MARCHAS FEMINISTAS: ONDE ESTÃO AS MULHERES? · 2019. 5. 23. · Marchas feministas e a necessidade...

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MARCHAS FEMINISTAS: ONDE ESTÃO AS MULHERES? Juliane dos Santos Porto (Universidade Federal do Pampa) Dulce Mari da Silva Voss (Universidade Federal do Pampa) [email protected] Resumo O presente trabalho busca problematizar as marchas feministas realizadas na cidade de Bagé, Rio Grande do Sul, em específico o ato de oito de maio, data em que se “comemora” o Dia Internacional da Mulher. Iremos observar os objetivos, lacunas e conquistas desse ato. Além disso buscamos refletir acerca do discurso em torno de um sujeito mulher como prática insuficiente para abarcar a multiplicidade de existências femininas possíveis. Buscamos dar visibilidade a mulheres cujas pautas não são atendidas nessas mobilizações. Neste texto associaremos nossas inquietações aos estudos foucaultianos no sentido de pesquisar as práticas discursivas e não-discursivas envolvidas nesses processos de produção de subjetividades. E, também, às teorizações de Judith Butler para pensarmos o feminismo como acontecimento político, cultural, social. Palavras-chave: Feminismos; Discursos; Mulheres. Introdução Buscamos com este estudo problematizar as ações organizadas por grupos de mulheres na cidade de Bagé, Rio Grande do Sul, partindo das percepções em torno do acontecimento de oito de março deste ano que marcou o Dia Internacional da Mulher em âmbito local. Refletimos aqui sobre os discursos contidos no ato e a produção de subjetividades decorrentes das práticas acontecidas e que nos levam a suspeitar da possibilidade de representação em relação à multiplicidade de existências femininas

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MARCHAS FEMINISTAS: ONDE ESTÃO AS MULHERES?

Juliane dos Santos Porto (Universidade Federal do Pampa)

Dulce Mari da Silva Voss (Universidade Federal do Pampa)

[email protected]

Resumo

O presente trabalho busca problematizar as marchas feministas realizadas na cidade de Bagé, Rio Grande do Sul, em específico o ato de oito de maio, data em que se “comemora” o Dia Internacional da Mulher. Iremos observar os objetivos, lacunas e conquistas desse ato. Além disso buscamos refletir acerca do discurso em torno de um sujeito mulher como prática insuficiente para abarcar a multiplicidade de existências femininas possíveis. Buscamos dar visibilidade a mulheres cujas pautas não são atendidas nessas mobilizações. Neste texto associaremos nossas inquietações aos estudos foucaultianos no sentido de pesquisar as práticas discursivas e não-discursivas envolvidas nesses processos de produção de subjetividades. E, também, às teorizações de Judith Butler para pensarmos o feminismo como acontecimento político, cultural, social. Palavras-chave: Feminismos; Discursos; Mulheres.

Introdução

Buscamos com este estudo problematizar as ações organizadas por grupos

de mulheres na cidade de Bagé, Rio Grande do Sul, partindo das percepções em

torno do acontecimento de oito de março deste ano que marcou o Dia Internacional

da Mulher em âmbito local.

Refletimos aqui sobre os discursos contidos no ato e a produção de

subjetividades decorrentes das práticas acontecidas e que nos levam a suspeitar da

possibilidade de representação em relação à multiplicidade de existências femininas

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possíveis e ali ausentes. Com isso, queremos pensar sobre as carências, lacunas e

contradições, observadas nessa marcha, analisando ausências de pautas locais e

de mulheres outras.

Para isso, fundamentamos esse estudo nos conceitos de discurso em

Foucault, sujeito do feminismo em Butler e multiplicidade em Deleuze e Guattari,

como dispositivos que nos movem a pensar a complexidade dos modos de

existência das mulheres e que nos remete a necessidade de abertura à atualização

dos saberes e poderes engendrados nas lutas feministas locais. Marchas feministas e a necessidade de um feminismo plural

A história do movimento feminista é marcada por lutas, conquistas e

frustrações. Uma das principais ações do movimento foi o “sufragismo” que surgiu

com a reivindicação do direito das mulheres ao voto. Esse movimento caracterizado

como “primeira onda feminista” já se mostrava pouco plural e múltiplo. Ele tinha

como sujeito central apenas as mulheres brancas e de classe média.

Já na denominada “segunda onda” começam as teorizações acerca da

problemática dos conceitos de gênero. Levando a discussão para um lado mais

teórico e aprofundado, porém pautado na ideia binária de sexo e gênero, um

pensamento ligado ao pensamento beauvoiriano.

Partindo da inconformidade com “os tradicionais arranjos sociais e políticos,

às grandes teorias universais, ao vazio formalismo acadêmico, à discriminação, à

segregação e ao silenciamento”, emerge o movimento feminista contemporâneo

“expressando-se não apenas através de grupos de conscientização, marchas e

protestos públicos, mas também através de livros, jornais e revistas” (LOURO, 1997,

p. 15).

Perseguindo a vertente do chamado “pós-feminismo”, que leva em

consideração teorizações contemporâneas acerca das discussões sobre sexo,

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gênero, corpo e sexualidade, observamos que “em sua essência a teoria feminista

tem presumido que existe uma identidade definida” (BUTLER, 2016, p. 17).

Assim, como nos alerta Foucault (1996) os discursos produzem os sujeitos de

que falam. E, podemos dizer, também aqueles sobre os quais calam. Ao fazer tal

afirmação queremos problematizar materialidades discursivas ditas e não-ditas

acerca do ser mulher que se torna verdade como o que observamos no episódio da

marcha de oito de março em Bagé. Um grupo de mulheres e homens reuniu-se

numa praça central da cidade, onde tradicionalmente acontecem as movimentações

reivindicatórias e atos cívicos, em um dia de chuva forte, com temperaturas baixas e

formou um círculo fechado das pessoas que ali estavam. O grupo conversava entre

si, alguns tinham em mãos panfletos feitos por partidos políticos. Esse material

denunciava as perdas trabalhistas causadas pela reforma da previdência em

tramitação no Congresso Nacional Brasileiro. O outro panfleto continha um texto

sobre a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco que foi assassinada o ano

passado, crime que tem movido diferentes setores sociais a contestarem as

circunstâncias e as razões do fato ocorrido.

O grupo não interagiu com as mulheres que ali passavam, mulheres que

transitavam pelas ruas ao redor da praça. Elas seguiam seu fluxo sem serem

minimamente interpeladas pelo grupo que estava reunido na praça para representá-

las. Se, como salienta Butler (2016, p. 19) “o sujeito do feminismo é em si mesmo

uma formação discursiva e efeito de uma dada versão da política representacional”,

consideramos que o sujeito feminista constituído na praça representava, na verdade,

uma ausência. Ali não estavam mulheres das periferias da cidade que não possuem

condições de sair de casa à noite, que tem filhos pequenos, enfim, aquelas que

ocupam outros espaços e vivem outras vidas. O ato, desde sua organização, não

envolveu essas outras mulheres.

Vimos assim que o ato de oito de maio mostrou um grande distanciamento

entre aquelas que dizem representar as mulheres e as outras mulheres que ali não

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estavam. Desse modo, o sujeito do feminismo constituído no ato do oito de maio no

contexto local constitui uma subjetividade que obscurece a multiplicidade de

existências de diferentes mulheres que vivem e ocupam outros espaços.

Pensamos numa inversão dessa ordem discursiva e na possibilidade de

construção de um feminismo plural, rejeitando verdades absolutas e pensamentos

dicotômicos. Optamos por mover-nos em direção ao pensamento de Deleuze e

Guattari (2001, p. 22) que afirmam “as multiplicidades são rizomáticas”. Elas

possibilitam entender os diferentes processos de subjetivação de mulheres que

acontecem em múltiplos espaços e tempos. Multiplicidades de devires que “se

definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga, ou desterritorialização segundo

a qual elas mudam de natureza ao se conectarem com as outras” (DELEUZE;

GUATTARI, 2001, p. 25). Em Deleuze e Guattari encontramos suporte para pensar a subversão da

ordem discursiva de um ser mulher majoritário em direção à percepção das

multiplicidades dos modos como mulheres produzem suas existências nos diferentes

territórios que habitam. Considerações finais

Percebemos que o ato de oito de maio, uma prática que marca as lutas

feministas na cidade de Bagé, não possui pautas locais. Não queremos aqui negar a

importância de fazer proliferar discursos da ordem macropolítica como a reforma da

previdência e os danos causados inclusive às mulheres trabalhadoras; tão pouco

negar a legitimidade da reivindicação por justiça no caso da morte da vereadora

Marielle Franco, enunciados, proferidos naquele momento.

Falta conexão entre os campos macro e o micropolíticos no cenário local.

Persiste uma visão unilateral nas práticas feministas que acontecem como

representação política de uma causa apartada das existências cotidianas. Visão que

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delimita um “ser” mulher generalizante, uma repetição do mesmo. E as mulheres que

estão fora dessa ordem, as que passam ao lado da roda feita no ato do dia oito de

março, não são incorporadas nessa ação política da cidade de Bagé.

Tal cenário deixa em aberto a possibilidade de desenhar cartografias que

abram linhas de fuga do majoritário e que se expandam em outras direções,

estabelecendo relações entre esse plano e as vidas cotidianas de mulheres que

acontecem em espaços micropolíticos, como as que vivem nos bairros e nas vilas de

nossa cidade e que enfrentam inúmeras carências sociais e culturais de trabalho,

saúde, educação, lazer, o que as leva a forjar suas próprias estratégias de luta. Esse

é o plano que buscamos compor com nossa pesquisa. Referências BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. 11º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Tradução Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 2º ed. São Paulo: Editora 34, 2011. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Aula inaugural no College d’e France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996. LOURO, G. L. Gênero Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.