eJoana Parda indica que elas teriam um prazo estipulado para pagar ao testa-menteiro de D. Ignez a quantia de trezentos mil réis, cada uma delas, emtroca de sua liberdade, e, caso não conseguissem saldar a dívida nesse prazo,era-lhes oferecido mais um ano para que pagassem a quantia definida. Se aofim desse prazo não conseguissem o pagamento, então seriam vendidas e odinheiro apurado seria entregue à Igreja para o utilizar como melhor lheparecesse. Uma parte desse valor é reservada para ser empregada em mis-sas dedicadas à alma da testadora. O quartamento pode ser definido comoum instrumento legal, onde

(...) era definido um valor para o escravo e um prazo dentro do qual

ele deveria pagar a quantia ao seu senhor (...) após o cumprimento

do contrato, o documento era levado ao cartório para ser registrado

juntamente com a carta de liberdade (...).38

D. Ignez elaborou um testamento bastante diferenciado, pelo qualnão deixou cartas de alforria aos seus escravos, mas sim a possibilidade deeles virem a consegui-la através desses contratos de quartamento. Por ou-tro lado, a testadora buscou, através da Igreja, garantir mais benefícios a suaalma, pois, além das quatrocentas missas sugeridas no seu testamento emlouvor de sua alma, deixa outros benefícios a serem distribuídos entre di-versas capelas ou igrejas.

37 Idem.

38 Volpato, Luíza Rios Ricci. Cativos do Sertão – Vida cotidiana e escravidão em Cuiabá: 1850-1888. SãoPaulo: Marco Zero / Cuiabá: EdUFMT, 1993, p. 117.

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(...) deixo para o altar do Santíssimo Sacramento a quantia de sessenta

mil reis para o Senhor Bom Jesus sessenta mil reis para Nossa Senhora

da Conceição trinta mil reis para Santa Ana trinta mil reis e uma cruz

de pedra de topázio para Nossa Senhora das Dores trinta mil reis para

Nossa Senhora das Dores trinta mil reis, para a capela do senhor dos

passos desta capital uma imagem de São Geronimo para a capela de

Nossa Senhora do Bom Despacho trinta mil reis, para a da Boa Morte

trinta mil reis cuja quantia salvas as respectivas tachas serão entregues

por meus testamenteiros a sua excelência reverendíssima ao senhor

bispo para me fazer a caridade de aplicar naquilo que julgar mais

consciente a glória e honra de Deus e salvação da minha alma.39

A distribuição de benefícios não se fazia de maneira igualitária entre ascapelas e altares privilegiados pela testadora, enquanto os altares do Santíssi-mo Sacramento e do Senhor Bom Jesus receberiam a mesma quantia desessenta mil réis, outros altares receberiam quantias inferiores. Todo essedinheiro, entretanto, conforme o testamento seria entregue ao bispo paraentão aplicá-lo de maneira que mais julgasse conveniente, desde que fosseem busca da honra de Deus e salvação da alma da testadora.

Mais uma vez surge a preocupação da testadora voltada para a condiçãode sua alma e, mais propriamente, para sua salvação. A leitura do documentosugere, a todo instante, a existência de um grande temor aterrorizando-a, omedo do inferno ou o medo de que sua alma não encontre a liberdade prome-tida para aqueles que, após a morte, vislumbravam o céu ou mesmo umapassagem pelo purgatório, desde que o céu fosse o próximo destino.

Preocupada, D. Ignez indica em seu testamento a distribuição de valo-res em dinheiro que pudessem ser revertidos em ajuda na busca de um bomlugar para sua alma, ainda que com uma provável passagem pelo purgatório.Essa estada no purgatório não dependia apenas dela, mas também das rela-ções estabelecidas com familiares ou outros grupos de convivência que apudessem abreviar através de suas orações.

(...) que é minha vontade que logo que possa ser o meu testamento

entregue ao reverendo paroquial desta freguesia a quantidade de cin-

qüenta mil reis para ser distribuído para todas as famílias verdadei-

ramente pobres (...).39

39 Testamento de Ignez Maciel Fontes.

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Tem-se aqui outra atitude louvável por parte da testadora, mas que tal-vez possa ser interpretada como mais uma forma de buscar o reino dos céusem troca de alguns mil réis. A esse respeito, Le Goff afirma que “os poderosose ricos davam ferros, dinheiro, ourivesarias, rendas, os pobres, alguns de seusfilhos, os óbitos dos mosteiros, as prendas mais humildes (....)”40.

Como D. Ignez era possuidora de bens e temente dos males do infernoe mesmo dos infortúnios do purgatório, procurou, através do seu testamen-to, designar certa quantia em dinheiro para pessoas necessitadas, pobres oumiseráveis. Esse momento, apresentava-se-lhe como uma oportunidade dedemonstração de fé cristã assim como da prática de ensinamentos religiosos,que estimulavam a distribuição de benefícios. Afinal, não é dando que serecebe? Então por que não, em troca, receber o reino dos céus?

Imaginando D. Ignez como uma pecadora que procura, nos últimosmomentos de sua vida, determinadas formas de se salvar do fogo eterno doinferno, pode-se lembrar do desespero dos usurários descrito por Le Goff:

(...) a agonia do usurário é a esse respeito particularmente angusti-

ante: tanto por praticar uma profissão considerada ilícita por natu-

reza quanto pela condição de indivíduo, é um condenado vivo que

se aproxima da boca do inferno. Poderá ser salvo no último momen-

to? Terrível suspense.41

D. Ignez continua sua negociação em busca do céu. A testadora passaentão a distribuir benefícios em dinheiro inicialmente destinados a uma festi-vidade do divino Espírito Santo; depois a diversas pessoas do seu relaciona-mento pessoal:

(...) que o meu testamenteiro entregará ao inspirado da festividade

do espírito santo a quantia de quarenta mil réis em satisfação de um

voto meu, e assim mais entregará a Isabel Filha de Timóteo Pires

Lisboa a quantia de cinqüenta mil réis, a Ana de Silva filha do finado

Manuel José Moreira cinqüenta mil réis, a minha afilhada Joana filha

de minha comadre Isabel Gonçalves cinqüenta mil réis, a minha dita

comadre quarenta mil réis (...).42

40 Le Goff, op. cit., p. 67.

41 Ibidem, p. 77.

42 Testamento de Ignez Maciel Fontes.

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Estaria ela, ao distribuir esses benefícios, procurando se livrar de valoresou bens materiais que de alguma forma pudessem atrapalhar sua caminhadapelo purgatório em busca dos céus? Não tendo filhos, ela privilegia em seutestamento, além do pároco e dos altares de igrejas locais, afilhadas, coma-dres e outras mulheres não identificadas como de seus laços familiares. Nãocontaria ela com outros parentes vivos? Ou teria deliberadamente feito aopção de não privilegiá-los?

Pelas indicações de seu testamento, ela prefere privilegiar, com oremanescente de seus bens, a Benedita das Neves, referenciada como es-posa do Sr. Francisco das Chagas, a quem o seu testamenteiro deveria en-tregar, conforme suas últimas determinações, o seu escravo Faustino, alémda quantia de cem mil réis em dinheiro, àquela a quem intitula como suaúnica e universal herdeira.

Georges Duby caracteriza muito bem a preocupação que envolve o per-sonagem Marechal nos últimos momentos de sua vida, quando ele se desvinculade todos os seus bens materiais indicando, no seu leito de morte, a quem sedestinaria cada artigo que faz parte de seus bens pessoais e familiares43.

A preocupação do moribundo seria obter a garantia de não ser sua almajogada no inferno; em vez disso, procurava garantir ou negociar uma estadiapelo purgatório, pois, conforme Le Goff,

(...) os mortos no purgatório, sobretudo, estavam seguros de que

depois de passar por provações purificantes seriam salvos e iriam

para o paraíso. O purgatório, em verdade, tem apenas uma saída. O

essencial acontece quando o morto é enviado ao purgatório ele sabe

que finalmente será salvo, o mais tardar para o mandamento do

juízo final (...).44

A testadora enumera, em seguida, bens móveis e imóveis, assim comoobjetos de uso pessoal:

(...) declaro que possuo uma morada de casas na Rua Mandioca,

uma salva e três colheres de prata, um par de caixas sem encourar,

uma caixa grande, dois tachos sendo um grande e um pequeno,

quarenta dúzias de contas de ouro. Deixo os trastes da minha ser-

43 Duby, 1988, p. 26.

44 Le Goff, op. cit., p. 76.

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ventia por serem de nenhum valor as minhas escravas: Joana, Teodo-

ra e Ana (...).45

A indicação do endereço de sua casa de morada também poderia serutilizada como indicativo de sua condição social e econômica: a antiga ruada Mandioca, hoje uua Pedro Celestino, é uma das mais centrais da cida-de; a residência de D. Ignez estaria localizada nas proximidades do centroda cidade de Cuiabá, logo, área mais valorizada, onde a elite cuiabanaconstruía suas residências.

Para as suas escravas Joana, Teodora e Ana, D. Ignez deixou apenasos trastes de sua serventia, por “serem de nenhum valor”. Essa declaraçãovem complementar uma outra referente a seus escravos, quando ela dei-xa a eles a possibilidade de alcançarem a liberdade através de um contra-to de quartamento.

(...) declaro que possuo sete escravos de nome Pedro Cabra, Manoel

Pedro, Bonifácio Crioulo, Teodoro Crioulo, Joana Parda e Faustino Cri-

oulo. Aos quatro primeiros dei liberdade por carta de alforria passadas

em diversas ocasiões, cujas liberdade presente ratifico. A escrava Ana

Crioula deixo quartado pelo preço e quantia de trezentos mil réis (...).45

Essas disposições oferecem elementos para se imaginar as condiçõesde submissão a que estavam sujeitos os escravos, que traziam incorporadaaos seus nomes, de forma explícita, sua condição de cativos, através da indi-cação da cor de sua pele.

No entanto, as condições específicas em que são enunciados essesescravos, uns recebendo cartas de alforria sem quaisquer imposições, en-quanto outros pagavam pela liberdade, apontam para diferentes relaçõesentre a senhora e seus escravos.

Por que uma senhora tão religiosa e caridosa para com a Igreja e ospobres não ofereceu, como era relativamente comum, a liberdade irrestritaaos seus escravos? Por que solicitou a seus testamenteiros uma grande quan-tidade de missas e não proporcionou a liberdade aos seus cativos? D. Igneznão considerou algumas Cartas de Liberdade como moedas de valor na ne-gociação pós-morte que lhe garantissem benefícios?

Em seguida, D. Ignez identifica os seus testamenteiros escolhidos, que

45 Testamento de Ignez Maciel Fontes.

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teriam como missão executar as suas últimas vontades:

Nomeio para o meu testamenteiro em primeiro lugar o padre José

Joaquim dos Santos Ferreira, em segundo o tenente Antônio de Pi-

nho Azevedo, em terceiro a Francisco Fernandes da Silva, pela muita

confiança que tenho na boa fé, inteligência e amizade que sempre

me tributaram, a cada um dos quais dou por abandonado em juízo

ou fora dele e concedo o prazo de três anos para a prestação de

contas do presente testamento.45

Após a indicação, por medida de segurança, de três expoentes da elitecuiabana como responsáveis pela execução de seu testamento, finalmenteD. Ignez dava por encerrados seus últimos pedidos e reivindicações, en-quanto declarava sem efeito qualquer testamento efetuado anteriormente,seja por palavras ou por escrito, e reafirmava que este era o testamento queteria valor real, pois refletia as suas verdadeiras e últimas vontades:

(...) declaro finalmente que agora tenho como nulo e dou por ne-

nhum qualquer testamento feito antes deste, feito por palavra ou por

escrito ou em qual quer maneira, para que não valha, salvo este que

agora faço, quero que este seja meu testamento, se assim puder valer,

por esta a disposição de minha ultima vontade, tendo assim conclu-

ído este meu testamento que é feito ao meu pedido (...).45

Os testamentos do século XIX indicavam, além dos cuidados especiaisvoltados para as questões da alma, aqueles relativos com o corpo e com ascerimônias de enterramento, sendo necessária a extrema-unção, geralmenterecebida em casa, em meio aos familiares. No entanto, nem todos recebiamessas cerimônias em virtude da falta de párocos na Província de Mato Grossopara atender todos os fiéis, sendo comum haver reclamações nesse sentidonos relatórios de presidentes de província.

Os testamentos do século XIX são ricos documentos, plenos de signosque podem colaborar no desvendamento do cotidiano e relações sociais dehomens e mulheres do período oitocentista.

Esses documentos costumam apresentar as condições consideradas in-dispensáveis pelos moribundos para uma “boa morte”; trazem com detalhesas preferências pessoais quanto às cerimônias e serviços fúnebres, havendo,no entanto, contrastes com aqueles que deixavam todas essas questões a

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cargo de seus herdeiros ou dos testamenteiros escolhidos. Foi possível per-ceber, nesta pesquisa, que a morte se constituía em uma preocupação bas-tante presente no imaginário social das elites da cidade de Cuiabá da segun-da metade do século XIX.

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Resumo

O artigo narra a descoberta de uma pintura emtecido representando a Santa Ceia, em Vila Bela daSantíssima Trindade – cidade do século XVIII fun-dada para ser a capital da Capitania de Mato Gros-so –, sem nenhuma referência de origem, e todo oprocesso de pesquisa na tentativa de situá-la nocontexto artístico e histórico do Brasil Colônia.

Palavras-chave:

Pano-de-boca-de-tribuna – Pano-de-boca-de-altar –Santa Ceia – Vila Bela da Santíssima Trindade – ArtesPlásticas em Mato Grosso – Francesco Bartolozzi

Abstract

The article tells the discovery of a painting in fabricrepresenting the Last Supper, at Vila Bela da Santís-sima Trindade – a city of the 18th century establishedto be the capital of the Capitania de Mato Grosso –,without any reference of origin, and all the processof research in the attempt of points out it in theartistic and historical context of Brazil Colony.

Keywords:

Last Supper – Vila Bela da Santíssima Trindade –Plastic Arts in Mato Grosso – Francesco Bartolozzi

A Santa Ceia deVila Bela da Santíssima Trindade

Cláudio Quoos Conte*

* Bacharel e licenciado em História pela UFMT, Diretor da 18ª Sub-Regional do IPHAN em Mato Grosso.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

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A pintura representando a Santa Ceia, pertencente ao acervo de artesacra remanescente das antigas igrejas de Vila Bela da Santíssima Trindade,constitui-se em uma raridade nas artes plásticas brasileiras. De grandes di-mensões, 535cm (cinco metros e trinta e cinco centímetros) de altura por280cm (dois metros e oitenta centímetros) de largura, tem a tinta aplicadadiretamente sobre o tecido, sem base de preparação, e também sem moldu-ra ou bastidor. Essa obra levanta uma série de questionamentos, alguns dosquais discutimos neste artigo.

Para uma melhor compreensão, é preciso situar historicamente essapintura. Vila Bela foi fundada em 1752, às margens do rio Guaporé, nosdisputados limites dos impérios coloniais português e espanhol na Américado Sul, com a função de exercer o papel de capital da recém-criada Capita-nia de Cuiabá e Mato Grosso, e por cerca de 70 anos desempenhou talfunção. Em seu período áureo, além de uma série de construções civis emilitares como quartel, casa de câmara e cadeia, palácio dos capitães gene-rais e casa de fundição, teve também três igrejas: Santo Antônio dos Militares,Nossa Senhora do Carmo e Matriz da Santíssima Trindade.

A fixação e pacificação da fronteira, a partir de princípios do século XIX,e as péssimas condições de salubridade do local levaram ao paulatino aban-dono da cidade pelo aparato burocrático militar ainda durante o períodocolonial, e definitivamente após a Independência, com a mudança da capi-tal, da já então Província, para Cuiabá.

Vila Bela ficou sendo habitada por seus antigos escravos, abandonadospor seus antigos senhores em situação bastante precária. Praticamente todas assuas construções ruíram. Das igrejas de Santo Antônio e de Nossa Senhora doCarmo subsistem só as fundações, sendo as da primeira junto ao cais no rioGuaporé, e as da segunda dentro do atual cemitério da cidade. Da Matriz daSantíssima Trindade, cuja construção foi iniciada em 1796 e nunca completa-mente terminada, subsistem monumentais ruínas em adobe com a base empedra canga lavrada, num primoroso trabalho de cantaria. Fora isso, restaramuma série de imagens, algumas poucas alfaias e a pintura objeto deste artigo.

Até 1998, quando encontramos a referida obra em um depósito daprefeitura local, enrolada no chão, havia já um inventário executado peloIPHAN, em l988, do qual constavam diversas outras peças do acervo de VilaBela, mas nele não havia qualquer referência à referida Santa Ceia. Supúnha-mos ser obra antiga devido ao passado de opulência da vila, e, levando-seem conta as dimensões da obra, seria praticamente impossível que a pinturativesse sido executada ou enviada para Vila Bela após a Independência.

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O péssimo estado de conservação em que se encontrava o painellevou-nos a imediatamente iniciar os trâmites burocráticos com vistas a suarestauração, que acabou por acontecer no Atelier Marilka Mendes Conser-vação Restauração Consultoria, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Dequalquer maneira, continuávamos sem nenhuma informação acerca da obra,fora o óbvio: uma pintura em tecido, de grandes dimensões, no sentidovertical, representando a Santa Ceia.

Nosso desejo era conhecer o significado e a função desse tipo de pintu-ra no interior de uma igreja e, em função disso, passamos a entrar em contatocom técnicos do IPHAN e restauradores. A primeira conversa, telefônica, foicom Til Pestana, historiadora da arte e diretora do escritório do IPHAN emDiamantina (MG). Ao descrevermos a peça ela imediatamente aventou ahipótese de tratar-se de um “pano de boca de altar”, peça típica de igrejasbarrocas que tinham por função ocultar as imagens durante as cerimônias daSemana Santa, funcionando como uma espécie de cortina de retábulo, geral-mente sem uma grande qualidade artística. Ressaltou, a historiadora da arte,que esse tipo de pintura era ainda bastante comum em igrejas portuguesas,mas que no Brasil tratavam-se de raridades. Como a descrição a priori encai-xava-se ao tipo de pintura encontrada em Vila Bela, passamos a denominá-ladessa forma. Soubemos, através da Professora Beatriz Coelho, restauradorado Centro de Estudos de Conservação e Restauração (CECOR), da Universi-dade Federal de Minas Gerais, localizado em Belo Horizonte, um dos centrosde excelência de restauração no Brasil, que uma peça de dimensões aproxi-madas às da de Vila Bela, representando uma Nossa Senhora e pertencentea uma Igreja de Paracatu (MG), havia sido restaurada pelo CECOR naqueleperíodo. Também obtivemos a informação de que a Igreja de Nossa Senhorado Carmo da Antiga Sé, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro,possuía um “pano de boca de altar” em seu altar-mor.

Posteriormente, na continuidade da pesquisa, pudemos observar noMuseu do Diamante, em Diamantina (MG), unidade do IPHAN naquela cida-de, em exposição, uma peça referida como “pano de boca de altar”. Tratava-se de uma pequena cortina, bastante simples, de 252cm (dois metros ecinqüenta e dois centímetros) de altura por 109cm (um metro e novecentímetros) de largura em cada uma das metades, com figuras soltas eajoelhadas com as mãos postas, em posição de oração, pintadas sobretecido amarelecido pelo tempo. No entanto, no catálogo do mesmo mu-seu há uma pintura classificada com a seguinte legenda: “pano de bocade tribuna, têmpera sobre linho, sec. XIX, Nossa Senhora das Mercês, São

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Raimundo, Nonato e São Pedro Nolasco”1, cujas dimensões são 478cm(quatro metros e setenta e oito centímetros) de altura por 436cm (quatrometros e trinta e seis centímetros) de largura. As figuras representadasfazem parte de uma composição sobre um fundo azul, embora seja pos-sível observar que não existe base de preparação e nem bastidor.

Observamos também o “pano de boca de altar” da Igreja do Carmo daAntiga Sé do Rio de Janeiro, que se constitui em uma representação deNossa Senhora rodeada de santos e anjos. Essa pintura é imensa, com aproxi-madamente três metros de largura por oito metros de altura, possui base depreparação e bastidor. Este “pano de boca de altar” ainda exerce a funçãopara a qual foi executado e, como possui bastidor, pode ser puxado sobreroldanas, fechando, como uma imensa tela, o nicho ou camarim do altar-morda referida igreja. Sandra Alvim, em Arquitetura Colonial Religiosa no Riode Janeiro, assim se refere sobre esta pintura: “Caso único dentre os retábu-los coloniais do Rio, o nicho, circundado por moldura plana com ornatostambém planos e repetidos, pode ser fechado com um painel pictórico”2.

Como não encontramos qualquer referência bibliográfica específica so-bre “pano de boca de altar” e “pano de boca de tribuna”, levamos em conta assimilaridades observadas durante a pesquisa nos tipos de um e de outro com aSanta Ceia de Vila Bela, e cremos poder afirmar que esta pintura seria um“pano de boca de tribuna”. Nas duas peças classificadas como “pano de bocade altar”, uma no Museu do Diamante, em Diamantina, e outra no altar-mor daIgreja do Carmo da Antiga Sé no Rio de Janeiro, a primeira funciona comocortina, sendo dividida ao meio, sem bastidor, e a segunda é uma imensa tela,que conta com base de preparação e é puxada sobre o camarim.

Já a pintura de Vila Bela, pela representação contida, presa ao meiocomo cortina perderia totalmente o sentido, além de não contar com qual-quer marca indicativa da existência de um bastidor. Antes da restauração aobra possuía pequenas argolas metálicas, atuais, costuradas em sua parteposterior, e mais recentemente foi fixado um velcro para facilitar sua expo-sição. O “pano de boca de tribuna” do Museu do Diamante não possui basede preparação e nem bastidor, como a Santa Ceia de Vila Bela, e suas dimen-sões também são aproximadas. Como a tribuna é um balcão que se abre paraa capela-mor ou para a nave das igrejas barrocas ou coloniais brasileiras, estas

1 IPHAN. Catálogo Museu do Diamante. s.d., p. 42.

2 Alvim, Sandra Poleshuck de Faria. Arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro: revestimentos,retábulos e talha. v. 1. Rio de Janeiro: UFRJ / IPHAN, 1996, p. 100.

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pinturas eram jogadas sobre o balcão, ficando expostas na capela-mor ou nanave da igreja. Isto justifica o fato de esse tipo de pintura ser feita diretamen-te sobre o tecido, sem base de preparação.

Como a base de preparação é feita com gesso, carbonato de cálcio oumateriais similares mais um adesivo, com a função de alisamento do tecido,poderia haver posterior craquelamento das telas. Esse procedimento nãoseria viável para uma pintura que seria enrolada e posteriormente lançadade uma tribuna, onde ficaria presa; caso houvesse base de preparação, ocraquelamento seria imediato, e sem a base, apesar de ficar mais rústica, apintura ficaria muito mais resistente.

Concomitantemente ao levantamento das informações acima, tambémse colocaram outras questões referentes à Santa Ceia de Vila Bela, como arepresentação pintada e sua autoria. Chamou a atenção, desde o início, osentido vertical de uma pintura da Santa Ceia, pois comumente estamoshabituados a representações no sentido horizontal, seja pela mundialmentefamosa “Ceia”, de Leonardo da Vinci, do Convento de Santa Maria delle Gra-zie, de Milão, ou pelas representações populares existentes nos lares brasi-leiros, bastante comuns até muito recentemente.

Para o esclarecimento dessa questão, quando do retorno da pintura aMato Groso, em reunião com o sentido de levantar dados sobre a obra, ohistoriador da arte Pablo Diener colocou que até o período pré-industrial aexecução de objetos para o culto católico se dava em oficinas de artesãos, eque as pinturas eram, muitas vezes, copiadas de moldes ou cartões, ou mes-mo missais, e que, portanto, talvez pudéssemos encontrar uma cópia domolde utilizado para a “nossa” pintura. Passamos, então, a observar uma sériede detalhes da representação, como o fundo, de arquitetura clássica, comlouças expostas, a mesa coberta por toalha, sobre a qual descansavam pratose talheres, sendo que a colher sempre se encontrava cruzada sobre o garfoou a faca. Pablo Diener ressaltou a posição da figura da camareira, cujo corpogira sobre seu eixo, típico da pintura maneirista.

Com esses dados levantados passamos a pesquisar em reproduções deuma série de obras renascentistas italianas, e pudemos observar as louçasexpostas sobre cavaletes ou em armários abertos na sala onde ocorre a ceia,de forma similar ao modo como estão os pratos ou travessas na Santa Ceia deVila Bela, como no afresco “Banquete de Herodes” (1490), de DomenicoGhirlandaio – na Capela-mor da Igreja de Santa Maria Novella, em Florença –,na tela “Banquete Nupcial de Nastagio degli Onesti” (1483), de Sandro Bot-ticelli, ou ainda em ilustração da obra Eneida, de Virgilio, “Flagrante de um

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Banquete dos Médici” (ca. 1460), de Apollonio di Giovanni3. Embora houvessesimilaridades, e talvez pudéssemos estabelecer uma longínqua ‘tradição italia-na ou renascentista’ com a Ceia de Vila Bela, isso não era conclusivo.

Com as informações oferecidas pelo Professor Pablo Diener partimos embusca da gravura utilizada como cartão para a pintura de Vila Bela e, enfim, aencontramos: trata-se de uma gravura de Francesco Bartolozzi (1728-1815),italiano nascido em Florença e morto em Lisboa. A reprodução desta gravuraencontra-se em uma publicação sobre arte no Brasil, na qual se afirma:

Várias ceias pintadas no Brasil foram inspiradas na gravura do itali-

ano Francesco Bartolozzi e seus discípulos, publicada em vários mis-

sais do fim do século XVIII e começo do XIX. Uma Ceia, no Museu

Arquidiocesano de Mariana, pode ser considerada cópia fiel da gra-

vura de Bartolozzi. As outras ceias de Ataíde, inspirando-se na mes-

ma gravura, vão da simplicidade da primeira à introdução movimen-

tada de serviçais e outras alterações, como a rolha em lugar das gar-

rafas, na bacia, no primeiro plano, e a bolsa em lugar da jarra, na

mão esquerda de Judas, na última. Provavelmente, essa inovação

iconográfica foi inspirada pelo Passo da Ceia, de Congonhas do Cam-

pos, esculpido pelo Aleijadinho e encarnado por Ataíde.4

Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), acima citado, foi o mais importan-te pintor colonial mineiro, que está para a pintura assim como Antônio Fran-cisco Lisboa, o Aleijadinho (1730/38-1814), está para a escultura e arquitetu-ra mineira do final dos setecentos, início do oitocentos, sendo que algumasigrejas são obras de ambos.

No entanto, algumas das inovações iconográficas devem-se ao fato deque, embora claramente inspiradas em Bartolozzi, as pinturas de Ataíde, “Ceia”,pertencente à Igreja de São Miguel e Almas de Ouro Preto (210x180cm;óleo sobre tela), e uma outra, pertencente ao Seminário do Caraça(240x440cm; óleo sobre tela), representam momentos diferentes daquele

3 Baldini, Maria Siponta de Salvia. In cucina e a tavola in il magnifico lorenzo. Firenze, Itália: Gienti, 1992,p. 17 e 54.

4 Arte no Brasil (reedição condensada da coleção Arte no Brasil, originalmente publicada em fascículospela Abril S. A. Cultural e Industrial) São Paulo: Nova Cultural, 1982/1986, p. 140. Outras referênciaspodem ser encontradas em: Ott, Carlos. A escola baiana de pintura 1764-1850. São Paulo: EmanoelAraújo, 1982. Reis, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: Ed. USP/Imprensa Oficial do Estado, 2000. Woodford, Susan. A arte de ver a arte. São Paulo: Universidade deCambridge/Círculo do Livro, s.d.

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da gravura de Bartolozzi. Enquanto Ataíde pintou o momento em que Cristoabençoava e dividia o pão, Bartolozzi gravou outro, mais dramático, segundoPablo Diener, em que Cristo indicava quem o trairia, dando-lhe um bocado depão molhado no prato. Portanto, o discípulo segurando uma jarra, de costaspara o observador, da gravura de Bartolozzi, transformava-se, em Ataíde, emJudas segurando a bolsa de moedas. Entretanto, uma outra “Ceia” de Ataíde,desta feita pintada no forro da capela-mor da Igreja da Ordem Terceira de SãoFrancisco de Assis, de Ouro Preto, é uma cópia fiel da gravura de Bartolozzi5.

Uma outra “Ceia”, existente na Matriz do Sagrado Coração de Jesus, emLaranjeiras (SE), onde existem obras atribuídas ao importante pintor baianoJosé Teófilo de Jesus (1763-1847), expressa uma clara inspiração de compo-sição na gravura de Bartolozzi. O sentido vertical da pintura, a disposição dosdiscípulos ao redor de mesa circular, Cristo em posição central e com umalâmpada sobre a cabeça. Esta ceia faz parte de um retábulo de concepçãoneoclássica, sem nicho, no qual o espaço destinado à imagem é ocupado poresta pintura. É como se fosse um pano de boca de altar, no entanto fixo.

O fato de Bartolozzi ser conhecido como copista e gravador, notada-mente de pinturas italianas renascentistas e barrocas, nos levou até GiacomoPontormo (1494-1556), pintor maneirista italiano, que representou a Ceia deEmaús, em que Cristo, após a Ressurreição, encontrou dois apóstolos nocaminho que levava a Emaús e ceou com eles, revelando-lhes que haviaressuscitado6. Esta obra pertence à Galeria degli Uffizi, em Florença, e, pelassemelhanças apresentadas, foi, muito provavelmente, a inspiração da gravu-ra de Bartolozzi. Na obra de Pontormo existem bem menos personagens, noentanto as semelhanças de composição, personagens e objetos são inequí-vocas. A mesa circular, a figura à esquerda da tela segurando a jarra com a mãoesquerda e de costas para o observador e, sobre a mesa, tanto em uma comoem outra obra, os únicos talheres presentes são facas. Cristo, em posição cen-tral, sob o triângulo que representa a Santíssima Trindade, espalha luz, e na telade Bartolozzi foi substituído pela lâmpada. Parece que, assim, fecha-se a série:a “Ceia de Emaús” de Pontormo, que inspirou a “Ceia” de Bartolozzi, que, porsua vez, inspirou uma série de pintores coloniais brasileiros.

Até o momento conseguimos arrolar seis obras de inequívoca inspira-ção, ou quase cópias da Ceia de Bartolozzi: três de Manuel da Costa Ataíde,

5 Menezes, Ivo Porto de (Org.). Mestre Atayde. Rio de Janeiro: Banco Bozano Simonsen/Spala, 1989, p.28-29.

6 Baldini, op. cit., p. 54.

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das Igrejas de São Miguel e Almas e da Ordem Terceira de São Francisco,ambas em Ouro Preto (MG), e da Igreja do Seminário do Caraça (MG), a“Ceia”, na Matriz do Sagrado Coração de Jesus, em Laranjeiras (SE), e a “Ceia”pertencente ao Museu Arquidiocesano de Mariana (MG), de autores desco-nhecidos, assim como é de autoria desconhecida esta pintura de Vila Bela.Sem dúvida, outras obras devem existir, não só no Brasil mas em todo ouniverso colonial português.

Infelizmente não pudemos contar com uma bibliografia referente a “panode boca de altar” e “pano de boca de tribuna”. Parece ser ainda um temainexplorado ou, ao menos, muito pouco estudado. A solução encontrada foiconsultar especialistas na área, alguns citados neste texto, solicitando informa-ções. Esse fato, embora tenha impedido um maior aprofundamento na ques-tão, não nos impediu o sentimento de alegria por abrir caminhos, pesquisandoalgo inédito e criando referências, mesmo que ainda de forma modesta.

Chamaram a atenção, nessas buscas, as similaridades de terminologiasentre as igrejas barrocas e o teatro. A referência para “pano de boca” erasempre pano de “boca de palco”. O nicho do retábulo, onde são colocadas asimagens dos santos, é chamado de “camarim”. A tribuna é sempre um localde assistência, tanto na igreja, como no teatro.

Atualmente, após o excelente trabalho de restauro, a Santa Ceia estáde volta à cidade de Vila Bela e encontra-se acondicionada de forma ade-quada na igreja matriz da cidade, sendo que deverá fazer parte do museuque lá se pretende instalar.

Embora de forma um pouco arrevesada, a existência de uma pinturarepresentando a Santa Ceia em Vila Bela da Santíssima Trindade nos remeteua uma série de referências que nos incluem na história da arte ocidental, emostra também a capacidade de circulação de idéias e influências no mundo,no caso, em um processo de ocidentalização iniciado pelos próprios portu-gueses quando se lançaram aos mares, e, embora com tantos capítulos maca-bros, somos frutos dessa história. Ficamos sempre na esperança de relaçõesmais justas e solidárias entre os homens e os povos, acreditando no papel daarte nesse processo de humanização global.

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Resumo

O texto estabelece a diferença entre a noção deexperiência elaborada por Thompson e esta mes-ma noção quando a encontramos em algumas obrasde Foucault. Entender esta diferença é funda-mental para perceber como estes autores repre-sentam opções teórico-metodológicas distintas nocampo do trabalho historiográfico.

Palavras-chave:

Teoria e metodologia da história – Noção de expe-riência – Obras de Thompson e Foucault

Abstract

This text establishes the difference betweenThompson’s experience notion and this samenotion in some Foucault works. Understandingthis difference is essential in order to perceivethe way that both authors represent distincttheorie and methodologie options in in the his-toriographical work.

Keywords:

Theorie and methodologie in the history – Expe-rience notion – Thompson’s and Foucault’s works

Experiência: uma fissura no silêncio

Durval Muniz de Albuquerque Júnior*

* Universidade Federal da Paraíba, Campus II.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

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Nas últimas duas décadas, a historiografia brasileira tem sido marcada,fortemente, pelo diálogo com as obras do historiador inglês de inspiraçãomarxista Edward P. Thompson e do filósofo e historiador francês pós-estrutu-ralista Michel Foucault. No começo da década de oitenta foi muito comum,inclusive, a utilização conjunta de ambos numa série de teses e dissertaçõesque vieram a se transformar em livros que revolucionaram a historiografiabrasileira1. Nestes trabalhos, o Michel Foucault da genealogia do poder, dolivro Vigiar e Punir, é utilizado juntamente com Thompson para fazer-seuma história do processo de constituição da classe operária brasileira, com asua necessária disciplinarização. São analisados os vários momentos de cons-tituição do mundo operário no Brasil, seja dentro da fábrica, seja fora dela2.Ignorando-se a crítica de Foucault à chamada história social, ele é transforma-do em um historiador social e usado para fornecer conceitos novos para umahistoriografia que, embora já se afastasse do marxismo mais mecânico e eco-nomicista, ainda não havia se afastado definitivamente deste paradigma, queaparecia renovado nas páginas das obras de Thompson3.

Embora hoje seja comum, entre os historiadores brasileiros, a percep-ção de que são opções teóricas e metodológicas diferentes, não existe, pra-ticamente, nenhum texto que tematize as diferenças substanciais entre aobra de Thompson e a de Foucault, que discuta em quê eles se afastam, oporquê deles significarem formas diferenciadas de compreender a história.Este texto pretende contribuir para esta discussão, já que se propõe a debatera diferença entre a forma como Thompson utiliza o conceito de experiência,central em sua teoria da história, e a forma como Foucault utiliza o mesmoconceito, que também é fundamental em seu trabalho historiográfico. Fazendoparte de tradições distintas no pensamento Ocidental, Thompson e Foucaultpensam de forma diferenciada a experiência humana e sua relação com oconhecimento, a consciência, a representação e a prática sociais.

A obra de Edward Thompson inscreve-se dentro da tradição marxista,embora se proponha a ser uma nova leitura desta tradição, expurgando des-

1 Podemos citar Maroni, Amnéris. A estratégia da recusa. São Paulo: Brasiliense, 1982; Segnini, Eliane.Ferrovia, ferroviários. São Paulo: Cortez, 1982; Rago, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidadedisciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; Lenharo, Alcir. Sacralização da política. Campinas:Papirus, 1987; Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginárionordestino – 1877-1922. Campinas, 1988. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadualde Campinas.

2 Ver Rago, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores. Resgate, Campinas, Centro deMemória / Papirus, n. 5, 1993.

3 Ver a polêmica de Foucault com os historiadores sociais franceses em Perrot, Michelle (Org.). L’ImpossiblePrison. Paris: Seuil, 1978.

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ta o viés economicista, autoritário e estruturalista de inspirações estalinista ealthusseriana. O marxismo, por sua vez, liga-se a toda a tradição do pensa-mento moderno de inspiração platônica e hegeliana, ou seja, um pensamen-to comprometido com as essências, com as totalidades, com a Razão, quepersegue um sentido para a História, um fim último para o ser, que busca oencontro com a verdade do real, que busca o encontro com a consciênciaplena trazida pelo esclarecimento progressivo, que pressupõe em últimainstância uma unidade da experiência humana. Já a obra de Michel Foucaultliga-se a outra tradição do pensamento Ocidental, a tradição de inspiraçãoheraclitiana ou pré-socrática e a outra tradição do pensamento moderno, ade inspiração nietzscheana e heidegeriana, ou seja, um pensamento não-essencialista, que busca dispersar as totalidades, inclusive a totalidade daRazão, entendida como múltipla, contingente e historicamente localizada;um pensamento que reivindica a multiplicidade dos sentidos na história, dafinalidade do ser, da verdade e daquilo que é chamado de real, a multiplicida-de e historicidade da consciência e da experiência. Enquanto para a primeiratradição a ênfase se dá na semelhança entre fatos, práticas, discursos, proces-sos etc., na segunda a ênfase se dá na diferença.

Além de serem discursos historiográficos que remetem a tradições dife-renciadas do pensamento no Ocidente, possuem também diferenças substan-ciais na forma de pensar a própria história e a prática historiográfica. Para Thomp-son a história é realista, ou seja, ela deve ser um discurso sobre o real, que orepresente da forma mais próxima possível. O real possui uma existência ex-terior aos discursos que o tomam como objeto. O real é o referente materialdos discursos, que são representações simbólicas, ideológicas, daquele. O his-toriador deve se aparelhar com métodos, técnicas e um aparato conceitual quelhe permita dialogar com as fontes de forma a corrigir o máximo possível asdistorções que os preconceitos e as pré-noções podem trazer para a compre-ensão do real. A história é uma ciência do passado, portanto, deve ser capaz dechegar o mais próximo possível de sua verdade, retirando-o do desconheci-mento ou do reino enganoso da memória ideológica dos vencedores.

Já para Foucault a história é nominalista, ou seja, ela é uma práticadiscursiva que participa da elaboração do real, assim como outras práticas.No entanto, a prática discursiva da história se distingue de outras por suanormatividade específica, ela possui regras próprias de funcionamento e deprodução. O real é, para Foucault, uma criação de práticas múltiplas, sejamelas discursivas ou não, e entre elas está a prática do historiador, que mantémuma relação mutável e historicamente datada, mas privilegiada, com relação

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ao passado. O real não possui uma existência exterior à sua escritura emalguma forma de linguagem, forma que dá a materialidade ao próprio real,que o nomeia, que o organiza, que lhe dá inteligibilidade. A história, porsua normatividade, estaria próxima da ciência, mas seria também, em gran-de medida, uma arte narrativa, pois não só representa o real, como partici-pa da sua invenção, da sua criação escritural. Todo discurso, mesmo o his-toriográfico, é interessado, nasce de lutas políticas, de embates de poder, épresidido por estratégias e táticas, portanto, não é um discurso imune àideologia, mas plenamente ideológico.

Estando, pois, em campos opostos, tanto no que tange à filiação aopensamento Ocidental quanto na forma de ver a história e a prática historio-gráfica, Thompson e Foucault pensam de forma muito diferenciada a expe-riência humana e a relação desta com o conhecimento, mais particularmentecom o conhecimento histórico. Embora seja confusa sua definição de expe-riência, já que esta aparece com diferentes acepções em sua obra, Thomp-son, pelo menos na sua obra de epistemologia histórica, A miséria da teoria,apresenta a experiência como a base material da produção do conhecimen-to e da consciência. A experiência é aí quase que reduzida ao real, ela é oreal que deve ser representado pelo historiador. A experiência é, inclusive,muito de acordo com a tradição marxista, predominantemente econômica. Aexperiência é definida, aí, como o momento em que os homens e mulheresretornam como sujeitos – não como sujeitos autônomos, mas como pessoasque experimentam suas relações produtivas determinadas como necessida-des e interesses e como antagonismos. Só em seguida é que eles tratam estaexperiência em sua consciência e sua cultura das mais complexas maneiras4,ou seja, Thompson divide claramente o momento da experiência e da cons-ciência, transformando aquela praticamente numa empiria sem significadohumano, num referente anterior à representação, embora fique difícil sabercomo alguém vive algo como necessidade e interesse sem ter pelo menosuma vaga consciência do que isto significa.

Há, no entanto, momentos na obra de Thompson, nos quais a consciên-cia parece fazer parte da experiência, tendo ele, inclusive, proposto umadiferenciação entre experiência I e experiência II para tentar resolver osimpasses apontados por seus críticos, sendo a primeira, a experiência anteriorà consciência, a experiência que seria material e social, e a segunda, aexperiência trabalhada pela consciência e pela cultura (que também pare-

4 Thompson, Edward P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.

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ce ter existência separada da experiência e da consciência), que poderiaadquirir até o caráter de uma representação individual sobre a experiênciamaterial, sendo não-material, discursiva, predominantemente cultural e nãosocial, como se tais divisões fossem possíveis. Esta divisão entre a determi-nação social e cultural da experiência vai dar origem, inclusive, à canhestradivisão entre história social e cultural5.

Na verdade, embora se proponha a se afastar do economicismo marxis-ta, Thompson continua pensando materialidade como economia e relaçõesde produção, continua pensando a cultura como um nível subordinado doreal, como uma representação da experiência fundante do real, que é, paraele, a experiência de reprodução social da existência. É interessante perce-ber que é justo numa obra que pretende criticar o estruturalismo de Althus-ser, seu esquematismo, que Thompson define experiência de forma maisesquemática e estruturalista. Experiência é, aí, o termo ausente do marxis-mo, termo que introduzido no planetário marxista-estruturalista impediria oerro de não se articular base e superestrutura, metáfora a ser abandonada,impediria o erro de não se articular estrutura e processo, portanto, experiên-cia seria o termo de junção que fora silenciado por Marx. Como se vê, paracriticar o planetário de Althusser, a experiência é definida por uma sucessãode metáforas mecânicas, que a reduz a um termo que falta, termo milagrosoque, introduzido, mostraria todo o equívoco do planetário marxista-estrutura-lista. Felizmente Thompson nem sempre é tão esquemático quando instru-mentaliza este conceito em suas análises, embora continue mantendo a co-notação de ser a experiência o elemento fundante na história, o elementoessencial a ser apreendido em qualquer análise. Para ele a experiência é olugar do ser em contraposição ao lugar da consciência e do conhecer6.

Em Foucault a experiência não se separa da consciência que dela setem. A experiência não é o a priori da consciência ou do conhecimento. Opróprio ato de conhecer e a própria consciência são momentos da experiên-cia. A experiência não existe fora da sua representação escritural, de suatransformação em saber; é o saber que lhe dá materialidade. A experiência éum conjunto de práticas discursivas ou não que produzem uma certa ordemde saber e que se articulam em torno de certas demandas de poder. Portan-to, a experiência, antes de ser fundante, é fundada no ser e na consciência,

5 Ver o debate entre Thompson, Stuart Hall e Richard Johnson em torno do livro A miséria da teoria emSamuel, Raphael (Org.). Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Crítica, 1984, p. 273-317.

6 Ibidem, p. 183-184.

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que são inseparáveis. A experiência não é uma essência que permanece,uma substância passível de ser transmitida, como se fosse uma sementecapaz de cair em um novo solo e germinar, como pensa Thompson e seuconceito de tradição. Para Foucault, cada experiência é una e só existe comoprática enquanto se dá em ato. Ela se atualiza a cada acontecer e de novaforma, produz efeitos imediatos e se esgota, não deixa sementes, deixa ra-mificações, não conduz substância, mas intensidade. Não podemos fazer umabotânica da experiência, mas uma física da dispersão de forças que esta mobi-liza. A experiência é sempre nova desde que os significados se alterem. Por-tanto, não existe experiência anterior ao significado que lhe atribuímos. Nãoexiste experiência que não seja, ao mesmo tempo, social, histórica e cultural,nem que não seja material e imaterial ao mesmo tempo, que não seja ser econsciência juntos. A experiência é o lugar da consciência e do conhecimento,como muitas vezes aparece nas próprias obras de Thompson7.

Em Thompson, a experiência é sempre remetida a um sujeito fundan-te, quase sempre um sujeito coletivo, ou seja, a experiência é fundada nasclasses sociais. Ele busca as condições transcendentais da experiência, buscaexplicá-la historicamente, ao mesmo tempo em que procura discernir aquiloque nela permanece, a sua essência e substância que permanece historica-mente válida. Thompson chegou a criticar severamente Foucault por estefazer uma história das estruturas sem sujeitos, em que homens e mulheressão obliterados por ideologias, uma história que levaria à resignação fatalista.Foucault seria o historiador da nossa relação não-livre com a não-liberdade.Mas o que devemos entender é que, em primeiro lugar, a liberdade queinteressava a Foucault era inteiramente diversa da procurada por Thompson,não uma liberdade de direitos protegidos, não a liberdade conquistada defini-tivamente num momento revolucionário, não a liberdade como valor univer-sal, como uma abstração moral, não a liberdade como uma essência, mas aliberdade nascida de práticas concretas, contingentes, móveis, históricas, aliberdade nascida da revolta contra o poder e da crítica permanente ao saber.Em segundo lugar, como propõe uma compreensão nominalista e não realis-ta das próprias categorias com que organizamos o nosso mundo, Foucaultconsidera que categorias como sujeito, experiência e liberdade deveriam sertambém historicizadas. O que se deve perguntar não é qual o sujeito daexperiência, mas como historicamente veio a se constituir este sujeito desta

7 Foucault, Michel. A arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária, 1986, p. 15; Rajchman, Jhon.Foucault: a liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 47.

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experiência? A pergunta não é o que funda tal experiência, mas em quecondições históricas foi possível se tomar tal fato como uma experiênciapara o sujeito? A pergunta não é o que funda a liberdade do sujeito, mas emque condições históricas foi possível se considerar tais conquistas como daliberdade? Não existem, pois, estas essências chamadas sujeito, experiênciaou liberdade. Sempre que aparecerem estes termos devemos nos perguntarquando, como, por quê, em relação a que?8

Foucault sustentou que não existe uma ordem objetiva subjacente emtudo o que acontece, e que não há uma finalidade única para a qual tudodeve tender, como o faz Thompson. A “documentação” de uma sociedade éa sua própria realidade, não existe um substrato material chamado real foradesta “documentação”. A sociedade que vemos e dizemos, a partir destadocumentação, depende do regime de visibilidade e dizibilidade do mo-mento em que o historiador está inserido, mas também do diálogo destasvisibilidade e dizibilidade com aquelas outras, expressas na documentação.Foucault, ao contrário de Thompson, não pretende fazer história de “coisas”,mas história de termos, de enunciados, de imagens, de sinais, de signos. Elefaz história das técnicas e categorias de visibilidade e dizibilidade que emcada época instituíram as coisas a serem vistas e ditas. Ele não faz a históriade uma experiência, mas de como esta foi constituída, como esta foi possí-vel, como ela chegou até nós, e a partir de que interesses ela foi “documen-tada”. A experiência não se remete a um sujeito fundante, mas a momentosespecíficos, a pressupostos comuns a um corpo disseminado de pensamen-to e política. Ele não busca, como Thompson, fundamentar a experiência,mas duvidar destas fundamentações. Ele se pergunta: porque tal sujeito apa-rece como fundante de tal experiência? Quais são as regras que neste mo-mento histórico presidiram a emergência de sujeitos e a vinculação a estesde dadas experiências? Foucault busca, não fundamentar a experiência, masdesnaturalizá-la, desfamiliarizá-la, dispersá-la9.

Foucault, ao contrário de Thompson, não busca a razão de ser de umaexperiência, mas busca duvidar destas razões, apresentá-las como fruto da pró-pria história, de suas lutas e seus embates. Enquanto Thompson quer nos apro-

8 Thompson, Edward. P. The poverty of theory. New York: Monthly Review, 1978; Foucault, Michel.Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979; Rajchman, Jhon. Eros e verdade. Rio de Janeiro: Zahar,1993, p. 127-140.

9 Thompson, Edward. P. A formação da classe operária inglesa I. A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1987a, p. 9-23; Foucault, 1986, p. 72; Veyne, Paul. Foucault revoluciona a História. Brasília: Ed.UNB, 1982.

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ximar de uma dada experiência, experiência que seria constitutiva de nós mes-mos, da qual seríamos um prolongamento, Foucault quer nos distanciar de todaexperiência que tematiza, quer mostrar o quão diferente já fomos e poderemosser. Enquanto Thompson enfatiza, em seus trabalhos, os elementos de continui-dade na experiência, aquilo que seria substancial e semelhante a nós, Foucaultenfatiza as descontinuidades das experiências, seus cortes, deslocamentos, fissu-ras, estrias. Thompson busca, nas experiências que tematiza, elementos quesirvam, inclusive, para a construção do futuro como um prolongamento deprocessos passados. Foucault quer nos abrir a possibilidade de pensar o futu-ro radicalmente diferente do passado e de suas experiências10.

Enquanto Thompson busca, na história, aquilo que constitui uma certarotina, certas certezas que uma época teria sobre si mesma, Foucault usa ahistória para dissipar qualquer espécie de rotina, a autoconfiança em relação àrealidade de tudo que é instituído como real. Thompson e sua historiografiapartem de objetos e sujeitos considerados “reais”, como estando inscritos nopassado, um já lá. Foucault, ao contrário, duvida de cada sujeito e cada objetopostos como históricos; ele sempre se pergunta o que tornou possível queassim o fosse, ele desrealiza tais sujeitos e tais objetos, não faz a história deles,mas a de como eles foram possíveis. Fazer história da experiência não é, pois,fazer história do concreto em si, não é fazer história de objetos e sujeitos jádados, preexistentes à documentação que os nomeia, explica, organiza etc.

Foucault faz a história do que numa dada época foi chamada de expe-riência, o que possibilitou que aquela experiência aflorasse e fosse registradacomo tal. A experiência, para Foucault, pois, não é uma voz do passado quefoi esquecida e precisa ser salva, mas é uma fissura no silêncio, silêncio ao qualestá condenada a maior parte dos seres humanos e de suas experiências. Oque se deve perguntar, pois, não é, apenas, o que diz esta voz que rompeu osilêncio do passado, mas se perguntar por que ela pode romper este silêncio,que condições históricas permitiram que esta experiência não permanecessesepultada no passado. Não se pode supor, como o faz Thompson, que a expe-riência seja um objeto silencioso e contínuo, que se acha reprimido e recalcadoe que teríamos a obrigação de fazer levantar-se e lhe restituir o falar. Ela não éo pré-discursivo, sem rosto, não é o pré-consciente, ela só existe no e comodiscurso, ela é rosto formado, é um certo tipo de consciência11.

10 Thompson, 1987a, p. 9-23; Foucault, 1986.

11 Deleuze, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988; Foucault, Michel. História da sexualidade I. Avontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1982; Thompson, Edward P. La política de la teoría. In: Samuel,Raphael (Org.). Historia política y teoría socialista. Barcelona: Crítica, 1984, p. 301-317.

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Para Foucault, a experiência deve ser pensada como relação múltipla,não como obra de um sujeito dado, não como um substrato para a consciên-cia. Dizer: isso é uma experiência, requer que se diga em relação a que e aquem e não que se diga de que e de quem, como o faz Thompson. Apesquisa da experiência não deve fundar, mas agitar o que parecia imóvel,fragmentar o que se pensava unido, mostrar a heterogeneidade do que sepensava em conformidade consigo mesmo. Nada no homem é bastantefixo, nem sua experiência, nem mesmo seu corpo, para compreender ou-tros homens e se reconhecer neles. É esta concepção de Foucault quedesafia uma historiografia como a thompsiana, presa ao modelo, ao mesmotempo, metafísico e antropológico da memória. A história de Foucault nãoé uma história sem sujeito, como critica Thompson, apenas os sujeitos nãosão uma aparição fenomênica de uma essência transcendental, de umaentidade chamada Homem. Os sujeitos, em Foucault, são radicalmente his-tóricos, com tudo de finitude e efemeridade que isso significa. Os sujeitosfoucaultianos não têm natureza humana, são de natureza histórica12.

Ao criticar Foucault, considerando-o estruturalista, Thompson defen-de uma espécie de voluntarismo onde seus homens e mulheres devem, dealguma forma, ser responsabilizados pela determinação de sua própria his-tória ou a ela se resignar completamente. Foucault nunca negou a liberda-de na história e a tomada de posições pelos sujeitos; o que questiona é omodelo que atribui tal liberdade a sujeitos necessariamente coletivos, por-tadores de uma vontade articulada por intelectuais. Questiona o fato deque só seríamos livres quando tivéssemos consciência plena de nossa his-toricidade, quando a controlássemos completamente. Questiona o modeloque presume a existência de coisas globais e universais como massa, povo,sociedade, classe, cujos interesses o intelectual representaria ou desmistifi-caria, cuja voz ou consciência articularia, cuja vida preveria as utopias deuma sociedade totalmente livre e racional. Para Foucault, o discurso revolu-cionário é apenas um dentre os discursos possíveis sobre a liberdade, aconsciência e a transformação social, bem ao contrário de Thompson, paraquem este é o único discurso validado para estas questões13.

Outra diferença marcante entre a analítica da experiência em Thomp-

12 Thompson, Edward P. Tradición, revuelta y conciencia de clase. Barcelona: Crítica / Grijalbo, 1979;Rajchman, 1990, p. 47-48.

13 Thompson, 1988; Rajchman, 1990, p. 54; Foucault, Michel et al. O homem e o discurso. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1971.

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son e em Foucault é que Thompson toma as experiências que estuda comoponto de partida para a elaboração de uma teoria geral sobre a história, oEstado e a economia. A “teoria” de Foucault está dirigida para uma análise daproblematização da experiência em situações históricas concretas; tal teorianão assume, pois, a forma de uma crítica geral ou abstrata da história, doEstado e da economia. Ele não estuda a experiência para resolver um proble-ma; o problema, para ele, é a própria experiência. Ele não quer estabelecera verdade de uma dada experiência e como esta nos ajuda a resolver proble-mas concretos, no presente, como Thompson, mas ele quer questionar aspróprias verdades que se dizem e se mostram das experiências, submeten-do à crítica até aquilo que se coloca como problema para o presente. Porexemplo, a revolução não é um problema apenas de como fazê-la, mas elaé em si mesma um problema a ser estudado. A diferença de fundo, aí, é quecontinua existindo, em Thompson, a separação entre teoria e prática. Estu-dar a experiência se constitui, para este, portanto, um momento de análise daspráticas para reelaborar a teoria, o momento de submeter a teoria à crítica dapráxis. Para Foucault, a teoria é também uma prática, as idéias e normas já sãopráticas, a finalidade da crítica é analisar as práticas em que aquelas normasrealmente figuram e que determinam espécies particulares de experiência.Assim, ele não propõe uma crítica global de toda a sociedade e de suasinstituições políticas por referência aos padrões de uma forma ideal de vida.Dirige suas críticas para aquelas formas de experiência concretas que a socie-dade não pode facilmente ignorar e que atravancam a possibilidade da cria-ção de experiências novas de relação com tais objetos de práticas14.

Como diz Rajchman, Foucault não olha além ou aquém de práticashistóricas em busca de verdades finais sobre nossa natureza ou de normasque a nossa razão não dita. Ele tenta examinar mais detalhadamente ofuncionamento daquelas práticas em que figuram normas morais e verda-des acerca de nós próprios, submetendo-as à análise crítica. Assim, questio-na aquilo que é central na concepção marxista da história, presente emThompson, que é o modelo da ideologia na crítica; e o pressuposto de queo poder funciona primordialmente através de uma mistificação ou falsifica-ção de uma verdadeira, ou racionalmente fundamentada, experiência. ParaFoucault, devemos questionar as práticas de objetivação e mistificação.Mas também devemos questionar a “política de verdade” no próprio con-

14 Machado, Roberto. Ciência e saber – A trajetória da arqueologia de Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1981;Rajchman, 1990, p. 69; Thompson, 1984.

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ceito que deriva de Marx e de Freud. Crítica é também a submissão cons-tante da “verdade” de nosso pensamento à análise. Essa obrigação (e não aobrigação thompsiana de determinar o que, em nossa natureza, fundamen-ta a nossa experiência) está no âmago da concepção de história de Fou-cault – de sua tentativa de substituir uma filosofia idealista da emancipaçãofinal por uma filosofia nominalista da interminável revolta15.

Para a melhor compreensão das diferenças que separam a analítica daexperiência em Thompson e em Foucault, será interessante, agora, que secompare um texto escrito por Thompson com outro escrito por Foucault.Escolhi comparar Senhores e caçadores, de Thompson, e A vida dos homensinfames, de Foucault, por serem textos que tematizam o mesmo tipo deexperiência: a dos homens pobres, dos camponeses no interior da sociedadedo Antigo Regime, mais particularmente a experiência de práticas que foramconsideradas criminosas e que chegaram até nós graças, em grande medida,à repressão que contra elas se abateu e que proporcionou a elaboração deuma legislação que visava coibir tais crimes, como: a Lei Negra, no caso dossalteadores das florestas reais estudados por Thompson, e as letras de ca-chet, documentos que, emitidos em nome do rei ou por sua própria iniciati-va, tinham como função sujeitar a medidas de segurança, tais como a prisãoe o internamento, todos aqueles considerados “indesejáveis”, os homens in-fames, objeto de estudo de Foucault16.

No prefácio de seu livro, Thompson diz ter partido da experiência dehumildes moradores das florestas e seguido, através de evidências contem-porâneas superficiais, as linhas que ligavam-nos ao poder, o que fez com queele, em certo sentido, fosse obrigado a encarar a sociedade inglesa em 1723tal como ela mesma se encarava, a partir de “baixo”. Diz que evidentementenão pretendeu abordar o tema sem pressupostos e sem preconceitos, masque o método e as fontes impuseram controles a seus pressupostos. Por isso,quando nos últimos capítulos, chega a tratar com certo azedume a Walpole,Par Page ou Lord Hardwicke, e o sistema jurídico e a ideologia Whig demodo mais geral, ele crê ser possível que os veja de forma muito semelhan-te à qual os viram, na sua época, William Shorter, o agricultor de Berkshire,ou John Huntridge, o estalajadeiro de Richmond. E, mais, ele pretende terrecuperado um episódio que se perdera para o conhecimento histórico; re-

15 Rajchman, 1990, p. 77.

16 Thompson, Edward P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987b; Foucault, Michel. O queé um autor. Lisboa: Vega, 1992, “A vida dos homens infames”, p. 89-128.

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cuperado um episódio que não foi do conhecimento de seus contemporâne-os, montando um relato que, se em alguns aspectos é inferior ao conheci-mento contemporâneo, sob algumas outras formas, é superior17.

No belo livro Senhores e caçadores Thompson deixa muito clara a suaforma de lidar com a noção de experiência, principalmente neste prefácio. Aexperiência é, para ele, um ponto de partida, um já dado, um referente deque se parte para construir o discurso historiográfico. Este discurso, emboratenha que se deparar com as dificuldades trazidas pelo desaparecimento degrande parte da documentação judicial sobre os Negros e de dispor de pou-cos e esparsos relatos sobre suas peripécias nas florestas reais, pode sercapaz, não só, de recuperar esta experiência perdida, até então, para a histó-ria, como pode produzir um relato que, em muitos aspectos, é superior aoconhecimento dos próprios contemporâneos. A experiência dos Negros dáacesso a uma realidade do século XVIII, na Inglaterra, da qual se pode sentiraté o azedume e a antipatia. Para tanto basta ler a documentação oficialexistente com um olhar diferenciado, um olhar que estava presente em muitasdestas próprias fontes; um olhar vindo de “baixo”. Este olhar é capaz dedesmascarar a ideologia Whig, que estivera na base da elaboração da LeiNegra e de sua utilização para uma gama de delitos cada vez maior.

Sua análise consegue superar o caráter fragmentário daquela experiên-cia, caráter que teve mesmo para os seus contemporâneos, e consegue daruma visão da unidade e da totalidade de tal experiência, do que nela foiessencial para a sua época, e, o mais importante, do que nela continua sendoessencial para nós, ou seja, o fato de ser ela a expressão da luta de classes, dacapacidade do povo de se revoltar e construir territórios culturais próprios, dacapacidade humana de, com certa práxis, desmascarar a ideologia que susten-ta o poder, que mascara a sua verdadeira face de defensor dos interesses dosproprietários. A luta dos Negros se transforma, com Thompson, em mais umcapítulo de uma contínua experiência de luta do homem Ocidental, e inglêsparticularmente, pela emancipação final e absoluta. A experiência dos Negrosé descrita como mais uma experiência que veio contribuir para a formação dasociedade burguesa na Inglaterra e, portanto, faz parte do processo no qual aclasse operária se fez, mais um capítulo desta experiência épica.

Os Negros reagem à legislação florestal, que retirava deles a possibili-dade da caça e o acesso a outros benefícios como a lenha e a água, indis-pensáveis para sua sobrevivência. Se a revolta dos Negros pode ser consi-

17 Thompson, 1987b, p. 15-20.

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derada uma experiência política e experiência coletiva, é, no entanto, cla-ramente determinada por carências e necessidades econômicas, tratadascomo interesses. São as relações de produção, onde estão inseridos estespersonagens, o que, em última instância, determina esta experiência. Estaexperiência é de luta de classes, mesmo que sem classes ou com estasainda indefinidas pela falta de uma consciência. A revolta dos Negros é,no entanto, um aprendizado fundamental para os de “baixo”, ou seja, éum passo na aquisição da consciência de classe.

Portanto, neste trabalho se expressam, de forma clara, os pressupos-tos da analítica thompsiana da experiência, ou seja, a experiência comodeterminada pelas relações de produção, onde homens e mulheres expe-rimentam a vida como necessidades e interesses para depois tratá-los naconsciência e na cultura. A experiência é experiência de sujeitos fundan-tes, de sujeitos coletivos, de sujeitos políticos. A experiência é o substratoda consciência, é o referente do discurso, do conhecimento. A experiênciatotaliza, unifica, é contínua, deixa sementes que germinam em outro solo.A experiência é o real do passado, que o historiador, ao fazer uma opçãometodológica e ao fazer uma pesquisa empírica que permita corrigir osseus pressupostos e preconceitos, pode dele ter uma imagem muito próxi-ma, às vezes melhor que a dos próprios contemporâneos.

No seu texto A vida dos homens infames, Foucault fala que pretendeutratar de existências reais; que se lhes pudesse dar um lugar e uma data; quepor detrás dos nomes que não diziam nada, por detrás de palavras breves eque bem podiam na maior parte das vezes ter sido falsas, enganadoras, injus-tas, exorbitantes, tenha havido homens que viveram e morreram, com osseus sofrimentos, suas malfeitorias, seus ciúmes e suas vociferações. Baniu,pois, tudo o que pudesse ser imaginação ou literatura, porque nenhum dosnegros heróis que estas possam ter inventado lhe parecia mais intenso doque a vida daqueles remendões, daqueles soldados desertores, daquelas ven-dedeiras de roupa, daqueles monges vagabundos, daqueles tabeliães, todoseles danados, escandalosos ou dignos de lástima; e isto pelo simples fato desabermos que existiram. Fez questão de aproximar-se destes textos quepareciam manter um maior número de relações com a realidade, que nãoapenas a ela se referiam, mas que nela operavam, que eram uma peça dadramaturgia do real, que constituíam o instrumento de uma vingança, a armade um ódio, um episódio de uma batalha, a gesticulação do desespero e dociúme, uma súplica ou uma ordem. Não procurou nesta obra reunir textosque fossem, mais do que outros, fiéis à realidade, que merecessem ser con-

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servados pelo seu valor representativo, mas sim textos que desempenharamum papel neste real de que falam, e que, em compensação, se encontram,seja qual for sua inexatidão, sua ênfase, ou sua hipocrisia, atravessados porele; fragmentos de discurso que consigo levam fragmentos de uma realidadeda qual fizeram parte. Diz ele, ainda, que não é uma recolha de retratos queali se ia ler, mas armadilhas, armas, gritos, gestos, atitudes, astúcias, intrigas,de que as palavras foram o instrumento. Vidas reais foram “representadas”nestas poucas frases; não querendo dizer com isto que elas foram retratadas,mas que, de fato, a sua liberdade, a sua desgraça, por vezes a sua morte, emtodo caso o seu destino aí, foram, em parte, decididos. Estes discursos atra-vessaram vidas; tais existências foram efetivamente postas em risco e deita-das a perder nestas palavras. Para que algo destas existências chegasse aténós, diz ele, foi, porém, necessário que um feixe de luz, ao menos por uminstante, as viesse iluminar. Luz essa que lhes vem do exterior. Aquilo queas arranca à noite em que elas poderiam, e talvez devessem sempre, terficado, é o encontro com o poder; sem este choque é indubitável quenenhuma palavra teria ficado para lembrar este fugidio trajeto. O poderque vigiou aquelas vidas, que as perseguiu (...), que as marcou com umgolpe das suas garras, foi também o poder que suscitou as poucas palavrasque delas nos restam. Todas aquelas vidas, afirma, estavam destinadas apassar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sidoditas, senão em virtude do seu contato momentâneo com o poder. Portudo isso, conclui, de maneira que é impossível reavê-las em si mesmas,como seriam em “estado livre”, já que não se pode recuperá-las a não serfixadas nas declamações, nas parcialidades táticas, nas mentiras imperio-sas que supõem o jogo de poder e as relações com ele18.

Encontram-se neste texto os pressupostos da analítica da experiênciaem Foucault. Embora partindo do pressuposto de que o historiador lida comexistências reais, estas existências chegam até nós de forma fragmentária emediada pelos discursos; discursos que, por sua vez, são produto de umlugar de sujeito que emergiu nas lutas pelo poder. Embora saibamos quenossos personagens fizeram parte de uma realidade, esta nos chega atravésde palavras que remetem a gestos, ações, emoções, práticas. Estas experiên-cias que chegam até nós, do passado, antes de explicá-lo devem ser explica-das. Por que estas experiências foram iluminadas pela luz do poder em de-terminado momento e outras não? Nossos negros heróis não fazem parte de

18 Foucault, 1992, p. 94-98.

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uma experiência que chegou até nós com a mesma substância e que deladispondo podemos chegar a entender estes homens tal como pensaram emsua época. Eles nos falam de experiências muito distanciadas de nós, elesfazem com que meçamos a distância que deles nos separa, fazem pensar emnossa diferença. Estas experiências são fragmentadas, dispersas, não nospermitem fazer uma imagem unitária e total, nem destes seres nem de suaépoca. Embora remetam a nomes, estas experiências remetem ao anonima-to do poder, de seu jogo e das relações com ele. Elas são fragmentos do realnão por nos ser possível, através delas, reaver estes pedaços de passado, dereal em si, mas por terem nele atuado, terem participado da construção darealidade, quase sempre trágica, de seus personagens. Afinal de contas, umaletra de cachet podia condenar um indivíduo à reclusão ou à morte. Mais doque testemunhos de uma vida, estes documentos são testemunhos de umamorte, de um esmagamento pelo poder. Eles são expressão de uma revoltaque pode não ter deixado nada, a não ser as breves palavras e os brevesgestos trocados com o poder, mas podem ter sido a liberdade momentâneadestes indivíduos perante códigos que se tornaram insuportáveis. A experi-ência nada mais é, pois, do que estas pequenas iluminações feitas pela luzdo poder, que reduz vidas inteiras a pó, estas pequenas fissuras no silêncioque apaga vidas inteiras. A experiência não é dado concreto, coisa, a expe-riência é relação fugidia entre ação, fala, imagem e poder.

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Resumo

Este artigo trata das relações homem vesus nature-za, no Pantanal sul-mato-grossense. A partir daexperiência vital de duas personagens da região,busca-se encontrar, nas estratégias de sobrevi-vência no Pantanal, alguns elementos da culturapopular, verificando-se que junto ao mito do para-íso ecológico encontram-se formas de saberesbastante peculiares à região pantaneira.

Palavras-chave:

Pantanal sul-mato-grossense – Cultura popular –Homem x natureza

Abstract

This article deals with the relationship betweenmen and nature in the South Pantanal. From thisvital experience of two characters of the region,we try to find, in the strategy of survival in thePantanal, some components of the popular cultu-re, checking if beside the myth of the ecologicalparadise there are shapes of knowledge peculiarof the region.

Keywords:

South Pantanal – Popular culture – Men versusnature

“Vendo, ouvindo e aprendendo”: o saberpopular na relação homem versus natureza no

Pantanal sul-mato-grossense*

Eudes Fernando Leite**

* Este texto foi originalmente apresentado no V Congresso Internacional da Brazilian Studies Associa-tion (Brasa), realizado em Recife (PE), no ano de 2000.

** Professor de História na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal. Doutor emHistória pela UNESP/Assis.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

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Hoje já ninguém mais fala / Da pobre alma penada / Que assustava

todo mundo / Lá na encruzilhada / Eu até sinto saudade / Do tempo

de assombração / Hoje elas são assombradas / Pela civilização.

Adauto Santos e Willi, “Histórias de Assombração”

A imensa planície conhecida como Pantanal, cujas bordas estendem-se pelos territórios boliviano e paraguaio, sendo ali denominada como “Cha-co”, encerra em suas áreas muito mais seres do que aqueles tão expostosna mídia: aves, peixes e répteis mesclados à flora deslumbrante. No territó-rio brasileiro o Pantanal ocupa uma área de 140.000 km2, aproximadamen-te, nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Desse total, doisterços estão encravados no Mato Grosso do Sul.

Nesse imenso território, que até a chegada dos brancos europeus (es-panhóis e portugueses) foi domínio de Guató, Payaguá, Guaikurú e váriosoutros povos, hoje habitam populações voltadas para várias atividades eco-nômicas, com destaque para a pecuária, a pesca e o turismo. Visitada porviajantes ligados à Espanha nos séculos XVI e XVII, no XVIII a região panta-neira foi definitivamente incorporada à coroa portuguesa por força dos trata-dos e, sobretudo, em decorrência da colonização lusa consolidada desde adescoberta das minas cuiabanas na segunda década desse século.

Neste texto importa focalizar alguns elementos que caracterizam hábitos epráticas na experiência cotidiana do homem pantaneiro em seus contatos com anatureza. Nessa tarefa tomo como referência alguns trechos de duas entrevistasrealizadas com habitantes da região do pantanal próxima à cidade de Corumbá(MS). As gravações foram feitas entre os anos de 1995 e 1996, com o objetivode coletar narrativas que refletissem a experiência de vida no Pantanal1.

Uma das personagens anotada aqui é um pantaneiro que viveu porlongos anos em fazendas no interior do Pantanal. Na verdade, o palco degrande parte de sua vida foram fazendas no interior da planície pantaneira, ese hoje habita a cidade, isso ocorre mais por imposições familiares e desaúde do que por opção. O senhor Osvaldo Pereira de Souza – Vadô –,setenta e cinco anos, revelou-se um narrador primoroso, um intérprete dashistórias adormecidas em sua memória, que ao serem revisitadas recobrem-se de tonalidades visualmente suaves e sedutoras.

No conjunto “bricolado” de histórias desse homem voam bruxas, sur-

1 As entrevistas referidas aqui integram o conjunto de fontes audiovisuais produzidas no projeto depesquisa “História Oral e Memória: história e estórias”. Este projeto tem por meta perscrutar experiên-cias de vida do homem pantaneiro.

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gem curupiras, atuam pombeirinhos, aparecem assombrações de vária or-dem, fantasmas atemorizam pessoas, contracenam mãozãos, demônios têmfunções, lobisomens e outros habitantes do imaginário popular brasileiropercorrem o espaço mítico-legendário pantaneiro, estabelecendo interfa-ces com o mundo idílico do ecoturismo.

Não cabe aqui um detalhamento das histórias: faltariam espaço, tempoe capacidade para reinterpretá-las!2 Destaco apenas uma, em especial, queexpõe uma das várias aventuras do “seu” Vadô juntamente com um vizinho,cuja habilidade em metamorfosear-se em lobisomem provocou o assombra-mento do narrador, resultando no fim das relações fraternais entre eles. Eis asinopse: alertado por um terceiro a respeito da transfiguração de um amigo,o senhor Vadô sempre nutriu dúvidas acerca de tal possibilidade, mesmoquando um outro seu amigo e vizinho fora atacado por um certo animalestranho e imediatamente identificado como sendo um lobisomem. Nesseconflito a salvação do amigo agredido ocorreu pela pronta e eficaz interven-ção do senhor Vadô.

Alguns dias depois, ao visitar o homem que supostamente demudava-seem lobisomem, viu-se o senhor Vadô recebido na residência do antigo amigode forma rude e hostil. Deduziu que tal atitude ocorreu por conta do enfrenta-mento verificado entre o lobisomem, seu outro vizinho e compadre e o narra-dor, o senhor Vadô. Ao refletir sobre o assunto o senhor Vadô indaga-se:

Como [é] que pode um homem [virá] um lobisomem? Mas, um homem

acho que num pode virá! O quê!!! Virá lobisomem! Quem dera eu virá

Jesus Cristo!3

Mas explicações para esse pantaneiro, peão-de-fazenda, pescador, ca-çador e contador de causos os quais assemelham-se a uma rapsódia ou acapítulos de sua vida, não se assentam apenas no sobrenatural. Desconfiadoe arredio em relação às coisas de Deus, o senhor Vadô, lá pelas tantas daentrevista, assim afirmou:

(...) Porque eu num acredito assim em muita coisa! Se o senhor fala

de Deus (...) eu to até achando que num existe Deus. Eu num tenho

2 Para uma visão mais detalhada e discutida dessas histórias, consultar: Fernandes, F. A. G. Entre históriase tererés – o ouvir da literatura pantaneira. São Paulo: UNESP, 2002.

3 Entrevista. Vadô e José Aristeu (filme-vídeo). Produção: Eudes Fernando Leite e Frederico Augusto G.Fernandes. Corumbá: Ceuc/UFMS, 1997. 280 min. (aprox.), color, VHSc.

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muita fé! Eu sô uma pessoa muito distante. Eu gosto de vê pra podê

fala! Eu gosto de vê pra podê falá! Esse negócio de falá: – É porque

Deus, não sei o quê...

Sabe no que eu acredito muito? É na terra! Essa terra que nasceu pra

nóis criá. Nóis come da terra. Sai a água da terra, nossa produção é

da terra... Esta terra eu tenho como meu Deus. Porque tudo aqui é o

nosso mundo! Aonde que o senhor faz a necessidade, que o senhor

faz tudo, que o senhor come arroz, come feijão... Eu falo essas coisa,

mas num sei como que pode sê, como que num pode sê. Mas a terra

aqui é meu Deus.4

Em princípio, sob o impacto dessa afirmação, o senhor Vadô poderiaser tomado como um ímpio. Contudo, no transcurso de sua entrevistaencontro várias pistas que encaminham à localização do contador entreos agnósticos; crente que é da necessidade de conhecer pormenorizada-mente os fenômenos, encontrar nestes alguma lógica satisfatória comoresponsável por sua ocorrência. Mas o agnosticismo não é a única formade pensamento sistematizador verificável na fala do senhor Vadô. Maistarde, ao abordar outra ocorrência do sobrenatural, ele fez a seguinte ob-servação: “Olha, pur isso que eu falo pro sinhor que nóis temo que te fé!”E, logo após, complementou: “Aí que eu falo pro sinhô, isso que to falanopro sinhô, se eu tivé mintindo eu quero que Deus me tire isso [indicaseus próprios olhos] aqui agora!” Como é possível compreender essa cos-movisão – para emprestar um conceito significativo para os novos histo-riadores. Talvez o senhor Vadô não tenha as mesmas características domoleiro Menocchio, perseguido pela Inquisição do XVI, cuja visão de mundofoi brilhantemente dissecada por Carlo Ginzburg5, embora seja possívelencontrar na suas histórias todo o vigor da cultura popular ladeada pelosanimais e plantas do Pantanal.

Um outro entrevistado, o senhor Roberto dos Santos Rondon, conta suaestratégia – o senso comum define como simpatia – para enfrentar a força danatureza manifestada na picada de uma cobra. Numa situação ocorrida nopercurso de uma viagem em comitiva, cuja finalidade era conduzir bovinos,coube a ele executar a serpente e transformá-la em antídoto:

4 Idem.

5 Ginzburg, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1987.

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(...) matei a cobra. Ela era tão grande que do segundo fio de arame de

cima da cerca esbarrava o rabo dela lá no chão! Dependurei ela de

cabeça pra baixo pra o veneno não subi pra pessoa né! Então você

pega e tira o coro dela, um parmo e coloca na parte onde ela picô. Aí

ela puxa o veneno na pessoa!5

Keith Thomas demonstrou como em determinado momento da IdadeModerna – na Inglaterra Tudor e Stuart – a concepção de que na natureza ohomem tinha à sua disposição as outras espécies, criadas para atendê-lo emsuas necessidades: “As plantas foram criadas para o bem dos animais e essespara o bem dos homens”7. As dificuldades por conta das distâncias e a grandequantidade de pequenos animais peçonhentos colaboraram para que as rea-ções frente ao perigo transformassem o motivo da ameaça em antídoto pro-visório ou, em certas circunstâncias, no único possível.

Parece-me que procurar um conceito definitivo para caracterizar as con-cepções desse pantaneiro pouco contribuiria para alcançar característicasculturais de seu meio social. A mais vistosa dessas características é a oralida-de. É por meio dela que parte importante dos hábitos e crenças pantaneirassobrevive às ondas da modernidade, que não deixou a região à parte. Emtoda a entrevista o senhor Vadô esbanja sua habilidade de dialogar, explici-tando valores, detalhando situações, perseguindo a atenção e o convenci-mento de seu ouvinte. Cabe tomar Benjamin ao assegurar que:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorre-

ram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores

são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos

inúmeros narradores anônimos.8

O senhor Vadô corresponde em parte às características do narradorbenjaminiano, especialmente no referente ao recurso à oralidade como es-tratégia de transmissão de saber – e cultura –, como na capacidade de comu-nicar sua experiência à posteridade. Porém, seu universo, ou o palco de sua

6 Entrevista. Roberto dos Santos Rondon (filme-vídeo). Produção: Eudes Fernando Leite e FredericoAugusto G. Fernandes. Corumbá: Ceuc/UFMS, 1996. 90 min (aprox.), color., VHSc.

7 Thomas, Keith. O homem e o mundo natural. Trad. João Roberto M. Filho. São Paulo: Companhia dasLetras, 1996, p. 21 e ss.

8 Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.Sérgio P. Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 198.

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vida, foram o Pantanal e as fazendas de gado que integram essa região. Aintegralidade da entrevista realizada com o senhor Vadô reforça a idéia deque a oralidade é viés imprescindível para o pantaneiro, principalmente osque não integram os segmentos proprietários no Pantanal, não apenas pararevelar suas opiniões, mas também manter vínculos culturais. Novamentecabe recorrer a Benjamin:

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão –

no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido,

uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em

transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou

um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em

seguida retirá-la dele.9

Dessa forma, a narrativa e o narrador tratados por Benjamin são tomadosaqui para qualificar o entrevistado muito mais como parte de um grupo social,o qual possui valores e hábitos que caracterizam uma cultura, do que propria-mente como homem do campo alheio ao mundo moderno das urbes. As his-tórias do senhor Vadô e muitas outras encontradas no decorrer das gravaçõesapontam para a importância do falar, do contar causos no contexto pantanei-ro, indicando também a força de tradições que merecem maior atenção10.

Em um tempo no qual a sociedade que tem atribuído ao Pantanal epí-tetos como o de “paraíso ecológico”, o local designado ao homem tem fica-do muito abaixo daquele em que situam-se a fauna e a flora.

As referências aos homens por vezes são depreciativas. A eles é atribu-ída a culpa pelo caos urbano e, nesse caso específico, a responsabilidadepela degradação ambiental. A preocupação é a de preservar o paraíso, ex-pulsando mais uma vez Adão e Eva.

As histórias do senhor Vadô e a estratégia do senhor Roberto fazemparte do mesmo universo, ainda que se refiram a situações distintas. De fato,a forma adotada para compreender o sobrenatural, de um lado, e incorporaro natural, de outro, reflete tradições que não operam com a separação ho-mem x natureza de uma maneira explicita e rigorosamente antagônica.

9 Ibidem, p. 205.

10 Tratei da questão “modernidade e tradição”, ao estudar condutores de boiadas e peões-boiadeiros nocontexto da história Pantaneira. Ver: Leite, Eudes Fernando. Marchas na História: comitivas, condutorese peões-boiadeiros nas águas de Xarayes. Assis, 2000, 285f. Tese (Doutorado em História) – Univer-sidade Estadual Paulista.

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O ecologismo pós-moderno é perverso em algumas de suas facetas,especialmente naquela que atribui ao ser humano, como pressuposto, a “sina”destrutiva11. Decorrentes de frustrações primeiro-mundistas provocadas pe-las fórmulas avassaladoras de dispersão e incorporação de territórios ao gran-de mercado consumidor, as preocupações com a natureza parecem quereraprofundar ainda mais a distância entre o homem e seu ambiente, inclusiveaqueles que, a exemplo das personagens aqui referidas, não compartilhamda noção de que são nocivos ao seu universo.

Destarte, importa apontar aqui que o Pantanal é uma espécie de repo-sitório de tradições. Estas integram o universo local e contribuem nas formasde viver no local, além de relacionarem-se à própria identidade do pantanei-ro. Nesse prisma, a tentativa de compreender a cultura pantaneira passapelas formas desenvolvidas pelo homem no Pantanal para integrar a nature-za no seu cotidiano. Parece-me que a relevância adquirida pela tradição de-sempenha um papel importante nas formas de viver no Pantanal e integra ahistória do homem e da natureza nessa região.

11 Veja-se a situação ocorrida com o agricultor Josias Francisco de Araújo, preso em junho de 2000 porraspar troncos de árvores para preparar uma beberagem para sua esposa adoecida. Humilhado, recebeua visita do ministro brasileiro do meio ambiente e fez a seguinte afirmação paradoxal: “O vendedor dafarmácia não vai mais confiar em mim, ninguém vai confiar em mim”. Esta é apenas uma das circunstân-cias em que a proteção ao meio-ambiente beira a insanidade! Ver jornal O Estado de São Paulo, 24 jun.2000, p. A-13.

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Resumo

Este artigo é um estudo das formas de represen-tações simbólicas nas celebrações fúnebres, ofici-ais e religiosas na Vila de São João Del Rei, emMinas Gerais, no século XVIII, como forma depersuadir a população a participar de solenidadespomposas, imbuída de respeito e dor pelo passa-mento de nobres em Portugal. Reflete o pensa-mento dos críticos de tais eventos e a origem dopoder de fazer crer unificado das autoridades ofi-ciais e eclesiásticas, sobre os vassalos da CoroaPortuguesa.

Palavras-chave:

Celebrações Fúnebres – Poder – Colônia –D. João V

Abstract

This article is a study about the ways in which sym-bolic representations within funeral, official and reli-gious celebrations in São João Del Rei Village (Vilade São João Del Rei), em Minas Gerais, in the 18th

century, could persuade the population to take partin pompous solemnities showing respect and sor-row for the deceased nobs in Portugal. This articlealso focuses on the thought of the critics of suchevents and the origin of the unified power thatofficial and ecclesiastical authorities had to makepeople to believe in the Portuguese Crown Vassals.

Keywords:

Representations within funeral – Power – Colony –Dom Juan V

Liturgias Barrocas

Dirce Lorimie Fernandes*

* Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

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A pobreza do povo é a defesa da monarquia [...]

A indigência e a miséria eliminam toda coragem,

embrutecem as almas, acomodam-nas ao sofrimento

e à escravidão e as oprimem a ponto de tirar-lhes

toda energia para sacudir o jugo.

Thomas More

O apelo à imagem plástica fez parte do repertório das autoridadeseclesiásticas do período colonial, como elemento passível de avivar na po-pulação sentimentos reflexivos diante da morte e a consciência mítico-existencial quanto à efemeridade do mundo. Estas simbologias eram explo-radas como forma de persuasão durante as celebrações fúnebres realizadastambém na antiga Vila de São João Del-Rei, em Minas Gerais1.

Nestas celebrações os elementos de caráter litúrgico confundiam-secom o profano, compondo um espetáculo de intenso colorido rítmico e vi-sual em que se destacavam o substrato que hoje chamamos barroco. Nascomemorações realizadas durante o Dezoito Mineiro, como em Portugal, pre-ponderavam quadros dinâmicos de contextura barroca, agregando em colori-da trama carros triunfais, alegorias móveis celestiais, telúricas, bíblicas ou teo-lógicas, e até bailes com música acompanhada de instrumentos.

Os ofícios se recobriam genericamente de requinte e ostentação emsolenes exéquias celebradas com obrigatoriedade, por ocasião da morte dereis e príncipes portugueses ou do “Rei dos reis” no dia de “Corpus Christi”.

Pela função persuasiva da linguagem empregada nos registros relatan-do eventos fúnebres em Minas Gerais, no século XVIII, é possível compre-ender uma série de transformações em curso nos séculos XVI e XVII, duranteas primeiras tentativas de colonização do Brasil, responsável pelo surgimen-to de uma mentalidade que iria culminar, no Dezoito, como um momento deintegração entre o colonizado e o colonizador.

As “mercadorias da Igreja” e as suas sutilezas teológicas, conforme se referiao moleiro Menóquio às coisas tidas como sagradas2, eram ostentadas nas festasdescritas nos relatos sobre as celebrações, denominadas Áureo Trono Episcopal,Exéquias ou celebrações do Funeral à gloriosa memória do sereníssimo Rei D. João

1 Áureo Trono Episcopal, (ed. Fac-símile), In: Ávila, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas, Belo Hori-zonte: Centro de Estudos Mineiros 1967, v. 2. Funeral à gloriosa memória do sereníssimo Rei D. JoãoV em Minas, no dia 7 de janeiro de 1751. Exéquias - Transcrição extraída da Coleção Lamego, do Arquivodo Instituto de Estudos Brasileiros - USP, SP.

2 Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1976.

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V, que fazem parte do conjunto discursivo procurando coletivizar o sujeito.Na composição da festa religiosa ou das simulações fúnebres, como o

foram as celebrações acima, os seus organizadores estavam, na verdade, ape-lando para manifestações culturais que envolviam toda a população mineira,inclusive os negros, que, em tais circunstâncias, participavam obedientes ecircunspetos. Olhando parcialmente as Minas Gerais do Dezoito, é possívelafirmar que a cultura imposta às classes populares vingou ali de forma positiva,facultando à Igreja e ao Estado colherem juntos, naquele momento, os seusfrutos, o sincretismo cultural. A mistura ou justaposição cultural tornava-se evi-dente nos apelos sensoriais a inibir qualquer questionamento quanto à valida-de do fausto empenhado no vultoso sucesso, em meio de um profundo declí-nio econômico devido à decadência da mineração em Minas Gerais.

As ações volitivas estavam amortecidas pelo bom êxito e conseqüentecatarse. O obrigativo, citado por Todorov, é uma vontade codificada, coleti-va; é a lei de uma sociedade, neste caso, o Poder. Não existe discurso porparte dos súditos ou manifestações. Apenas participação ensaiada. Calada.Em nenhum dos relatos que documentam esses rituais é possível processaruma análise dos movimentos, da intimidade ou da consciência de quem querque seja. Tudo é previamente preparado. Os narradores dos textos aquidiscutidos conduzem o fio do enunciado focalizando coisas e pessoas deforma precisa. Nada lhes escapa à observação. Os acompanhantes das cele-brações fúnebres ou litúrgicas, citados nos documentos, pareciam amansa-dos e fiéis ao mesmo Deus que clamou e ordenou de qualquer parte dodeserto e alcançou a cega obediência de Abraão. Neste caso, a conclamaçãojá fazia parte de seu espaço e tempo e nem se davam conta de que “cantan-do ao mesmo tempo célebres toadas ao som do tamboril, flautas e pífarospastoris, tocados por outros carijós, (....) na grosseria natural dos gestos exci-tavam motivo de grande jocosidade”3.

Os documentos relatando estas procissões dão ensejo à constatação daexistência de uma grande sagacidade por parte de seus organizadores, tendoem vista seu incontestável poder de fazer crer, sob o qual se regozija com aexuberância da festa, pelas formas e pelos símbolos carnavalescos, com umacarga de originalidade surpreendente, a marcar o período que se convencio-nou chamar Barroco. Nestes textos do século XVIII percebemos que os nar-radores se posicionam fora do objeto aludido, dando ao evento, de qualquerforma risível, um caráter particular; expressam opinião sobre um mundo em

3 Áureo Trono Episcopal, 1967, p. 455.

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plena ebulição, no qual eles estão incluídos:

(...) assim se executou em toda a Capital de Vila Rica, e suas anexas

por Pastoral expedido do Rdo. Cabido do Bispado de Mariana como

melhor o expressam as relações daqueles suntuosos objetos, que de-

ram assunto aos seus elegantes escritores, porque mais do que agra-

vo, ofensa fora querer ser eu o cronista de tanta grandeza, estando já

esta desempenhada nas suas narrativas por mais relevantes vôos, e

mais amparadas penas.4

Esta particularidade do comportamento humano tem suas origens noespírito irônico e ambíguo, parte das muitas posturas possíveis adotadas di-ante do registro histórico.

Nos registros em discussão, os participantes das festas fúnebres man-têm suas próprias raízes culturais, ao mesmo tempo em que não questio-nam a fé católica, em tais momentos; têm um comportamento religiosopleno de digressões e encaixes, evidenciando uma assimilação cultural cheiade contradições, resultante da adaptação ao modelo que lhes é proposto.Esse comportamento domesticado representa o ideal de um segmento dasociedade. Para as pessoas articuladas com o Estado Moderno, ou com aIgreja, festas como as que discutimos neste artigo deveriam simbolizar opoder do monarca e perpetuar a fé católica.

Os documentos comprovam que os participantes desses eventos li-túrgicos estão todos domesticados, o Santo Ofício se encarregara disso hámuito tempo. Não há, portanto, registro de rebeldias, sacrilégios ou blasfê-mias durante as festas fúnebres mineiras. Nada contraria a orientação religiosa.As rebeldias, os sacrilégios e as blasfêmias são crimes antigos, pois as pes-soas eram processadas e punidas não por atos declarados de impiedade,mas por suas idéias, por afirmações impensadas ou qualquer ação que in-terferisse na administração religiosa. Os vassalos mineiros, úteis para a re-presentação, embora “desclassificados”, deixavam-se conduzir mansamen-te pela força de persuasão dos apelos sensoriais nestes momentos de fes-tas lutuosas que, na verdade, não lhes diziam respeito.

Não discutiam o porquê de sua realização, não examinavam a sua par-ticipação, as despesas exageradas, enquanto viviam perenemente numamiséria para a qual, naquele contexto, não havia salvação. Apenas participa-

4 Exéquias, fl. 6-7.

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vam. Serviam como número para engrossar procissões. É impossível tratardeste assunto sem fazer referência ao acervo de obras produzidas por Laura deMello e Souza, que, na questão da ilusória riqueza e opulência mineira, justifica:

A sociedade era pobre, e creio poder dizer que as festas eufóricas do

século XVIII tenham sido grandemente responsáveis por uma mani-

pulação “autoritária” da estrutura social na medida em que uma das

visões possíveis da sociedade foi imposta como a visão da sociedade,

a que mais acertadamente refletia a estrutura social – no caso, a

visão de riqueza e de opulência.5

João Adolfo Hansen, reportando-se à Sagrada Escritura, explica a subordi-nação momentânea da população mineira atendendo aos apelos das autorida-des para participar da festa. Assim como a Bíblia não admite, na época, o livreexame, as atitudes políticas não devem ser questionadas; os súditos devemobedecer e repetir os padrões pré-estabelecidos. Lembra as palavras de Saa-vedra Fajardo quanto ao controle do povo, nesta mesma questão: “Quando opovo começar a opinar em religião e quiser introduzir novidades nela é preci-so logo o castigo, e arrancar pela raiz a má semente antes que cresça e semultiplique”6. Isto leva a refletir sobre o desfecho da Conjuração Mineira – quelevou às prisões os inconfidentes e deu a Tiradentes um castigo exemplar – ea repressão às revoltas mineiras, ou motins, naquela sociedade escravista.

A população de Ouro Preto e Mariana – ou de qualquer outra região daAmérica Portuguesa, na época – ao participar das celebrações fúnebres oude comemorações como a do Áureo Trono, não oferecia insegurança paraque fossem tomadas as providências apontadas por Saavedra Fajardo. “Des-classificados”, como os refere Laura de Mello e Souza, pretos, índios ou mu-latos, estava ali o novo homem do povo, estava formada a comunidade cristãcatólica condicionada, sobre a qual o poder impusera o seu credo de modoincontestável. Uma comunidade submissa, em meio à qual os próprios dia-bos eram úteis agentes de sua propaganda. Os padres faziam guerras com osseus sermões, criavam proibições que abafavam o incêndio, impondo o si-lêncio que serenava as paixões e, ao conjugar-se com o tempo, trazia umacerta quietude, sem a qual não se podia empreender nada.

5 Souza, Laura de Mello e. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira do Século XVIII. 2. ed. Rio deJaneiro: Graal, 1986, p. 226-227.

6 Hansen, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVIII. São Paulo:Companhia das Letras, 1989, p. 232-450.

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A ambigüidade e o patético desses eventos religiosos de Minas Gerais,em plena decadência do ouro, constituíam um forte instrumento para a forma-ção de um sujeito marcado por uma percepção individual da formação domundo. Mikhail Bakhtin diz que Goethe compreendeu perfeitamente a línguadas imagens da festa popular, baseado nas suas afirmações sobre a Quarta-feirade Cinzas, em que se realizava uma espécie de “filosofia do carnaval”, dandoensejo à busca do sentido sério para a sua palhaçada. Em o jeu de la feuilles,Bakhtin faz referência ao banquete, ao tema da prostituta (dama douce) eaborda o tema das Relíquias, em que introduz a idéia do corpo despedaçado edo pregão da praça pública, concluindo enfim que tudo isso permite ao toloser tolo. A tolice, ao permitir o rebaixamento e a aniquilação, tem o seu ladopositivo quanto a permitir renovação e verdade. É ambivalente e contrária àverdade oficial, por isso é inferior. A tolice é manifestada como uma incompreen-são das leis e das convenções oficiais do mundo, como uma ignorância daspreocupações oficiais com relação à seriedade no trato com as coisas.

Tais considerações podem ser importantes para a análise dos docu-mentos sobre as festas fúnebres, se pensarmos no empenho, na coleta defundos para a sua realização, nas sedas, nos veludos, nos brocados, na ilumi-nação. Tudo é o reverso da verdade do dia-a-dia da comunidade pobre e fiel.Mary del Priore relata: “ordenavam que os moradores da Vila, como os defora dela, iluminassem as casas e domicílios com festivas luminárias em seisnoites antecedentes (....)” Lembra a autora a origem desta prática: “As luminá-rias estão presentes nas Cartas Régias desde o século XVI e vigoraram comoenfeite de festa pública, até as primeiras décadas do século XIX (....) O carátermetafórico da iluminação aparecia também para marcar o lugar dos indivíduosno interior da comunidade”7. Tudo isto era o inverso da verdade oficial domi-nante: uma abrupta decadência espalhando uma miséria generalizada.

A metáfora da iluminação, que só será percebida pela vista, foi usa-da no Novo Testamento, na referência aos Três Reis Magos e aos pasto-res que se encaminharam até o presépio iluminado pelos anjos. Assim,também os organizadores das pompas fúnebres realizadas no DezoitoMineiro deram especial ênfase à iluminação. Esta devia causar emoçãofortíssima e despertar a piedade barroca.

Os diversos aspectos da pompa serviam para atrair, para fazer esque-cer, por meio de um falso fausto organizado por uma “festa na festa”. No“triste espetáculo” da celebração dos Funerais de D. João V, diz o narrador:

7 Priore, Mary Del. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 35.

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Acompanhavam as lágrimas, os suspiros não como desafogo da pena,

mas como produções da alma nos últimos alentos da vida. Choravam

outro melhor Abner ilustrando assim nos merecimentos deles os qui-

lates do seu amor, e da sua obediência.

Não temos menção descritiva do próprio séquito obediente. Este éapenas referido e está totalmente submisso a um poder que dobra, pois apopulação da cidade contraditoriamente lamentava “dos feitos daqueles gri-lhões de ouro, com que faziam, suave o cativeiro e gostosas prisões da liber-dade”. Ela simplesmente participava de um ato teatralizado, ou carnavaliza-do que, na verdade, não lhe dizia respeito. A sua existência é uma comédia.

Próximos da comédia, os populares de Mariana, ou de Vila Rica, atoresou observantes das verdades da fé mostraram, em nível dos devaneios, assuas deficiências, a categoria social e suas contradições inerentes, no mo-mento em que nada perturbava o lugar. A cidade ou a vila vive ao ritmo dosacontecimentos extraordinários que emergem a cada linha dos documentos.Impulsionados a desenvolver uma estratégia sensorial, os organizadores dosfaustosos eventos fúnebres/religiosos ou festivos apelam para canais norma-tivos. Não constam nesses documentos procedimentos de intimidação, terro-rismo ou pressão efetiva. Estes três canais estão presentes de forma sutil,acenando através das metáforas fúnebres e com a presença ou participaçãoefetiva das autoridades civis, junto às autoridades eclesiásticas, controlando,ludibriando a opinião pública.

O catolicismo, a colonização, por meio da repressão inquisitorial, al-cançara os seus objetivos, ao culminar, nestas manifestações barrocas, comoum momento de integração. Pois a colonização da América, segundo JaniceTheodoro, foi obra barroca. Diz a autora que o Barroco na América é umimportante momento de integração, pelo fato de atenuar a brutalidadecom que o conquistador apelou para efetivar a conquista. Ao adotar ascontradições e concepções plásticas praticadas na Europa, aplicou novasformas aos significados originais, ao mesmo tempo em que os multiplicavadentro de outra concepção.

Janice lembra que inicialmente, na América Espanhola, representantesdas diversas ordens religiosas, como Cortez e Pizarro, ensinaram ao indígenacomo ordenar o mundo usando as aparências, a comunicação visual e a te-atralização. Estas foram as primeiras formas de contato entre as culturas nacomplicada idéia de penetração. O índio é então educado para dissimular.Isto implicou a morte do significado.

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Esta idéia é reforçada por Paulo de Assunção, para quem a conquistaimplicou uma prática belicosa, “(....) diretriz básica seguida pelos conquista-dores e povoadores das terras americanas, que foi o não reconhecimento dasculturas e da vida espiritual dos povos americanos. A conquista colaboroupara reforçar a idéia de utilidade da natureza ao mesmo tempo em queconstruía um mito de superioridade dos europeus frente ao novo Mundo”.Além disso, o autor acrescenta que “a proposta de evangelização foi um dosprimeiros atos de uma série de agressões para efetivar a conquista”8.

Ao expressar-se através do excesso, tendo como referência a estéticaRenascentista, por meio da fragmentação da cultura e da morte do significado,o Barroco camufla o universo indígena, por exemplo, e o apresenta integrado,dissimuladamente, em uma arte sacralizada. Adorno e luxo concebidos peloeuropeu tomam outros significados na América. Os antigos conteúdos, comodiz Janice Theodoro, esvaziam-se para dar à forma um significado múltiplo,impondo uma dialética ambígua, dentro da mentalidade colonizadora.

No século XVIII, já consolidada a colonização, os problemas têm maioramplitude, pois os súditos alvos do interesse do colonizador são os negros, oscrioulos e os carijós a participar perifericamente daquela sociedade decaden-te, vagando entre culturas incompatíveis.

Neste momento de integração entre colonizadores e colonizados sesobressaem a ironia, a ambigüidade e a contradição, perceptíveis também naprodução literária da importante camada social formada pelos poetas minei-ros, dentre os quais Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga.Ambos e os demais poetas enfrentaram as oposições culturais, a americana ea européia, ou “a civilizada e a primitiva”, que deu ensejo ao universo peri-goso da desordem, onde a violência podia ser justificada como salvação:“Nas Minas Gerais o problema se complicava, porque a desordem dos arrai-ais mineradores constituía problema inquietante, que levou a considerar aáspera superordenação colonial como condição (mesmo iníqua) de paz etrabalho. Cláudio [o poeta Cláudio Manoel da Costa] viveu diretamente esseaspecto da questão e o debateu a seu modo no medíocre poema épico VilaRica”, justifica Antônio Cândido, em cujo ângulo de visão, a violência sejustificava como salvação. Suas observações vêm ao encontro de nossa refle-xão sobre as cerimônias fúnebres em Minas Gerais, algo que hoje podería-mos chamar de “instrumento da fé e da justiça”, amparando ideologicamente

8 Assunção, Paulo de. A terra dos brasis – a natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros jesuítas(1549-1596). São Paulo: Annablume, 2001a, p. 148-149.

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os objetivos de seus organizadores. É também “o triunfo da ordem a qual-quer preço” nas decadentes Minas aventureiras de Setecentos9.

Tendo aprendido a ordenar o mundo, usando as aparências, toda po-pulação colonizada apelou para uma forma de expressão que na Literaturadeu o tom ácido e muitas vezes jocoso da sátira, ou da ironia, ponto departida dos escritores da época. Os árcades, por exemplo, não consegui-ram desvencilhar-se dos motivos irônicos ou satíricos, conforme constata-mos nas Cartas Chilenas atribuídas a Tomás Antônio Gonzaga e, ainda quede forma sutil, nos documentos que descrevem as festas religiosas comoÁureo Trono, Os Funerais de D. João V, as Exéquias e outros eventos de talordem. O movimento árcade, desenvolvido no século XVIII, não conseguiuretomar as formas clássicas conforme a filosofia apregoada pelos seus ide-alizadores europeus, cujos modos de expressão, no Brasil, mantiveram-sepresos ao modelo barroco, com algumas exceções.

Antônio Cândido expressa a sua opinião a este respeito, dizendo que“as técnicas, as imagens e o espírito do Barroco estão incrustados” na poesiae na poética de Cláudio Manoel da Costa, Durão e todos os outros poetasmineiros do século XVIII. Ressalta a “combinação íntima dos arabescos cultis-tas com a linha reta implícita na mentalidade “ilustrada” do tempo, que afina-va melhor com o Neoclassicismo”10.

A carga barroca, com os seus exageros, está presente também nas Exé-quias, cujo autor, carregando nas metáforas e na seqüência anafórica-hiper-bólica para fazer menção à “morte da Sereníssima Senhora D. Maria FranciscaDorothéa”, lamenta:

(...) assim se eclipsou aquele humano sol do Império Lusitano,

assim se desfolhou aquela peregrina Rosa do Jardim da Castidade,

assim se escureceu aquele racional céu inimitável de virtudes

e desta sorte se cortou aquele florescente ramo régio trono e Bragança,

destinado por Deus para nele se verificar o Quinto Império do Mundo (...).11

O documento que trata dos Funerais de D. João V é também de caráterencomiástico, conforme comprovam estes louvores às suas virtudes: “(....)foi pai de povos mostrando viver mais para eles do que para si, constituindo-

9 Cândido, Antonio. Na sala de aula – caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 2000, p. 18-19.

10 Ibidem, p. 8.

11 Exéquias, fl. 5.

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se finalmente por estas e outras virtudes Rei perfeito em tudo, e por issomais amado e adorado de todos (....)”.

O reinado de D. João V durou quarenta e três anos e foi um dos maislongos da história da monarquia portuguesa. Por isto, devemos entender acelebração destas exéquias como um grande cerimonial com o objetivo deeducar os vivos, pelo seu significado exemplar. A Breve Descripção Funebrenarração do Sumptuoso Funeral e tryste espectáculo de D. João V, de 1751,constitui uma narrativa de sua morte impregnada de recursos iconográficospara alertar os espectadores quanto à realidade da morte e ao poder do rei,àquela sociedade colonial mineira do século XVIII. Esta deveria refletir sobrea vida louvável do monarca, cujas obras garantiriam à sociedade cristã oconsolo de vê-lo perpetuar-se nos seus descendentes12.

A literatura e a arte barrocas do período auxiliaram na composiçãode uma magnificência sem limites desse soberano. Os panegíricos, emlouvor à figura do monarca, asseguraram-lhe uma imagem pública carac-terizada pelo espírito ativo e consolidaram o poder monárquico. O retratodo rei representado com uma intenção deliberada de alegoria adquire umsignificado importante, pois traduz visualmente o poder. Neste sentido, oretrato barroco é concebido como uma fachada, ou como um palco aexigir a presença do espectador. E assim, o barroco nunca mais foi sufoca-do, como afirma Afonso Ávila.

O significado dos ritos vassálicos

Realmente, é impossível sufocar o Barroco, sempre que nos ocupamosdos trezentos anos da colonização da América. Suas características estão pre-sentes na realeza, nas insígnias de poder, nas cerimônias de coroação, defunerais ou de sucessão, tendo explicações simbólicas. No Antigo Testamen-to existem imagens simbólicas e no decorrer dos tempos essas imagens su-cedem-se descritas em termos simbólicos, místico-religiosos. Le Goff não crêno êxito nem na realidade dos empréstimos instrucionais ou culturais, masafirma que os modelos europeus da “festa na festa” ou do “falso fausto”alcançaram êxito na realização das Exéquias, do Áureo Trono e na simulaçãodos Funerais de D. João V, porque o terreno fora preparado durante os dois

12 Ver Assunção, Paulo de. As exéquias e D. João V: O espetáculo e a imortalidade do Poder. Lumen,Revista de Estudos e Comunicações. São Paulo, IESP/UniFAI, v. 8, n. 17, p. 139-158, jan./abr. 2002.

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séculos anteriores, e agora no Dezoito os modelos eram adaptados a condi-ções originais13. Ao assumirem compromissos de obediência e fidelidadecom o olhar voltado para um objeto simbólico, como por exemplo “umbastão na ponta do qual estava esculpida uma figura humana” (cum baculoin cujus capite similitude hominis erat scultum) os vassalos mineiros nãoestariam presos a empréstimos culturais?

Nos documentos, objetos desta reflexão, o que mais importa é a ho-menagem. A homenagem, sinal de reconhecimento da superioridade dosenhor, assim como de submissão, garante a rede de fiéis. Dos textos quedescrevem cerimônias fúnebres emerge a idéia de que, subjacente à sagra-ção ou investidura divina, o rei é o maior beneficiário de um sistema simbó-lico que faz dele o vassalo de Deus. São dois sistemas: a cerimônia e osobjetos simbólicos irredutíveis e inseparáveis, que introduzem o rei numsistema religioso. Assim, o espiritual e o temporal se confundem e se com-pletam, desde a Igreja Medieval até então.

Quanto aos objetos e ao lugar onde ocorrem estas cerimônias, quandose trata de uma igreja, a função simbólica deve ser um espaço destinado asolenizar o ritual em que se cumprirá o contrato aí selado. O altar tem aimportância de ser o local onde se depõe o objeto simbólico da investidura ea assistência deve estar no fundo do espaço simbólico, aos lados ou em redordos contratantes. Depois figuram os vassalos.

Acrescentando ao espaço simbólico uma profusão de sons, luzes, odo-res e movimentos teatralizados, componentes intrínsecos de cerimônias pie-dosas, o ritual confirma e reforça a idéia de que a sujeição e o senhor seunem reciprocamente por meio de um elo simbólico, elemento indispensá-vel para aquele momento em que o poder pode contar com a fidelidade dosfiéis. A vassalagem e o senhor ligam-se intrínseca e reciprocamente por meiode elementos simbólicos, especialmente naquele momento em que os vas-salos estão tomados por um forte sentimento de fidelidade. Estão presos auma espécie de freio que modela a sua fantasia, tornado-os felizes e sossega-dos. Esta fantasia é uma poderosa força que transforma o que os sentidoscaptam e no que o “outro” o quer como uma verdade inteligível.

O Padre António Vieira dá a entender no “Sermão da Sexagésima” queo olho excede todas as mais partes do corpo animal, evidenciando o prima-do da visão sobre os demais órgãos dos sentidos. Segundo Vieira, o que entrapelos ouvidos, por ter menos evidência, tem menos poder de persuasão do

13 Le Goff, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1979. Cap. IV, p. 325-385.

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que o que entra pelos olhos. Tomando por base esta afirmação, lembremosque nas procissões da Semana Santa, a partir dos séculos XVI e XVII, o espe-táculo das flagelações, antes confinado aos conventos, é exibido em praçapública, especialmente nos países ibéricos e suas colônias.

No “Sermão da Sexagésima” do Padre António Vieira, na representaçãoda Paixão de Cristo, o Rei dos reis se transforma em rei da zombaria para seusalgozes. Os Evangelhos relatam as sessões de torturas, coroamento de espi-nhos, um pedaço de pau à guisa de cetro e anuncia o ECCE HOMO; e todosse prostram manifestando sentimento de dor por meio de lágrimas, entregritos e o relato da pancadaria sobre o Cordeiro de Deus.

Fechadas as cortinas, o Cordeiro de Deus é reapresentado à multidão,olhos e ouvidos atentos: ECCE HOMO. E o pregador se empolga fazendoentrar pelos ouvidos aquilo que os olhos captavam pela representação sim-bólica do Cristo: “Porque então era ECCE HOMO ouvido, e agora ECCE HOMOvisto, a relação do pregador entrava pelos ouvidos, a representação d’aquelafigura entra pelos olhos”14.

Ficam justificadas, então, as festas fúnebres a que aludimos. O que éouvido mas não é visto não provoca as emoções fortíssimas e não alcançaa piedade barroca. Era preciso mostrar os cravos, as colunas, os açoites, acoroa de espinho e as chagas que traduziam (e ainda traduzem) o sofri-mento de Cristo, tal como exigiu Tomé, personagem dos Evangelhos: “Seeu não vir em suas mãos o sinal dos cravos, e não colocar o meu dedo nolugar dos cravos, e a minha mão no seu lado, não acreditarei” (João, 20:24-31; 21:1-3). O aparato musical, por outro lado, é o elemento que enriqueceo efeito emocional em tais demonstrações.

Nas cerimônias fúnebres não faltavam os brocados, os veludos, assedas, instrumentos musicais de cujas harmonias, artimanhas barrocas, dissi-mulações, empregadas para suscitar a adesão mística e fazer ver e sentir,apesar dos olhos e dos ouvidos: o Rei morto, apesar de sempre ausente, sefazia presente na alma daquelas pessoas: “Felizes aqueles que crêem semver” (João 20:24-31; 21:1-3).

A importância da figura do rei está explícita nos documentos que des-crevem as pompas fúnebres do século XVIII Mineiro. A figura do rei é umaimportante referência. À sua sombra onipresente, os súditos encontram ocalor do ser que consegue ser único. O Rei pai, senhor, sacerdote, é quaseum deus. O Rei é tido como a cabeça da sociedade, representada pelo corpo

14 Vieira, Pe. António. Sermões. v. 1. Lisboa: Lella e Irmão, 1951, p. 14.

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humano. Esta classificação é discutida por João Adolfo Hansen. Diz o autorque, sendo partes de um todo,

(...) os membros do corpo humano são instrumentos para um princí-

pio superior, a alma... unidade do corpo, pluralidade dos membros,

diversidade das diferentes partes que Santo Tomás de Aquino esquar-

teja e recompõe num todo harmônico para a sua ordenação, fazendo

a simbologia do Corpus Christi15,

e, conforme escreveu o evangelista Marcos:

E, comendo eles, tomou Jesus, pão e, abençoando-o o partiu, e deu-

lho, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo; 23 – E, tomando o

cálice, e dando graças, deu-lho; e todos beberam dele. 24 – E disse-

lhes: isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento que por

muitos é derramado (14: 22-23-24).

Assim, o ato de compor e decompor o corpo humano, nas mais varia-das cerimônias, acaba por definir a cabeça como sede da razão, comparando-a com Deus em relação ao mundo; a semelhança do homem com o universoleva à sociedade regida pela razão de um só homem: o Rei. “O Rei no reino,a alma no corpo e Deus no mundo”. Deste encadeamento, Hansen concluique as paixões devem ser evitadas e controladas, porque “o modo de uniãomais perfeito do corpo político do estado é a paz”, estando sossegados osapetites, lembrando as palavras de Saavedra Fajardo, que aqui transcreve-mos: “Es el imperio unión de voluntades en la potestad de uno; si estas simantienem concordes, vive y crece; si se dividem, cae y muere, porque noes otra cosa la muerte sinon una discordia de las partes”16.

A caridade cristã diz que os maus devem ser amputados do corpo darepública para não contaminarem os virtuosos honestos, e a sátira aproveita-se dessas idéias para apanhar todos até alcançar o corpo político. E a socieda-de mineira, como todas as demais, formada pela colonização, submeteu-sesem grandes perturbações a todas estas formalidades.

Diz Laura de Mello e Souza que a projeção do imaginário europeuatingiu a América, endemoninhando-a em tentativas abruptas e irregulares,

15 Hansen, op. cit., p. 346.

16 Ibidem, p. 206-207.

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justificando a escravidão, uma vez que os propósitos dos “Soldados de Cris-to” eram a desconsideração dos homens bárbaros, animais, demônios, sem-pre o alvo privilegiado da má vontade dos jesuítas no Brasil.

Eram monstros selvagens (...) Era uma humanidade anti-humana que

vivia no pecado, nos vícios da carne; (...) eram incestuosos, nus pre-

guiçosos, pagãos e canibais. Muitas mulheres para um só homem.

Eram homens do diabo e aqui era o purgatório e, à medida que o

tempo passava, a vida cotidiana na colônia ficava cada vez mais

impregnada de demônios.17

Esta mentalidade levou à caça às bruxas, cuja intolerância fez acenderas fogueiras para exterminá-las. E o meio eficaz para o sucesso dessa ativida-de era a instituição do ato de confissão que, desde a Idade Média, se tornaraum meio eficaz para chegar à verdade. Vários autores importantes, comoJean Delumeau, com a sua obra A confissão e o perdão, se debruçaram nestatese, buscando explicar a sua importância como um ato de caridade e mise-ricórdia por parte da religião católica. Michel Foucault reflete sobre este atoque aos poucos desenvolveu os métodos de interrogação nos Tribunais daInquisição, para concluir que:

a confissão é um ritual de discurso em que o sujeito que fala coincide

com o sujeito do enunciado; é também um ritual que se desdobra em

relação de poder, pois não há confissão sem a presença ao menos

virtual de um parceiro, que não é simplesmente interlocutor, mas

instância que solicita a confissão, que a impõe, que a aprecia e inter-

vém para julgar, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual em que o

cunho autêntico da verdade é conferido pelo obstáculo e as resistên-

cias que ela precisa para suprimir para se reformular (...) o virtual

parceiro desse discurso é a instância que solicita a confissão, ela

absolve, julga, consola e reconcilia.18

A classificação dos pecados, segundo Hansen, refere-se à anatomia hor-rorosa dos pecados mortais com ênfase à classe da bestialidade ou do amor

17 Souza, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 48,61 e 145.

18 Foucault, Michel. Histoire de la séxualité – I - La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976, p. 82-83, 78-80.

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nefando do diabo. Nestes casos, a sátira constrói os tipos da bruxa e dofeiticeiro, englobando os pecados sexuais das “putas” e dos “sodomitas” e ogosto do macabro. Neste aspecto, a obscenidade da linguagem das paixõesempregada na arte barroca é tão torpe quanto a visão do túmulo em decom-posição a que aludem os textos que tratam das pompas fúnebres. Isto mime-tiza a desagregação de toda finalidade corporal: despedaça o corpo, fixa-senas partes excretórias e genitais, reduz o sexo a pura fisiologia19.

A obscenidade figura no barroco, prossegue o autor, como

o inferno da vida a falta de esperança e de amor das partes desgarra-

das. Lembre-se diz Hansen, uma vez mais Loyola e sua proposta dos

lugares corrompidos como sensibilização da espiritualidade; lembre-

se as pompas fúnebres dos castra doloris, a disseminação dos livros

da ars moriendi, o gosto do macabro, da crueldade do sangue. Retó-

rica Contra-Reformista piedosa que relativa o fanatismo medieval,

mais um elemento se acrescenta a ela nos séculos XVI e XVII, (...) o

das anomalias moralizadas.20

Nas pompas fúnebres descritas nos três documentos evocados nesteartigo não há “partes desgarradas”. Com os ânimos dos vassalos sossegados,o interesse das autoridades, na sua realização, era também voltado para agarantia da ordem local. Deve-se levar em consideração o fato de que nadécada de quarenta a formação dos quilombos, das revoltas mineiras, ou“motins”, gerara um grande problema social21. Para alcançar os objetivos, ecom base na carga cultural de que eram portadores, apelavam para a carna-valização das festas fúnebres, em cujos documentos percebemos substratospagãos adicionados a rituais católicos. As ameaças são sutilmente amortalha-das com macabras alegorias, sempre recorrendo para o admirável artifícioentre o claro e o escuro, que, apreendendo a vista, satisfaziam igualmente oentendimento. É este o primado do visual da estética barroca.

Esta apelava para a força de figuras conotativas da morte, da perdiçãoeterna, em alguns casos. Figuras terríveis como caveiras, esqueletos, meni-

19 Hansen, op. cit., p. 346-349.

20 Ibidem, p. 349.

21 Este assunto está discutido por Souza, Laura de Mello e. Norma e Conflito – aspectos da história deMinas Gerais no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1999. Dentre outros importantes temas, a autorareapresenta algumas resenhas críticas de obras atuais, indispensáveis para repensar a sociedade mineirado dezoito.

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nos de mármore, todas representações simbólicas da morte, quer pela cor,pelo visual ou pela própria frieza da morte, invocada pelos frios meninos demármore. Esta provocação, acrescida de odores procedentes de flores, velasacesas, incenso fumegando, enovelando fumaças a dominar o ambiente, fa-cultava o envolvimento de todas as sensações sensoriais e a piedade dosfiéis que, atemorizados, acatavam as “verdades” ali apregoadas por meio dealusões. No suntuoso Funeral de D. João V temos, dentre as diversas figurasque compuseram a decoração fúnebre,

(...) caveiras prateadas, esqueletos de estatura natural sentados em

colunas tendo na mão direita cada um uma foice prateada, e na

esquerda seus escudos (...) 4 esqueletos naturais cobertos de fumo

preto, trajados de tal forma que de todos os lados se lhe via organiza-

do do corpo, e seu interior vendo-se nelas verdadeiramente como em

próprios e não justo das figuras de estado a que nos reduz a separa-

ção da vida e duplicado os ossos da morte. Eram todos de estatura

ordinária e no que ficava fronteiro à porta se viam pesadas coroas

(...) corpos com diversas e belíssimas arquiteturas (...) meninos fin-

gindo mármore (...) [tudo iluminado por um] chuveiro de luz.22

Um outro apelo ameaçador, mas que possibilita a garantia de obediên-cia do súdito, é a morte, que o faz retornar ao pó. O demônio e o inferno têmlugar consagrado neste elenco:

Quando para Príncipe absoluto de todo universo ao barro de que

formou o homem, com a alma que te comunicou, te infundiu a vida;

porém, porque nas delícias do paraíso se não desvanecesse de imor-

tal, com a sugestão do demônio, segurando-te a divindade, na trans-

gressão da imposta lei sobre a árvore da ciência, te promulgou a

sentença da morte na fragilidade da vida. Rebelde Adão na observân-

cia do divino decreto, por acreditar mais a prometida, e falsa imorta-

lidade, que astuciosamente lhe segurara a serpente, do que a realida-

de da pena, com que Deus antecipadamente o advertia (...) Pecou

Adão pai universal de todos os homens, e porque com ele pecarão

todos (...) reduzindo a cinza o que foi formado em pó.23

Um século antes, o Padre António Vieira está sempre ameaçando os ho-

22 Funeral de D. João V, p. 20-21.

23 Exéquias, fl. 13.

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mens com a condenação eterna, com o fogo para reduzir a pó o corpo dopecador e com o fogo do inferno a alma impura, como se verifica no “Sermão doBom Ladrão”, pregado na Igreja da Misericórdia, em Lisboa. no ano de 165524. Oseu papel era deleitar, ensinar e influenciar. Era preciso sensibilizar, dar pra-zer e mover o ouvinte com o terror e a piedade. Neste caso, o argumentomais convincente era o inferno, a fogueira e a pena de morte – pelo fogo.

Nos documentos que descrevem as pompas fúnebres realizadas duran-te o Funeral simbólico de D. João V, nas Exéquias ou no Áureo Trono, osautores compõem uma metáfora do corpo do Estado, comparada anterior-mente por Santo Tomás de Aquino como a do próprio corpo humano.

O corpo, reencontrado na Renascença, foi aprisionado numa dimensãoreligiosa pela cultura da Contra-reforma que fez da anatomia um instrumentosutil, favorecendo a redescoberta de Deus. Tornou-se, para regozijo do es-calpo do médico legista, um ato que se inscrevia perfeitamente na lógica decristianização de quase todos os negócios lícitos das artes, das técnicas e dosinstrumentos de trabalho. O corpo humano tornou-se alvo de descobertaedificante e de piedosa missão, num novo mundo tangível e imóvel, abertoà meditação e à exploração, no âmago do qual podia lançar as vistas turvas,inquietas e ávidas de conhecimento.

A popularidade da dissecação anatômica cresceu ao tornar-se “espetá-culo moral” ou “sinistro carnaval sangrento”. Traduzimos aqui a descrição deum cerimonial macabro de Piero Camporesi:

Retirei do patíbulo, depois o reconstituí sobre o mármore dos anfite-

atros anatômicos, onde os corpos dos supliciados tiveram uma longa

oportunidade de ostentações didático-científicas, admiráveis e palpi-

tantes. De todas as partes da “máquina corporal”, é no crânio que se

encontra o lugar de honra e na visão o privilégio da beleza.25

A hierarquia dos membros diminui à medida que se desce para aspartes baixas do corpo. Herodíades parecia saber disso, ao instruir Salomé(Mateus, 14:8).

O mundo das maravilhas fechado na caixa craniana conduz fatalmenteà entrada nos mais profundos segredos da alma, acreditavam os renascentis-tas. A viagem ao interior do homem, segundo um itinerário que leva à desco-

24 Vieira, Pe. António. Sermões. v. 5. Lisboa: Lello e Irmão, 1951, p. 59-95.

25 Camporesi, Piero. L’officine des sens – une antropólogie baroque. Paris: Hachette, 1989. Chap. II, p. 71-111.

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berta dos segredos da alma, seja pelos extratos mais acessíveis da carne oupelas profundezas insondáveis do “eu”, configuravam uma descida ao poçodas verdades sepultadas na noite dos segredos indecifráveis.

Nos séculos XVI e XVII, a anatomia tornou-se ciência teologal e antro-pológica, disciplina primordial para conhecer o filho de Deus e os reflexosdo divino sobre o humano. As vias que conduzem ao divino passam pelasinsignificâncias abdominais, o labirinto intestinal, os abates das partes mo-les, a construção tubular dos ossos, a rede hidráulica dos canais linfáticos eas veias, as anastomoses alambicadas do sistema nervoso, a floresta frágildas cartilagens. A partir do humani corporis fabrica (1543), de André Ve-sale, a anatomia tornou-se um saber de vanguarda, sobre o qual a culturaeclesiástica estenderá pouco a pouco sua grande rede protetora. Esta ciên-cia, para a Igreja, poderia tornar-se também uma arma de conversão e uminstrumento de luta contra o ateísmo.

Anatomia e Teologia, dissecação e fé, exploração das vísceras e confi-ança em Deus celebram na prosa do jesuíta Paolo Segneri sua indefectívelunião. Constata-se a angústia da ausência de Deus e a crença do nada; oespectro do acaso no lugar do sopro inteligente da necessidade. A fé maisinabalável pode ser mais um ato de desespero do que íntima convicção.

Por outro lado, a filosofia mecanicista ou os ateus libertinos são considera-dos perturbadores do universo e o jesuíta parece fascinado pela hipótese deque Deus precisa estar na região dos seres quiméricos da alegoria ou da fábula.

A redescoberta do corpo humano, mesmo estando morto, ainda podeser veículo da fé e do impulso admirável do seu Arquiteto. Isto explica apujança com a qual a paixão anatômica e a febre da dissecação domina-vam os leigos e o clero, justamente na época em que a morte se infiltravapor todos os interstícios da vida, “lá onde tudo o que se diz perfeito, tudoo que está maduro, quer morrer”26.

Nos documentos objeto desta reflexão, tanto nas Exéquias quantonos Funerais de D. João V, o que percebemos nos narradores, na compo-sição de seus discursos, é um duplo olhar e a sensibilidade dual com queabordam os cadáveres (ausentes), referindo-se metaforicamente à suadeterioração e como fazer uso disso sobre os sentimentos dos vassalosaculturados. O seu prazer se assemelha ao dos anatomistas diante de suaobra de dissecação; os autores das descrições fúnebres manifestam prazerante a visão do afluxo dos vassalos, cujas cabeças pertencem, naqueles

26 Ibidem, p. 82-85.

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dias de pompas fúnebres, ao rei e a quem o representa.Camporesi diz que Danielo Bartoli censurava a sombria imagem descrita

por Santo Agostinho em Soliloques (um vaso de imundície e de mácula, plenode mau cheiro). Para os narradores mineiros, o cadáver aparece como a proje-ção inerte de um vencido, de um guerreiro abatido, de um lutador derreadopor sua longa batalha contra a doença e a morte (sequela morbum).

A diferença é que os narradores mineiros se abandonam em seus êxtasesfúnebres indo até quase à complacência punitiva da carne descomposta (emalegoria), buscando enaltecer as suas grandezas enquanto vivos. O corpo teo-rizado como filho da lama, para estes narradores, não tinha a importância quelhe davam os teóricos dos séculos anteriores. Estes diziam que, após a morte,a carne humana poderia suscitar uma ardente febre cognitiva em suas inexorá-veis contradições. Os corpos de majestades da natureza lusa eram argumentospara a ostentação de poder, para juntar ao seu redor os súditos obedientes ecom saudades, naquele momento, de alguém que nunca viram ou tiveram.

A morte é um tema infinito. A bibliografia consultada leva a concluirque é possível puxar outros vieses a respeito da pompa fúnebre, sobre asatitudes ou procedimentos perante a morte: a morte como espetáculo, amorte como negócio, todos temas de historiadores eruditos, como João JoséReis, Philippe Ariès, Paulo de Assunção e uma infinidade de outros autores.

Nossa tese, porém, é a de que as pompas fúnebres do DezoitoMineiro, apelando para a exaltação exacerbada, é coisa barroca. Há umconsenso em tais atitudes quanto à representação de cenas dolorosas ecruéis. A literatura e a teatralização desses temas visam induzir o “outro”a uma reflexão sobre o tempo e a inexorabilidade da morte. Suas origensvêm acompanhando o homem desde a sua evolução.

As pompas fúnebres realizadas em Minas Gerais no século XVIII nãoconstituem, portanto, uma novidade em si mesmas. O homem continuaseguindo e aprimorando os ritos fúnebres. A diferença está nas intenções.Com o passar do tempo, elas mudam. O macabro, sob o ponto de vistacultural, tem sentido de admoestação moral cristã desde o Quinhentos.Ao longo de sua vigência histórica, essa construção vem sendo tomadapor novos sentimentos. Desde a dança macabra do cemitério dos inocen-tes, passando por vários outros interessados no assunto, como Gil Vicen-te, e até mesmo nas pregações de grandes religiosos como o Padre Antô-nio Vieira, vêm ocorrendo sucessivos processos de assimilação impregna-dos da sensibilidade barroca que, ao aperfeiçoar as formas culturais vigen-tes, impregnou-as de novos significados. Tal evolução é fruto de um pro-

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cesso barroco a evidenciar a capacidade de envolver os conteúdos religi-osos, de feições antigas, inseridos num outro contexto.

O Barroco tem como um dos seus atributos o apelo à crueldade ouhorror, evidenciado nas composições que exaltam a violência, o martírio, osofrimento. Nas grandes obras de arte percebe-se que, de acordo com aépoca, pintores e escultores deram maior ou menor ênfase aos trabalhosapocalípticos, nas representações macabras, nos afrescos dos cemitérios, nasilustrações de livros de horas, no imenso acervo de telas que exibem mori-bundos no leito (inclusive Jesus Cristo) e também nas tarjas que ornamenta-ram lutuosamente a Matriz do Pilar de São João Del-Rei, no ano de 1750,para o Funeral de D. João V:

(...) Que a morte, por tymbre da inteireza,

não distingue a humildade da nobreza.

O Rey, ou o vassalo, o rico ou o pobre.

Tudo morre, e não hé, não, impiedade,

Que a mesma natureza he que assegura

Ser feudo da mortal fragilidade,

Pois nem pôde isentar-se à morte dura

A Régia ostentação da Majestade

Nos estragos fataes da sepultura.27

O que torna diferente os rituais do Dezoito, alvo desta reflexão, é aausência do cadáver. Este, distante no tempo e no espaço, já tornado miasmaou ruína, é alvo de cerimônias públicas e organizadas de modo a causarmanifestações de pesar ante uma urna mortuária vazia. O cadáver ausente étornado digno de um funeral real que intimida e faz que se dobre diante deleo menor e mais comum dos mortais. É uma forma de ressaltar a monarquiaaos olhos dos súditos coloniais. Tais cerimônias configuram a mentalidadebarroca e o sucesso do Poder.

27 Salgado, Mathia Antonio; Alvarenga, Manoel José Correa e. Monumento/do Agradecimento, / tributo davenerança/ obelisco funeral do obséquio./ Realçam fiéis/ das reaes exéquias, / que à defunta Majestade /do fidelíssimo e augustissimo rey o senhor / D. João V/ dedicou / o doutor Mathias/ Antonio Salgado /Vigario collado da Matriz de N. Senhora do Pil-lar da Villa de S. João Del Rey/ offerecida / ao muito alto,e poderosos Rey /D. Joseph I./ Nosso Senhor/ Lisboa:/ na Officina de Francisco da Silva./ Anno de MDC-CLI./ Com todas as licenças necessárias./ p. 16.

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Resumo

Estudaremos uma convergência entre a ocupaçãoda Amazônia meridional e a presença do catolicis-mo nesta região. Não tencionamos tratar do aspec-to institucional, mas procurar a visão do colonocatólico. Nosso objetivo será analisar o uso feitoda mensagem da Igreja pelo fiel nessa região. Nãopropomos uma analise institucional. Nosso inte-resse é pelo fiel. Há uma impossibilidade em sepropor um entendimento único para o ser católicono Brasil e a necessidade de marcar um espaçoentre fiel e instituição. É com esse pressupostoque vamos analisar o migrante que colonizará onorte de Mato Grosso.

Palavras-chave:

Igreja Católica – Mato Grosso – Migração

Abstract

We will study a convergence between the meridio-nal Amazonia’s occupation and the Catholicism’s pre-sence in this region. We don’t intend to treat ofinstitutional aspect, but to search the catholic settler’svision. Our objective will to analyze how does thisfaithful people work with the Church’s message. Wearen’t proposing a institutional analysis. Our interestis the faithful. There is a impossibility in to proposean unique understanding for being catholic in Brazil,and the necessity in to mark a space between thefaithful and the institution. It’s with this presupposi-tion that we will analyze the migrant who will colo-nize the northern portion of the Mato Grosso State.

Keywords:

Catholic Church – Mato Grosso State – Migration

A Igreja Católica na ocupação do noroestedo Estado de Mato Grosso (1975/1995)

Vitale Joanoni Neto*

* Professor do Departamento de História da UFMT. Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

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Falar sobre a importância ou a presença da Igreja Católica no cotidianobrasileiro é fundamental, em que pese a quantidade de trabalhos, dos mais di-versos matizes, que anualmente são produzidos sobre o tema,. São trabalhos decatólicos e não católicos, artigos, matérias jornalísticas, trabalhos acadêmicos, teo-lógicos, institucionais, devotados; e apesar dessa vasta gama, muito ainda há paraser estudado e escrito. É como se o catolicismo formasse uma fina trama deraízes que procurassem os aspectos mais íntimos da vida cotidiana e os envol-vessem de modo a impossibilitar falar sobre eles sem considerar tal presença.

Neste artigo exploraremos uma convergência entre a ocupação da Ama-zônia meridional e a presença do catolicismo nesta região. Não intenciona-mos tratar do aspecto institucional, mas procurar a visão do colono católico.Isto resume, ou sintetiza, nosso objetivo para este trabalho: analisar o usofeito da mensagem da igreja pelo fiel nessa região.

É importante frisar que a migração para o norte de Mato Grosso ocor-reu, nestes últimos trinta anos, estimulada por ações governamentais que,motivadas por interesses econômicos ou a pretexto da segurança nacional,levaram a população da região a decuplicar. Os efeitos de tal ação estãosendo estudados com muito interesse por todas as áreas do conhecimento, oque só reforça a importância da floresta amazônica para o mundo atual.

O sentido predominante desse fluxo migratório foi do Sul/Sudestepara o Centro-Oeste. Esses migrantes, pequenos proprietários, lavradoresem suas regiões de origem, levavam consigo a esperança de melhorar nanova região, o que significaria mais terra para atender às necessidades detoda a família, terra própria para não ter mais que trabalhar para outros,entre outras oportunidades.

Entre as décadas de 1960 e 1990 a Igreja Católica sofreu modificaçõesimportantíssimas. Passados quase 40 anos, as transformações provocadas peloConcílio Vaticano II (1965) ainda não cessaram de influenciar os rumos daIgreja mundial. Na América Latina, particularmente, essa influência tomou umrumo específico e bem marcado após o Encontro Episcopal de Medellín (1968),que reforçou a tendência já anunciada por Roma da opção preferencial pelospobres. No Brasil, o quadro imposto pela implantação de uma ditadura militarlevou parte da Igreja Católica a uma inesperada posição de vanguarda política.Nos EUA, esse mesmo movimento gerou a Renovação Carismática Católica.

Mas, como dissemos acima, não nos propomos a fazer uma analiseinstitucional. Nosso interesse é pelo fiel. Poderíamos considerá-lo comomeramente manipulado pela Igreja? Essa manipulação seria absoluta, demodo a reduzi-lo a objeto de políticas institucionais? Se for assim, como

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explicar as várias formas de se organizar dos grupos católicos pelo Brasil?Essa diversidade não seria indício de uma relativização dessa manipula-ção? Ou de um entendimento do discurso eclesiástico adaptado às neces-sidades imediatas de pessoas ou grupos específicos? Como os clérigosresponsáveis pelo contato direto instituição-fiel recebem estas orienta-ções e as apresentam ao conjunto de crentes? Do modo como as enten-deram e as vêem adequadas àquele conjunto?

Nossas pesquisas recentes nos têm mostrado a impossibilidade de pro-por um entendimento único para o ser católico no Brasil e a necessidade demarcar um espaço entre fiel e instituição. Existe uma influência da instituiçãosobre o fiel, mas ela não o reduz a um mero objeto. O indivíduo apropria-sedo conteúdo doutrinal e o instrumentaliza a seu favor, do modo como lheparece mais conveniente e para os fins que se lhe fizerem necessários.

É com esse pressuposto que vamos analisar o migrante que colonizaráo norte de Mato Grosso. O que o motivou foi mais que a influência da propa-ganda oficial, ou a necessidade econômica, também produzida. Encontramosem seus relatos sinais claros de que esta migração ganhou contornos deperegrinação, a fé em Deus e a crença na melhora estiveram presentes efortes desde sua saída em busca da “terra prometida” até sua fixação naregião. E estes claros sinais de uma religião popular secularmente presenteno imaginário do povo brasileiro sofrerão a influência marcante das novasorientações eclesiásticas já citadas. O resultado desse entrecruzamento defatores foi o nascimento de um modo único de ser igreja, que mesmo para onorte do Estado de Mato Grosso não pode ser generalizado, cabendo asnecessárias ressalvas para cada uma de suas micro-regiões.

Pequeno histórico da Igreja Católica nasegunda metade do século XX

Após um século de postura marcadamente conservadora, será com JoãoXXIII (1958-1963) que a Igreja Católica começará a se mover. Esse Papa foio responsável pela divulgação de duas das mais importantes Encíclicas doséculo XX, a Mater et Magistra, em 1961, e a Pacem in Terris, em 1963,documentos que adaptaram o catolicismo às profundas mudanças da socie-dade daquele período e estimularam os compromissos sociais da Igreja. Atais iniciativas somou-se a convocação do Concílio Vaticano II (11/10/1962 a08/12/1965), dentro do qual se propiciou a instauração de uma nova auto-

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compreensão1 da Igreja centrada na opção preferencial pelos pobres.Durante o ultramontanismo, autocompreensão anterior da Igreja – com-

preendida pelos pontificados de Pio VII (1800 a 1823) a Pio XII (1939 a 1958)–, a Igreja Católica bateu de frente com o mundo moderno e julgou ser possívelimpor-se a ele; apostou alto, até porque seus dogmas e ensinamentos estavamsendo questionados e ela perdia terreno2. Durante o pontificado de João XXIII,ao contrário de Pio VII que voltou a Igreja para si própria, com a opção preferen-cial pelos pobres a Igreja foi projetada na sociedade, mas com perspicácia, na-quela parcela não atingida pela modernidade, ou seja, a Igreja continua crítica dasociedade, mas agora não mais voltada para si e sim como defensora dos margi-nalizados. A inteligência da proposta é evidente. Ela desveste-se da roupagemultraconservadora, mantém o ataque ao mundo moderno, alia-se a todo umcontingente que critica o mundo moderno (inclusive a esquerda e outras forçasde oposição)3 e atualiza o sentido de sua doutrina cristã. Isto colocará o EstadoBurguês em uma situação delicada e o obrigará a abrir espaço para a Igreja.

Na América Latina os ecos do Concílio cedo se fizeram sentir, como noMovimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo e outras iniciativas regis-tradas já a partir de 1966, mas foi na II Conferência do Episcopado LatinoAmericano, em Medellín (1968), que o clero católico deste continente assu-miu a nova Doutrina Social da Igreja, abrindo para o fortalecimento da re-cém-proposta Teologia da Libertação4.

Segundo Comblin, a proposta de Medellín foi considerada muito avan-çada por Roma, que reagiu afastando o Cardeal Samoré, representante daSanta Sé na Conferência. Outro efeito sentido foi o surgimento, ou fortaleci-mento, de movimentos como o “Tradição Família e Propriedade”, ecos deuma reação conservadora. Tais ações nos mostram que se o sentido aponta-do em Medellín era hegemônico, estava longe de ser unânime.

No Brasil, após ter apoiado o golpe militar de março de 1964, a IgrejaCatólica afastou-se gradativamente dele e tornou-se um dos pontos de resis-

1 Manoel, Ivan A. O pêndulo da História. A filosofia da História do catolicismo conservador (1800-1960).Franca, 1998, 135 f. Tese (Livre Docência em História) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social,Universidade Estadual Paulista. O autor dá continuidade ao assunto no artigo A esquerdização do catoli-cismo brasileiro (1960-1980): notas prévias para uma pesquisa. Assis: UNESP/FHDSS, 2000. (Mimeo).

2 Beozzo, José Oscar. A Igreja frente aos estados liberais. In: Dussel, Enrique (Org.). Historia Liberatio-nis. São Paulo: Paulinas/CEHILA, 1992, p.177 e ss.

3 Talvez um dos pontos mais sensíveis dessa aproximação esteja presente na Octogésima Adveniens, dePaulo VI, de 1971.

4 Os precursores seriam Gustavo Gutierrez, Juan Luiz Segundo, Richard Shaull e Enrique Dussel. Cf.Joanoni Neto, Vitale. Estudo sobre a comunidade católica da Imaculada Conceição: uma experiência deorganização popular em Bauru. Franca, 1996, 146f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade deHistória, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, p. 35.

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tência à ditadura. O movimento iniciado na década anterior, com a AçãoCatólica no sentido de fazer a Igreja presente nos pontos mais distantes doscentros paroquiais, tomou novo fôlego e novo sentido com a Teologia daLibertação. A tendência autonomista, antigo anseio do clero brasileiro, ga-nhou força e surgiram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

A Teologia da Libertação aproximou setores da Igreja Católica e leigosaos grupos de esquerda que faziam oposição ao regime militar e que por suavez estavam fortemente influenciados pelo pensamento marxista. Em 1968um leigo publicou um artigo com a seguinte afirmação:

Quanto aos marxistas brasileiros em suas posições frente aos católi-

cos, acreditamos que possam afirmar, como numa frase recentemen-

te pronunciada: já não se trata de estender-lhes a mão, mas de mar-

charmos juntos com eles.5

Já nos anos setenta, um seminarista de São Paulo afirmou em depoi-mento escrito: “Aquilo que nós os seculares, os leigos engajados e algunsoutros padres regulares muito conscientes pretendemos é a evangelização apartir da realidade concreta, numa ótica marxista mesmo”6.

Os aspectos que melhor explicam essa aproximação estão fora dos objeti-vos propostos para o presente trabalho. Outro aspecto notável da Teologia daLibertação em toda a América Latina foi sua aproximação da religião popular.

Como sabemos, o cristianismo foi trazido para a América no final doséculo XV e imposto ao continente como religião oficial. Essa recepção damensagem cristã quase unicamente como ensino catequético e como prá-tica sacramental viabilizou a permanência de importantes fragmentos deoutras crenças presentes nas culturas ameríndias, africanas e inclusive euro-péias não cristãs. Delumeau afirma que o cristianismo não chegou a serpopular na Europa antes do início do século XVI7. Hoornaert chega mesmoa afirmar que o povo latino-americano tem outras religiões mais compro-metidas com seu projeto de libertação8.

5 Maranhão, Luiz. Marxistas e católicos: da mão estendida ao único caminho. n. 6. Paz e Terra. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1968, p. 57-71.

6 Eles perderam tempo agora vão ser padres. Brasil Reportagem. São Paulo, s.ed., n. 2, p. 15-17, s.d.

7 Hoornaert, Eduardo. Entrevista com Jean Delumeau: cristianismo e descristianização no mundo atual. In:Hoornaert, Eduardo (Org.). História da Igreja na América Latina e no Caribe. 1945-1995 . Petrópolis:Vozes, 1995a, p. 134.

8 Hoornaert, Eduardo. As igrejas cristãs no campo religioso latino-americano e caribenho: deslizamentos,apreensões, compromissos. In: Hoornaert, Eduardo (Org.). História da Igreja na América Latina e noCaribe. 1945-1995. Petrópolis: Vozes, 1995b, p. 19.

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O catolicismo popular latino-americano é uma mescla de influências varia-das que durante séculos foi ora combatido, ora ignorado pela Igreja Católica. Nosanos setenta os teólogos da libertação promoveram uma aproximação entre aTeologia da Libertação e esse catolicismo popular nas CEBs. Como conseqüên-cia, importantes setores das camadas populares passaram a participar maisativamente das atividades da Igreja e muitos aspectos das crenças populares,antes considerados heréticos ou profanos, passaram a ser vividos nestas co-munidades que se popularizaram e se espalharam por todo o continente.

Uma característica comum e facilmente identificável entre todas as mi-lhares de CEBs existentes por todo o Brasil é a presença da Teologia daLibertação como força inspiradora, ao menos, na formulação dos própriosgrupos e o fato de os mesmos surgirem basicamente entre os setores popu-lares. “Por mais que a terminologia CEBs tenha sido assimilada nos mais dife-rentes lugares dos modos mais diversos, ou justamente por isso, é precisoanalisá-las dentro dos contextos em que estão inseridas, de modo a respeitar-lhes as idiossincrasias e sem a pretensão de vê-las como um conjunto mono-lítico, mesmo porque a igreja não é assim”9.

A doutrina social da Igreja foi assimilada pelos prelados de modos mui-to variados. O resultado foi um leque bastante amplo de posturas. Em quepese o fato de a imagem predominante ter sido a de politização e militância,encontramos casos bem diferentes: “Em uma das regiões colonizadas umpadre declarou recentemente que não precisava dar prioridade ao trabalhocom os pobres ‘porque não existem pobres por aqui”10.

Mainwaring considerou a Igreja Católica brasileira a mais progressista domundo durante os anos 1970 e que isso gerou conflitos políticos nacionaisque se abrandaram muito com a abertura política11. Já no aspecto regional,chegaremos ao final do século XX encontrando sinais claros de confrontosentre os poderes locais (nem sempre os legalmente constituídos) e mem-bros das comunidades católicas, inclusive religiosos. Foi o caso de matériadivulgada por revista de circulação nacional sobre conflitos entre fazendei-ros, garimpeiros e índios em Roraima, basicamente sobre os limites das reser-vas indígenas. O que está em jogo, é claro, são as riquíssimas reservas mine-rais de ouro e diamantes, e a extração vegetal, predominantemente a madei-

9 Joanoni Neto, Vitale. Fronteiras da crença: da libertação ao carisma. A Igreja Católica na cidade deJuína (1975-1995). Relatório de pesquisa. Cuiabá: ICHS/UFMT, 2001. (Mimeo), p. 26.

10 Schaefer, José Renato. As migrações rurais e implicações pastorais. São Paulo: Loyola, 1985, p. 208.

11 Mainwaring, Scott. Igreja Católica e política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 169.

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ra de lei, existentes naquela porção da floresta amazônica. No artigo a IgrejaCatólica é acusada de contrabando de ouro e diamantes, o padre que viveentre os índios é chamado “uma espécie de general de campo do ConselhoIndigenista Missionário” e seria o responsável por ensinar “táticas de guerri-lhas” aos índios, além de transformar a aldeia em um “bunker”, tudo com afinalidade de fazer “guerra contra os fazendeiros da região [para invadir] pro-priedades rurais”. O texto chega a afirmar que se a proposta de demarcaçãodefendida pelo padre prevalecer “os índios tomarão mais 18% de Roraima”[sic]. Os repórteres não comentam, então tomam como natural a afirmaçãode um fazendeiro de que “se (....) topar com o padre eu acabo com ele”. Anota chega à ingenuidade de afirmar em subtítulo “cofre suspeito”, que em1988 agentes encapuzados do Serviço Nacional de Informação (SNI) e o Coro-nel Menna Barreto invadiram a casa do Arcebispo em busca de provas desubversão, retirando do cofre do local 615 gramas de diamantes e dois quilosde ouro. Uma fonte não identificada assegura que “o material foi enviado paraBrasília, mas desapareceu”. Os autores arrematam que, na queixa que fez àpolícia, o arcebispo “não registrou o sumiço de ouro e diamantes”12.

O tom da reportagem é tal que mereceu uma nota pública de repúdioredigida pela 38ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos doBrasil (CNBB), publicada pelo L’Osservatore Romano. A nota presta totalapoio à Diocese de Roraima13.

De modo geral, durante as décadas de 1980 e 1990, com João Paulo II(eleito em 16 de outubro de 1978), a hierarquia romana foi paulatinamenteretomando e centralizando as ações. A religião popular retornou ao lugar quesecularmente lhe coube, qual seja, longe e fora do controle da instituição.Comblin, em texto do início dos anos 1990, perguntou sobre qual seria oespaço dos pobres nesta igreja14. Respondemos. Será o lugar que eles sem-pre ocuparam desde a chegada da Igreja Católica neste continente, ou seja,o lado de fora, mesclando princípios de todas as outras religiões presentesem nosso cotidiano. Qualquer movimento religioso que penetre na AméricaLatina no meio popular mescla-se rapidamente pelo fato de que esse povomestiço vive em complexas encruzilhadas mentais, de idéias e tradições15.

12 Pedrosa, Mino; Stucket, Ricardo. Roraima em pé de Guerra. Isto é, São Paulo, Ed. Três. Disponível pelainternet em: www.terra.com.br/istoe/1596/brasil/1596roraima.htm, maio de 2000.

13 CNBB. Moção da 38ª Assembléia Geral. L’Osservatore Romano. Jornal do Vaticano, edição em portugu-ês. Disponível pela internet em: www.cnbb.org.br/estudos/conj200004.rtf, maio de 2000, p. 1.

14 Comblin, José. O direito de associação na Igreja. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, Vozes, n.211, set. 1993, p. 515.

15 Hoornaert, 1995b, p. 34.

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No Brasil, esse enfraquecimento na hegemonia da Teologia da Libertaçãoe a diminuição do espaço das CEBs, ou ao menos seu maior controle e enquadra-mento pela instituição, também foram resultado da abertura política que no finaldos anos 1970 e início dos anos 1980 provocou a saída de muitas lideranças paraa militância nos partidos políticos e sindicatos recém-criados. Se as CEBssobreviveram, isso se deveu “à sua ligação com a religiosidade popular (....)incorporadas pela Igreja graças ao trabalho dos teólogos progressistas”16.

Concomitantemente ao enfraquecimento da Teologia da Libertaçãohá o fortalecimento de um outro movimento surgido nos anos 1960 – queresistiu ao período de predominância das CEBs e que durante os anos 1980era visto como rival da Teologia da Libertação e tratado como tal pelosrepresentantes desta –, o Movimento da Renovação Carismática Católica,que, também surgido nos ecos do Concílio e fortalecido nos Estados Uni-dos17, foi trazido para o Brasil no início dos anos 1970 por sacerdotes jesu-ítas. A Diocese de Campinas (SP) abrigou os primeiros grupos, que rapida-mente se espalharam pelo país. Há, no entanto, uma resistência dentro dopróprio clero, que pode ser notada mesmo nos dias atuais. Isso se deve aalgumas das práticas desenvolvidas dentro dos grupos carismáticos católi-cos (euforia nos momentos de pregação, exorcismos, orar na língua doEspírito Santo, orar pedindo para serem usados por Deus para que esteenvie mensagens para os presentes, poder de curar doentes).

Apesar das diferenças e dos conflitos entre os membros dos grupos dasCEBs e do MRCC, vejo que eles fazem parte da mesma autocompreensão fun-dada com o Vaticano II. São faces de uma mesma moeda. A seu modo, a RCCtambém contestou o poder fortemente hierarquizado da instituição e revelouuma outra forma de ser igreja, também mais autônoma, também rompendo coma estrutura paroquial e sem a necessária presença do clero nos grupos.

Em meados dos anos oitenta, a presença dos grupos de RCC se tornoumais significativa nas dioceses e rapidamente cresceu. No início dos anosnoventa, sentindo “uma perda de identidade, um esfriamento na missão,uma quebra na unidade”17, as lideranças do MRCC nacional reúnem-se e di-vulgam um conjunto de documentos denominado Ofensiva Nacional, comnovas propostas de ação. A CNBB, que já acompanhava o crescimento domovimento divulgou, em 1994, as Orientações Pastorais sobre a Renova-

16 Joanoni Neto, 1996, p. 45.

17 Renovação Carismática Católica: ampliando os horizontes. Histórico. Disponível pela internet em:www.rccbrasil.org.br:/histórico.html, capturado em março de 2001.

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ção Carismática Católica, onde recomenda com clareza que se evitem prá-ticas como exorcismos ou outras que possam ser confundidas com magia ousuperstição. O documento diz ainda:

Reconhecendo-se a presença da RCC em muitas dioceses e também a

contribuição que tem trazido à Igreja no Brasil, é preciso estabelecer

o diálogo fraterno no seio da comunidade eclesial, apoiando o sadio

pluralismo, acolhendo a diversidade de carismas e corrigindo o que

for necessário.

Nenhum grupo na Igreja deve subestimar outros grupos diferentes,

julgando-se ser o único autenticamente cristão.

A RCC assuma com fidelidade as diretrizes e orientações pastorais da

CNBB. A Coordenação Nacional da RCC terá um Bispo designado

pela CNBB, como seu Assistente Espiritual, que lhe dará acompanha-

mento e ajudará nas questões de caráter nacional, zelando pela reta

aplicação destas orientações pastorais, sem prejuízo da autoridade

de cada Bispo Diocesano.

A RCC assuma também as opções, diretrizes e orientações da Igreja

Particular onde se faz presente, evitando qualquer paralelismo e in-

tegrando-se na pastoral orgânica.

Os Bispos e os Párocos procurem dar acompanhamento à RCC direta-

mente ou através de pessoas capacitadas para isso. Por sua vez, a

RCC aceite as orientações e colabore com as pessoas encarregadas

desse acompanhamento.

Os membros da RCC participem dos Encontros, Cursos, Círculos Bí-

blicos e outras atividades pastorais e de formação promovidos pelas

Igrejas Particulares, bem como dos momentos fortes que marcam a

vida eclesial, tais como Campanha da Fraternidade, Mês da Bíblia,

Mês Missionário, Preparação de Natal e outros.18

Vê-se claramente nesses pequenos trechos do documento da CNBB quea Igreja Católica estava muito preocupada com a plena inserção dos grupos deRCC nas paróquias. A segunda metade dos anos noventa trará a explosão daRCC através dos padres cantores, mas, por demandar um estudo mais apro-fundado e demorado, esse aspecto não será abordado neste trabalho.

18 CNBB. Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática Católica. Brasília, 27 de novembro de1994. (Mimeo)

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A migração para a Amazônia Meridional

Em 1971 o governo Federal criou o Programa de Redistribuição deTerras e de Estímulos à Agroindústria do Norte e do Nordeste (PROTER-RA). Tal medida, entre outras19, permitiu, em última análise, a aquisiçãode grandes faixas de terras públicas por empresários que desenvolveramprojetos privados de colonização.

No Estado de Mato Grosso dezenas de empresas de colonização espa-lharam-se pela extensa faixa norte, trabalhando predominantemente commigrantes vindos do sul e centro-sul do país. Dados do Instituto Nacional deColonização e Reforma Agrária (INCRA), de 1981, comprovam que de 101empresas de colonização autorizadas inicialmente a funcionar no país (inclusi-ve aquelas cujos registros foram cancelados), entre 1970 e 1981, 42% estavamlocalizadas em Mato Grosso. Em um total de 82 empresas em funcionamentoefetivo, 52% tinham projetos em Mato Grosso. Dos 125 projetos autorizados afuncionar, 60% estavam no Estado. As rodovias federais funcionaram comoverdadeiros corredores norteadores da migração. Os maiores projetos privadosde colonização aconteceram muito próximos dessas rodovias, 49% deles (75projetos) ao longo do eixo da Cuiabá-Santarém20. Esta, mais a BR 158 e ocomplexo 364/174, criadas durante o governo militar, tinham a intenção deabrir um território pouco conhecido à exploração econômica. Entre 1977 e1985, cerca de 200 mil pessoas instalaram-se ao longo do eixo da BR-163.

Essas empresas desenvolveram forte campanha publicitária no sul esudeste do país e seu público alvo foram os minifundiários, pequenos produ-tores capitalizados daquela região que, vendendo seus dez, por vezes cinco,alqueires no Paraná, podiam comprar até 200 alqueires no Mato Grosso.

Eu vim com a minha família né, foi mais ou menos no ano de 1985

(...) lá a gente era agricultor lá a terra muito pequena (...) aí meu pai

tinha um sonho de ter um pouco mais de terra aí meio a contragosto

da família (...) viemos todo mundo pra cá (...) naquela região tinha

muito latifúndio, o nosso trecho lá era assim terra lá era pequenini-

nha era dois alqueires, um alqueire e meio só de café.21

19 Ferreira, Eudson de Castro. Posse e propriedade territorial. Campinas: Ed. UNICAMP, 1986, p. 47 e ss.

20 Guimarães Neto, Regina B. A lenda do ouro verde – a colonização em Alta Floresta / Mato Grosso..Campinas, 1986, 177f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,Universidade Estadual de Campinas, p. 142.

21 Depoimento de Márcia Gardin. Juína, 31 de maio de 2001.

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A propaganda levada a efeito pelas empresas tomava várias formas.Cartazes afixados nas associações e sindicatos rurais, palestras e reuniões –nas quais os corretores expunham as vantagens da região –, programas derádio, jornais informativos. Havia também a propaganda indireta. O própriomigrante ou membros da família divulgavam o projeto em suas cidades deorigem. Muitos migraram acompanhando a família:

Ficamos sabendo de Juína assim: no Mato Grosso tem uma cidade que

está começando agora, vamos para lá, porque o Paraná já está pronto,

já está feito, quem não tem, não tem, quem tem, tem, né. Aí juntou

várias pessoas numa kombi, ali dentro tinha um picareta. Na cidade

tinha umas pessoas que acompanhava a cada 10 pessoas ele acompa-

nhava até ir para o destino. Então veio aquela kombi e o picareta,

prá chegar aqui e comprar. E foi onde que meu pai comprou.22

Os dados nos mostram que só em 1980 cerca de 130 mil agricultorestrocaram o campo pela cidade no Rio Grande do Sul. A cidade de PortoAlegre passou de 600 mil habitantes na primeira metade dos anos setentapara 1,2 milhão de habitantes no censo de 1980, com um grande cinturão demiséria ao seu redor. O mesmo aconteceu com Cascavel (PR), que comapenas 200 mil habitantes em 1980 já apontava mais de 13 mil favelados, eCuritiba, que, para uma população de dois milhões de habitantes em suaregião metropolitana (em 1980), contava com 300 mil migrantes. “(....) aprefeitura e o estado conseguiram remover 900 barracos em três anos, en-quanto o número de favelados cresceu de 17 para 28 mil no mesmo perío-do”23. O mesmo autor acusa a existência de cerca de 800 mil agricultoressem terras no Paraná neste período.

O Brasil é, do ponto de vista do estudo das migrações, um imensoorganismo vivo com deslocamentos freqüentes e multidirecionados. Há umfluxo que denominaremos alternativo, pois escapa à influência mais diretado Estado, e um fluxo direcionado pelos poderes estabelecidos. Nenhumdeles pode ser classificado como espontâneo e ambos são resultados dasações do Estado para driblar as pressões sociais e econômicas que em dadomomento se estabelecem em determinadas regiões, rurais ou urbanas, im-pelindo as pessoas a saírem em busca de alternativas econômicas, ora procu-

22 Depoimento de Aparecida Dias. Juína, 21 de setembro de 2000.

23 Schaefer, op. cit, p. 23.

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rando colocação profissional, ora fugindo da proletarização, que para o pe-queno camponês é sinônimo de miséria nas periferias das cidades.

Nos projetos privados as empresas destinavam à ocupação por lavra-dores apenas uma parte da área total do projeto. No caso da INDECO e doprojeto Alta Floresta, menos da metade da área foi destinada ao loteamen-to, o que, segundo Guimarães Neto24, era apenas o pano de fundo para aimplantação de um grande empreendimento econômico e sedimentaçãode um projeto político de dominação social que impossibilitava o sucessodo pequeno camponês. Com o tempo os lotes foram fracionados em par-celas cada vez menores e o lavrador que havia trocado sua terra no sul poruma propriedade maior no Mato Grosso, via-se agora novamente às voltascom poucos hectares para sustentar sua família. Gradativamente haviamvoltado à condição de pequenos proprietários, minifundiários. “Os colonosforam verdadeiros peões da colonização”25.

O colono do sul foi transformado em um excluído (tal condição lhe foiimposta de fora), tendo sido destituído material e simbolicamente de seuespaço e de seu direito ao espaço ali. Daí a migração não poder ser vistacomo opção, mas como imposição. Uma vez na área, as condições postas aessas pessoas não lhes permitiram mais que a reprodução de sua condiçãode camponeses, e se a princípio com um lote maior, bastaram alguns anospara que voltassem à condição original de minifundiários. Houve projetos ondeessa condição não foi imposta aos colonos, mas a superexploração veio nacondição de um rigoroso direcionamento do que produzir, como e com quemcomercializar e a que preço. Mudou-se a forma, o resultado foi o mesmo.

Vemos então que não houve “Projetos de Colonização” no norte doEstado de Mato Grosso. O que houve foi uma grande operação para comer-cialização de terras adquiridas em condições muito favoráveis por grandesempresas privadas ou repassadas a companhias estatais que agiam seguindoos modelos bem sucedidos daquelas primeiras, e repassadas aos campone-ses em lotes que podiam variar de 10 a 10 mil hectares, com preços econdições de pagamento atraentes. Os baixos preços das terras ocultaram afalta de infra-estrutura e o verdadeiro caráter dos projetos. Essa operação, àqual se atribuía o mérito de fixar o homem à terra, de integração nacional ede ocupação de espaços vazios – que a propaganda se encarregou de con-solidar como sendo equivalente a uma reforma agrária – serviu para desviar

24 Guimarães Neto, op. cit., p. 125.

25 Ibidem., p. 87.

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as atenções e aliviar as tensões (econômicas, sociais e políticas) nas áreas queestiveram sob sua influência, além de auferir polpudos lucros a um pequenogrupo de empresários, reconhecidos hoje em todo o norte do Estado de MatoGrosso como “Bandeirantes Modernos”, “Desbravadores”, ou “Pioneiros”.

Aspecto religioso do deslocamentopara o norte de Mato Grosso

Como já se disse, “a migração não se dá por vontade própria, individu-al, é um fato social”26. Analisando os dados apresentados acima sobre as con-dições que se colocavam para o pequeno lavrador dos estados do sul dopaís, notamos que houve uma forte indução em sua decisão de migrar. Acres-centemos que para a maioria absoluta essa não foi uma experiência nova, “amobilidade tornou-se praticamente uma regra”27.

As dificuldades colocadas para que os colonos pudessem permanecerno local – as terras do Sul – eram grandes. Estavam empobrecendo, se endi-vidando, comprometendo o sustento imediato e o futuro de seus filhos. Di-ante de tal quadro e das parcas opções que se lhes apresentavam, restavaàquelas famílias a fé.

É preciso lembrar que as empresas colonizadoras e o governo fizeram fartapropaganda da região amazônica, como sendo região de terra em abundância,fértil, sem geadas (um problema gravíssimo para os colonos do Sul). Essa propa-ganda somou-se à imagem da floresta amazônica, gravada no senso comum,como sendo o eldorado, terra de belezas e de fartura, distante e inóspita.

Essas características somadas, mundo distante e ao mesmo tempo terrade fartura, facilitaram a conexão entre a paisagem e o sagrado. A santidadenatural-mágica incorporada pela floresta amazônica e a crença do indivíduonesse seu poder mágico culminaram por fixar nela um poder santificador ede atração sobre o crente, levando-o a peregrinar em busca da redenção, oque o levou a recriá-la com outro significado, ou seja, esse espaço deixou deser um local concretamente existente e passou ser outro, ligado a valoresimateriais presentes no imaginário daquela pessoa28.

26 Castro, Sueli Pereira et al. A colonização oficial em Mato Grosso: a nata e a borra da sociedade. Cuiabá:EdUFMT, 1994, p. 138.

27 Santos, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 262.

28 Fickeler, Paul. Questões fundamentais na geografia da religião. Espaço e Cultura, Rio de Janeiro, UERJ,n. 7, jan./jun.1999, p. 8.

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Para suportar as dificuldades e infelicidades da vida, os homens são,

portanto, levados a imaginar realidades mais profundas e mais au-

tênticas que aquelas que lhes são reveladas por seus sentidos.29

Essa migração das terras do Sul para as do Centro-Oeste foi, paramuitos colonos, uma peregrinação em busca da terra prometida, ou seja,da solução definitiva para seus problemas. Sua chegada ao novo destinofoi a chegada ao lugar do sonho, da utopia, constituída dos valores quetodos carregavam dentro de si – inclusive possuir a terra, trabalhar para si,fugir da proletarização – mais a propaganda que afirmava serem essesnovos locais o lugar onde a concretização desses sonhos seria possível.

Juína

A presença da Igreja Católica foi marcante em todos os projetos decolonização implantados na Amazônia nesse período. Para este nosso pe-queno estudo vamos observar apenas uma dessas experiências, qual seja, adesenvolvida no noroeste do Estado pela Companhia de Desenvolvimentode Mato Grosso (CODEMAT) em convênio com a Superintendência para oDesenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO), iniciada em meados da déca-da de 1970, sob a denominação de “Projeto Juína”.

A densidade demográfica dessa região foi das mais baixas da Amazônialegal até meados de 80. Aripuanã tinha uma área de 98.631 km², em 1980,com uma população residente de 13.985 habitantes e densidade demográfi-ca de 0,14 hab./km². Em 1986 esse índice subiu para 0,22 hab./km².

O projeto consistia na construção de uma estrada ligando a BR-364 apartir do município de Vilhena (RO) até a sede do município de Aripuanã. Arodovia foi batizada de AR-130. Segundo o empreiteiro responsável pelasobras de infra-estrutura da estrada, o projeto previa a construção de umacidade a cada cem quilômetros, porém:

(...) chegou na Roda D’água e lá é um areião danado ali, como diz os

outros “não dá nem calango aquilo ali” (risos) não tem nada não tem

nem jeito de fazer uma horta aquilo ali (...) então vamos mais prá

29 Claval, Paul. O tema da religião nos estudos geográficos. Espaço e Cultura. Rio de Janeiro, UERJ, n. 7,jan./jun.1999, p. 51.

30 Joanoni Neto, 2001, p. 9.

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frente né? A gente abrindo estrada... abrindo estrada, quando chegou

aqui falou: Aqui é o lugar né, não tinha areião, em cima de um

platô, tudo assim, falou assim: Aqui dá né? Pra fazer, fizeram a ex-

ploração de tudo aí, foi determinado, veio o pessoal de Brasília com

o pessoal, o diretor da CODEMAT, fizeram uma reunião lá em Fonta-

nillas, e decidiram fazer aqui fazer a primeira cidade: Juína.31

Durante todo o período de construção da estrada e logo em seguida dacidade, um padre salesiano, Ângelo Spadari, sacerdote de Ji-Paraná, mantevecontato com os operários no canteiro de obras.

A cidade começou a ser ocupada no início de 1978, ainda com pouquís-sima estrutura para receber moradores. Mas o forte, nesse momento, foi ocomércio de terras.

É, não tinha nenhuma residência particular; era só aquilo mesmo lá,

as obras, o posto de saúde, aquelas outras casas, casa do médico (...)

foi assim que começou Juína. Então quando estava tudo pronto:

escritório, tudo montadinho tudo direitinho, a pessoa que vinha com-

prar terra tinha onde dormir, apartamento, tudo né? Era muito bom

sabe? Ver aquele povão, aquele horror de homens, tudo, nego queren-

do comprar lote e tudo. Cheguei a construir uma rua, ali a rua da

igreja (...) naquele tempo eu ganhava mais ou menos quinze reais

por cada casinha, só para incentivar (...) Aí eu já tinha uma casinha

ali pronta, de material, naquele tempo nós construímos umas vinte

(...) vou falar era muito gostoso a gente ver uma cidade nascer assim,

crescer... é muito bom.31

(...) terras pequenas seria de culturas boas, terras grandes para pas-

tagem, então tudo foi bem analisado pelas fotografias aéreas, e no

chão também foi explorado. Por isso que se deu o projeto Juina,

que era 411 mil hectares de terras. (...) a terra foi baratíssima tá?

desde as mini-chácaras, se bem que são 672 chácaras de 5 alqueires

em volta disso aqui (...) e depois de l50 hectares, 200 hectares, con-

forme vai distanciando e conforme o tipo de terra. Então era em

prestação, prestação suave...32

31 Depoimento de Jesuíno Tavares da Cruz. Juína, 22 de setembro de 2000.

32 Depoimento de Hilton Campos. Juína, 18 de setembro de 2000.

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Como era de se esperar, tal oferta de terras chamou a atenção de pessoassem condições de adquirir os lotes comercializados pela empresa. No início,entre 1975 e 1982, o controle do acesso de qualquer pessoa na área do proje-to foi muito rigoroso. Cancelas interditavam a estrada e quando começaram asobras da cidade um posto de vigilância foi montado, com homens armados. Aintenção óbvia era evitar o ingresso de posseiros na área do projeto.

Servia para impedir que entrassem pessoas sem ser colonos, sem que-

rer comprar terras, ou especuladores, ou invasores, então foi tentado

evitar que isso fosse acontecer.33

Ao chegarem, todos, colonos e não colonos, receberam um claro sinalda presença da Igreja Católica na região. O pároco, nomeado em 1981, Pe.Duílio Liburdi, já andava pela região (comprovadamente desde o ano de1979, e é provável que desde antes disso), realizando um trabalho de orga-nização de comunidades nos mais diversos pontos da imensa paróquia(123.310 km²). A orientação dessa organização foi a Teologia da Libertação.Várias dezenas de comunidades foram formadas naquele vasto território.

Em um depoimento seu encontramos o relato da expulsão de tre-zentas famílias de “invasores” por uma pessoa identificada como “RamonParaguaio, aquele que haveria de implantar o terror, aquele que haveriade implantar a morte, de comandar a queimada dos barracos”34. Sua indig-nação diante do fato é clara.

Para os colonos migrantes tais estímulos e orientações iniciais foram defundamental importância, pois chegavam a uma terra estranha em busca deum sonho e necessitando estabelecer laços, pontos de referência para sesituarem. Tal organização atendeu às expectativas daquelas pessoas garan-tindo uma rotina de encontros e celebrações independente da presença dopadre, que em algumas dessas comunidades comparecia em intervalos desessenta dias ou, em alguns casos, mais que isso.

Percebia que um caminhão de mudança chegasse aí já ia lá até ajuda

descarrega, já fazia aquela festa ali, que tinha chegado uma família a

mais, daí já fazia amizade já falava, tal dia nois temo reza, quando

33 Depoimento de Dorvalino Andriollo. Juína, 10 de maio de 2001.

34 Liburdi, Duílio. Dom Antonio convida Padre Duílio para dar uma palavra. O Poder Noticioso, Juína,segunda quinzena de maio de 1988, p. 8.

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era na próxima aquela família já tava junto, dali em diante já cami-

nhava junto. A noite pra ir rezar era muita mata e naquela época

também a gente quase não tinha nem lanterna e a mulherada com

criança nós fazia aquelas tocha sabe, nós pegava pau ocado e enchia

de óleo diesel e pano e ponhava fogo na ponta e fazia aquela tocha e ia

por dentro do mato, reza a noite com aquela tocha de fogo alumiando

(risos). Era muito gostoso. Era animado, onde passava não ficava nin-

guém. Se tinha um terço na casa de um vizinho ia todo mundo, não

ficava ninguém em casa. Porque era tudo mata não tinha ninguém

pra gente sai, não tinha. Qualquer coisa passava o dia.35

A necessidade dessa rotina é religiosa, mas é também um importanteelemento de construção de identidade daquele grupo nascente. Aquelaspessoas se reuniam para se conhecerem e discutirem entre si seus projetosindividuais, suas necessidades, e colocarem em prática projetos coletivos.Nesse sentido a Igreja Católica ofereceu não só um ponto de encontro entreas pessoas que chegavam, mas também um local de orações e intençõespara que tais projetos dessem certo.

É no ritual – isto é, no comportamento sagrado – que se origina, de

alguma forma, essa convicção de que as concepções religiosas são

verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas. (...) num ritual,

o mundo vivido e o mundo imaginado fundem-se sob a mediação de

um único conjunto de formas simbólicas, tornando-se um mundo e

produzindo aquela transformação idiossincrática.36

Este modelo de igreja é produto do mundo moderno. Uma igreja racio-nalizada, organizada em pequenas comunidades construídas de acordo comos valores objetivos individuais e em consonância com as convicções que oindivíduo vê manifestadas na comunidade37.

A religião no mundo moderno se reorganizou em razão da fé no pro-gresso que dessacralizou e racionalizou o mundo, ao mesmo tempo ressacra-lizando e mitizando o profano (o progresso). O sentido dessa reorganizaçãoproposta pela Teologia da Libertação latino-americana não questionou a ins-

35 Depoimento de João Batista Alves Neto. Juína, 5 de maio de 2001.

36 Geertz, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1989, p. 128-129.

37 Heller, Agnes. O cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 75 e ss.

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titucionalização da religião, mas afirmou a vitalidade autônoma das pequenascomunidades religiosas38. A afirmação dessa autonomia por parte das lideran-ças (clericais e leigas) dessa recente autocompreensão da igreja foi umanegação da heteronomia imposta pela hierarquia eclesiástica, que na práticanegava a essência de sua existência.

Algumas das características da Teologia da Libertação foram assimiladascom maior intensidade em milhares de comunidades existentes pelo interiordo Brasil, como, por exemplo, a esperança de subversão da ordem socialpresente na fé popular, que se opõe à representação do paraíso como lugarde felicidade individual39. Mas é importante buscar a especificidade de cadacomunidade, já que a vivência da experiência das CEBs apresentou caracte-rísticas muito diversificadas.

Em Juína a organização da igreja em comunidades atendeu a uma ne-cessidade inicial dos recém-chegados:

(...) quando chegou aqui em Juína (...) a gente se reuniu na casa de

uma dessas famílias para rezar um terço e a gente já pensou nessa

mesma casa de formar uma comunidade fazer uma escolinha na-

quele tempo não tinha nada era tudo mato (...) Aí nós convidamos o

padre Duílio (...) foi rezada a primeira missa na comunidade São

Paulino num barraquinho que nem cercado num tava ainda (...)

onde escolheu a coordenação da comunidade.40

O vizinho mais perto dava dois quilometro (...) faltava muita coisa

(...) comia arroz, feijão carne era muito difícil, era mais carne de

caça (...) No domingo nós reuníamos as famílias, nós morávamos

naquela linha em cinco famílias, reunia as famílias rezava o culto,

os homens fizeram um campo de futebol, os homens brincavam de

bola, era o nosso divertimento os homens rezavam também, depois

do culto as mulheres iam inventar bolinhos, uma bolachinha e os

homens iam jogar bola, quando não ia caçar...41

Essa organização contribuiu para a criação de uma vivência cotidianaem Juína. O lugar da peregrinação, do sonho, da utopia, aos poucos vai

38 Martelli, Stefano. A religião nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 444.

39 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 49.

40 Depoimento de Antonio Sanches Munhoz. Juína, 23 de outubro de 2000.

41 Depoimento de Nelci Maria de Camargo. Juína, 10 de agosto de 2000.

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sendo racionalizado e se tornando o lugar da casa. A utopia passa a ser pro-jetada em outros espaços.

No espaço sacralizado o olhar está tomado pela mística, pela fé, tudotem a cor da esperança, as relações interpessoais estão marcadas pela emo-tividade, e isso, em Juína, facilitou a convivência, a partilha e a comum união.

No espaço da vida cotidiana, racionalizado, o olhar é funcional, as açõesvisam as necessidades imediatas (limpar, roçar, semear, enfim, trabalhar parao sustento da família), e isso marca as relações interpessoais. Ganha força aindividualidade; a emotividade passa a ser vivida, assim, mesmo que emuma igreja lotada, restrita ao sujeito, a um tempo e a um lugar.

Nas CEBs, em Juína, local da peregrinação, o trabalho comunitáriofoi partilhado e sacralizado. Houve uma cotidianização do rito. Posterior-mente, racionalizado e dessacralizado, o espaço foi organizado em funçãode necessidades individuais – e não grupais –, a igreja, o templo, passoua ser o espaço dos ritos e a partilha tomou a forma de “testemunhos”,houve uma ritualização do cotidiano.

Na memória ficou gravado o lugar da chegada, não como uma vagaréplica, mas como o lugar de afeto, gravado pelo coração. Isso ajuda aentender a saudade geral sentida pelos muitos entrevistados daquela nas-cente cidade em que chegaram, por mais que tenham enfrentado dificul-dades. Uma espécie de “nostalgia das origens”.

Eu morava no sítio. Fiz um barraquinho assim na beira da estrada

onde o trator puxava assim para fazer o esgoto (...) moremos um

bom tempo debaixo da lona (...) Meu marido bebia, não fazia nem

pra ele (...) se eu quisesse tratar dos filhos eu tinha que dar duro. Eu

amarrava uma rede de um pau no outro e colocava um filho lá e o

outro na barriga e o outro gatinhando (...) apesar de tudo eu morava

perto de minha mãe, eu me divertia muito e não achava ruim. [per-

guntamos se gostava de Juína em 1978, quando chegou à cidade] Amei,

eu ficava igual moleque trepando nos paus. Com o buchão na boca

[grávida] e trepando nos paus.42

Aí foi então que minha vida começou aqui em Juína com meus pais.

Pegou um caminhão, colocou nossa mudança dentro, meu marido

tinha comprado a mudança né. Os móveis estavam na loja ainda, eu

42 Depoimento de Zenir Pires Rosa. Juína, 19 de novembro de 2000.

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fiquei 3 meses casada lá no Paraná, morando dentro da casa da minha

mãe. (...) Hoje a gente faz do Paraná aqui com 3 dias, nós fizemos com 14

dias. (...) Então morei numa casinha nos fundos, só com 2 cômodos ali,

um barraquinho pequeno, até construir. Depois que passou 2 anos, dei-

xamos os 2 prédios prontos, aí minha casa ficou pronta e saí do barraqui-

nho e vim morar nessa casa. Fazia 2 anos que eu estava aqui em Juína

ajudando a construir. Eu era servente de pedreiro junto com os homens.

(...) Era uma delícia aquele tempo! Eu tenho saudades daquele tempo!43

No decorrer da década de 1980 a cidade foi crescendo e se tornando,aos poucos, o lugar da casa. As pessoas passaram a vivê-la no cotidiano, ouseja, vivê-la na funcionalidade do ambiente doméstico. Isso refletiu em suavivência religiosa. Houve um enfraquecimento sensível nas atividades dosgrupos. Primeiro naqueles da área urbana, depois nos da área rural, inclusiveporque a população rural declinou. Um dos sintomas foi o surgimento erápido crescimento dos grupos de oração do Movimento da Renovação Ca-rismática Católica. Apesar da oposição inicial dos padres, eles proliferaram ese organizaram à revelia da vontade ou autorização da paróquia. Apenasdezoito meses depois de seu regular funcionamento na cidade foi que opároco permitiu que esses grupos se reunissem na igreja44.

O fato de ser o MRCC e não outro movimento a se desenvolver naIgreja de Juína nesse momento tem clara conexão com o cenário nacional ecom as mudanças intra-eclesiais. Mas é possível identificar razões locais paratal resposta deste grupo de católicos a esse estímulo. Uma das razões seriajustamente a consolidação e o desenvolvimento do núcleo urbano nesta re-gião – Juína saltou de 8.431 habitantes em 1980 para 38.026 em 2000. Nes-se período a população urbana cresceu trinta vezes.

A outra razão seria uma decorrência desta última. Neste mundo urbanoe racionalizado, as relações sociais entre os cidadãos assumem característicasdiferentes daquelas colocadas para o início da colonização local. A força cen-trípeta, protetora, característica das comunidades iniciais foi substituída pelaforça centrífuga característica da economia das sociedades modernas.

Ultrapassado o primeiro momento de espanto e atordoamento, o

espírito alerta se refaz, reformulando a idéia de futuro a partir do

43 Depoimento de Aparecida Dias, Juína, 21 de setembro de 2000.

44 Joanoni Neto, 2001, p. 28.

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entendimento novo da nova realidade que o cerca. O entorno vivi-

do é lugar de uma troca, matriz de um processo intelectual. O ho-

mem busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e pouco a

pouco vai substituindo a sua ignorância do entorno por um conhe-

cimento ainda que fragmentário.45

Os indivíduos inicialmente isolados uniram-se em um conjunto únicoapenas para fazer frente a uma situação problemática inicial; após isso, elesmesmos voltaram a estabelecer entre si uma situação de competição. Domesmo modo como optaram por participar dela, optam por voltar-se para areconstrução de seu espaço privado, “uma forma de assegurar a emergênciado indivíduo e de seus interesses sobrepostos aos da comunidade”.46

As CEBs foram vistas pelos articuladores da Teologia da Libertação comoo espaço do pobre, do despossuído, dentro da igreja. Em Juína elas – criadascom fidelidade aos objetivos nacionalmente propostos – serviram para abri-gar não só os posseiros, errantes e sem terras, mas também os pequenosproprietários. Pertencentes a grupos sociais distintos nos locais de origem, alitodos se viram na contingência de se aliarem:

Era bem melhor do que hoje. Todo mundo era amigo, todo mundo

enxergava todo mundo. Ninguém era melhor que ninguém, todo mun-

do era igual. Eu fiquei doente quando fui operada ali, o compadre

Gringo [proprietário de posto de combustível, pesque e pague, fazen-

das e do primeiro supermercado da cidade], o irmão de Jandir, o Dr.

Hilton iam todos na minha casa, sentavam na minha cama, trocavam

idéia comigo. (...) o compadre Gringo quantas vezes me levou latas de

leite ninho do mercado dele porque nossa vida era muito precária. (...)

antes eu andava mal vestida na calçada e todo mundo me enxergava,

eu era amiga de todos (...) nós éramos aquela família bem vinda. To-

dos compartilhavam. Hoje (...) ninguém enxerga ninguém.47

O MRCC poderia ser a tentativa de alguns cristãos de manter a sacralizaçãode um espaço que se dessacralizou, mas tal prática não rompeu com os limitesdo templo e nem com os do corpo (por ser individualista, ela não consegue

45 Santos, op. cit., p. 263.

46 Martins, José de Souza. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In: Schwarcz, L. M.(Org.). História da vida privada no Brasil. v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 723.

47 Depoimento de Zenir Pires Rosa. Juína, 19 de novembro de 2000.

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fomentar a prática comunitária, típica de outro modo de ser igreja).A sociedade mundial e a nacional sofreram, nos últimos trinta anos,

mudanças sensíveis que precisaram ser mediadas pela Igreja Católica.Internamente a Igreja Católica, tanto internacionalmente quanto nacional-mente, enfrentou problemas que precisaram ser harmonizados. E a IgrejaCatólica em Juína é a soma desses elementos mais os condicionamentossociais locais (estes também influenciados por contextos exteriores). Oindivíduo, portador de uma fé particular, sofrerá as influências do quadroexposto acima e terá que adaptar sua forma de crer. Ele enfrentou ten-sões internas provocadas pelo choque com o novo e teve que se adaptaràs novas condições externas. A Igreja mudou sua forma de ser Igreja e ofiel mudou seu modo de crer na Igreja.

Conclusão

Neste pequeno artigo procuramos delinear, ainda que preliminar-mente, algumas reflexões sobre a Igreja Católica, a sua mensagem e acompreensão desta última pelos fiéis. Entendemos que se existe umaforte influência dos modelos propostos pelas autocompreensões da Igre-ja sobre o conjunto dos fiéis católicos, e essa influência esbarra, ou mes-mo pára, nas reinterpretações elaboradas pelos fiéis sobre os discursos daIgreja. “entre a boca do pregador e o ouvido do povo pode haver sempreo espaço de uma transmutação de signos”48.

Comparando os resultados de pesquisas feitas no interior de São Pau-lo49, lendo estudos sobre as Comunidades Eclesiais de Base na capital daque-le Estado50, e, mais recentemente, estudando as comunidades em algunspólos urbanos no norte de Mato Grosso51, notamos a riqueza e a diversidadedestes grupos que se adaptam às especificidades locais. Entendemos queessa diversidade não é exclusividade da Teologia da Libertação ou daRCC, muito menos da Igreja brasileira. O próprio Papa João Paulo II, aoampliar o Colégio dos Cardeais de 50 para 184 membros, no Consistóriode fevereiro de 2001, tenta dar conta dessa nova realidade que aponta

48 Sanchis, Pierre. O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? In: Hoornaert, Eduardo (Org.).História da Igreja na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 98.

49 Joanoni Neto, 1996.

50 Petrini, João Carlos. CEBs: um novo sujeito popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

51 Joanoni Neto, 2001.

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para a maioria da cristandade vivendo nos continentes africano, latino-americano e asiático. “(....) antes de 2010 a Igreja Católica terá mais dedois terços de seus membros nas áreas culturais, lingüísticas e religiosasque não têm mais nada a ver com a área greco-latina”52.

Entendemos que o indivíduo se apropria do conteúdo doutrinal da Igre-ja e o instrumentaliza a seu favor, do modo como lhe parece mais conveni-ente e para o fim que se lhe parecer necessário.

No caso de Juína, nossa análise mostrou que os colonos, ao se deslo-carem para lá, não a viram como realidade puramente material. As dificul-dades os levaram a imaginar realidades mais autênticas e mais profundasdo que aquelas reveladas por seus sentidos. A mensagem da Igreja Cató-lica foi apreendida e utilizada pelos colonos migrantes primeiramentecomo elemento para catalisação e construção de uma coletividade queevoluiria para se tornar uma cidade. Em um momento posterior, com aconsolidação do núcleo urbano e seu rápido crescimento, o lugar da pere-grinação, racionalizado, se tornou o lugar da casa e o sagrado tornou-seuma necessidade vivida individualmente.

Quanto à presença das CEBs (originalmente estimulada pela Igreja), e,com elas, as da CPT, CIMI, Pastoral da Saúde, entre outras, e posteriormentedo MRCC e sua ponta de lança, os grupos de oração, estes grupos articulama vertente individualista à dimensão comunitária, e mesmo quando inscritosno espaço institucional da Igreja não se confundem simplesmente com ela.Mesclados a um sem número de influências, que vão do catolicismo maistradicional aos panteões religiosos das culturas africanas e indígenas, vivemum pluralismo que torna porosas as identidades individuais e, para além daspossíveis resistências, as relativiza53.

Quanto menos inserido o indivíduo, mais facilmente ele é atingido pelochoque de um novo saber. O novo lugar o obriga a reformular-se. O espaçotem um papel fundamental nessa descoberta “que vem do seu papel naprodução da nova história”54.

O espaço é racionalizado, a vida privada é reconstruída, o cotidianose normaliza. Alguns continuarão a militância na igreja, ou fora dela, ou-tros passarão a viver sua fé de modo mais individualizado. O sonho daterra prometida, porém, não se concretizou para muitas daquelas pes-

52 Tincq, Henri. Religião globalizada. Le Monde. Disponível pela internet em: www.uol.com.br/lemonde, 21de fevereiro de 2001.

53 Sanchis, op. cit., p. 104.

54 Santos, op. cit., p. 264.

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soas. A reconstrução do cotidiano não significou a perda do sonho, dacrença na sua existência, da fé em alcançá-lo. A crença no poder sagradoobsta que ele veja que seu lugar é ali, que ele também tem direito a umpedaço de terra. Negado seu espaço, ele o projeta noutro, místico, utópi-co, mentalmente construído. Alguns passarão a viver a expectativa deuma outra oportunidade, outros simplesmente se colocarão novamente acaminho, movidos pela esperança de encontrá-la.

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Resumo

Os Estatutos Municipais ou Posturas da Câmara deVila Bela (1753) são um documento inédito noconjunto de leis coloniais da capitania de Mato Gros-so que permite perceber o processo de organiza-ção de um micro-ambiente urbano neste territóriode fronteira, localizado no centro da América do Sul.

Palavras-chave:

Câmara – Vila Bela – Posturas Municipais

Abstract

The Municipals Statutes or Posturas of the Councilof Vila Bela (1753) are an unpublished documentat the whole of colonials laws of the Capitania deMato Grosso that permit to realize the process oforganization a small urban place in this territory offrontier, situated at the center of South América.

Keywords:

Council – Vila Bela – Municipals Posturas

Estatutos municipaisou posturas da Câmara de

Vila Bela da Santíssima Trindade - 1753

Carlos Alberto Rosa*

Nauk Maria de Jesus**

* Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Mato Grosso.

** Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Doutoranda em História pela Universi-dade Federal Fluminense (CNPq).

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.3 – N.1 – JAN./JUN. 2002

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As Posturas eram decretos ou regulamentos elaborados pelas câmarasmunicipais e estavam voltados para o benefício e utilidade das vilas, preven-do penas e multas aos infratores, inclusive se fossem “poderosos”. Elas nasci-am da decisão dos próprios vereadores de enfrentar questões urbanas e seusparágrafos poderiam ser “emendados” ou mantidos, caso fossem considera-dos bons ao bem comum. Pertencentes ao campo de atuação das câmaras,refletiam de certo modo, uma “margem de autonomia do poder local”. Istoporque as posturas não podiam contrariar o direito geral do reino, nem asregalias e competências reservadas a outros oficiais, como os ouvidores. Alémdisso, vigoravam por consentimento tácito do príncipe1.

As câmaras coloniais eram responsáveis pelo gerenciamento das ren-das, organização das festas, defesa do território, pagamento de soldos, cons-trução e reparo de fortalezas, saúde e higiene, obras públicas e outros me-lhoramentos urbanos2. Em síntese, regulavam a produção e a reprodução dosambientes urbanos, da categoria vila e da categoria cidade: a edificação, aalimentação, a higienização. Na América portuguesa elas seguiam os padrõesmetropolitanos, tendo alguns de seus capítulos adaptados de acordo com asespecificidades locais. Em algumas cidades, como Salvador, é possível acom-panhar os sucessivos “emendos” nas posturas, durante os seiscentos e sete-centos. Em outras, como o Rio de Janeiro, inexiste um livro específico pararegistro das posturas no século XVIII3.

Quanto às posturas da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, háindícios muito claros de que foram elaboradas na primeira metade dos sete-centos, embora não tenham ainda sido localizadas.

Em 1737, o ordenamento dos arraiais do então distrito do MatoGrosso (parte do termo da Vila Real) fundava-se nos “acórdãos que seestabeleceram na Câmara da vila desta Comarca”, vale dizer, na Vila Real4.Os “acórdãos” podem aqui ser tomados como itens de “Estatutos e Postu-ras”. Algumas das normas definidas para os arraiais do Mato Grosso repe-tiam portanto as da Vila Real:

1 Hespanha, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – séc. XVII.Coimbra: Almedina, 1994, p. 357-360.

2 Bicalho, Maria Fernanda Baptista. As fronteiras da negociação: as câmaras municipais na Américaportuguesa e o poder central. In: Nodari, Eunice et. al. História: Fronteiras. Simpósio Nacional deHistória /ANPUH-SP: Humanitas / FFLCH-USP, 1999, p. 476.

3 Gouvêa, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa – O caso dos Homens Bons doRio de Janeiro, ca. 1790-1822. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, 1998, p. 309.

4 Auto de Junta (...), Arraial de São Francisco Xavier, 26/11/1737. (Núcleo de Documentação e Informa-ção Histórica Regional – NDIHR/UFMT, Série Documentos Ibéricos)

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(...) todas as pessoas que tiverem lojas de fazenda, tavernas ou casas

de pasto, as fecharão tanto que for noite e enquanto esta durar não

venderão coisa alguma aos escravos, nem os recolherão em suas ca-

sas (...) todos os negros e negras cativos que tiverem vendas e casas de

pasto e todos os demais escravos terão suas senzalas e casas junto a

seus senhores e administradores (...) e da mesma sorte viverão as

negras ou negros forros casados com escravos ou escravas; e todas as

pessoas que tiverem tavernas serão obrigadas a ter ramo verde na

porta e as que fizerem pastéis ou os venderem terão na porta um

ramo seco com um pano branco nele (...) nenhuma pessoa, de qual-

quer condição ou qualidade que seja levará coisa de comer e beber às

lavras (...) todas as pessoas que venderem serão obrigadas a ter pesos

e medidas aferidos e tirarão licença (...).5

É possível que todas as vilas coloniais tenham tido as suas normas,embora pouco ainda se saiba a respeito delas.

Quanto às Posturas da Vila Bela de 1753, os vereadores enviaram umacópia ao governador da capitania de Mato Grosso, Dom Antonio Rolim deMoura, para avaliação, antes de o documento ser remetido ao rei para apro-vação. Em 1762, após as correições realizadas pelo ouvidor, as posturas pas-saram por revisão, com aprovação dos vereadores e presidência do juiz defora. Segundo o escrivão, a cópia tinha sido lavrada no Livro de Estatutos doArquivo da Câmara6. Em 1769, os vereadores informaram ao governador quelhe tinham enviado os dois livros com cópias dos Estatutos Municipais, Porta-rias, Acordões e Privilégios7–, mas esses livros ainda não foram localizados.

Vale lembrar que no início do século XX a maior parte dos arquivos dacâmara de Cuiabá foi destruída por incêndio, o que explica, em grande parte,não terem ainda sido localizadas as posturas da vila do Cuiabá.

Diante disso, a publicação de transcrição das posturas da Vila Bela daSantíssima Trindade é de suma importância por contribuir para preservar amemória histórica da vila do Guaporé, bem como por ser um documentoinédito no conjunto de leis coloniais que permite perceber o processo de

5 Idem. Documento de 1769 refere-se também às Posturas da Vila Real: Luiz Pinto de Sousa Coutinho aoSenado da Câmara da Vila Real; Vila Bela, 01/01/1769. (APMT, mss., Livro de Registro de Correspondên-cia, 1763/1769, f. 116)

6 Câmara de Vila Bela ao governador Dom Antonio Rolim de Moura, 22 de dezembro de 1762. (APMT –Fundo: Senado da Câmara de Vila Bela, rolo nº 002)

7 Oficiais da câmara ao governador Luiz Pinto de Souza Coutinho. Vila Bela, 15 de junho de 1769. (APMT –Fundo: Senado da Câmara de Vila Bela, doc. 11, rolo 002)

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organização de um micro-ambiente urbano neste território de fronteira, loca-lizado no centro da América do Sul. Esse documento é a expressão da urba-nidade de Vila Bela manifestada por meio das palavras.

Os Estatutos ou Posturas estão guardados no Arquivo Público de MatoGrosso (APMT) e seu manuseio requer cuidados muito especiais, pois suaspáginas estão seriamente danificadas.

Em relação à transcrição8, o texto foi atualizado em vários aspectos,inclusive sua ortografia, a fim de facilitar sua leitura nos dias atuais: a grafiadas palavras comuns, a dos nomes próprios, o uso de maiúsculas e minúscu-las e a pontuação foram aproximadas do padrão atual. As frases e palavrasilegíveis foram colocadas entre colchetes. O vocabulário foi conservado, sen-do esclarecido em notas de rodapé. Importantes para este trabalho foram oVocabulário portuguez e latino de Raphael Bluteau e o Dicionário da Lín-gua Portuguesa de Antonio de Moraes e Silva.

Estatutos Municipais ou Posturas daCâmara de Vila Bela da Santíssima Trindade - 1753

Cópia da Carta que a Câmara escreveu ao Governador Capitão Generalremetendo-lhe os Estatutos e Posturas que abaixo se seguem.

“Ilm.º e Exm.º Sr.Como já vai mostrando esta vila, com o favor de Deus e desvelo de V.

Ex., que no aumento de sua povoação virá a ser uma luzida República, eratempo que esta Câmara cuidasse nos Estatutos ou Posturas para o Regimedela, segundo o Estado do País, nos casos em que não temos lei expressa nasdo Reino; e o que nelas dispomos mais é para o futuro que para o presente,a cujo fim formamos os cinco capítulos, que contém quarenta e nove pará-grafos, que antes de os fazermos assinar pelo Povo, que para isso se achajunto, os remetemos à correção de V. Ex. para os fazer ver e examinar, seneles se encontra em coisa alguma ao serviço de sua Majestade, à sua RealFazenda, ao bem comum do povo; e com a determinação de V. Ex. tomar-mos o melhor acordo, pretendendo pô-las na Real presença de sua Majestade,

8 Deve-se ressaltar que a primeira transcrição integral do documento ocorreu em 1997, contando com acolaboração de Cristiane dos Santos Silva. Entre os anos de 2001 e 2002, entre sucessivas interrupções,foram feitas diversas revisões no texto, cotejando o original e o material transcrito. Agradecemostambém ao coordenador do APMT, Clementino Nogueira, por disponibilizar o material, já colocado forade consulta devido ao seu estado.

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para se digne aprová-las sendo servido, para firmeza das suas disposições: parao que queremos, e pedimos que a resposta de V. Ex. haja de servir logo deinformação ao nosso requerimento. Deus guarde a pessoa de V. Ex. felizmen-te. Vila Bela, em Câmara, quatro de dezembro de mil setecentos e cinqüenta etrês. Eu Francisco Caetano Borges, escrivão da câmara que o escrevi. Beijam asmãos a V. Ex. seus mais reverentes criados. Teotônio da Silva Gusmão. Antônioda Silveira Fagundes Borges. João Raposo de Afonso Góes e eu FranciscoCaetano Borges que a escrevi e assinei. Francisco Caetano Borges.

Estatutos Municipais ou Posturas da Câmara da Vila Bela da SantíssimaTrindade para o Regimento da República nos casos em que não há lei ex-pressa segundo o Estado do País.

Cap. 1ºSobre culto Divino e Festividades da Câmara e da Igreja desta Vila1º. Como tenha [danificado] particularmente da Igreja Matriz que [dani-

ficado] [danificado], é nua e despida sem adorno, o que [danificado] se distra-írem a fazer diversas Capelas, do que se seguem [danificado] que são perfei-tas e ornadas do necessário, esfriando a devoção com que [danificado] quenelas fazem vem a faltar ao ornato da Igreja Matriz. Acordaram que nuncaesta Câmara desse licença e chãos para se formar outra alguma Igreja, ouCapela, e principalmente aos pretos e mulatos que regularmente são os queandam com Nossa Senhora do Rosário fora da Paróquia, e que havendo de-votos desse ou daquele Santo a quem quisessem formar capelas ou Igreja,reduzissem essa despesa em lhe fazer altar na Matriz, com o que viria esta acompor-se e adornar-se, e que desta proibição era isenta a capela de NossaSenhora Mãe dos Homens que presentemente se fabrica com esmolas doPovo, por ser devoção intentada ainda antes da criação desta Vila; e assim nocaso que pelos anos futuros se queira reedificar, ou acrescentar a dita capela,não haja dúvida alguma em o consentir a Câmara.

2º. Por evitar o abuso de muitas Terras do Brasil, que estando regular-mente a Igreja Matriz na Praça Principal, do Adro dela e grande parte daPraça fazem cemitério com disformidade nos altos e baixos com que ficam ascovas, que é a mesma entrada da Igreja, serve de insuportável defeito. Acor-daram que a Câmara não consentisse em tempo algum, este erro na formosapraça desta Vila, aonde está determinado o lugar para Matriz, e que paracemitério dos Índios, pretos e mais defuntos que não vão ao interior da Igrejae se sepultam no Adro, se fariam claustros ou pátios no corpo de toda a obra,

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aos lados ou por detrás, e que havendo algum Reverendo vigário que impru-dentemente desprezador e oposto ao bom regime, como regularmente su-cede, fosse contra este Estatuto, esperavam que Sua Majestade na confirma-ção destes capítulos declarasse o procedimento que com ele se devia ter, eque o negro, branco, ou carijó que abrisse sepultura no Adro que ocupa parteda praça, fosse logo preso com trinta dias de cadeia e seis oitavas9 de ouro decondenação para as despesas da Câmara; e enquanto se não edificava aIgreja Matriz, e servia a capela que no lugar dela se acha, se continuasse ocemitério pelo lado desta como ao presente se faz.

3º. Que não era a intenção desta Câmara tirar à Igreja Matriz o Adro quepela constituição e cânones lhe é devido, e que quando fosse ocasião de sebenzer a dita Igreja e o seu Adro a Câmara que então existisse tivesse parti-cular inspeção em ver demarcá-lo, e não consentisse se lhe desse mais Adroque aquele que lhe é taxado pela Constituição, porque há tal ReverendoVigário que nenhum escrúpulo faz em fazer toda uma Praça Adro da Matriz,e que dos palmos que se demarcassem e benzessem para Adro fariam umtermo pelo tabelião, que se guardaria no Arquivo da Câmara, e que nessemesmo Adro é onde milita a proibição do parágrafo antecedente.

4º. Como sua Majestade determina no parágrafo 3º da sua provisão decinco de agosto de 1746, expedida para a criação desta Vila, que os emolu-mentos dos oficiais fossem como nas Minas Gerais, e pela provisão que man-dou passar ao Juiz de Fora atual, feita a 14 de dezembro de 1748, para vircriar esta vila10 e continuar a execução da criação da Vila, recomenda queobserve nos emolumentos o que se pratica na Cidade de Mariana; pareceque em tudo o mais quer Sua Majestade que o estilo da dita Cidade Marianasirva de norma para esta Vila, e assim como [danificado] vieram se mostraque a Câmara assista com o Real Estandarte à festividade do mártir São Se-bastião, à ladainha de São Marcos, às três ladainhas de Maio, à Festa do Corpode Deus, à do Anjo Custódio, do Reino [danificado], da visitação de NossaSenhora a Santa Isabel, à Festa de Nossa Senhora do Monte do Carmo, à Festade Nossa Senhora da Conceição, do Te Deum Laudamus, em dia de São Silves-tre, e à publicação da Bula da Santa Cruzada: Acordaram que esta Câmara como Real Estandarte assistisse a todas estas funções, com distinção que em lugarda festa de Nossa Senhora do Carmo, que na Cidade Mariana é Padroeira, fosse

9 Cada oitava equivalia a 3,58 gramas de ouro.

10 A formulação desta passagem pode gerar equívocos. Alterando a ordem original, pode ficar mais claro:“provisão que mandou passar o Juiz de Fora (....), para vir criar este lugar”, provisão essa de 1748.

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nesta vila como Padroeira dela a festa da Santíssima Trindade.5º. Que na forma da Ordenação Livro 1º, Título 66, parágrafo 48, deve

a Câmara fazer à custa dos bens do Concelho, as festividades da visitação deNossa Senhora a Santa Isabel, a do Anjo da Guarda e a Solenidade e procissãodo Corpo de Deus, pelo que: Acordaram que nesta seria a Cera do altar e aque se desse ao corpo da Câmara de meia libra, como também se daria aoscavalheiros da ordem de Cristo que no dia de Corpo de Deus assistissem eacompanhassem a procissão com Mantos, e aos sacerdotes nesse mesmo diae ato, se daria vela de 4º e da mesma qualidade seria a do Trono do Santíssi-mo exposto, seguindo-se a Constituição, assim no número das Luzes, comoem ficar ao Reverendo vigário a que lhe tocar ou pertencer pôr direito, e senão daria Cera a pessoa mais alguma, sob pena de a pagarem os camaristaspelos seus bens. E que para a festividade do Mártir São Sebastião, bem ne-cessário nestas Minas do Mato Grosso por advogado da Peste, que por issopertence a todos, obrigaria a Câmara aos mercadores, oficiais mecânicos,vendas, cortes de carne e Boticas a pagar a Cera, música, sacerdotes e maisdespesas que houvesse rateada por eles, e o mesmo se observaria na festivi-dade de N. Sra. da Conceição, como Padroeira do Reino.

6º. Para a Festa da Santíssima Trindade: Acordaram que a Câmara nome-aria um ano antes em a véspera do dito Dia e por mais votos, três festeirosdos homens bons11 e de mais posses destas Minas, cuja eleição mandaria oReverendo Vigário assinada pela câmara para no dia da Festa fazê-la publicarpelo pregador, evitando-se por este modo as incivilidades de Irmandades eEleições por cotas feitas; e por conta destes três festeiros correria o gasto, asaber: pelo mais velho a cera, pelo segundo a música e sacerdotes, e peloterceiro o pregador, ao qual desde logo se recomendava em geral que fosse oseu estudo em explicar o Mistério da Santíssima Trindade porque entre o gen-tio do Brasil e Costa da Guiné que nele vive, há muito pouco conhecimentodeste sumo Mistério, que perguntando-se-lhe quem é Deus respondem que éJesus Cristo, cuja proposição sendo certíssima no que dizem, é falsa no queoculta, e talvez supõem que não há mais pessoas em Deus que a de Cristo.

7º. Como em todas estas funções em que a Câmara sai fora, com o RealEstandarte, têm obrigação os republicanos que assistem uma légua distantesda vila, de acompanhar: Acordaram que todo o que faltasse às ditas funções

11 Expressão utilizada no Antigo Regime para designar o indivíduo que possuía sangue, linhagem, ocupa-ção e privilégio que o faziam pertencer a um estrato social distinto o bastante, para autorizá-lo a exercerdeterminados cargos na governança municipal.

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a que são obrigados, fosse condenado em duas oitavas para as despesas daCâmara, que cobraria o procurador dela irremissivelmente, sob pena de aspagar por seus bens, para o que logo em Câmara se averiguassem os culpa-dos e se fizesse carga viva ao procurador das condenações deles.

Cap. 2ºDos [danificado] Reais, [danificado] Oficiais da Câmara1º. Como ainda depois da vila povoada, e hão de haver, pelos dois

arraiais da Chapada e Santana, em razão das lavras12 e faisqueiras13 e poderãoformar-se outros, se houverem novos descobertos de ouro. Acordaram quedos Almotacés14, assistisse um na vila todo o tempo, o qual sempre fosse omais velho, sob pena de quatro oitavas para as despesas da Câmara se che-gasse a faltar 15 dias; e que o outro fosse destinadamente feito para o Termoassistente no Arraial que mais cômodo ficasse para acudir aos outros e nelesfaria as almotaçarias e correções dela.

2º. Como da falta da execução das penas se segue a falta da observân-cia das posturas e o desgoverno da República: Acordaram que os oficiais daCâmara que absolvessem da condenação a qualquer que por omisso, ou comisso caísse nela, a pagasse por seus bens, para o que quando nesta matériahouvesse dúvida alguma em Câmara de absolver ou condenar, se pusessemno Termo da vereança com distinção os votos dos que absolveram e dos quecondenaram, porque o corregedor em correção examine como foi absolvidoe compreendido, e que da mesma forma o Almotacel que perdoar ou absol-ver condenação alguma, a pagaria por seus bens.

3º. Como a lei não declara o tempo e as vezes em que a Câmara devesair a fazer correição geral pela vila e sucede haver corregedor que só poramontoar capítulos de correição impõe à Câmara onerosíssimas obrigações,como de presente fez o Dr. Ouvidor do Cuiabá, mandando que cada mêssaíssem a estas correições: Acordaram conforme o estilo geral da maior partesdas vilas, que só duas correições fizesse a Câmara no ano, a primeira dentrodos primeiros seis meses, e a segunda dentro dos outros seis, pois as correi-ções de cada mês são próprias dos Almotacés, dos quais é essa a obrigação.

12 Jazidas organizadas em grande escala e com aparelhamento para lavagem do ouro.

13 Locais específicos de extração aurífera, onde cada qual trabalha por si, empregando somente a bateia eferramentas toscas. Ver verbete Mineração em Vainfas, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil colonial(1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

14 Responsável pela vigilância das edificações, aplicação exata dos pesos e medidas, taxação dos gênerosalimentícios e limpeza das vias públicas.

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4º. Pela mesma razão de evitar amontoarem os corregedores capítu-los de correição escusados, trazendo neles o que trazem as leis, que aondeas temos expressas são escusados provimentos: Acordaram que a Câmara epovo não consentissem que o Dr. Ouvidor em correição fizesse capítulosem matéria alguma que não fosse a requerimento seu, que isto é o quedispõe a lei do Reino, e o contrário observaram alguns corregedores, quecontra a vontade da Câmara e Povo faziam muitos, com a falsa narrativa deque lhes fora requerido provimento naquela matéria, sendo certo e inegá-vel que os trazem de casa feitos à sua vontade, e à força os fazem lançar noLivro dos provimentos da Câmara e Correição dela.

5º. Como tenha mostrado a experiência, que do pouco zelo e cuidadode escrever os sucessos, estão a maior parte das Povoações e vilas do Brasilsem conhecimento e notícia alguma dos seus princípios, o que muitas vezesé danoso à Republica, e pelo contrário este cuidado e zelo pode ser provei-toso, não só a elas mais ainda a todo o Reino, visto que esta Vila se acha noseu principio, e em termos de poder fazer memória, ainda desde o descobri-mento destas Minas: Acordaram que nesta comarca15 houvesse um Livro deAnal16 em que se escrevessem no fim do ano todos os outros sucessos per-tencentes a estas Minas e Vila, a saber: descobrimentos assim de ouro comode terras, rios, Gentios, [danificado] novas e suas causas, mudanças de Gover-nos, assim sua [danificado] e quaisquer outros sucessos extraordinários de[danificado], os da arte, cujo cuidado terá o segundo vereador, fazendo me-mória do dia, mês e ano, nomes das pessoas e suas qualidades, para no fimdo ano, conferida em Câmara, se lançar no dito Livro de anal em que assina-rão todos os oficiais dela, porque possa este assento ter a todo o tempoplenicissima fé para os vindouros, e que o vereador segundo que for no anoque entra, fará diligência e obrigação ou averiguação desde o primeiro des-cobrimento destas Minas, até ao presente; e o dito vereador a quem compe-tir fazê-la no seu ano e faltar a este zelo e cuidado, se tomará assento emCâmara que fique inabilitado e expulso de tornar a servir nela17.

15 Circunscrição judiciária, civil ou eclesiástica; território de uma autoridade judicial.

16 Anais.

17 Este é um item dos Estatutos ou Posturas de Vila Bela que certamente o particulariza profundamente: ainstitucionalização da produção de “memórias” oficiais dos “sucessos” ou acontecimentos do tipo claramen-te indicado. E, inclusive, estabelecendo punições severíssimas para o segundo vereador que deixasse defazer esses registros, em seu ano de mandato: a proibição de voltar a ser vereador, “republicano”, integrara “governança” – o que equivalia ao impedimento de nobilitar-se pela via camarária. Aliás, 47 anos depois,o ouvidor interino Felipe José Nogueira Coelho proporá ao governador Luiz de Albuquerque de MeloPereira e Cáceres a extensão deste exemplo da câmara vilabelense à repartição do Cuiabá e, em 1782, arainha Maria I ordenará que se pratique essa produção de “memórias” em todo o Império.

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6º. Sucedendo que falta o juiz de fora, e passe a vara ao vereador maisvelho: Acordaram que este, nem a Câmara por modo algum direto ou indire-to, tome assessor ou se aconselhe em coisa alguma com clérigo ou religiosoainda que letrado seja, sobre a jurisdição ou Regime da República, sob penade lhe dar o corregedor em culpa na correição, por ter mostrado a experiên-cia e muito principalmente em Minas, que são opostos à jurisdição Real usur-padores dela, e não menos ao Regimento da República, olhando pouco paraas ordens reais e buscando interpretações a elas com a capa de Moral eepiqueas18 muito alheias da obediência que devem ter os Povos às ordens doseu soberano, e às disposições dos que governam a República.

7º. Como para o respeito e asseio de uma Câmara concorre também otraje, cortesã de capa e volta tão próprio nos que têm jurisdição de governar:Acordaram que em tempo nenhum os oficiais desta Câmara, almotacés ehomens bons da Governança que nela tiverem servido, assistam às funçõespúblicas da Câmara, senão no referido traje de Capa, curta e volta, e cabelei-ra comprida, cujo vestido em tempo nenhum, ainda com o pretexto do maisapertado luto, será de baetas ou crepe, mas sim de lemiste, de droguetecastor19 ou seda, sob pena de que quem aparecer nas referidas funções deoutro traje será condenado em quatro oitavas para as despesas da Câmarapela primeira vez, e pela segunda em dobro; e assim nas mais, porque seriaindigno que com outra qualidade de traje fizessem as funções de um CorpoTribunal que é a cabeça da República e não deve haver escusa de pobreza,e de empenhos para um tal vestido que pode durar muitos anos, quando sevê que no luxo de outras galas anuais se não olha para a impossibilidade20.

8º. No que mais devemos cuidar os moradores destas Minas, podendo,deve ser em fabricarem casas suntuosas na Vila, porque estas não só servemde adorno a seu dono, mas de aumento e formosura à República; além deque são bens de raiz que conservando-se, se podem conservar, e não o luxodos vestidos que o tempo consome; pelo que: Acordaram que esta Câmaraem tempo nenhum desse licença, nem chãos para casas de menor frenteque de sessenta palmos, seja a pessoa que for e dali para cima toda a maisque quiserem, porque assim se fará mais extensa e formosa esta Vila.

18 Moderação ou modificação racional com que se interpreta e suaviza o rigor de uma lei ou matéria tocanteà justiça.

19 Baeta: tecido felpudo de lã. Lemiste: tecido de lã, preto e fino. Droguete: tecido ordinário de lã, sedae algodão, ou somente de lã.

20 Desde a segunda metade do século XVI até meados do XVIII, a legislação régia estabeleceu determi-nações sobre os tipos de trajes, tecidos, ornamentos, armas, arreios de animais permitidos ou proibidosàs mais diversas categorias sociais. O Brasil colonial estava sujeito à mesma legislação, mas algumas leisforam específicas para negros e mulatos.

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Cap. 3º.Dos subsídios, contratos e rendas da Câmara1º. Como sem rendas não pode a Câmara acudir as muitas despesas a

que é obrigada anualmente, nem se pode entender que fazendo Sua Ma-jestade graça dos moradores desta vila, em lhes perdoar muitos dos seusdireitos reais, quis [danificado] dos subsídios da Câmara [danificado] quenuma [danificado] tivesse rendas, além de que a provisão de Sua Majestadepara a criação desta vila só fala nos seus direitos e não compreende aisenção dos que tocam à Câmara: Acordaram que esta vila tivesse para asrendas das despesas públicas os mesmos contratos e subsídios que temquase todas as vilas do Brasil e a sua vizinha a vila do Cuiabá, a saber: ocontrato do subsídio das cabeças, assim de vaca ou boi, como as de porco.O contrato dos subsídios das águas ardentes da terra. O contrato do subsí-dio das bebidas que vem de fora. O contrato do subsídio das canoas que defora vêm com negócio. O contrato das aferições. E o do rendeiro do ver,cada um destes contratos e subsídios na maneira seguinte:

2º. O contrato dos subsídios das cabeças, consiste em pagar quem: Cortarboi ou vaca para vender, meia pataca21 de ouro por cada uma rês, ou grandeou pequena; e por cada cabeça de porco, ou porca grande, ou pequena que secortar para se vender, se pagará uma oitava e meia de ouro, como é na Vila doCuiabá e como se está praticando nestas Minas desde o seu princípio.

3º. O contrato das águas ardentes da Terra, consiste em estancá-las,coisa muito necessária à República por evitar a laxidão com que se vendeaos negros barateando-se, e ocasionando com a barateza mais bebedices,que passa aos brancos; e o contratador que quiser ter o estanque dela pagarápor subsídio para a Câmara o prêmio de ser ele só, que é o preço porquerematar o contrato e este meio acharam ser mais conveniente para estesubsídio, do que cobrá-lo dos Senhores de Engenho que a fazem (um tantopor frasqueiras) como se usa na Vila do Cuiabá, e o contratador deste subsí-dio não terá mais estanques que um na Vila, e outro na Estrada pública quevem a ela, e outro em cada um dos dois Arraiais; e quando só haja quemqueira o estanque da Vila, se arrematarão os de fora aos outros contratadores.Por este contrato ficam inibidas as tavernas e vendas de ter e vender estegênero, porém não se proíbe que possam haver na vila as vendas que quise-rem para os mais gêneros de comestíveis e bebidas, e os que fabricam a ditaaguardente a poderão vender no seu Engenho aos frascos, e não por outra

21 Equivalente a 320 réis.

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alguma medida miúda; e assim também na vila, ou Arraiais, em casa desua vivenda, ou na que costumam dispor dos mais frutos de suas lavouras;e vendendo-a assim por frascos, não será por menor preço do que oestanqueiro, pelo não prejudicar, que será ocasião de faltar quem arrema-te este contrato, e só vendendo-a por frasqueiras inteiras, ou havendo devendê-la ao estanqueiro, poderá baratear o preço.

4º. O contrato do subsídio das bebidas de fora, consiste em que todaa frasqueira ou Barril de vinho, azeite, vinagre, e a aguardente do Reinoque se vender nesta Vila ou no seu distrito, pague uma oitava de ouro,como está estabelecido na Vila do Cuiabá. Com declaração que as bebidasque de lá vierem22, são escusas deste subsídio, porque lá o pagaram paraa Câmara daquela Vila.

5º. O subsídio das canoas que vêm de fora com negócios, consiste empagar, por remuneração do Porto, uma oitava de ouro por cada uma grandee meia oitava por cada uma pequena de lotação de vinte cargas para baixo.

6º. O contrato das Aferições consiste em pagarem de uma balança delibra de pesar ouro, sendo nova duas oitavas e sendo já aferida uma oitava, ede revista meia oitava. De uma balança de meia libra sendo nova, uma oitava,e sendo já aferida meia oitava, e de revista um quarto de oitava; e o mesmopor uma balança de quarta de uma balança [danificado] sendo nova, meiaoitava, e sendo já aferida um quarto, e de revista [danificado] sendo nova umaoitava, sendo já aferida meia oitava [danificado] lá que [danificado] de ferrosendo novo, e um quarto e sendo já aferido quatro vinténs de ouro e de revistadois vinteiros de ouro. Del [danificado] terão de pesar [danificado] das balançasde pesar ouro para saber, e um quarto, quatro vinténs e dois vinténs de todosestes seis vinténs de ouro sendo novos, sendo já aferidos quatro vinténs e derevista dois vinténs de um terno de meia alqueire, quarta e meia quarta sendonovas por cada uma meia pataca e sendo já aferida quatro vinténs e dois derevista. De cada medida de bebida sendo novas e um quarto, sendo já aferidaoitenta réis e de revista dois vinténs. Por uma vara ou covade sendo novasmeia oitava e sendo já aferida e de revista quarenta réis de ouro.

7º. O contrato do rendeiro do ver consiste nas condenações dos que seacham ocultamente vendendo sem licença, sem pesos e sem medidas aferi-das, o que regularmente sucede em Minas, nas Baiucas metidas pelos matose desertos; e pelas lavras à pilhagem dos jornais dos negros com o engodode que lhes vendem pelo referido modo.

22 Do Cuiabá.

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8º. Além dos referidos subsídios e contratos para as rendas da Câmara:Acordaram que toda a canoa que se fizesse nos matos desta Vila e seu distrito(que ainda que sejam particulares, são da República) pague para a Câmara, dalotação de trinta cargas para cima, uma oitava de ouro, sendo grande da ditalotação e sendo pequena meia oitava; isto é só daquelas que se venderem parairem para fora do Porto, e distrito a negócio e não as que se vendem para a terra.

9º. E porquanto nesta matéria já devem quando chegam a sair parairem a negócio: Acordaram que assim por isto, como por outros inconve-nientes à República e bom regime dela, não sairia canoa alguma para acidade de Grão-Pará sem despacho desta Câmara depois de ter o despachodo Governo que primeiramente deve tirar (coisa tão praticada nos Portosde mar, que sem despacho também dela não sai do Porto embarcaçãoalguma) sob pena de seis oitavas de condenação para as rendas da Câmarae trinta dias de cadeia, por cada pessoa branca ou livre que na dita canoafor sem despacho e licença dela, porque devendo ela para aumento da Vilanão consentir que saiam oficiais mecânicos, este é o meio desta inspeção.

10º. Suposto fosse Sua Majestade servido na Provisão de criação desta Vila,isentar as casas dela de pagarem foro à Câmara para a maior regalia dos seushabitantes e mais facilidade da Povoação, como esta graça de Sua Majestade é sórestrita para a Vila, e não compreende aos Arraiais destas Minas, cujas casas sedevem reputar prédios urbanos e não rústicos; estas vivendas convém onerá-las,porque os Povos se resolvam a povoar a Vila aonde não tem essa pensão; seacordou em junta que se fez com o Povo em Câmara no dia quinze de junhodeste ano, que as referidas casas nos Arraiais pagassem para as rendas da Câmarameia pataca de ouro que é um quarto de oitava por cada braça de testada e emcada um ano, cujo foro duraria somente enquanto existisse a casa e vivenda, ecessaria demolida que fosse e novamente: Acordaram subsistisse este foro comoestava determinado, enquanto Sua Majestade não mandasse o contrário.

11º. No caso que algum tempo esta Câmara possa fazer à sua custa casade açougue, como tem outras Vilas, e nela ponha os pesos necessários para ocorte: Acordaram se arrematasse a quem mais der por ano pela dita serventiae a quem mais barato [danificado] encaminha à utilidade comum de haver umobrigado a dar a dita carne sem falência durante o ano de sua rematação, comas penas e condições que nela se opuserem, e a ver parte certa deste merca-do; com declaração que este contrato é diverso do subsídio das cabeças, que ocontratador da casa pagará ao contratador delas das rezes que matar.

12º. Por facilitar a que hajam criadores de gado com a certeza de teremsaída quando a queiram cortar: Acordaram que assim no tempo presente em

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que não há açougue certo, como no caso do parágrafo acima, havendo cria-dor que queira cortar pelo mesmo preço no presente tempo e, para o futurocom o contrato da serventia da casa preferirá a qualquer Marchante de fora,contanto que a carne seja tão boa, e deixando arrematar ao Marchante e aserventia da casa, com o menor preço não poderão depois pretender estor-vá-lo com querer cortar uma ou duas rezes, que por respeito delas e daincerteza de haverem criadores que supram todo o ano com a carne neces-sária seria loucura deixar de arrematar a certeza do corte a quem assegure, eneste caso se haverá o criador com o Marchante Contratador, para que lhe dêlicença para dispor dessas reses querendo; e enquanto não há casa de açou-gue pela Câmara, nem o contrato da sua serventia, nem ninguém pretende-se cortar por menos preço o fizesse saber a Câmara que publicaria Edital paraque o criador prefira, segurando o mesmo que o Marchante prometer, e nãoo fazendo, ficará exposto ao que acima está determinado.

13º. Em razão da falta de gados, cujo aumento e abundância deve serum dos grandes cuidados dos que governam a Republica, sucedendo haverquem se queira obrigar a dar gado de corte por muitos anos com o privilé-gio de outro nenhum o cortar ou seja, como de presente é, ou havendocasa de açougue da Câmara e o contrato da serventia dela: Acordaram selhe houvesse de fazer arrematação por tempo de cinco anos precedendoEditais por um mês, porque a falta que tem havido de gados nestas Minas,e a pouca esperança que há de o ter logo de criação em abundância, e aincerteza de que venha de fora, como também a providência de o ter certopor este meio, sufraga esta concessão que aliás parece extraordinária aten-dendo juntamente a que em semelhante caso este arrematante, ou privile-giado, precisa fazer uma larga despesa e com largo tempo de mandar bus-car o dito gado aos Goiás ou currais da Bahia.

14º. Pela mesma razão da falta de gados: Acordaram que pessoa nenhu-ma com pretexto algum mate rês fêmea, vaca ou novilha capaz de criação,ainda que sua seja; e quando por ser vaca maninha a queira matar o façasaber à Câmara para examinar a verdade deste pretexto, sob pena de trintadias de cadeia, e seis oitavas de ouro de condenação para a Câmara.

15º. Também deve esta Câmara arrematar por contrato anual o ofício dearruador23 das casas da Vila porque se façam com simetria e compostura as ruas:

23 O arruador, contratado pela câmara, era responsável pelo arruamento e demarcação dos espaços nasvilas. Sobre o arruador na Vila Real do Senhor do Bom Jesus do Cuiabá, ver Rosa, Carlos Alberto. A VilaReal do Senhor Bom Jesus do Cuiabá – vida urbana em Mato Grosso no século XVIII: 1722-1808. SãoPaulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo.

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Acordaram que o arruador tivesse de cada Braça que demarcasse e medissequatro vinténs de ouro, como se pratica na Vila do Cuiabá, e se está observandonesta, e que toda a casa que sem ser arruada24 pelo arruador se levantasse, aindaque já tivesse concessão da Câmara para os chãos, esta a mandasse logo des-manchar à custa do dono dela, se estivesse fora da linha e de qualquer sorte queesteja bem ou mal alinhada, sempre o dono fosse condenado em seis oitavasde ouro para as despesas da Câmara por ir contra esta postura.

16º. [danificado] Como se dirá em outro lugar [danificado] em cuja vizi-nhança estão os ditos Arraiais [danificado] das providências a que não faltepara os doentes o vinho, aguardente, vinagre, farinha de trigo, marmelada,açúcar, pão e outros semelhantes gêneros: Acordaram em que houvesse emcada um dos ditos dos Arraiais uma só venda e que a Câmara arrematasse,como já este ano se praticou, a preferência ou privilégio daquele ali há deter, pagando em prêmio para a Câmara o preço da sua arrematação, e a estade nenhuma sorte se concederia vender aguardente de cana por ser doestanco, salvo se na mesma venda ele estivesse juntamente e por esta Pos-tura se não entende proibir aos Lavradores que tenham nos ditos dois Arraiaiscasa, ou sua, ou de comissão, em que vendam os frutos de sua lavoura, comosão farinhas, milho, feijão, arroz, fumo e toucinho.

Cap. 4ºDe outras proibições comuns a todos os súditos desta República.1º. Porque os moradores da vila e arraiais possam a menor custo, em

primeira mão, comprar das canoas de negócios que vierem do Grão Parápara esta vila, e das carregações que vierem do Cuiabá em cavalos osgêneros necessários para provimento de suas casas: Acordaram que emtrinta dias, taverneiro, vendilhão ou traficante não compre por junto dasditas canoas e carregações, sortimentos, a cujo título muitas vezes atraves-sam toda uma carregação para a revender ao povo, e aquele que assim ofizer, pagará para a Câmara 6 oitavas de ouro de condenação com 30 diasde cadeia e se fará desmanchar a compra não só em castigo do comprador,mas do vendedor, e pela segunda vez será dobrada a condenação e prisão,e sempre dobradas nos mais comissos em que caírem.

2º. Como pode suceder que nas Minas do Cuiabá, ou no seu circuito, ouna cidade do Grão Pará, ou por este Rio Guaporé abaixo, se levante algumapeste de que Deus a todos nos livre, constando disto, não consentirá a Câma-

24 Traçada, demarcada, alinhada.

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ra que as canoas que vierem do Grão Para, passem da Casa Redonda paracima, nem as tropas que vierem do Cuiabá passem do Rio Jauru para cá,cujos lugares se assinalam para os lazaretos25, e fazerem neles quarentena,e acabada ela, um dia antes de chegarem a esta vila, farão aviso à Câmarapara os mandar visitar pela saúde, sob pena de que obrando o contrário, econstando à Câmara, logo os fará despejar da vila e seus circuitos, e deixá-los para os ditos lazaretos, e serem condenados os donos das tropas oucanoas em 6 oitavas de ouro para a Câmara26.

3º. Sendo queixa e universal escândalo de todas as minas, e principal-mente destas, que desde o seu princípio até o presente, com a falta deinteira administração de justiça, se têm desaforados as negras, assim forras,como cativas, a trazerem vendas pelas lavras à pilhagem dos jornais dosnegros, e a maior parte usurpados a seus senhores; e como hajam homensbrancos que deste modo de vida se valem, mandando negras com ridiculari-as comestíveis a vender pelas lavras, e outros ainda sem isso as mandam abuscar o jornal, e quer de um modo quer de outro, além do dano comum einfalível, regularmente é por meio pecaminoso, e escandaloso; para se porcobro com todas as forças neste absurdo: Acordaram que todas as negras,cativa ou forra, mulata ou índia que se acharem em lavras ou faisqueirasgerais, sem estarem ocupadas no exercício de minerar, ainda que senão achemcom instrumentos de tavernas e comestíveis, porque regularmente os es-condem no mato, seja presa e condenada em 30 dias de cadeia e 6 oitavasde condenação para as despesas da Câmara, e demais no prêmio que setaxar ao rendeiro do ver; a cuja obrigação e contrato incube esta inspeção ecorreição [danificado] da venda, ou baiuca [danificado] queimada e aquelesquebrados, e o comestivo, ou bebidas que se me[danificado] rendeiro do ver,pela segunda vez, terá as penas acima referidas em dobro, e assim nas mais.

4º. Também não é de pouco escândalo e dano, a soltura com que ospretos usam de porretes e outros semelhantes instrumentos ofensivos; peloque: Acordaram que todo o preto, mulato ou índio, ou livre, ou cativo que de

25 Local para quarentena, onde se eram estabelecidas as pessoas suspeitas de contágio.

26 Quarentena é o isolamento imposto a portadores ou supostos portadores de doenças contagiosas. Aregulamentação do estado de quarentena foi uma das medidas adotadas visando preservar a saúde dapopulação. A casa redonda era um ponto de parada militar localizada nas proximidades do rio Corumbi-ara, na repartição do Mato Grosso. O contato com o Grão Pará intensificou-se em 1755, após a fundaçãoda Companhia do Grão Pará e Maranhão. Quanto às relações com a Vila do Cuiabá também eramintensas. Os Estatutos já sinalizavam para o perigo que os contatos poderiam gerar. Desse modo,protegia-se a vila vigiando os caminhos de acesso. Ver Nauk, Maria de Jesus. Saúde e doença: práticasde cura no centro da América do Sul (1727-1808). Cuiabá, 2001. Dissertação (Mestrado em História) –Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso.