Maria a Blaz Vasques Amorim

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL NO INTERIOR... DITADURA MILITAR E ENSINO SUPERIOR (FAFI/UNESP) Memórias Sobre a Intervenção na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto. Maria Aparecida Blaz Vasques Amorim São Paulo - 2009.

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Muito bom, recomendo

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

NO INTERIOR... DITADURA MILITAR E ENSINO SUPERIOR (FAFI/UNESP)

Memórias Sobre a Intervenção na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto.

Maria Aparecida Blaz Vasques Amorim

São Paulo - 2009.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

NO INTERIOR... DITADURA MILITAR E ENSINO SUPERIOR (FAFI/UNESP)

Memórias Sobre a Intervenção na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto.

Maria Aparecida Blaz Vasques Amorim

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História Social.

Orientador: Professor José Carlos Sebe Bom Meihy

São Paulo, junho de 2009.

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Folha de Aprovação

Maria Aparecida Blaz Vasques Amorim

NO INTERIOR... DITADURA MILITAR E ENSINO SUPERIOR (FAFI/UNESP)

Memórias Sobre a Intervenção na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto.

São Paulo, junho de 2009.

_______________________________________________

Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy

_______________________________________________

Nome:

______________________________________________

Nome:

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Queria voltar ao que nos pertence

com um poema

na medida do impossível.

(Mário Quintana)

A meu pai, Antonio Blaz Durão,

por tudo... saudade.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus pais que estiveram sempre presentes,

mesmo quando ausentes.

Ao meu marido, Moacir, pelo companheirismo, força e apoio, sempre. Aos

meus filhos Mayra, Melina e Philipe pelo auxílio contínuo e por confiarem em mim

mais que eu mesma. Ao Rondinelli, pela insistência.

Ao Professor José Carlos Sebe Bom Meihy, meu orientador, pela acolhida, pelo

acompanhamento constante, por tudo que me ensinou, com paciência, carinho e a

humildade característica dos grandes mestres.

Aos amigos do NEHO, onde pude praticar o trabalho coletivo.

A Ricardo, Juniele e Suzana e Fernando...o mundo é melhor porque eles

existem.

A FAPESP pela bolsa concedida, que auxiliou em muito o desenvolvimento

deste trabalho.

Agradeço, profundamente meus colaboradores, que me receberam e

partilharam comigo parte tão importante de suas vidas.

Aos leitores atentos que gentilmente aceitaram participar da minha banca de

qualificação, Professora Sara Albieri e Professor Antonio Rago Filho. A outros

mestres que colaboraram com dicas, sugestões e apoio:Professora Vera Lúcia Vieira,

Professora Yvone Dias Avelino e Professor Ramon Américo Vasques.

A Newton Ramos de Oliveira pelo auxílio na busca pelos meus colaboradores.

Ao Rodrigo, do Diário da Região, e à equipe do jornal, pelo apoio e acolhida.

Aos meus irmãos Marco Aurélio, Cecilia e meus sobrinhos Larissa, Bruna, Ana

Júlia, Caroline e Vinicius pelo amor e momentos de alegria.

Aos funcionários do Departamento de História e do Programa de Pós-

Graduação em História Social da USP minha eterna gratidão.

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Gigante de Espuma

Ainda ontem

Estive com o Brasil nas mãos.

Era um mapa recortado,

Feito de espuma de náilon.

Um mapa branco,

Macio, flexível,

Sem divisas,

Sem rios,

Sem montes,

Sem vales,

Sem gente,

Sem nada,

Uma mapa apenas.

Era o modelo de um Brasil sem fome,

Sem filosfia,

Sem religião,

Sem política,

Sem preconceitos,

Sem submissão,

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Sem homens.

Era um Brasil irreal.

Olhei-o bem:

De leste a oeste,

De norte a sul,

De espaço a espaço.

E acompanhei as curvas do contorno,

Na branca e leve espuma

Do “Gigante Adormecido”,

Em seu lendário berço esplêndido.

“Gigante Adormecido”!...

Gigante desmaiado, pensei

Gigante desacordado há não sei quanto.

Berço enfermo, roubado diariamente.

Monstro afogado no mar,

Asfixiado no ar,

Onde cambaleia, ainda faminta,

A grande família cristã

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Com sua ideologia vaga.

Pátria amada da pobreza,

Circo dos milionários,

Mãe dos que vivem com fome,

Mísera serva de alguns homens.

Ah! Que triste realidade

Vi naquele mapa,

Naquele Brasil!

Os poros gasosos de espuma alva,

Eram como se fossem túmulos,

Ao invés de bolhas de sabão.

Túmulos que não bastariam

Para os anjinhos que morrem todo dia,

Bolhas que dariam de sobra

Para os que sobrevivem.

E eu que pensava

Num Brasil de aço,

Num Brasil compacto,

Num Brasil de amor,

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Num Brasil cheio de amanhãs.

Tive vontade de estraçalhar

Aquele molde elástico,

Torsível,

Instável,

Que ainda ontem,

Segurei nas mãos.

Gigante de Espuma, de Edson Guiducci

in Desova Poética publicada pelo GRUTA.

(1962).

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10 

 

RESUMO

A 435 km da cidade de São Paulo, longe dos grandes centros, em São José do

Rio Preto, o Golpe Militar de 1964 também se manifestou. No dia 1º de Abril de 1964,

os interventores estavam a postos dentro da Faculdade Isolada de São José do Rio

Preto, hoje UNESP. Isso porque desde o final dos anos 1950, uma intensa

movimentação cultural acontecia. De lá partiam anseios reais e objetivos com relação à

educação pública de qualidade, alfabetização de adultos, reforma universitária e

conscientização do povo através da arte.

Os responsáveis por esses movimentos eram os integrantes do grupo de teatro

amador GRUTA, criado pelo Professor Orestes Nigro, que surgiu como uma

alternativa cultural aos estudantes.Estabelecendo intercâmbio com artistas

consagrados, se apresentava nas cidades da região e em outras universidades

Isoladas do interior paulista.

As atividades passaram a se articular com propostas políticas de esquerda,

juntando-se, por exemplo, ao MPC (Movimento Popular de Cultura) que havia sido

fundado pelo Professor Wilheim Heimer, alemão, docente da faculdade.

Com a intervenção, professores e alunos envolvidos nesses movimentos foram

presos. O presente trabalho, valendo-se do recurso de História Oral, busca registrar,

estabelecer e analisar narrativas dos sujeitos que atuaram como educadores e alunos

deste grupo, desejando contribuir para a compreensão de suas experiências e dos

resultados dessa intervenção para a educação superior brasileira.

Palavras Chaves: Ditadura Militar; FAFI; São José do Rio Preto; História Oral;

Universidade

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11 

 

ABSTRACT

Far 435 kilometers from São Paulo, far away from big cities, in São José do Rio

Preto, the Military Coup of 1964 in Brazil was demonstrated. On april , 1rst, 1964, the

interventor were inside the University of São José do Rio Preto, today UNESP. This

happens because since the 1950 years, an intense cultural movement was on course.

There were a real and objective desire for a high quality public education, university

reform and make people aware through the art.

Those whom were responsible for all of this were teachers and students from

a non professional theater group created by Professor Orestes Nigro, called GRUTA,

and its was supposed to be a cultural alternative for the students. Anyway a intense

exchange started with a lot of established artist and its group start to present the

plays in other cities and other universities.

The Theater group activities started to joint the proposal with left-wing

groups, getting together, for example, to the MPC ( Popular Cultural Movement) that

was created by Professor Wilheim Heimer, germany, a university teacher.

With the Military Coup teachers and students were put in jail. This assignment,

using Oral History searchs to register, to establish and to analyze the subjects oral

narratives of this group, teachers and students, wishing to contribute to understand

their experiences and the results of this intervine for the superior education on Brazil.

Key-Words: Military Coup; FAFI; São José do Rio Preto; Oral History;

University

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12 

 

SUMÁRIO

Apresentação………………………………………………………………………..............14

Parte I

História do Projeto………………………………………………………………….........19

Parte II

História, Memória, Identidade e História Oral..........................................................26

Parte III

O Cenário Histórico e a questão Político-Cultural....................................................36

Historiografia.............................................................................................................57

Parte IV

Sobre o Ensino Superior no Século XX.......................................................................65

No Interior.................................................................................................................66

Parte V – Entrevistas

Orestes Nigro.................................................................................................................77

Juca de Oliveira........................................................................................................87

Franz Wilheim Heimer.............................................................................................93

Celso Abade Mourão.................................................................................................98

Hélio Leite de Barros..................................................................................................107

Anoar Aiex..................................................................................................................115

Sara Rottemberg.......................................................................................................117

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13 

 

Nilce Aparecida Lodi.......................................................................................................125

Grigor Vartanian...........................................................................................................131

Maria de Lourdes Cápua............................................................................................136

Edson Guiducci......................................................................................................140

Luiz Dino Viszotto.....................................................................................................143

Coronel Antonio Ribeiro de Godói...........................................................................148

Análise das Entrevistas...............................................................................................152

Parte VI

Considerações Finais...............................................................................................202

Fontes Orais e Escritas..............................................................................................209

Bibliografia.................................................................................................................210

Anexos

Anexo 1.....................................................................................................................217

Anexo 2.......................................................................................................................224

Anexo 3.........................................................................................................................232

Anexo 4......................................................................................................................241

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14 

 

APRESENTAÇÃO

Houve um tempo, diz-nos Roberto Schwarz, em que o país estava

irreconhecivelmente inteligente. “Política externa independente”, “reformas

estruturais”, “libertação nacional”, “combate ao imperialismo e ao latifúndio”: um

novo vocabulário, inegavelmente avançado para uma sociedade marcada pelo

autoritarismo, ganhava a cena, expressando um momento de intensa movimentação

na vida brasileira. (SCHWARZ,R.1992)

O presente trabalho se insere neste período de tempo destacado por Schwarz

que abarca as décadas 1950 e 1960.

O objetivo do estudo foi, em primeiro lugar, observar as experiências de vida

dos indivíduos que trabalhavam, estudavam e participavam de movimentos culturais

na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, no interior do

Estado de São Paulo, e em segundo, traçar a trajetória de tal instituição tentando

entender os motivos que a levaram a ser a primeira faculdade no país a sofrer a

intervenção após o Golpe Militar1.

A História Oral Híbrida2 foi o caminho que abracei, pois havia profusa

documentação escrita e iconográfica que complementava tais histórias. Analisando

tais fontes, entendi que se fazia necessário ouvir também àqueles, que, no interior de

São Paulo e da Faculdade, se colocaram do lado dos que perpetraram o Golpe de 1964.

                                                            1 Os trabalhos historiográficos sobre golpe civil‐militar de 1964 são numerosos, destacando‐se os estudos de Otávio  Ianni (1971), Maria da Conceição Tavares (1975), Francisco de Oliveira (1975), Moniz Bandeira (1978), René  Dreyfus  (1981),  Florestan  Fernandes  (1981),  Caio  Navarro  de  Toledo  (1981),  Heloisa  Starling  (1986), Wanderley Guilherme dos Santos (1986), Angelina Figueiredo (1993), Daniel Aarão Reis (2002), Jorge Ferreira (2003), Carlos Fico (2004). O tema foi amplamente debatido no ano de 2004 em seminários sobre os 40 anos do golpe militar. Foi publicada, nesta ocasião, a obra O Golpe e a Ditadura Militar: 40 anos depois organizada por Daniel Aarão Reis Filho, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta. 

 2  A  História  Oral  pode  ser  “pura”  ou  “híbrida”.  Dizendo  de  outra  forma  um  projeto  tanto  pode  ser, simplesmente, de constituição de um acervo – banco de histórias ou proposta em que as vozes dos narradores se cruzam entre si de maneira a promover uma discussão polifônica – ou, também, pode fazer as entrevistas dialogarem com outros tipos de fontes ou documentos.(HOLLANDA. MEIHY. 2008, p.128) 

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Cada entrevista realizada, cada documento escrito analisado, fotografia ou

artigo de jornal encontrado, trazia algo de novo e invariavelmente levava à trajetória

da FAFI, como a Faculdade era chamada entrevistados-colaboradores3 : professores,

alunos e funcionários presos ou demitidos sumariamente, assim como àqueles que

provocaram tais penalidades, por ocorrência do Golpe Militar de 1964, em São José do

Rio Preto.

As entrevistas revelaram convergências e divergências vividas pelos

indivíduos que compunham o quadro docente e discente da FAFI, assim como da

sociedade riopretense e das autoridades que eram responsáveis pela lei, ordem e

administração da cidade.

O Golpe de 1964 ocorreu no dia 31 de março, e em seguida, teve início uma

verdadeira caçada a segmentos da sociedade que apoiavam o ex-presidente João

Goulart, bem como a todos aqueles que possuíam ligações com o governo de Jango

ou estavam ligados a movimentos populares e de educação. Assim que as Forças

Armadas tomaram o poder, iniciaram a Operação Limpeza, que tinha como objetivo

“limpar” os quartéis e a sociedade eliminando todos os elementos considerados

subversivos e que se posicionassem contra o regime.

A perseguição não se restringiu aos militares, ampliando-se para outros

setores da sociedade, em especial nos grandes centros do país, como Rio de Janeiro,

São Paulo e, também, no Nordeste. A FAFI4 de São José do Rio Preto, as nove horas e

trinta minutos, do dia 1º. de abril de 1964, sofreu intervenção.

A FAFI abrangia uma pluralidade de campos do conhecimento humano e

desempenhou uma diversidade ampla de funções educacionais e culturais. A

referida Faculdade nasceu num ambiente de choques de idéias, de lutas, dificuldades

e incompreensões, mas não se furtou aos papéis para os quais foi criada: a difusão do

saber, a elaboração da pesquisa e a produção intelectual.

                                                            3 Colaborador é o  termo utilizado por Meihy para a pessoa que narra sua história, e é  importante na definição do relacionamento  entre  entrevistador  e  entrevistado.  Sobretudo,  é  fundamental  porque  estabelece  uma  relação  de compromisso entre as partes.  4 Desde sua estadualização a FAFI passou a se chamar Instituto Isolado de Ensino Superior, porém essa nomenclatura foi, e é, pouco usada. 

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Após a intervenção, a FAFI lentamente foi sendo convertida em diverso tipo

de instituição e a transformação final aconteceu em 1976 quando recebeu a

denominação de IBILCE/UNESP, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita

Filho” , tornando-se um campus das faculdades que integram a Universidade.

Quando da unificação, 14 dos chamados Institutos Isolados de Ensino Superior do

Estado de São Paulo faziam parte da UNESP. Segundo Anna Maria Martinez

Correa(2006), a criação desses institutos isolados ocorreu de maneira desordenada,

sem que houvesse um planejamento efetivo.

Hoje, os institutos e faculdades que fazem parte da UNESP estão presentes em

23 cidades do interior paulista, abrigando mais de 32 mil alunos de graduação e 9,6

mil de pós-graduação.(CORREA.2006)

Segundo informações divulgadas pela UNESP: “A UNESP foi criada em 1976,

com a reunião dos antigos institutos isolados de ensino superior, instalados pelo

poder público, a parir da década de 20, em cidades com elevado grau de

desenvolvimento”.

A historiografia sobre a Ditadura Militar no Brasil é quase nula quando se fala

do interior do Estado de São Paulo. Há duas teses, uma do Professor Newton Ramos

de Oliveira e outra da Professora Dóris Accyoli e Silva, dois livros: o Livro Negro da

USP que faz uma breve referência aos acontecimentos em São José do Rio Preto

ocasionados pelo Golpe Militar e outro organizado pela Professora Anna Maria

Martinez Correa que trata da trajetória da UNESP e um boletim, “Sapere Audi”,

elaborado pela Professora Nilce Lodi, que apresenta, em tópicos, as datas mais

importantes para a instituição.

Por considerar importante que as lacunas historiográficas sejam preenchidas e

pelo fato de eu mesma ser do interior e ter vivido a realidade, ainda que

indiretamente, da Ditadura Militar, vi-me diante do desafio de compreender as

relações entre indivíduos que compunham a sociedade riopreetense, a FAFI e que se

refletiram na trajetória da Faculdade e na intervenção sofrida pela instituição em

Abril de 1964.

Esta dissertação foi organizada da seguinte maneira: “História do Projeto” que

trata de minha trajetória de vida e pesquisa, das etapas do projeto, de como realizei

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17 

 

as entrevistas com os colaboradores, como busquei fontes documentais escritas,

iconográficas e como as apresento nesse texto. Assim, espero conduzir o leitor para o

interior, ou seja, para a atmosfera da pesquisa. A segunda parte engloba uma

discussão sobre “História, Memória e História Oral” e apresenta reflexões obre

História Oral, Memória e Identidade que são as questões teóricas metodológicas

pelas quais optei. Na terceira parte apresento a questão político-cultural e o cenário

histórico do Brasil e do exterior nos períodos anterior e subsequente ao Golpe de

1964. Ainda nesse capítulo apresento a historiografia sobre a Ditadura Militar

utilizada nesse trabalho. Na quarta parte ofereço uma breve história do ensino

superior no Brasil e apresento a história de São José do Rio Preto e da FAFI. No

quinto capítulo apresento as entrevistas dos colaboradores e procedo à análise e o

cotejamento das mesmas com as outras fontes que compõem o meu Corpus

Documental . Na última parte estão as considerações finais.

Dos anexos constam fotografias, artigos de jornais e elementos do processo

militar e que julguei importantes estarem presentes neste trabalho para que haja uma

aproximação maior entre o leitor e a história narrada.

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PARTE I

Enquanto as histórias

Começam enquanto

O instante seguinte

Se abate sobre nosso

próprio

Coração.

(Desova Poética/ José Aluísio Reis de Andrade)

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HISTÓRIA DO PROJETO

Retraçando a trajetória seguida por esse trabalho, de sua concepção ao

momento de seu arremate posso dizer que ela está profundamente ligada ao prazer

de investigar e de ouvir histórias, fato comum aos oriundos do interior de São Paulo,

como eu, onde crescem ouvindo “causos.”

Devo dizer que pesquisar sobre episódios ocorridos no interior de São Paulo

significa, muito mais que um trabalho de pesquisa, um reencontro com minhas

origens, com pessoas que fizeram parte da minha vida num período tão importante

como a adolescência. Durante a jornada para o desenvolvimento desse trabalho

houve muitos reencontros e uma doce nostalgia insiste em me fazer companhia até o

momento atual.

Nesse caminho houve obstáculos, escolhas a serem feitas, lágrimas quando a

emoção do colaborador me contagiava e algumas incertezas. Pude contar, sempre,

com o Professor José Carlos Sebe Bom Meihy que me acompanhou sem hesitação no

processo de crescimento intelectual e pessoal que me transformaram numa pessoa,

senão mais sábia, mais compassiva.

Nasci e fui criada numa cidade pequena, próxima a São José do Rio Preto,

chamada Monte Aprazível. Estava no grupo escolar quando conheci um menino

loirinho e inteligente cujo nome era Ricardo Nigro. Crescemos juntos, sua mãe foi

nossa professora de Francês no Ginásio e no Colegial. Em torno do seu pai, cujo

nome era Orestes Nigro, havia uma aura de mistério. Homem culto, fluente em

Francês, sobrevivia dando aulas na Aliança Francesa, que ficava em um porão num

dos casarões antigos da cidade.

Costumava ouvir que o Prof. Orestes era comunista e por isso as pessoas

mais velhas do local costumavam criticá-lo, porém os jovens gostavam muito de sua

companhia. Eu não sabia o que era ser comunista e em minha família essa palavra

era proibida.

Page 20: Maria a Blaz Vasques Amorim

20 

 

Meus avós paternos e maternos eram espanhóis, de partidos políticos

identificados com a direita,5 portanto, em casa jamais conseguiria explicações para

ela. A primeira definição que assoalhei para essa palavra veio de um professor de

História, por volta de 1969, quando certa manhã ao chegar à escola, me deparei com

vários cartazes, cobertos de fotografias em preto e branco e no primeiro plano, escrito

com letras garrafais estava: terroristas procurados, logo abaixo: ajude a proteger sua

vida e a de seus familiares, e no final : avise a polícia.

Durante a aula de História o professor fez questão de dizer que aquelas

pessoas eram perigosas, que não acreditavam em Deus e que pregavam o fim da

família e da ordem. Tais cartazes ficaram gravados em minha memória porque as

pessoas neles retratadas eram muito parecidas com pessoas “comuns”. Não

conseguia enxergar onde estava o perigo, e isso semeou dúvidas não dissipadas

sobre o comunismo, que só foram satisfeitas muito tempo depois.

Há alguns anos li um estudo sobre o Professor Mauricio Traugtenberg que

falava sobre a intervenção da FAFI em 1964 e da prisão de alguns alunos e

professores daquela instituição, entre eles o Professor Orestes Nigro.

Quando ingressei no programa de Lato Sensu da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo surgiu a idéia de estudar especificamente a intervenção na

FAFI. Para desenvolver o trabalho procurei a UNESP de São José do Rio Preto onde

contei com a atenção do Prof. Ceron, hoje diretor da Universidade, de sua secretária

Mara e do ex-diretor Prof. Jhonny Rizzieri que permitiram que eu consultasse e

fizesse cópias do Processo Militar, composto por 3.600 páginas, instaurado contra

professores e alunos da FAFI por ocasião da intervenção ocorrida em 1964.

Decidi, então procurar as pessoas relacionadas naquele processo militar na

condição de acusadas e ouvir delas a história da intervenção. Posteriormente,

resolvi ouvir também aqueles que as haviam acusado.

                                                            5 Ser de esquerda pressupunha uma opção  ideológica que, em termos político‐práticos, equivalia a estar do  lado do socialismo contra o capitalismo, ou, em termos teórico‐políticos, priorizar a igualdade em relação à liberdade. Ser de direita era o contrário. (Bobbio, 1994). 

Page 21: Maria a Blaz Vasques Amorim

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Localizei inicialmente o Prof. Orestes Nigro que foi minha entrevista “ponto

zero”6. A partir dele me aproximei de outros possíveis colaboradores.

Quando optei pela História Oral o Professor Sebe me fez três perguntas,

segundo ele, fundamentais para quem faz a opção por um projeto de História Oral:

História Oral de quem? Como? E por quê?

A primeira vem sendo respondida desde a apresentação desse trabalho.

Pesquisa-se um grupo de pessoas que faziam parte da FAFI, em várias instâncias e

da trajetória da instituição durante os anos de 1955 a 1964. As entrevistas de História

Oral foram dimanadas do seguinte modo:

a) Localização dos professores que haviam sido presos ou sumariamente

demitidos da Faculdade por ocasião do Golpe Militar.

b) Localização das pessoas que faziam parte do corpo da Faculdade e que

eram a favor do Golpe.

c) As pessoas que fazem parte das alternativas a e b compõem o que

chamamos em História Oral, de Colônia. Neste caso pessoas envolvidas com os

acontecimentos decorrentes do Golpe.

d) Assim , formaram-se as redes. Redes são subdivisões de Colônia que

indicam os critérios adotados para a escolha das pessoas a serem entrevistadas, neste

caso, o envolvimento de cada uma com a FAFI nos anos de 1955 a 1964.

Nesta pesquisa trabalhei com cinco redes, uma constituída por professores que

foram presos, outra por professores que foram demitidos, outra por alunos que

foram presos, ainda uma com professores e alunos que estavam de acordo com o

Golpe e a última por pessoas que não eram parte estabelecida da FAFI, mas que por

alguma razão participaram de sua formação.

                                                            6 Chama‐se assim o primeiro entrevistado de um projeto que deve ser o sujeito que conhece a história do grupo com o qual se pretende trabalhar ou com quem se deseja fazer a entrevista central.(MEIHY.1996) 

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Algumas peculiaridades no trabalho: Alguns professores já são falecidos* e

devo à Professora Nilce Aparecida Lodi a entrevista que realizou com um deles em

1976 e gentilmente cedeu-me, a qual decidi utilizar pela sua importância. Outros,

como os Professores Anoar Aiex e Franz Wilheim Heimer, estão fora do país e

somente consegui entrevistá-los via internet7, e outros ainda não querem lembrar.

Respeitei suas vontades.

Entrevistei ainda o ator e escritor Juca de Oliveira, que ajudou na criação do

Grupo de Teatro Amador, o GRUTA e participou ativamente dos movimentos

culturais da Faculdade, mesmo não sendo membro do quadro discente ou docente da

mesma. Todas as entrevistas foram transcriadas, segundo a linha de História Oral

praticada pelo Neho8. Abaixo apresento uma tabela com os entrevistados, os lugares

onde moram e quem foi o entrevistador:

Nome Origem Entrevistador

Orestes Nigro São Paulo Maria Aparecida

Sara Rottemberg São Paulo Maria Aparecida

Franz Wilhelm Heimer Portugal Maria Aparecida

Maria de Lourdes Cápua São Paulo Maria Aparecida

Hélio Leite de Barros São Paulo Maria Aparecida

Anoar Aiex Estados Unidos Maria Aparecida

Luiz Dino Vizotto São José do Rio Preto Maria Aparecida

Edson Guiducci Monte Aprazível Maria Aparecia

Grigor Vartanian São José do Rio Preto Maria Aparecida

Nilce Aparecida Lodi São José do Rio Preto Maria Aparecida

Juca de Oliveira São Paulo Maria Aparecida

Celso Abade Mourão* São José do Rio Preto Nilce Lodi

Coronel José Ribeiro Godói São José do Rio Preto Maria Aparecida

                                                            7   Há na internet uma ferramenta chamada skype, que permite uma conversa a viva voz. 8   Núcleo de Estudos em História Oral da USP 

Page 23: Maria a Blaz Vasques Amorim

23 

 

À medida que ia encontrando os colaboradores recebia inúmeras fotos, jornais,

livros de poesia, letras de paródias, que juntamente com o processo militar e as

entrevistas compõem o meu Corpus Documental.

Analisando a documentação obtida optei por fazer uma distinção priorizando

as narrativas. Ao estabelecer essa primazia firmo minha posição por uma história

subjetiva na construção da memória de alguns sujeitos que fizeram parte do processo

de intervenção na FAFI, seja como vencedores ou vencidos, isto porque considero

que a memória construída é coletiva e, portanto, todas as narrativas são importantes

para o trabalho.

A opção de priorizar as narrativas conduz a uma interpretação que parte das

entrevistas e dialoga com outras preocupações, num movimento “de dentro” para

“fora”.

Este trabalho também se emoldura no que chamamos de História Oral

Temática9, porém combina elementos de História Oral de Vida10. Não empreguei

questionários, foram conversas abertas.

Segundo Meihy:

“ Há projetos temáticos que combinam algo de história

oral de vida. Nesses casos, o que se busca é o enquadramento

de dados objetivos do entrevistado com as informações

colhidas. Essa forma de história oral tem sido muito apreciada

porque a informação ao ser mesclada à situações vivenciais,

ganha mais vivacidade e sugere características do narrador”

(2002. p.148)

Considero que a opção pela História Oral marca, também, minha presença nesse

texto. Não fosse pelo fato de conhecer desde a infância a maior parte dos colaboradores, fui

eu quem ouviu suas histórias, dando liberdade para que eles se expressassem com queriam,

refletissem, comentassem e ficassem em silêncio quando as lembranças doíam muito.

Imagino que essa liberdade tenha sido, por vezes, cerceada por minha presença, uma                                                             9  História Oral temática é o recurso que busca analisar um determinado evento ou situação a ser esclarecida segundo o estabelecimento de questionários orientados para fins específicos.(MEIHY,1996) 10 História Oral de  vida  tem  como meta  retraçar os  caminhos de  vivências pessoais que,  contudo  se explicam em grupos afins (sejam familiares, comunidades, coletivos que tenham destinos comuns).(MEIHY,1996) 

Page 24: Maria a Blaz Vasques Amorim

24 

 

estranha que não conheceu a FAFI. É desses homens e mulheres, colaboradores com histórias

entrelaçadas, a voz da narrativa: suas experiências, a vida, sonhos, decepções, traumas e

impressões sobre passado e presente.

São meus a disponibilidade em ouví-los, o emprego de técnicas específicas para

gravar as entrevistas, como a utilização do gravador. Ouvi, perguntei, mantive o silêncio de

maneira a respeitar algumas posições declaradas por eles com as quais não concordava, me

emocionei. Transcriei cada entrevista de maneira a deixá-la clara, compreensível, porém

tentando conservar presente, em cada uma delas, a emoção sentida.

As análises estão articuladas às narrativas dos colaboradores e às fontes escritas que

respondem aos meus questionamentos. Há o diálogo que faz com que eu esteja presente em

todo o processo deste trabalho.

Este estudo contou sempre com as discussões periódicas do Neho, onde

comecei a aprender sobre memória, identidade e narrativa e a perceber que,

contrariando Walter Benjamim, o narrador não morrera11.

                                                            11 Ver em: BENJAMIN, W. "O Narrador‐ Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov".  In: Obras Escolhidas: Magia, Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. 

Page 25: Maria a Blaz Vasques Amorim

25 

 

PARTE II

Só lemos o que escrevemos

No imo do nosso ser.

Estava escrito, estava escrito,

Mas fui eu que descobri.

(Desova Poética/ Mara Jorge Ramos)

Page 26: Maria a Blaz Vasques Amorim

26 

 

HISTÓRIA, MEMÓRIA, IDENTIDADE E HISTÓRIA ORAL

O termo memória tem sua origem etimológica no latim e significa a faculdade

de reter e /ou readquirir idéias, imagens, expressões e conhecimentos adquiridos

anteriormente reportando-se às lembranças, reminiscências.(BEAR.1996).

O conceito de memória e a maneira como ela funciona vem sendo tema dos

estudos de filósofos e de cientistas há séculos. Este conceito vem se modificando e se

adequando às funções, às utilizações sociais e à sua importância nas diferentes

sociedades humanas.(KESSE. 2005)

Como afirma Jacques Le Goff, “O conceito de memória é crucial.” (LE GOFF.

1984) Tal afirmação pode ser recebida de duas formas: ressalta a importância da

memória nas discussões contemporâneas no campo das humanidades,

principalmente entre os historiadores e remete à importância fundamental da

memória no debate atual acerca do problema da identidade, na medida em que a

memória é um dos elementos constituintes e fundadores da identidade.

Os sentidos de herança12, construção13 e de identidade14 apontados por Pollack

(POLLACK, M .1992,p.204), indicam que a memória é permeada do sentido não só

do que ocorreu no passado, mas do tempo presente e de seus conflitos.

Pensar na construção da memória é pensar em variadas formulações

conceituais, seja como um jogo entre as lembranças e o esquecimento, apontado por

Freud, como uma construção social, materializada nos quadros sociais (linguagem,

tempo e espaço). Para Halbawchs memórias individuais, grupais e coletivas, são

construídas na subjetividade e representadas em discursos sociais. Pode-se, também,

buscar pelos lugares da memória conceituados por Pierre Nora.

Á princípio a memória pode parecer ser um fenômeno de cunho pessoal, pois,

cada indivíduo possui lembranças sobre sua trajetória de vida, no entanto os

                                                            12 A memória é transmitida, não se refere apenas à vida física do indivíduo. 13 A memória é um fenômeno construído, consciente ou inconscientemente. 14 O sentido que  indivíduo constrói de sua própria imagem, de si, para si e para os outros.

Page 27: Maria a Blaz Vasques Amorim

27 

 

trabalhos de Maurice Halbwachs demonstraram que, talvez, o aspecto mais

importante da memória seja o seu caráter social, como um fenômeno que é

construído de forma coletiva, sendo, portanto, submetida a flutuações,

transformações e mudanças constantes. (HALBWACHS, 1998).

A contribuição da psicologia para o conceito de memória, tanto no que

concerne a recordação quanto ao esquecimento, assim como na questão da

manipulação consciente ou não da memória individual ou coletiva, têm sido

fundamentais. Neste sentido os esquecimentos e os silêncios são muito reveladores

dos mecanismos de manipulação da memória.(CRUZ.2006)

Quais são os elementos que constituem a memória tanto individual quanto

coletiva? Para alguns estudiosos da História Oral como Michael Pollack esses

elementos são em primeiro lugar os acontecimentos vividos pessoalmente e em

segundo lugar aqueles acontecimentos vivenciados pelo grupo ao qual o indivíduo

se sente pertencer (POLLACK. 1992). Neste processo de construção de identidade o

processo de socialização histórica da memória participa de forma tão efetiva e

marcante que podemos falar de uma memória herdada. Ele assinala que a memória

é uma atualização do passado ou a presentificação do passado e é também o registro

do presente que permanece como lembrança. A memória pode ser considerada uma

evocação do passado. É a capacidade que o homem possui de reter e guardar o

tempo que se foi, salvando-o da perda total.

Para Pierre Nora existem lugares particularmente ligados a tarefa de fazer

recordar um determinado passado, pois a memória é seletiva, nem tudo é lembrado,

nem tudo é gravado, nem tudo é registrado, ou seja para lembrar é necessário

esquecer (NORA. 1997).

Portanto, a memória é a representação do passado. (ROUSSO. In FERREIRA &

AMADO.1996). É uma reconstrução emocional e intelectual que acarreta uma

representação seletiva do passado, um passado que nunca é individual, mas de um

indivíduo inserido num contexto social, seja ele familiar, escolar, nacional.

Page 28: Maria a Blaz Vasques Amorim

28 

 

Assim, pode-se afirmar que a memória é individual e coletiva constituindo,

destarte, um fenômeno construído, sendo possível também, estabelecer uma ligação

intrínseca entre memória e identidade. Tal relação surge na medida em que a

memória é um elemento constituinte da identidade, pois é a memória que cria as

condições para o desenvolvimento do sentimento de continuidade e de coerência de

uma pessoa ou de um grupo no seu processo de construção de identidade. Segundo

Zygmunt Bauman a questão da identidade é a questão do momento

(BAUMAN.2004).

Pollack concebe a identidade remetendo a três elementos essenciais: corpo e

território (unidades físicas da identidade); continuidade temporal e sentimento de

coerência. Como esses elementos funcionam como fatores de equilíbrio para o

indivíduo se localizar individual ou coletivamente no mundo, a memória será

também um elemento constituinte desse sentimento de continuidade e coerência

para a reconstrução do si (POLLACK. 1992).

Portanto, a identidade é memória em ato. Ambos, campos de disputa e

posicionamentos de referências sociais. A memória opera por uma ligação com o

passado, enriquecendo o presente, selecionando pela lembrança e pelo esquecimento

o que rememorar, sendo pleiteada também por fornecer um lugar de pertencimento,

uma memória comum.

O pertencimento a um território de identidade a que me refiro não é um lugar

geográfico, mas cultural. Por isso optei, nesta pesquisa, por abordar identidade

como uma categoria histórico-cultural, construída e vivida sob a forma de discursos

sociais, uma produção inacabada, um lugar de altercação em constante movimento

de transformação, sempre constituída dentro da representação e nunca fora dela

(HALL, S .1990).

Ainda que a memória seja preocupação comum a muitas áreas das ciências

humanas, assim como a identidade, na história oral podemos relacionar esses

elementos de maneira que um conduza ao outro. Em conjunto, memória e identidade

se enlaçam possibilitando a realização e estudos que partam do tempo presente, de

Page 29: Maria a Blaz Vasques Amorim

29 

 

personagens vivos que mais que testemunhar um fato ou relatar trajetórias,

permitam ver o processo de seleção dos acontecimentos, de constituição de discursos

e assim se abram a análises que extrapolam a constatação dos fatos.

Por que História Oral?

A moderna História Oral nasceu na Universidade de Columbia, em Nova

York, em 1947 a partir da organização sistemática e diferenciada de um arquivo,

realizada por Allan Nevins, que oficializou o termo, que passou a ser indicativo de

uma nova postura face as entrevistas. (MEIHY,J.1996, p.19)

Joutard afirma que ao longo do tempo, a História Oral foi usada por muitos

pesquisadores para a elaboração de seus projetos, e que a partir dos anos 50 é que se

retomou essa vivência, com intuito e criar instrumental para outros historiadores.

(FERREIRA & AMADO. 1996, p.45)

No Brasil a História Oral foi introduzida nos anos 1970, com a criação na

Fundação Getúlio Vargas, de um programa de História Oral. No entanto foi só a

partir dos anos 90 que ela passou a ter maior dimensão no país, com seminários,

discussões entre historiadores brasileiros e estrangeiros e a criação da Associação

Brasileira de História Oral, que congrega pesquisadores especializados nessa

temática.

“Entre nós a História Oral tardou muito a se desenvolver em

função de dois fatores primordiais: a falta de tradições

institucionais não acadêmicas que se empenhassem em

desenvolver projetos registradores das histórias locais, e a

ausência de vínculos universitários como os localismos e a

cultura popular. Além disso, os compromissos internos com

cada disciplina universitária,como a sociologia e a

antropologia, ficaram marcados muito fortemente,

impossibilitando o diálogo entre os campos que tratavam de

depoimentos, testemunhos e entrevistas”. (MEIHY,1996)

Page 30: Maria a Blaz Vasques Amorim

30 

 

Como tudo que é novo, a História Oral despertou variadas concepções:

“Em nosso entender, a História Oral, como todas as

metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de

trabalho – tais como diversos tipos de entrevistas e as

implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias

possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e

desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador

relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre

seu trabalho – funcionando como ponte entre teoria e prática.”

(FERREIRA & AMADO.2001, p.16)

Outros defendem que a História Oral seja uma técnica, geralmente são pessoas

envolvidas na constituição e preservação de acervos orais. Estes pesquisadores

utilizam as fontes orais de forma esporádica, como fontes de informação

complementar, normalmente ligados à sociologia, o que teoricamente justificaria essa

postura.

Fazem-se necessárias, para o entendimento de como a História Oral será

trabalhada neste projeto, algumas explicações sobre o lugar onde tomei contato com

ela. O Neho, Núcleo de Estudos em História Oral, é resultado de duas experiências

combinadas: uma pedagógica e outra de trabalho em oralidade em suas múltiplas

formas. Para os integrantes do Neho a História Oral, mais do que entrevistas, é um

processo de construção epistemológica.

A História Oral praticada pelo Neho/USP se assenta em pressupostos que

identificam o processo histórico em sua dinâmica e desta maneira invertem o

principio operacional que, sempre, parte do presente/imediato para o

passado/remoto. Esta subversão qualifica a experiência que por sua vez é captada

por trabalhos com a memória e a identidade. Memória e identidade, pois, tornam-se

Page 31: Maria a Blaz Vasques Amorim

31 

 

os binômios essenciais para a definição do que o Neho-USP entende por História

Oral15.

Assim, vale dizer que a História Oral é um conjunto de procedimentos que se

iniciam com a elaboração de um projeto, desdobra-se em entrevistas e cuidados com

o estabelecimento de textos/documentos que podem ser analisados, arquivados para

uso público, mas que tenham um sentido social.16

A História Oral pode ser dividida em três ramos principais: História Oral de

vida, História Oral temática e tradição oral. História Oral de vida tem como meta

retraçar os caminhos de vivências pessoais que, contudo se explicam em grupos afins

(sejam familiares, comunidades, coletivos que tenham destinos comuns); História

Oral temática é um recurso que busca analisar um determinado evento ou situação a

ser esclarecida segundo o estabelecimento de questionários orientados para fins

específicos e, finalmente, tradição oral é a prática decorrente do levantamento e

estudo de mitos fundadores, questões ética ou morais e rituais do cotidiano e

grupos.17

No trabalho de campo é fundamental a utilização de instrumentos que

nos permitam gravar as entrevistas, sejam eles gravadores convencionais, digitais,

câmeras de vídeo, MP3, MP4 ou qualquer outro tipo de tecnologia que sejam capazes

de gravar o que nosso colaborador está dizendo. É fundamental que o pesquisador

tenha ética, respeito e dê a devida importância a cada colaborador. “Cada pessoa é

um amálgama de grande número de histórias em potencial, de possibilidades

imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes, contornados e por pouco

evitados”. (PORTELLI.1997)

Para a História Oral o trabalho de campo se institui como momento

fundamental para toda pesquisa. Nesta fase, existe um significado na relação social e

humana entre pesquisador e colaborador da pesquisa que está intimamente ligada á

                                                            15    Ibdem 16    In: MIRANDA(org)(2006).Memória  e  Cultura:  A  importância  da memória  na  formação  cultural  humana. Edições Sesc, São Paulo. 17     Ibdem 

Page 32: Maria a Blaz Vasques Amorim

32 

 

ética que o profissional confere ao seu procedimento. “Tudo o que escrever ou disser

não apenas lançará luz sobre as pessoas ou personagens históricos, mas trará

conseqüências imediatas para as existências dos colaboradores e seus círculos

familiares, sociais e profissionais” (FERREIRA &AMADO. 1997)

Um conceito-chave, na História Oral, é o de mediação, instituindo para o

oralista o papel de sujeito norteador de todo o processo de pesquisa, mas numa

atitude de total respeito às expectativas, desejos e limitações de ordem prática e

afetiva do colaborador.

Para o Neho a História Oral só se concretiza quando chegamos ao texto

final e para isso há uma série de etapas para que nosso corpo documental esteja

pronto para ser analisado pelo oralista e a devolução feita aos colaboradores.

• A entrevista deve ser conduzida segundo os critérios da história oral a ser

adotada, de vida ou temática, e enquanto no primeiro caso não deve haver

questionário rígido e deva ser conduzida de maneira aberta, na segunda o

questionário faz-se necessário, porém , não deve ser duro, inquisitivo , que

não dê abertura para outras lembranças que o colaborador sentir vontade de

trazer à tona.

• A transcrição deve ser literal, realizada, de preferência, logo após a entrevista,

quando as palavras do colaborador ainda estão presentes em nós. Ela deve ser

a mais completa e rigorosa possível, registrando, inclusive sons externos,

como, por exemplo, o telefone tocando, o gato miando..., os nés, entãos...

• Na textualização suprimimos as perguntas do entrevistador, pontuamos,

formamos orações e tiramos repetições. Se estas forem uma característica do

colaborador deixamos algumas para que o leitor as percebam.

• A transcriação deve conter em si a atmosfera da entrevista, seu ritmo, a

comunicação não-verbal como risos, choro, gestos faciais e temos que ter

cuidado porque o texto não pode abandonar a característica de originalmente

falado e tem que ser identificado como tal pelo leitor.

Page 33: Maria a Blaz Vasques Amorim

33 

 

Para conseguir chegar a tal resultado, valemo-nos de dois conceitos da lingüística,

que não podem ser entendidos separadamente: o de transcriação, proposto por

Haroldo de Campos, e o de teatro de linguagem, formulado por Roland Barthes,

ambos adequados à prática de história oral por José Carlos Sebe Bom Meihy. A

transcriação surge da necessidade de transformar a transcrição literal em um texto

mais agradável e compreensível à leitura. É importante ressaltar que não se adiciona

ou se suprime idéias ao nosso colaborador. Este processo é árduo, uma passagem do

oral para o escrito que leva o oralista a estar sempre atento à questão da ética. Na

transcriação, a interferência do autor não deve ser negada, porém explicitada.18 (

MEIHY, J (org) .1996)

• Conferência e Legitimação: O texto transcriado é devolvido ao colaborador

para que ele analise, se reconheça ou não na entrevista, faça correções,

alterações, adicione fatos, vete frases, de acordo com o que ele julgar

conveniente; se o colaborador insistir em tirar partes inteiras do texto,

entra o que chamamos de negociação, isto é, negociar com o colaborador

para que as informações permaneçam no texto.

Após a conferência e legitimação o texto está pronto para a utilização como

documento histórico, partindo-se para a análise e validação do mesmo. Validar

uma narrativa é um ato de respeito ao colaborador. O texto produzido pelos

encontros entre entrevistadores e colaboradores, obrigatoriamente tem valor

intrínseco .

Apóia-se a relevância da validação em virtude do significado da história

oral. Não fosse pela busca de outros ângulos de problemas que são, de regra,

marcados pela objetividade, busca da verdade e comprovação, a entrevista seria

mais uma maneira de adquirir informações, captação de dados ou certificação de

fatos “reais”. A “realidade” dos fatos advindas de entrevistas ligam-se a

impressões. E história oral é o império das visões filtradas pelos pareceres.19 A

                                                            18 Em    www.gattaz.pro.br  (site  oficial  do  historiador  André  Gattaz  onde  ele  publica  artigos  atuais  não impressos) 19  Ibdem

Page 34: Maria a Blaz Vasques Amorim

34 

 

subjetividade é fundamental para a História Oral. Portelli , diz que é a

subjetividade do expositor que fornece às fontes orais o elemento precioso que

nenhuma outra fonte possui em medida igual. A História Oral, mais do que sobre

eventos fala sobre significados.

                                                                                                                                                                                                      

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35 

 

PARTE III

Choro a minha alma!

Choro a minha Pátria!

Choro o nosso Mundo!

(Desova Poética/ Nildemir Ferreira de Carvalho)

Page 36: Maria a Blaz Vasques Amorim

36 

 

O CENÁRIO HISTÓRICO E A QUESTÃO POLÍTICO-CULTURAL

Nos anos 1960, o cruzamento de variáveis históricas criou uma conjuntura na

qual a revolução parecia não só possível, como ao alcance das mãos, divergindo-se,

apenas no caminho que deveria ser seguido para atingi-la. Como seria essa

revolução? Quais seus agentes principais? Quais ações poderiam desencadeá-la?

Desse debate, que impregnou os movimentos sociais e as organizações de esquerda20

do período, não ficaram ausentes artistas e intelectuais. Pelo contrário, o liame entre

política e cultura parece nunca ter sido tão intenso.

A revolução brasileira não veio pelas mãos das organizações de esquerda. Não

foi sequer uma revolução. Foi um Golpe de Estado perpetrado pelos Militares e

apoiado por segmentos da sociedade civil e eclesiástica.

Não se pode falar sobre a Ditadura Militar no Brasil não levando-se em

consideração o contexto internacional. A Guerra Fria21 dividia o mundo em dois

blocos opostos. Em janeiro de 1959, Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e

outros ideólogos entravam vitoriosos em Havana, colocando abaixo a ditadura de

Fulgêncio Batista. Cuba fica a cerca de 160 milhas náuticas de distância da Flórida,

assim, quando, em 1961, Fidel Castro anunciou que a Revolução Cubana seguiria na

direção do Socialismo foi inaceitável para os estadunidenses. Tanto pela proximidade

do inimigo “em seu quintal” quanto pelo exemplo que potencialmente trazia a outras

                                                            20  O  termo  esquerda  nesse  trabalho  designa,  numa  formulação,  as  forças  políticas  críticas  da  ordem 

capitalista estabelecida,  identificadas  com as  lutas dos  trabalhadores pela  transformação  social. Trata‐se de uma definição ampla, próxima da utilizada por Gorender, para quem “os diferentes graus, caminhos e formas dessa  transformação  social  pluralizam  a  esquerda  e  fazem  dela  um  espectro  de  cores  e matizes”(GORENDER.1987,p.7) Ver mais em:RIDENTI,M.   Em Busca Do Povo Brasileiro: Artistas Da Revolucao, Do CPC a Era Da TV, Editora Record. 

21  Guerra Fria é a designação atribuída ao período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, compreendendo o período entre o  final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991). 

 

Page 37: Maria a Blaz Vasques Amorim

37 

 

Nações colocadas sob a órbita de influência estadunidense desde a “Doutrina

Monroe”.22

Cresciam e se fortaleciam os partidos e movimentos de esquerda na América

Latina: os Montoneros no Uruguai, os Tupamaros no Peru, o Partido Comunista no

Brasil, o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária) chileno, entre outros.

Todos seduzidos pelo exemplo de um grupo idealista capaz de mobilizar as massas

fazer a Revolução. Surgia no Cone Sul a polarização entre a direita e a esquerda.

Para falar sobre o Golpe Militar brasileiro e sua projeção sobre São José do Rio

Preto, é necessário voltar o olhar para os anos 1950 suas articulações políticas e

culturais. Desde tal período o conceito de cultura é remodelado através dos

intelectuais que formam o ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Renato

Ortiz considera o “ISEB como matriz do pensamento que baliza a discussão da

questão cultural no Brasil dos anos 1950 até hoje” (ORTIZ.1985).

O ISEB foi o principal arauto das teses desenvolvimentistas e exercia

influência na política dos governos JK e Jango. Forneceu os alicerces teóricos para as

mais diversas correntes, inclusive para membros dos governos, além de quadros para

os vários escalões desses mesmos governos. Foi criado no Rio de Janeiro, em julho de

1955, por um decreto do presidente interino Café Filho e recebeu subvenções da

Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

(PECÁUT.1990) A proposta do grupo de intelectuais que fundou o ISEB era assumir

uma liderança na política nacional (GARCIA.2004) por seus próprios meios. Eles se

dispunham a arregimentar e organizar as forças progressistas e esclarecê-las

ideologicamente. Se autodefiniam como uma vanguarda capaz e bem organizada. O

ISEB foi fechado pelos militares após o Golpe de 1964.

                                                            22  Em meio  aos  tumultos  que  explodiam  por  toda  a  América  Latina  a  partir  de  1810  ‐  ocasionados  pelas insurreições nativistas que buscavam a independência das suas regiões do domínio do império espanhol e do português    , surgiu um documento, aprovado pelo Congresso norte‐americano em 1823, que  fez história  ‐ a Doutrina Monroe. Ela tornou‐se o pilar das relações dos Estados Unidos para com o mundo daquela época e para com os seus vizinhos. Mas, com o passar do tempo, a mesma serviu como pretexto para os mais variados intervencionismos norte‐americanos no continente e áreas contíguas. 

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38 

 

Fazendo um “contraponto” com o ISEB surgiu o IPES, (Instituto de Pesquisa e

Estudos Sociais), que entre suas inúmeras e extensas atividades, organizava

palestras, cursos, seminários com o propósito de levar a sua ideologia “a recrutas e

também para moldar a força social empresarial em um bloco burguês de poder”

(DREIFUSS.1981). Através de seu trabalho de formação político-ideológico, o IPES

visava se constituir numa espécie de anti-ISEB.

Pode-se dizer que, enquanto o ISEB se constituiu num aparelho ideológico de

Estado, o IPES foi uma típica formação ideológica no terreno da sociedade civil. O

IPES não deixou de ter fortes e próximos vínculos com setores oficiais, em particular

com a ESG (Escola Superior de Guerra) . Se os militares participaram ativamente do

IPES, inclusive em cargos de direção, não se pode ignorar que foram os civis que

tiveram a iniciativa de criar e comandar a instituição durante toda sua

existência.(DREYFUSS.1981)

O engajamento que nasce nos anos 1950 e toma forma nos anos 1960

expressava-se pela crítica à política e à forma como ocorria o desenvolvimento do

país e por um intenso debate sobre os rumos que se poderia imprimir à esta dinâmica

social, no sentido de alterá-la. Ligados à UNE (União Nacional dos Estudantes),

surgiam os CPC (Centro Popular de Cultura), que pretendiam colocar em prática

estratégias para a construção de uma cultura nacional, popular e democrática. O

termo cultura é um termo de várias acepções, em diferentes níveis de profundidade e

diferentes especificidades.

O termo cultura, segundo Marilena Chauí, vem do verbo latino “colere” que

originalmente era usado para o cultivo ou cuidado com a planta. Com o tempo, o

termo foi empregado para os cuidados com pessoas, com deuses, o culto. O conceito

de cultura evoluiu com o tempo. Até o Século XVIII, segundo Peter Burke, o conceito

de cultura estava mais ligado às artes, aos livros e à música, mas hoje, assim como os

antropólogos, os historiadores usam o termo cultura muito mais amplamente, para

referir-se a quase tudo que pode ser aprendido em uma sociedade, como comer,

beber, andar, falar, silenciar e assim por diante. Esta interpretação não é uma

unanimidade.

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39 

 

Segundo Nestor Canclini, o relativismo cultural, que impede que se possa

comparar culturas, pois cada uma tem suas particularidades, conseguiu equiparar as

culturas, mas não explica suas diferenças. Outra questão que Canclini coloca é a de

que esse conceito não hierarquiza os fazeres humanos ditos como cultura, nem

atribui a eles um peso dentro de uma determinada formação social. A definição

proposta por ele diz que:

A cultura é :

“a produção de fenômenos que contribuem, mediante a

representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para

a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ou

seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à

administração, renovação e reestruturação do

sentido.”(CANCLINI.2003)

Os cepecistas, lendo os arranjos de sistemas teóricos e políticos de pensadores e

estadistas como Hegel, Husserl, Mannheim, Marx, Engels, Lênin, entre outros, numa

interpretação favorecida pelos intelectuais do ISEB, e posteriormente em contato com

conceitos de pensadores como Lukács, Gramsci, Sánchez Vázques e Benjamin que foram

absorvidos e adaptados por eles, analisaram os conceitos de alienação associados a ideologia

e construíram o conceito particular “cultura popular” nos anos 1960.

As perspectivas de transformações nacionais atraiam jovens intelectuais e

artistas, mormente do CPC, que tratavam de desenvolver uma atividade

conscientizadora, neste momento a cultura diz respeito a uma forma muito particular

de consciência: a consciência política junto às classes populares. Na verdade, falava-

se em estimular, desenvolver uma cultura popular.

Foi nesse momento que a cultura nacional popular desvinculou-se do conceito

de folclore, que ficou restringido ao passado. A cultura nacional passou a ser o

instrumento possibilitador da ruptura do estado de subdesenvolvimento que o Brasil

vivia na época. A cultura se tornou um instrumento de libertação. O Centro Popular

de Cultura tinha como principais nomes Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Ferreira

Gullar, Vianinha, entre outros. O CPC chegou a criar uma gravadora, uma editora, e

Page 40: Maria a Blaz Vasques Amorim

40 

 

produziu alguns filmes importantes. O trabalho do CPC era um incentivo para que

os intelectuais se encontrassem com a massa, porque o povo, sem ajuda, era incapaz

de apreender a cultura e formar uma identidade nacional. Sobre o papel do

intelectual neste processo, Ferreira Gullar disse:

"A expressão ‘cultura popular’ surge como uma denúncia dos

conceitos culturais em voga que buscam esconder o seu caráter de

classe. Quando se fala em cultura popular acentua-se a necessidade de

pôr a cultura a serviço do povo, isto é, dos interesses efetivos do país.

Em suma deixa-se clara a separação entre uma cultura desligado do

povo, não-popular, e outra que se volta para ele e, com isso, coloca-se o

problema da responsabilidade social do intelectual, o que o obriga a

uma opção." ( GULLAR. 1965)

Para Gullar ainda, “ a cultura popular é a tomada de consciência da realidade

brasileira”(GULLA.1965). Assim, surgiam indivíduos revolucionários e conseqüentes

trabalhando a arte junto às fábricas e aos campos. Nas Universidades as propostas

de reformas eram amplamente discutidas, visando não apenas problemas internos

dessas instituições, mas também sua função social e a contribuição à conscientização

popular e, portanto, do país, redimensionando-se o acesso e as finalidades da

educação.

A vocação cultural que se observava no Brasil nas décadas de 1950/1960 não

era um fenômeno pontual e nem único deste país. Pelo contrário, inscrevia-se em um

contexto mais amplo e advinha do desenvolvimento contraditório que caracterizou

as relações culturais internacionais desde o início da Guerra Fria, a onda de

desenvolvimento europeu que Hobsbawn caracterizou como a terceira grande onda

de desenvolvimento do capitalismo e a emergência dos protestos no mundo latino-

americano que marcam os anos 1950 e se desdobram nos demais.

O Brasil passava então, por intermináveis problemas que pareciam iriam ser

resolvidos por Juscelino Kubitschek com seus 50 anos em 5. Embora o crescimento do

país nessa época seja inquestionável, outros problemas sobrevieram, e então, Jânio

Quadros parecia ser a solução, porém, após a renúncia intempestiva do mesmo , que

Page 41: Maria a Blaz Vasques Amorim

41 

 

levou a negociações com os militares para que o vice-presidente João Goulart

pudesse tomar posse, o Brasil se tornou parlamentarista com Tancredo Neves como

Primeiro Ministro. Um plebiscito reconduziu o país ao regime presidencialista com

Goulart como presidente legítimo. O Plano de Metas proposto por ele precisava dar

certo. A cultura nesse período vai estar engendrada com o intenso processo de

industrialização sofrido pelo Brasil nos anos 1950/1960 que foi responsável por uma

migração intensa do campo para a cidade.

O mercado de trabalho cresceu, assim como o mercado consumidor e

conseqüentemente as camadas médias urbanas, de onde surgiram os intelectuais e

simpatizantes dos setores populistas e de esquerda. Os intelectuais fizeram uma

nova leitura da realidade brasileira, principalmente com relação à cultura, na

verdade uma cultura política, onde subdesenvolvimento e dominação cultural eram

as categorias centrais.

Havia a necessidade da busca do que seria nacional e democrático. Nesse

contexto de busca por um país com menos contradições, tem importância o PCdoB,

Partido Comunista do Brasil. O partido adquiriu um papel crescente na estrutura do

desenvolvimento nacionalista, pois contava com numerosos e influentes intelectuais

ao seu redor. (PECÁUT.1990)

Sua influência foi plenamente sentida sobre o ISEB (Instituto Superior de

Estudos Brasileiros), mais tarde no CPC (Centro Popular de Cultura), da UNE

(União Nacional dos Estudantes) e no MCP (Movimento de Cultura Popular) e no

MPC (Movimento Popular de Cultura)23.

O CPC da UNE foi formado em 1962 e fechado pelo Golpe Militar em 1964.

Segundo Renato Ortiz, a experiência do CPC está filosoficamente ligada ao ISEB. Sua

meta era utilizar elementos da cultura popular para “desalienar” o povo. A alienação

é uma categoria fundamental que os cepecistas utilizam para analisar a realidade

brasileira. A cultura popular é vista como verdadeira enquanto a cultura das classes

dominantes é alienada. (HOLLANDA.2004)

                                                            23 Este último criado em São José do Rio Preto pelo Prof. Franz W. Heimer e inspirado no MCP de Pernambuco. 

Page 42: Maria a Blaz Vasques Amorim

42 

 

A “desalienação” deveria ser buscada pela conscientização popular, que se

daria pela instalação de uma cultura nacional e popular, portanto não se pode

separar a questão do CPC e a da cultura popular nacional. Duas fases bem diferentes

estão presentes no momento da organização dos CPCs : quem leva cultura, quem recebe

cultura.24 No Relatório do Centro Popular de Cultura, constava que o movimento de

cultura popular se daria pela atuação de dois grupos diferentes: a atuação para os

grupos sociais e a atuação com os grupos sociais.25

A reinterpretação das principais teses dos isebianos por estudantes, artistas e

intelectuais do CPC aconteceu e inspirou-se esteticamente no Teatro de Arena26 e

ideologicamente no PCB e no ISEB. Entre a fundação em 1961 e a extinção em 1964,

três nomes integraram a direção do CPC: Carlos Estevam Martins, Carlos Diegues e

Ferreira Gullar, e embora houvesse divergências entre eles a questão da cultura

popular nacional sempre esteve presente.

O MCP (Movimento de Cultura Popular) foi criado no Recife em maio de

1960. O movimento que teve como objetivo básico difundir as manifestações da arte

popular regional e desenvolver um trabalho de alfabetização de crianças e adultos.

Seu ideário era, em resumo, “elevar o nível cultural dos instruídos para melhorar sua

capacidade aquisitiva de idéias sociais e políticas” e “ampliar a politização das

massas, despertando-as para a luta social”.(BARCELLOS.1994)

Na prática, esse trabalho era feito através de apresentação de espetáculos em

praça pública; organização de grupos artísticos; oficinas e cursos de arte; exposições;

edições de livros e cartilhas, etc. O trabalho de alfabetização tinha à frente o jovem

educador Paulo Freire, que foi um dos sócio-fundadores do movimento. Também

                                                            24 Cultura popular: conceito e articulação. Movimento, Rio de Janeiro, n.4, p.11‐2, jul. 1962, p.12, grifo meu.  25 RELATÓRIO do Centro Popular de Cultura [1962]. In: BARCELLOS, J. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. 472p. p.441‐56, p.444. 

26   Fundado nos anos 1950, torna‐se o mais ativo disseminador da dramaturgia nacional que domina os palcos nos anos 1960, aglutinando expressivo contingente de artistas comprometidos com o teatro político e social. 

 

Page 43: Maria a Blaz Vasques Amorim

43 

 

integraram o MCP, intelectuais e artistas como Francisco Brennand, Hermilo Borba

Filho, Abelardo da Hora, José Cláudio, Aloísio Falcão e Luiz Mendonça.

O MCP teve por sede o Sítio da Trindade, na Estrada do Arraial. Era uma

entidade privada sem fins lucrativos e se mantinha através de convênios que, na

prática, foram firmados quase que exclusivamente com a prefeitura do Recife e o

governo do Estado.Além de recursos financeiros, a prefeitura do Recife chegou a

colocar à disposição do MCP 19 viaturas e 30 imóveis. O movimento contou com

apoio da intelectualidade pernambucana e de facções políticas de esquerda tais como

a União Nacional dos Estudantes (UNE), Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do

CPC (Centro Popular de Cultura) .27

Devido ao clima político da época, o MCP ganhou dimensão nacional e se

espalhou por outros Estados brasileiros. Entre 1962/63, forças de direita tentaram

sufocar o movimento e houve uma mobilização nacional em sua defesa: até mesmo o

então Ministro da Educação, Darci Ribeiro, foi ao Recife apoiar pessoalmente o MCP

e o considerou “um exemplo a ser levado a todo o País”. Com o golpe militar de

1964, o MCP foi extinto.

Este conjunto de fatores apresentados compunha, juntamente com outros,

tanto de ordem nacional quanto internacional, um cenário que aparentava aos que

detinham o poder no país, um quadro ameaçador.

Jango saiu do Brasil pela fronteira do Paraguai dando início ao longo

período da Ditadura Militar. Segundo Dreyfuss, é importante frisar que o golpe de

1964 foi civil-militar e teve, como um de seus mais eficientes protagonistas, um

aparelho político e ideológico da sociedade civil brasileira nos anos 1960.

Por outro lado o desagrado da sociedade, onde cartunistas e humoristas

expressavam a insatisfação que tomava conta de grande parte das pessoas,

representantes de segmentos sociais começavam a ensaiar organizações clandestinas.

                                                            Ver em: Movimento de Cultura Popular: Memorial. Fundação de Cultura da Cidade de Recife. 1986. V.47. Recife. 

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44 

 

A crise política no país se arrastava desde a renúncia de Jânio Quadros em

1961. João Goulart, seu vice, assumiu a presidência num clima político infausto.

Com a abdicação de Jânio, em 25 de agosto de 1961, os ministros da Guerra,

Aeronáutica e Marinha lançaram manifesto onde declaravam não aceitar a

substituição de Jânio pelo seu vice, João Goulart, que na ocasião se encontrava em

viagem à China.

Como solução para a crise política, o Congresso Nacional aprovou a Emenda

Constitucional número 4/61 que, instituindo o sistema parlamentar de governo,

garantiu a posse de Goulart, dando-lhe a chefia do Estado, mas não a do governo. A

referida emenda estabeleceu que a lei poderia dispor “sobre a realização de plebiscito

que decida da manutenção do sistema parlamentar ou a volta do sistema

presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses

antes do termo do atual período presidencial.”

Deste modo, a consulta deveria realizar-se, então, em 1965. Ocorre que, em 16

de setembro de 1962, o Congresso aprovou a Lei Complementar no. 2, antecipando a

consulta para 6 de janeiro de 1963 e chamando-a de referendo. Mais de nove milhões

de eleitores escolheram o retorno ao sistema presidencialista – restabelecido pela

Emenda Constitucional número 6/63 – contra pouco mais de dois milhões de

eleitores que optaram pela manutenção do sistema parlamentarista.

O governo de João Goulart foi marcado pela abertura às organizações sociais.

Estudantes, organizações populares e trabalhadores ganharam espaço, causando

preocupação nas classes conservadoras como, por exemplo, parte dos empresários e

banqueiros, setores da Igreja Católica, dos militares e da classe média.

Os partidos de oposição, como a UDN (União Democrática nacional) e o PSD

(Partido Social Democrático), acusavam Jango de estar planejando um golpe de

esquerda e de ser responsável pela carestia e inflação que o Brasil enfrentava.

No dia 13 de Março de 1964, João Goulart realizou um grande comício na

Central do Brasil, Rio de Janeiro, onde defendeu as Reformas de Base. Neste plano

Page 45: Maria a Blaz Vasques Amorim

45 

 

Goulart prometia mudanças radicais na estrutura agrária, econômica e educacional

no país. Seis dias depois, os conservadores realizaram uma manifestação contra as

intenções de Jango. A Marcha da Família com Deus e pela Liberdade reuniu milhares

de pessoas pelas ruas do centro da cidade de São Paulo.

O clima de crise política e as tensões sociais aumentavam a cada dia. Na

madrugada de 31 de março de 1964, tropas militares sob o comando do general

Olimpio Mourão Filho marcharam de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, com o

objetivo de depor o governo, legalmente constituído, de João Goulart.28 O presidente

encontrava-se no Rio de Janeiro quando recebeu um manifesto exigindo sua

renúncia. O chefe da Casa Militar, general Assis Brasil, não conseguiu colocar em

prática um plano que teria a função de impedir um possível golpe. O presidente

seguiu para Porto Alegre, sua terra natal.

O Congresso nacional declarou, no dia 2 de Abril, vaga a Presidência da

República e deu posse ao Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, que

permaneceu no cargo até 15 de Abril representando um papel meramente decorativo:

o governo era exercido pelos ministros militares.

Na história republicana brasileira ocorreram diversas intervenções militares

de curta duração. Desta vez, porém, o país foi surpreendido por cenas de força e

violência: tanques, caminhões e jipes de guerra ocuparam as ruas das principais

cidades brasileiras. Sedes de partidos políticos, associações e sindicatos dos

movimentos que apoiavam as reformas foram tomadas por soldados fortemente

armados.

A Junta Militar, que assumiu o governo provisoriamente, era composta pelo

general Artur da Costa e Silva, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro

Francisco Correia de Melo. A primeira medida tomada pelo grupo militar foi a

decretação do Ato Institucional nº 1. (AI – 1). Em seu texto estava prevista a

realização de eleições para outubro de 1965. No entanto, essa mesma Junta

contrariou seu decreto impondo a indicação de Castello Branco.                                                             

28 MURICY,C. Imprensa Oficial, Pernambuco, 1985. 

Page 46: Maria a Blaz Vasques Amorim

46 

 

Entre outras medidas, o novo governo estabeleceu a nacionalização do setor

petrolífero, a proibição da desapropriação de terras, a cassação dos direitos políticos

de alguns parlamentares e ex-presidentes, o rompimento das relações com Cuba e a

investigação contra os opositores ao governo. Os quadros ministeriais de Castello

Branco foram compostos por antigas figuras políticas do UDN e do PSD, e dos

pensadores da Escola Superior de Guerra, também conhecido como “grupo da

Sorbonne”. (OLIVEIRA.1976)

Os movimentos estudantis e a União Nacional dos Estudantes foram

colocados na ilegalidade. Os centros de ensino superior do país passaram a ser

constantemente vistoriados por autoridades do regime militar. Em 1965, o Ministério

da Educação e Cultura estabeleceu a reformulação das grades curriculares no ensino

médio e superior. Os estudantes não teriam mais direito de participação nas questões

administrativas nas faculdades.

Os trabalhadores também sofreram grande pressão do governo de Castello

Branco com a intervenção militar em diversos sindicatos. Na zona rural, a ascendente

Liga Camponesa, liderada por Francisco Julião, foi colocada na ilegalidade. Os meios

de comunicação ainda tinham uma autonomia relativa. Nos jornais ainda saíam

algumas notícias denunciando as prisões arbitrárias e a prática de tortura. No

entanto, essa liberdade refletiva dos meios de comunicação logo foi

cerceada.(CASTRO.1994)

A luta contra a desordem que justificava a intervenção militar logo sofreu

outras frentes de oposição. No ano de 1966, os partidos contrários à ditadura

conseguiram eleger governadores no Rio de Janeiro e Minas Gerais. A potencial

oposição política forçou a imposição do Ato Institucional nº 2. De acordo com essa

medida, todos os partidos foram postos na ilegalidade, restando apenas duas novas

legendas: o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e o ARENA (Aliança

Renovadora Nacional).

Parte da população brasileira logo reagiu contra as arbitrariedades dos

militares. Várias passeatas, manifestações e mobilizações estudantis tomavam as ruas

Page 47: Maria a Blaz Vasques Amorim

47 

 

exigindo o fim da ditadura. Em resposta, os militares colocavam os seus soldados

para rebater violentamente aos protestos. Logo em seguida, novos atos institucionais

foram decretados com o objetivo de refrear as vias de oposição institucional e

popular.

Em janeiro de 1966, o Ato Institucional número 3 estabelecia a eleição indireta

para a escolha dos governadores estaduais. Os prefeitos dos grandes centros urbanos

só poderiam chegar ao poder através da nomeação dos governadores. Além disso, o

regime militar poderia decretar Estado de Sítio sem a aprovação prévia do Congresso

Nacional. Dessa forma, o Poder Executivo Federal ganhava amplos poderes de

atuação política.

No plano econômico os militares preocuparam em combater o galopante

processo inflacionário que, na época, atingia os 100% anuais. Dessa forma, o regime

ditatorial apoiou a abertura da economia para que empresas estrangeiras

reaquecessem o setor produtivo brasileiro. Além disso, o funcionalismo público, o

salário mínimo e as linhas de crédito foram imediatamente controlados ou

reduzidos.(DREYFUSS.1981)

Ao fim do mandato de Castello Branco, uma nova carta constitucional foi

redigida para o país. Nela o princípio federalista, que conferia autonomia aos

poderes estaduais, foi nitidamente enfraquecido. As novas Leis de Imprensa e

Segurança Nacional censuravam as liberdades democráticas sobre o pretexto de

controlar os “inimigos internos” da nação. A escolha do presidente ficava a cargo do

Congresso Nacional, que cooptados pela pressão dos militares elegia os candidatos

de seu interesse. Em 1967 foi instituída a sexta Constituição do Brasil e a quinta da

República. Ela institucionalizava e legalizava o regime militar, aumentava a

influência do Poder Executivo sobre o Legislativo e Judiciário, criando desta forma,

uma hierarquia constitucional centralizadora. As emendas constitucionais que eram

atribuições do Legislativo, com o aval do Executivo e Judiciário, passaram a ser

únicas e exclusivas dos que exerciam o Poder Executivo, ficando os demais relevados

a expectadores das aprovações dos “pacotes”, como foram, posteriormente,

nominadas as emendas e legislações baixadas pelo presidente da república.

Page 48: Maria a Blaz Vasques Amorim

48 

 

A referida Constituição recebeu em 1969 nova redação por uma emenda

decretada pelos “Ministros militares no exercício da Presidência da República” por

ocasião da doença do Presidente Costa e Silva. A Emenda número 1 intensificou a

concentração de poder no Executivo dominado pelo Exército, decretou a Lei de

Segurança Nacional, instituiu uma Lei de Imprensa que estabeleceu a Censura

Federal e, junto com mais um Ato Institucional, permitiu a substituição do presidente

doente por uma Junta Militar, apesar de existir o vice-presidente, Pedro Aleixo, que

era civil.

Era necessário, porém, que um novo presidente para o país. Entre os membros

do oficialato mais cotados para assumir o cargo em aberto, destacava-se o general

Albuquerque Lima, uma das mais proeminentes figuras entre os oficiais mais jovens

do Exército. No entanto, os grupos mais ligados à chamada “linha dura”29 acabaram

aprovando o nome de Emílio Garrastazu Médici.

No governo Médici, que ficou conhecido com “os anos negros da Ditadura”,

observou-se o auge da ação dos instrumentos de repressão e tortura instalados a

partir de 1968. Os famosos “porões da ditadura” ganhavam o aval do Estado para

promover a tortura e o assassinato no interior de delegacias e presídios. A guerrilha,

que usou de violência contra o regime, foi seriamente abalada com o assassinato de

Carlos Lamarca e Carlos Marighella. A Guerrilha do Araguaia, findada em 1975, foi

uma das poucas atividades de oposição clandestina a resistir (CASTRO. ARAÚJO.

1994).

A repressão aos órgãos de imprensa foi intensa, impossibilitando a denúncia

das arbitrariedades que se espalhavam pelo país. Ao mesmo tempo, no governo de

Médici observou-se o uso maciço dos meios de comunicação para instituir uma visão

positiva sobre o Governo Militar. A campanha publicitária oficial espalhava adesivos

                                                            

29 Linha‐dura é um termo usado em política para designar uma corrente ou facção, dentro de um movimento, partido ou governo, que adota posições mais radicais, menos moderadas e mais intolerantes, especialmente no contexto de regimes autoritários.

Page 49: Maria a Blaz Vasques Amorim

49 

 

e cartazes defendendo o ufanismo nacionalista. Palavras de ordem e cooperação

como “Brasil, Ame ou deixe-o” integravam o discurso político da época.30

A eficiência desta propaganda foi alcançada graças a um conjunto de medidas

econômicas instituídas pelo Ministro Delfim Neto. Influenciado por uma perspectiva

econômica de natureza produtivista, Delfim Neto incentivou o reaquecimento das

atividades econômicas sem o repasse destas riquezas à sociedade. Conforme ele

mesmo dizia, era preciso fazer o bolo crescer antes de ser repartido. Em curto prazo,

seu plano de ação se traduziu em índices de crescimento superiores a 10% por cento

ao ano.

O chamado “milagre econômico” foi marcado pela realização de grandes

obras da iniciativa pública. Obras de porte faraônico como a rodovia

Transamazônica, a ponte Rio-Niterói e Usina Hidrelétrica de Itaipu passavam a

impressão de um país que se modernizava a passos largos. Entretanto, a euforia

desenvolvimentista era custeada por meio de enormes quantidades de dinheiro

obtidas por meio de empréstimos que alcançaram a cifra dos 10 milhões de dólares.31

A participação do Estado na economia ampliou-se significativamente com a

criação de aproximadamente trezentas empresas estatais entre os anos de 1974 e

1979. Diversas agências de ação política organizavam o desenvolvimento dos setores

econômico e social. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),

o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e o Plano de Integração Social

(PIS) formavam alguns dos “braços” da ação política dos militares. (DREYFUSS,1981)

A expansão do setor industrial, viabilizada por meio da expansão do crédito, a

manutenção dos índices salariais e a repressão política, incitou uma explosão

consumista entre os setores médios da população. A obtenção de uma casa própria

financiada, a compra de um carro e as compras no shopping começaram a ser os

principais “sonhos de consumo” da classe média.

                                                            30  Ver:  FICO,  Carlos.  A  propaganda  da  ditadura.  In:Reinventando  o  otimismo.  Ditadura,  propaganda  e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1997. 31 Ver: PRADO &EARP. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de  renda  (1967‐1973).  In:  FERREIRA & DELGADO  (orgs.)O Brasil  republicano. O  tempo  da Ditadura.  Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003. 

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50 

 

Entretanto, “o milagre” se esvaiu com a mesma velocidade que empolgou. No

ano de 1973, uma crise internacional do petróleo escancarou as fraquezas da

economia dando fim a toda empolgação. Na época, o Brasil importava mais da

metade dos combustíveis que produzia e, por isso, não resistiu ao impacto causado

pela alta nos preços do petróleo. Em pouco tempo, a dívida externa e a onda

inflacionária acabou com os sucessos do regime.

O Governo de Ernesto Geisel foi marcado pela necessidade de se administrar o

avanço das oposições legais frente os sinais de crise da ditadura. O processo de

eleição do novo presidente foi marcado por eleições indiretas onde o MDB lançou os

nomes de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho enquanto “concorrentes” do

candidato do ARENA. Mesmo sabendo que não chegariam ao poder, a chapa do

MDB correu em campanha denunciado as falhas do regime militar e a opressão do

sistema.

Em face aos problemas enfrentados naquela época, o governo Geisel convocou

Mario Henrique Simonsen para assumir o Ministério da Fazenda. Anunciado o II

Plano Nacional de Desenvolvimento (II-PND), o governo buscava conciliar a

retomada do crescimento econômico com a contenção da onda inflacionária. Dando

prioridade ao desenvolvimento de bens de capital, o novo governo investiu

principalmente nas empresas estatais.

Entretanto, as reformas não repercutiam o efeito esperado, pois a economia

nacional não tinha condições próprias para se recuperar de seus problemas. Assim

como o Brasil sofreu os efeitos da crise do petróleo, as grandes potências econômicas

também passavam por um momento de retração generalizada. Em meio a uma

economia enfraquecida, os setores de oposição política oficial ganhavam maior força

de atuação política.

A busca por reformas foi sentida nas eleições parlamentares de 1974, onde

mais de 40% das cadeiras do Congresso Nacional foram ocupadas por integrantes do

MDB. Os militares da chamada “linha dura” começaram a perceber a desaprovação

popular frente o regime. Em contrapartida, outros integrantes do regime defendiam

Page 51: Maria a Blaz Vasques Amorim

51 

 

a necessidade de flexibilização que pudesse dar maior longevidade ao governo

militar.

O contexto marcado por contradições acabou incitando os setores mais

radicais do regime a cometerem atos de extremo autoritarismo. Em outubro de 1975,

o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nos corredores do II Exército de São

Paulo. Segundo as fontes oficiais, o jornalista teria se matado na prisão. No entanto,

as fotos do incidente estranhamente mostravam seu pescoço amarrado a um lençol e

com os pés ao chão.32

O episódio acabou dando forças para que diversas entidades representativas

se unissem em torno de duas grandes reivindicações: a anistia aos presos políticos e a

realização de uma nova Constituinte. Entre as entidades que encabeçaram essas lutas

se destacavam a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira para o

Progresso da Ciência, a Associação Brasileira de Imprensa, Comitê Brasileiro pela

Anistia, as Comunidades Eclesiais de Base e a União dos Estudantes do Brasil.

Projetando uma ampliação da representação política dos setores de oposição,

o Governo Geisel lançou, em 1977, o chamado pacote de abril. Esse pacote promoveu

uma desarticulação política sustentada pelas premissas estabelecidas pelo Ato

Institucional nº 5 (AI-5). O Congresso Nacional foi fechado, ao mesmo tempo, o

sistema judiciário e a legislação foram alterados. As campanhas eleitorais foram

restritas, o mandato presidencial passou para seis anos e as leis seriam aprovadas por

maioria simples.

Com isso, a ditadura conseguiu garantir uma maioria de integrantes políticos

favoráveis à situação. Reafirmando seu projeto de reabertura política “lenta e

gradual”, o general Geisel afastou os radicais do governo para abrir portas à eleição

de João Batista Figueiredo. Ao fim de seu mandato, Ernesto Geisel tomou uma

última atitude que representou bem o tom conservador de sua abertura política:

revogou o AI-5 e, logo em seguida, deu ao próximo presidente o direito de decretar

Estado de Sítio a qualquer momento.                                                             

32  Ver: MARKUN. Meu  querido  Vlado.  A  história  de  Vladimir  Herzog  e  o  sonho  de  uma  geração.  Editora Objetiva, São Paulo, 2006. 

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52 

 

O governo de João Baptista Figueiredo (1979-1985), o último presidente do

regime militar, marca o início do processo de redemocratização política do Brasil.

Figueiredo era chefe do SNI (Serviço Nacional de Inteligência) quando foi indicado

pela Arena para a Presidência.

Um ano antes da eleição indireta em 1978, integrantes da linha-dura do

Exército articulavam para que o general Sílvio Frota, ministro da Guerra, assumisse o

posto. Geisel, no entanto, destituiu Frota do Ministério e fez valer sua vontade.

Em 14 de outubro, motivado pelos resultados eleitorais para o Congresso

Nacional, o MDB decidiu disputar as eleições com o general Euler Bentes. Figueiredo

e seu vice, Aureliano Chaves, no entanto, venceram com 355 votos, contra 266 de

Bentes. No mês seguinte, nas eleições parlamentares, o MDB conseguiu a maioria dos

votos da população, mas Arena permaneceu com maioria no Congresso, por causa

do Pacote de Abril.

Figueiredo assumiu o governo em um contexto de aceleração da inflação,

baixos salários e de pouca distribuição de renda. Começaram a surgir diversas

greves, contrariando o que determinavam os militares. Figueiredo não conseguia por

fim às manifestações, disseminadas por todo país.33

Essas manifestações criaram clima de agito político e luta pela democracia.

Juntou-se a elas, além dos votos de protesto no MDB, a Campanha Nacional Pró-

Anistia, que reuniu milhares de pessoas pedindo o retorno dos condenados por

crimes políticos durante o regime militar. Figueiredo cedeu às pressões e começaram

a voltar ao Brasil os exilados pela ditadura.

No mesmo ano, Figueiredo promoveu uma reforma que acabou com o sistema

bipartidário e, consequentemente, com o MDB e a Arena. A idéia dos militares era

enfraquecer o MDB. As forças progressistas foram divididas em vários partidos,

                                                            33  Ver: GOHN. História  dos Movimentos  e  Lutas  Sociais:  a  construção  da  cidadania  dos  brasileiros.  Editora Loyola, São Paulo, 2003 

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53 

 

PMDB, PTB, PDT, PP e PT, enquanto a Arena se concentrou no PDS. Decretou,

também eleições diretas para os Estados a partir de 1980.34

A série de avanços políticos provocou reação da direita reacionária. Civis e

militares desses segmentos começaram praticar seqüestros e atos com bomba e a pôr

fogo em bancas que vendiam publicações consideradas por eles subversivas (o jornal

"O Pasquim", com suas sátiras ao regime militar e seu humor ácido, era um

exemplo).

Em São Paulo, o jurista Dalmo Dallari ficou em cativeiro e foi espancando, e,

no Rio de Janeiro, foi colocada uma bomba na sede da OAB (Ordem dos Advogados

do Brasil) e outra na sala do vereador do PMDB, Antonio Carlos Carvalho, que

matou um assessor técnico e tio do legislador municipal.

Em de abril de 1981, os atos violentos atingiram o clímax, com o episódio

Riocentro. Durante um show comemorativo do Dia do Trabalho, com cerca de 20 mil

pessoas e organizado por entidades sindicais, uma bomba foi encontrada na caixa de

força e outra explodiu em um carro estacionado no local, matando um sargento do

Exército e ferindo um capitão.

Diante do clamor público, o chefe do Gabinete Civil da Presidência, o general

Golbery do Couto e Silva, tentou agilizar as investigações e fazê-las seguir pela

Justiça comum. Golbery acabou se demitindo em agosto de 1981, após pressão das

Forças Armadas. O Exército negou envolvimento, e o processo foi sendo retardado

em todas as instâncias até ser arquivado anos depois.

Em 1982, as eleições fizeram da oposição a grande vitoriosa. Além da maioria

no Congresso, conseguiu o governo de Estados importantes. Em São Paulo, ganhou

Franco Montoro (PMDB) e, no Rio de Janeiro, Leonel Brizola (PDT).

O ambiente político propiciou em 1983 a apresentação pelo deputado federal

Dante de Oliveira (PMDB-MT) de uma emenda constitucional que previa a eleição

direta para presidente no ano seguinte. Ela novamente mobilizou a população a ir às

ruas e pedir a volta da democracia. No início de 1984, cerca de 500 mil pessoas foram                                                             

34  Ver MOTTA. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. Editora UFMG. Belo Horizonte, 1999. 

Page 54: Maria a Blaz Vasques Amorim

54 

 

a um comício na Candelária, no centro do Rio. Em São Paulo, cerca de 1,7 milhão

foram ao vale do Anhangabaú, na maior manifestação da história brasileira até então.

Os comícios contavam com as presenças de artistas e lideranças políticas,

como Ulysses Guimarães, Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Lula,

Teotônio Vilela, Barbosa Lima Sobrinho, Brizola, entre outros.

Figueiredo exprimiu as dificuldades de manter o regime militar com uma

frase já no final de seu mandato: “Quero que me esqueçam”. Foi nesse contexto, dos

anos 1950/1960 que nasceu e sofreu a intervenção dos militares a Faculdade Isolada

de São José do Rio Preto.

Educação e Regime Militar

Uma análise da educação ao longo dos 21 anos de ditadura militar deixa traduzir

de forma bastante límpida uma das grandes contradições do regime: produzir

mecanismos de desenvolvimento acelerado de acumulação de capital e garantir,

simultaneamente, o acesso da população aos direitos de bem-estar social. Esse

impasse não encontrou solução, e os direitos de bem-estar foram sacrificados em

nome do desenvolvimento acelerado( FÁVERO.1996)

Grandes modificações foram feitas no setor educacional. Reformaram-se os três

níveis de ensino (fundamental, médio e superior), expandiu-se a rede física e o

número de vagas nos estabelecimentos escolares. Durante a ditadura o Brasil,

começou a formar uma pequena, mas expressiva, elite universitária, desenvolvendo

pesquisas de ponta; os resultados do surgimento dessa elite podem ser verificados

hoje, através de pesquisas em áreas nas quais o Brasil ganhou destaque internacional,

como é o caso da engenharia genética, valendo ao país a participação no projeto

Genoma.

Enquanto se formava a pequena elite intelectual, milhões de brasileiros

continuavam analfabetos e, a cada ano, milhares de crianças não conseguiam ter

acesso à escolarização básica. Milhares de jovens deixavam a escola para ingressar no

mercado de trabalho. Alguns outros, heroicamente, conseguiam freqüentar as aulas

no período noturno e alguns poucos conseguiam chegar à universidade.

Page 55: Maria a Blaz Vasques Amorim

55 

 

A educação foi uma das grandes preocupações dos grupos que atuaram no

âmbito do Estado após 1964, pois o regime necessitava, tanto de técnicos altamente

qualificados quanto de mão-de-obra desqualificada. Mão-de-obra desqualificada e

“dócil”. A rede física foi expandida, um maior número de pessoas pôde freqüentar a

escola e nela aprendiam que o Brasil era um país democrático, católico e alinhado ao

mundo Ocidental (CUNHA.1977).

O investimento em educação, porém, não permitia que se absorvesse toda a

demanda escolar. Os recursos para a educação foram minguando ao longo do

período ditatorial, pois a prioridade do regime era o desenvolvimento acelerado.

O regime tencionava construir um sistema de ensino que fosse capaz de aplacar a

pobreza no Brasil, diminuindo a desigualdade social. Como diminuir a desigualdade

num modelo de desenvolvimento econômico que priorizava o enriquecimento da

camada mais rica da população? Essa pergunta não encontrou resposta nos

planejamentos educacionais desenvolvidos entre 1964 e 1985; a desigualdade social

não diminuiu, ao contrário, aprofundou-se(GERMANO.1994).

O setor educacional foi alvo constante dos ataques do governo. Qualquer forma

de discordância era logo taxada de “subversiva” ou “comunista”, e seu autor era

banido dos meios acadêmicos. O movimento estudantil sofreu muitas baixas, até que

perdeu sua força, mantendo-se quase inerte nos anos mais truculentos da ditadura.

Essa foi a outra forma de educar encontrada pelo regime: disseminando o terror, para

desencorajar atitudes de apoio ao “subversivos” ou “comunistas”. 35

A educação funcionou durante a ditadura militar como uma estratégia de

hegemonia. O regime procurou difundir seus ideais através da escola, buscando o

apoio de setores da sociedade para seu projeto de desenvolvimento,

simultaneamente ao alargamento controlado das possibilidades de acesso ao ensino

pelas camadas mais pobres.

Divulgou conceitos produzidos pela Escola Superior de Guerra nos manuais de

Estudos dos Problemas Brasileiros, instrumentalizando os privilegiados que tinham

                                                            35 Ver: ALVES. Estado e Oposição no Brasil 1964‐1984. EDUSC. Bauru, São Paulo, 2005. 

Page 56: Maria a Blaz Vasques Amorim

56 

 

acesso ao ensino superior no combate aos “inimigos internos”, na “defesa da Pátria”

e na “preservação dos valores nacionais”.

Após 21 anos de ditadura militar, restou ao Brasil um sistema educacional com

graves problemas: uma estrutura física que, apesar de estendida, não foi suficiente

para atender à demanda crescente; uma queda na qualidade do ensino superior, com

a proliferação de “empresas educacionais” que permitiram o acesso de um pequeno

contingente das camadas de menores níveis de renda ao ensino superior, contingente

este que custeava seus próprios estudos; queda na qualidade dos níveis elementares

de ensino, dada a queda na qualidade de formação dos profissionais de educação,

além da depreciação das condições de trabalho desses profissionais (MECHI,2006).

Page 57: Maria a Blaz Vasques Amorim

57 

 

HISTORIOGRAFIA

O Brasil mergulhou de 1964 a 1985 em um dos períodos mais difíceis de sua

História. Durante 21 anos o país viveu um regime que marcou a nação, seu povo e

suas instituições. Foram 20 anos de confronto entre forças políticas e sociais. Nesse

período, tanto governo como oposição, lutaram acirradamente e utilizaram todos os

seus recursos para ganhar a luta e o poder. Utilizou-se largamente a censura, o

terrorismo, a tortura e a guerrilha.

A memória dessa época adquiriu um significado, na maioria das vezes,

obscuro. O Regime Militar é o reino da exceção, os anos que ele durou são

chamados anos de chumbo.

Têm-se percebido um crescente interesse de historiadores e estudantes de

graduação pelos temas do período 1964-1985. Ouso dizer que se trata de um

movimento de incorporação, pelos historiadores, de temáticas outrora teorizadas

quase exclusivamente por cientistas políticos e sociólogos. A produção

historiográfica sobre o golpe de 64 e o regime que o sucedeu, ficou marcada em uma

primeira fase por dois gêneros importantes. O primeiro foi inspirado na vertente

norte-americana produzido pelos brazilianists36, que buscava explicar e classificar, em

temos quase nominalistas, as crises militares de países como o Brasil. Seriam os

militares uma instituição autônoma ou estariam a serviço de determinados grupos

sociais? Os regimes militares latino-americanos poderiam ser explicados pelo mesmo

modelo teórico? O caso brasileiro seria diferente de todos os outros? Esses debates

produziram uma bibliografia bastante intensa que são contribuições significativas

para o entendimento do Golpe.

                                                            

36 A partir de 1964 vieram ao Brasil algumas dezenas de acadêmicos americanos para estudar nossa história, economia, os militares, a situação política. Foram chamados de "brazilianistas" . Alguns, como o economista Albert Fishlow, produziram as primeiras contestações à mistificação designada como "Milagre Brasileiro". Hoje chefiam departamentos das mais importantes universidades americanas (caso de Alfred Stepan, Thomas Skidmore etc.).Para ver mais: A colônia brasilianista de José Carlos Sebe Bom Meihy. 

Page 58: Maria a Blaz Vasques Amorim

58 

 

O segundo gênero foi a memorialística, que cresceu, sobretudo á partir do

Governo Geisel. Foi, de algum modo, a primeira tentativa de construção de uma

narrativa histórica sobre o período.

Há várias interpretações para o Golpe, e o período imediato que o antecedeu

costuma ser tratado pelas variáveis sociais, políticas e econômicas. Encontramos

estudos que dão ênfase à quebra do pacto populista e seus desdobramentos e a

chamada “questão militar” que surgiu nos fins da década de 1950. Outros estudos

dedicam-se à questão das “massas”, à problemática da crise político-partidária e

outros ainda consagram-se a aspectos de caráter mais estrutural, ligados às condições

de desempenho da economia brasileira herdadas do Plano de Metas

(MENDONÇA.1994).

A produção histórica que marca a nova fase de estudos sobre a ditadura

militar possui suas especificidades. Desse modo, para o historiador, a partir dos anos

80, verifica-se no Brasil a busca de outros padrões de narratividade que não fosse o

marxismo, mas também não passasse pela pretensão rankeana de mostrar “o que

realmente aconteceu”. Surgiu, então, um novo padrão de narratividade que estava

baseado na estratégia cognitiva da valorização da subjetividade, do cotidiano,

através de versões verossímeis que não almejavam firmarem-se como verdade

absolutas, concatenadas, e sim, quanto possível, em narrativas na voz dos sujeitos

que participaram ativamente desse período e sofreram punições por isso.Essas

narrativas permitem novas análises e compreensão de questões até então sem espaço

na historiografia. Esta é a linha de estudos adotada por esse trabalho.

Essa nova linha explica, talvez, a grande quantidade de trabalhos sobre o tema

cultura durante o regime militar.37 A Nova História envolve inúmeras correntes,

                                                            37 De  acordo  com  Peter  Burke,  a Nova  História  diferencia‐se  da  tradicional  em  seis  pontos:  o  paradigma tradicional diz respeito somente à história política, a Nova História, como dito anteriormente, preocupa‐se com uma história total, onde tudo é histórico; a história tradicional pensa na história como narração dos grandes fatos, a nova preocupa‐se em analisar as estruturas; a tradicional olha de cima, a nova, de cima, de baixo e de outros ângulos possíveis; documentos oficiais são os que interessam ao paradigma tradicional, o paradigma da Nova História aceita qualquer espécie de documento; o historiador tradicional explica por meio da vontade do indivíduo histórico, a Nova História preocupa‐se com os movimentos sociais, as  tendências; e,  finalmente, o paradigma tradicional considera a História uma ciência objetiva, o paradigma novo não crê na possibilidade de uma objetividade total. 

Page 59: Maria a Blaz Vasques Amorim

59 

 

algumas discrepantes entre si. Porém, não se pode negar que foi nesse contexto que

os estudos históricos sobre o período 1964-1985 se avolumaram. Em uma breve

reflexão sobre as principais teses que explicam o fenômeno do Golpe, podemos dizer

que os trabalhos mais sólidos podem ser agrupados em três correntes: as tentativas

de teorização da Ciência Política, as análises marxistas e a valorização do papel dos

militares. Existem vários autores que têm escrito e estudado os mais variados

aspectos sobre o Regime Militar: Élio Gaspari, Carlos Fico, Maria Celina D’Araujo,

Celso Castro e Gláucio Soares, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti, Rodrigo Sá Mota,

Maria Helena Moreira Alves,Heloisa Buarque de Hollanda, Marcos Augusto

Gonçalves, Carlos Fico, Renato Ortiz, Roberto Schwarz, Jacob Gorender entre vários

outros. Entre a extensa bibliografia sobre o período (em geral) destaco algumas obras

que considero dialogar com o meu trabalho e que foram úteis para estabelecer a

análise das entrevistas. Sobre intervenções em outras instituições de ensino, priorizei:

. O Livro Negro da USP, o controle ideológico sobre a universidade, Associação dos

Docentes da Universidade de São Paulo em 1978, São Paulo, sendo que esta é a única

publicação encontrada que aborda, ainda que brevemente, a invasão, em São José do

Rio Preto, porém, em face à analise pormenorizada do ataque à USP e das questões

políticas internas também presentes nesse texto, é possível entender melhor o caso

Rio Preto.

. Heloisa Buarque de Holanda escreveu o livro Cultura e participação nos anos 60. Nele

se encontra uma descrição do panorama cultural brasileiro nos anos 60, situação

oportuna para alimentar debates em nosso trabalho, uma vez que, como

esclareceremos a seguir, na faculdade de Rio Preto havia um grupo de teatro amador

(GRUTA) e uma célula do MCP (Movimento de Cultura Popular) muito atuantes.

. Ainda sobre cultura nos anos de 1960 e mais especificamente sobre o MPC

(Movimento Popular de Cultura), Renato Ortiz analisa em Cultura Brasileira e

Identidade Nacional, a questão do nacional e do popular na cultura brasileira. O autor

procura mostrar que a identidade nacional está profundamente ligada a uma

reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado

Page 60: Maria a Blaz Vasques Amorim

60 

 

brasileiro, Não existe, assim, uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de

identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos

históricos.

. Por constituir um amplo balanço e avaliação dos estudos sobre o Golpe de 64,

deve ser destacado o livro do historiador Carlos Fico, Além do Golpe. Versões e

controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, Ed. Record, 2004, Rio de Janeiro. O autor

discute as principais interpretações sobre o golpe e o regime militar. O principal

objetivo do livro de Carlos Fico é expor e discutir as mais importantes correntes da

historiografia sobre o Golpe de 1964 e confrontar algumas questões controvertidas

sobre repressão política, censura e outros temas da ditadura militar. O livro Além do

Golpe faz uma análise precisa das inúmeras correntes historiográficas sobre o Golpe

de 64. A seleção de documentos históricos que ele apresenta é muito esclarecedora.

São 75 textos na integra. Mergulhar na leitura desses textos nos transporta para os

anos 60 e personagens da História como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek,

Leonel Brizola e João Goulart. Ao longo da leitura o leitor vai construindo seu

próprio olhar sobre a revolução de 64. O professor Fico divulga em seu trabalho,

também, uma seleção de mais de 1100 títulos bibliográficos classificados por temas.

. Roberto Schwarz em O pai de família e outros estudos, Paz e Terra, 1992, São

Paulo, procede a uma análise sobre a derrota política da esquerdas brasileiras na

conjuntura de 1964, apontando e questionando os erros e equívocos das mesmas . ]

Nessa mesma direção encontramos Jacob Gorender, Combate nas Trevas. A

partir de sua vivência e recordações, mas, sobretudo, de uma vasta pesquisa em

livros, documentos de organizações e da realização de dezenas de entrevistas, o

autor reconstrói a trajetória dos partidos e grupos de esquerda, sobretudo no período

que vai de 1964 até 1974, ano em que a esquerda brasileira se encontrava mergulhada

em sua mais grave crise, depois de ter sido esmagada pela repressão da ditadura.

. Marcelo Ridenti em O Fantasma da Revolução Brasileira, tem a preocupação de

recuperar também a análise de classes e suas formas de representação, o autor parte

Page 61: Maria a Blaz Vasques Amorim

61 

 

para o estudo da composição social e das bases sociais das organizações e partidos de

esquerda que atuaram naquele período. O período sobre a participação de operários,

em particular os episódios de Osasco, assim como a participação das mulheres, ex-

militares subalternos e camponeses, foi baseado nos números que aparecem nos

processos movidos pela Justiça Militar. E, esses números foram enriquecidos por

depoimentos de ativos militantes daquele período. Ridenti explora outros e novos

ângulos. A agitação cultural-revolucionária dos anos 60 é analisada com riqueza e

perspicácia, revelando contradições pouco difundidas no campo da esquerda.

. Para os estudos sobre os militares no período utilizamos as obras de Élio

Gaspari composta de quatro livros: A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada,

A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada, todos editados pela Cia. Das Letras,

em 2002, 2003 e 2004 respectivamente. Uma das maiores virtudes dessa obra talvez

resida no seu inequívoco esclarecimento sobre a prática sistemática da tortura

durante todo o regime militar.

. Outras obras que abordam as visões à esquerda e à direita militares sobre o

Golpe são as de Maria Celina D’Araújo, Celso Castro e Glaucio Ary Dillon Soares,

Visões do Golpe: A Memória Militar de 1964, Ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994.

Seu mérito é o de trazer a voz dos quartéis através de 12 entrevistas com oficiais que

articularam o golpe, e que depois participaram do regime até o seu ocaso, sempre

ocupando cargos de destaque nos governos que se sucederam até 1985.

Maria Celina D’Araujo, Gláucio Soares e Celso Castro38 colheram

depoimentos de vários generais que tiveram papel importante no Golpe de 64. Nos

depoimentos colhidos por esses historiadores vislumbram-se o papel central do

anticomunismo na explicação dos motivos que levaram ao golpe. A visão desses

militares conduz a uma leitura de um “contragolpe” ao golpe de esquerda que com

certeza aconteceria. Era necessário o Golpe para impedir uma república comunista,

sindicalista ou popular. Para os militares, a esquerda cometera um pecado capital

                                                            38 Os três autores são pesquisadores do CPDOC da Fundação Getulio Vargas e escreveram 6 livros, utilizando a Metodologia da História Oral contando a visão dos militares sobre o Golpe de 64. 

Page 62: Maria a Blaz Vasques Amorim

62 

 

quando quebrou os princípios da hierarquia e da disciplina militar como o apoio a

revolta dos sargentos em 6339 e a dos marinheiros e fuzileiros navais em março de

196440. Isto por si só seria motivo para a intervenção militar, segundo alguns. Por

outro lado, no depoimento de Leônidas Pires Gonçalves, “ A Revolução saiu sob a

pressão da sociedade civil” (D’ARAUJO et al. (orgs.).2004), pois, assustados com a

possibilidade da esquerda tomar o poder, a Igreja, empresários e classe média foram

cúmplices do golpe.

Talvez o ponto mais interessante destes depoimentos (é assim que os autores

chamam o que para mim são entrevistas), seja o fato de que o golpe apareça como o

resultado de ações dispersas e isoladas (D’ARAUJO et AL. (orgs.).2004) Assim, não

havia um projeto de governo entre os vencedores, sendo o mesmo moldado ao longo

do exercício do poder, especialmente para conter os excessos da chamada linha dura

como forma de garantir a unidade militar.

Assim, na disputa mnemônica entre a memória militar e a da esquerda, pelo

menos do ponto de vista simbólico, a esquerda pode trazer à tona suas memórias de

64, derrotando assim a memória dos militares. Mesmo submetida a uma violência

extrema e mantida na clandestinidade, a “memória subterrânea”41 dos militantes de

esquerda dos anos 1960-1970 soube construir uma rede simbólica e marginal na

família e nos círculos que possibilitou a sua emergência no processo de

democratização, denunciando as cassações, prisões e torturas a que foram

submetidos.

Nas últimas duas décadas, porém, produziu-se uma rica bibliografia sobre o

período militar, onde se destacam as obras acadêmicas, os ensaios memorialistas e                                                             

39 A  Revolta dos Sargentos (12/9/63), aconteceu quando cerca de 600 soldados tomaram prédios públicos em Brasilia, quebrando a hierarquia com o pretexto de contestarem o direito a elegibilidade. 

40  No dia 24 houve a rebelião dos marinheiros e fuzileiros navais no Sindicato dos Metalúrgicos, que demonstravam desobediência à hierarquia militar, não foi contestada por João Goulart.Goulart parecia pressentir o terreno minado onde se aventurava quando decidiu ir ao Clube do Automóvel, no dia 30, discursar para suboficiais e sargentos das Forças Armadas 

41 Ver:POLLACK.   Memória, Esquecimento e Silêncio.  In:Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol. 2, n.3, p.3‐15, 1989. 

Page 63: Maria a Blaz Vasques Amorim

63 

 

trabalhos científicos produzidos por protagonistas dos fatos. Alguns trabalhos de

fôlego, como o de Maria Celina D’Araujo sintetizam e aprofundam essa produção.

Outro trabalho que apresentou ao público brasileiro a história do Regime Militar sob

a ótica dos militares foi o do jornalista Élio Gaspari. Num total de 4 volumes,

produto de 20 anos de pesquisa em arquivos e resultado de horas de gravação de

depoimentos cedidos por dois protagonistas do Golpe, Ernesto Geisel e o coronel

Golbery do Couto e Silva.

Apesar de Élio Gaspari afirmar que em “nenhum momento passou por sua

cabeça escrever uma história da ditadura”, o ambicioso projeto constitui nos fatos um

ensaio de interpretação geral do regime militar, de 1964 a 1979, centrado em uma

grande questão: as razões essenciais do ingresso e da saída do regime ditatorial.

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64 

 

PARTE IV

É chegada a hora.

Descem esperanças azuis e

brancas,

Sobre cabeças idealistas.

(Desova Poética/Zeque Elias)

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65 

 

SOBRE O ENSINO SUPERIOR NO BRASIL NO SÉCULO XX

O desenrolar do século XX permitiu uma série de avanços no Ensino Superior

no Brasil. A criação da Universidade de Brasília em dezembro de 1961 que surgiu,

não apenas, como a mais moderna universidade do país, mas como um divisor de

águas na história das universidades do país, tanto por suas finalidades como por sua

organização institucional. Nesse contexto destaca-se a posição da UNE por combater

o caráter elitístico e arcaico das instituições universitárias. Uma das questões

fundamentais era a proposta de participação do corpo docente e discente na

administração universitária, através do critério de proporcionalidade representativa.

Este mesmo projeto já estava sendo colocado em prática na FAFI de São José do Rio

Preto. Outro ponto de destaque era o desejo de revogação do acordo MEC-USAID42

Os seminários da UNE sobre a Reforma Universitária no início dos anos 1960,

de modo geral colocam sempre o problema da universidade articulado com as

reformas de base e questões políticas mais globais.

Ainda no inicio dos anos 1960, algumas universidades, entre elas a

Universidade do Brasil, elaboraram planos de reformulação estrutural. No caso da

UB, o Conselho Universitário designou, em fevereiro de 1962, uma comissão especial

para tratar da questão. De seus trabalhos resultou o documento Diretrizes para a

Reforma da Universidade no Brasil . Em junho de 1963 essas diretrizes foram aprovadas,

mas com o Golpe Militar de 1964, sua implantação é sustada.43

                                                            

42 MEC USAID  é  a  fusão  das  siglas Ministério  da  Educação  (MEC)  e United  States Agency  for  International Development  (USAID).  Simplesmente  conhecidos  como  acordos MEC‐USAID  cujo  objetivo  era  aperfeiçoar  o modelo educacional brasileiro.  Isto se deu através da reforma do ensino, onde os cursos primário  (5 anos) e ginasial  (4 anos)  foram  fundidos, se chamando de primeiro grau, com 8 anos de duração e o curso científico fundido com o clássico passou a ser denominado segundo grau, com 3 anos de duração, e o curso universitário passou a ser denominado terceiro grau. Com essa reforma, se eliminou um ano de estudos fazendo com que o Brasil tivesse somente 11 níveis até chegar ao fim do segundo grau. 43   A respeito consultar FÁVERO, M. L. A. A UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999 FÁVERO, M. L. A. A Universidade no  Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968 ,Educar, Curitiba, n. 28, p. 17‐36, 2006. Editora UFPR 

 

Page 66: Maria a Blaz Vasques Amorim

66 

 

NO INTERIOR...

São José do Rio Preto ontem...(1955)

Figura 1Fonte: Globalframe ‐ Autor: desconhecido

... e hoje. (2009)

Figura 2 Fonte: Skyscrapercity. Autor: desconhecido.

Num retraço, a história de São José do Rio Preto...

Fundada em 19 de Março de 1852, sua história iniciou-se com o

desbravamento e a ocupação do solo do sertão paulista em meados do século 19. A

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67 

 

partir de 1840, mineiros fixaram-se e deram início à exploração agrícola e a criação de

animais domésticos.

Em 1852, Luiz Antônio da Silveira doou parte de suas terras ao seu santo

protetor, São José, para que o patrimônio desse origem a uma cidade. A 19 de março

de 1852, João Bernardino de Seixas Ribeiro (o fundador de São José do Rio Preto), que

já tinha construído uma casa de sapé nas terras do patrimônio, liderou os moradores

das vizinhanças que ergueram um cruzeiro de madeira e edificaram uma pequena

capela para as funções religiosas. Em 20 de março de 1855, o então Bairro de

Araraquara foi elevado à categoria de Distrito de Paz e de Polícia.

No ano de 1867, o Visconde de Taunay, ao retornar da Guerra do Paraguai,

pernoitou no vilarejo e registrou em seu diário o estado precário em que o mesmo se

encontrava. No dia 21 de março de 1879, quando fazia parte do município de

Jaboticabal, a Capela de São José é elevada à Freguesia e em 19 de julho de 1894, São

José do Rio Preto foi desmembrada de Jaboticabal, transformando-se em município,

pela Lei no. 294. Era um imenso território, limitando-se nos rios Paraná, Grande,

Tietê e Turvo, com mais de 26 mil km2 de superfície. A presença dos rios não se

esgota na fertilidade que tanto impulsionou a agricultura na região, mas expandiu-se

simbolicamente como vias de acesso e penetração.44

Em 1904 (lei n° 903) foi criada a comarca São José do Rio Preto. A partir de

1906 a cidade teve seu nome reduzido para Rio Preto. Somente em 1945 retomou o

nome original de São José do Rio Preto. Com a chegada da Estrada de Ferro

Araraquarense (EFA), em 1912, a cidade assumiu o seu destino de pólo comercial de

concentração de mercadorias produzidas no então conhecido “Sertão de

Avanhandava” e de irradiação de materiais vindos da capital.

A origem do nome da cidade vem da junção do padroeiro da cidade, São José,

e do primeiro rio que corta o município, o Rio Preto. O tempo foi passando e em

1951, no governo de Jânio Quadros foi ampliada a Estrada de Ferro (EFA) que

                                                            44  Em: Newton Ramos de Oliveira – Dissertação de Mestrado – São Carlos 1994. 

Page 68: Maria a Blaz Vasques Amorim

68 

 

atingiu a cidade de Jales e região. São José do Rio Preto tornava-se ponte de acesso ao

Triângulo Mineiro, ao Estado de Mato Grosso e Goiás, onde Juscelino Kubitschek

construiu aquilo que foi seu orgulho: Brasília.

Um personagem destacava-se na política da cidade, Alberto Andaló,

riopretense, foi eleito prefeito aos 40 anos, após campanha anti-ademarista . Muitos

diziam que ele era franco atirador, irreverente, dinâmico, mas de total inconsistência

ideológica. O que nos interessa sobre ele é que participou da criação e instalação da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto.

Desde 1953, o Professor Daud Jorge Simão, docente do Instituto de Educação

Monsenhor Gonçalves, considerada a melhor escola da região, cujos professores

eram muito respeitados, defendia a criação de uma faculdade em São José do Rio

Preto, e o fez através de artigos publicados no Jornal “A Notícia”. Recebeu amplo

apoio da população e em 22 de maio do mesmo ano houve uma concentração de

estudantes reivindicando escolas superiores45.

Inicialmente se propôs através da lei no. 834, a criação da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras, subordinada à Universidade de São Paulo na cidade,

porém a iniciativa recebeu manifestação contrária do governador do Estado, Jânio

Quadros.

Essa primeira decepção não abalou o sonho de uma Faculdade em São José do

Rio Preto, e em 1955, um Projeto de Lei no. 30/55 da autoria do mesmo professor e

também vereador Daud Jorge Simão criou a Universidade Municipal de São José do

Rio Preto e o Prefeito Philadelpho Gouveia Neto promulgou, através da Lei no. 394 a

criação da Universidade Municipal, que embora tenha sido criada em 1955, só foi

autorizada a funcionar pelo Decreto Federal 41.061 de 1957.

Inicialmente, entre 1957 e 1958, a Faculdade funcionou com verbas municipais,

era gerida por um Conselho Universitário composto por representantes profissionais

                                                            45 Em:LODI, N A, Boletim Sapere Aude , FAFI 

Page 69: Maria a Blaz Vasques Amorim

69 

 

liberais. A direção foi confiada ao Sr. Rafael Grisi, talvez porque o mesmo fosse

irmão do chefe do Gabinete Civil do Governador Jânio Quadros, Sr. Décio Grisi. O

corpo docente inicial foi composto por Rodolfo Azzi, Wilson Cantoni, Norman

Maurice Potter, José Aloysio Reis de Andrade, Orestes Nigro e Bruna Denti, que

vinham direto da USP Maria Antonia; da Universidade Nacional do Rio de Janeiro

veio João Jorge Cunha; Por indicação do Prof. Celso Abade Mourão vieram Luis Dino

Vizzoto e Alberto Barbosa Pinto Dias. Também foram convidados os estrangeiros

Erich Arnold Von Bruggenhagen, alemão, Edoardo Querin, italiano, e o lusitano

Antonio Pinto de Carvalho.

A Faculdade funcionava em uma ala com 4 salas de aula do Instituto de

Educação, tinha poucos funcionários e não contava com a presença efetiva do diretor

que preferia ficar em seu escritório na Rua Maria Antonia, 242, segundo ele, em

busca de verbas.

Em 1958 a Faculdade transferiu-se para um local um pouco maior e já

contava com um Centro Acadêmico de Filosofia. Nesse mesmo ano realizou-se uma

campanha pela estadualização da Faculdade, uma vez que os recursos municipais

não eram capazes de garantir as necessidades da mesma.

Como já havia uma lei estadual criando uma faculdade de Filosofia, Ciências

e Letras do Estado, a empreitada ficou mais suave. Conta-se que uma comitiva de

professores, alunos do CAF(Centro Acadêmico da FAFI) e o Prefeito Alberto Andaló

vieram para uma audiência com o governador Jânio Quadros, na cidade de São

Paulo, que inicialmente recusou-se a estadualizar a Faculdade, mas como o Prefeito

Andaló não tinha papas na língua e era o maior cabo eleitoral de Jânio na Região

acabou “convencendo-o”usando palavras de baixo calão e em 1959, a Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto foi estadualizada, tornando-se a

primeira escola desse tipo a ser mantida pelo governo de São Paulo, recebendo o

nome de Faculdade Isolada de São José do Rio Preto.

Page 70: Maria a Blaz Vasques Amorim

70 

 

É importante ressaltar que a população de São José do Rio Preto era composta,

na sua maioria por políticos tradicionais, oligárquicos, pecuaristas, agricultores,

profissionais liberais e comerciantes que formavam e tinham interesse em manter

uma hegemonia sobre aquela grande região. Não foi perguntado a eles que tipo de

faculdade Rio Preto queria, qual modelo, com quais finalidades e no futuro essa

ausência de diálogo mostrou seus resultados.

Desde o inicio da criação da Faculdade estabelecera-se uma dualidade. De um

lado os professores da cidade, a maioria do Instituto de Educação Monsenhor

Gonçalves, que se sentiram alijados de lecionar na Faculdade que tinham ajudado a

instalar, o que provocou uma animosidade intensa aos professores que vieram da

USP, chamados de “rebeldes”. Estabeleceu-se também um sério embate entre

professores “rebeldes” e o diretor da Faculdade, o Prof. Rafael Grisi, que era acusado

por eles, entre outras coisas, de desvio de verbas. A situação ficou tão complicada

que o Prof. Grisi chegou a demitir quase todos os “rebeldes” e depois por pressão

dos alunos teve que readmiti-los.

Esses jovens professores vindos da USP foram estabelecendo na instituição um

intenso movimento cultural com um grupo de teatro amador (GRUTA), criado pelo

professor Orestes Nigro, professor da cadeira de Língua Francesa da Faculdade. O

grupo foi criado, segundo o Professor Orestes, como uma alternativa cultural aos

estudantes, sem nenhuma pretensão política. Para ajudar a criar o Gruta foram

contatados os atores Gianfrancesco Guarnieri e Juca de Oliveira, que passaram ir à

cidade encenar suas peças, promover debates com os alunos e segundo o próprio

Juca de Oliveira, a intenção era criar um Teatro de Arena no interior. Naquele

contexto de interpretação do “nacional-popular” e consolidação da ideologia

nacionalista, atores, dramaturgos, diretores, produtores e companhias teatrais com

vínculos ideológicos com o “movimento nacionalista brasileiro” procuraram, de

formas diferentes, politizar e popularizar o teatro brasileiro. (GARCIA. 2004)

A fundação da companhia Teatro de Arena ocorreu em 1953, com a estréia,

nos salões do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP, de Esta Noite É

Page 71: Maria a Blaz Vasques Amorim

71 

 

Nossa, de Stafford Dickens. Integraram o grupo, entre outros, José Renato, Geraldo

Mateus, Henrique Becker, Sérgio Britto, Renata Blaunstein e Monah Delacy.

Ainda em 1953, produziu-se um repertório, que incluiu O Demorado Adeus, de

Tennessee Williams, e Uma Mulher e Três Palhaços, de Marcel Achard, ambas sob

direção de José Renato; além de Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, com

direção de Sergio Britto, em 1954. As apresentações ocorreram em clubes, fábricas e

salões. No final do ano foi apresentada à imprensa a sala, situada na Rua Teodoro

Baima, onde foi instalado o Teatro de Arena.

Até 1956, o Arena experimentou diferentes gêneros de textos, visando compor

um repertório e encontrar uma estética própria. Novo patamar foi alcançado com a

fusão realizada com o Teatro Paulista dos Estudantes, TPE, e a contratação de

Augusto Boal para ministrar aulas sobre as idéias de Stanislavski ao elenco e encenar

Ratos e Homens, de John Steinbeck. Entre os recém- chegados estavam Gianfrancesco

Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Milton Gonçalves, Vera Gertel, Flávio Migliaccio,

Floramy Pinheiro, Riva Nimitz. A presença de Augusto Boal, que havia cursado

dramaturgia em Nova York e conhecia os escritos de Stanislavski pela via do Actor's

Studio, conduziu o grupo a um posicionamento político de esquerda. Em 1957, Juno e

o Pavão, de Sean O'Casey tratou da luta do IRA, na Irlanda.

À beira da dissolução devido a uma crise financeira e ideológica, o grupo foi

salvo pelo sucesso de Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, com

direção de José Renato, em 1958. Vislumbrando uma fértil possibilidade aberta pelos

textos nacionais, que colocavam em cena os problemas que a platéia queria ver

retratados no palco, o Arena resolveu criar um Seminário de Dramaturgia e

Laboratórios de Interpretação. Novos textos demandaram um novo estilo de

interpretação, mais próximo dos padrões brasileiros e populares.

Entre 1958 e 1960, o Arena levou à cena diversos originais escritos pelos

integrantes da companhia, num expressivo movimento de nacionalização do palco,

difusão dos textos e politização da discussão da realidade nacional. Nomes como

Page 72: Maria a Blaz Vasques Amorim

72 

 

Paulo José, Dina Sfat, Joana Fomm, Juca de Oliveira, João José Pompeo, Lima Duarte,

Myrian Muniz, Isabel Ribeiro, Dina Lisboa, Renato Consorte, entre outros,

integravam o elenco estável.

Segundo o crítico Sábato Magaldi,

O Teatro de Arena de São Paulo evoca, de imediato, o

abrasileiramento do nosso palco, pela imposição do autor

nacional. Os Comediantes e o Teatro Brasileiro de Comédia,

responsáveis pela renovação estética dos procedimentos

cênicos, na década de quarenta, pautaram-se basicamente por

modelos europeus. Depois de adotar, durante

as primeiras temporadas, política semelhante à do TBC, o

Arena definiu a sua especificidade, em 1958, a partir do

lançamento de Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco

Guarnieri. A sede do Arena tornou-se, então, a casa do autor

brasileiro. O êxito da tomada de posição transformou o Arena

em reduto inovador, que aos poucos tirou do TBC, e das

empresas que lhe herdaram os princípios, a hegemonia da

atividade dramática. De uma espécie de TBC pobre, ou

econômico, o grupo evoluiu, para converter-se em porta-voz

das aspirações vanguardistas de fins dos anos cinqüenta.

(MAGALDI.1984)

Aos poucos e auxiliado por Juca de Oliveira e Guarnieri, O GRUTA deu inicio

a uma intensa programação cultural, começando a se apresentar nas cidades da

região e em outras faculdades isoladas do interior paulista como Araraquara e Assis.

As atividades teatrais desse grupo, à semelhança do que ocorria no Brasil na década

de 1960, se desdobraram em outros tipos de ações incorporando as artes em geral.

Page 73: Maria a Blaz Vasques Amorim

73 

 

Paralelamente, o Professor Franz Wilheim Heimer, alemão, militante e criador

da AP46 e do MPC na região, desenvolvia um trabalho financiado por entidades

alemãs ligadas à Igreja Católica para a criação de um sindicato de trabalhadores

rurais em Recife, Pernambuco, e foi lá que conheceu Paulo Freire e seu método de

alfabetização47. O Professor Heimer, orientado pelo próprio Freire, não demorou a

colocar em prática os novos métodos na região, inicialmente com a autorização dos

proprietários das fazendas, contando também com os alunos que faziam parte do

GRUTA e do CAF (Centro Acadêmico da Filosofia).

Em 1952 nasceu no Brasil a Campanha Nacional de Educação Rural, mais

precisamente no governo Vargas, oficializada em 1956 no Governo Juscelino

Kubitschek. Criada para funcionar em nível nacional, um de seus principais objetivos

foi o de adequar os camponeses para o momento desenvolvimentista daqueles anos,

valendo-se da educação fundamental, incluindo-se aí a alfabetização.

(BARREIRO.1994) Acredito que, pela semelhança, tal campanha possa ter se

inspirado nos estudos de Paulo Freire.

Concomitantemente outros professores como Wilson Cantoni, Mauricio

Traugtenberg, Hélio Leite de Barros, entre outros, juntamente com os alunos

travavam árdua luta pela melhoria do ensino público e eram entusiastas defensores

da reforma universitária pretendida então pelo Presidente João Goulart. Reuniram-se

Professores, o GRUTA, o CAF, a UNE (União Nacional dos Estudantes) e elaboraram

                                                            

46 Constituído no seio da Juventude Universitária Católica (JUC) um núcleo radical que teve grande atuação política, que se organizou fora da JUC e depois rompeu formalmente com a Igreja. A Ação Popular foi fundada em junho de 1962, em Belo Horizonte. Seus fundadores foram Herbert José de Souza, Aldo da Silva Arantes, Luiz Alberto Gomes de Souza, Haroldo Borges Rodrigues Lima, Cosme Alves, Duarte do Lago Brasil Pacheco Pereira, Antonio Lins, Severo Albuquerque Sales, Péricles dos Santos, Maria Angélica Duro e Manuel Joaquim Barros (“História da AP”, Aldo da Silva Arantes e Haroldo Borges Rodrigues Lima, editora Alfa‐Omega, 1984). Utilizando a União Nacional de Estudantes e, mais propriamente, a chamada “UNE volante”, foram organizados vários núcleos da Ação Popular pelo Brasil, tendo como base militantes da JUC. Nessa etapa, a AP adotou como filosofia as teses do padre Henrique de Lima Vaz que foram aprovadas em um Congresso da Organização, realizado em 1963 em Salvador‐BA. Essas teses receberam a denominação de “Documento Base”. 

47 Para mais informações ver: BRANDÃO, C.R.(1981) “O que é o Método Paulo Freire”. Brasiliense. São Paulo. 

 

Page 74: Maria a Blaz Vasques Amorim

74 

 

um abaixo assinado que gestou o movimento que deu origem à passeatas por todo

Brasil exigindo uma Escola Pública de Qualidade.

Chopin Tavares de Miranda (Secretário da Educação), Leonel Brizola (Político

e fundador do PTB), Florestan Fernandes (Intelectual), Rubens Paiva (Deputado

Federal), Almino Afonso (Ministro do Trabalho e Desenvolvimento de João Goulart),

Márcio Moreira Alves(Deputado, autor do discurso que supostamente levou à

criação do AI5), Antonio Cândido (intelectual e crítico literário), e outros, passaram a

manter estreita ligação com um grupo de professores da Faculdade, dando palestras

e ajudando a promover na região um grande movimento social.

Educar parece ter sido, sempre um dos lemas que orientou os professores e

mentores de tal movimento, mas como tudo isso repercutia naquela cidade do

interior do Estado de São Paulo? O que representava para as oligarquias da chamada

“Boca do Sertão” todas essas mudanças de padrões, comportamento e valores?

Essas perguntas podem ser respondidas se observarmos os muitos problemas

institucionais e a nível municipal enfrentados por um grupo de professores. Era clara

a hostilidade, da área municipal aos círculos chegados da capital do Estado. Pais de

filhas bem nascidas acreditavam ser uma aberração professores permitirem que as

mesmas fossem, após as aulas, tomar cerveja com eles. Havia até os que diziam temer

uma USP Caipira. O que não ocorreu, pois a Faculdade se firmou como uma escola

de ensino e pesquisa renovadores, sendo uma das primeiras que teve representação

paritária entre alunos e professores, isto é nos cursos de Pedagogia, Letras e Filosofia,

pois os professores do curso de História Natural não aceitavam isso. Deu-se aí a

grande ruptura dentro da faculdade que teria um papel fundamental em 1964. Tal

situação foi tão intensa que os professores de ambos os grupos deram inicio à

discussões públicas pelos jornais da cidade.48

Outro problema sério da Faculdade dizia respeito ao seu diretor o Dr. Rafael

Grisi, acusado pelos professores de abandono da Faculdade, desvio de verbas e má

                                                            48 Ver artigos em Anexo 3 

Page 75: Maria a Blaz Vasques Amorim

75 

 

conduta. Foram várias as correspondências dos professores contra o Dr. Grisi para os

órgãos e pessoas encarregados da educação naquele momento, deu-se assim o

afastamento do Dr. Grisi da direção da Faculdade acirrando ainda mais os ânimos já

exaltados de professores com visões e aspirações diferenciadas.

É possível que esses problemas tenham influenciado diretamente na

intervenção na Faculdade, uma vez que o próprio professor Daud Jorge Simão se

encarregou de denunciar vários colegas e alunos da FAFI.

A Faculdade Isolada de São José do Rio Preto foi a primeira faculdade do

Brasil a sofrer intervenção em 01 de abril de 1964 as 9h30. Após esse Golpe, foi

implantada uma universidade manu militari, visando impedir que a universidade

pudesse a vir desempenhar qualquer atividade contestadora, como ocorrera no

passado recente. Em suma, a universidade foi esterilizada politicamente, diga-se de

passagem, com a franca e aberta colaboração de professores e estudantes adeptos da

contra- revolução e do regime ditatorial. (FERNANDES .1975)

Embora exista uma ampla historiografia sobre o Golpe de 64, possivelmente a

validade deste trabalho e do Corpus Documental está no preenchimento da lacuna

historiográfica sobre os acontecimentos envolvendo a relação FAFI - Ditadura Militar

no interior de São Paulo.

Page 76: Maria a Blaz Vasques Amorim

76 

 

PARTE V

Você que crê firmemente

Que o Brasil vai muito bem

Que crê bandeirantemente

Que São Paulo puxa o trem

Que crê philadelphamente

Que Rio Preto vive bem

Dê-me a mão, venha por aqui

Longe desse você

Tão bem.

(Desova Poética/ Orestes Nigro)

Page 77: Maria a Blaz Vasques Amorim

77 

 

PROFESSOR ORESTES NIGRO.

O Professor Orestes me recebeu em seu apartamento no centro de São Paulo,

pela primeira vez numa sexta-feira a tarde. Fui muito bem recebida, pois já o

conhecia de longa data, em seguida nos encaminhamos para o seu quarto-escritório,

onde ele mantém seu computador, uma estante imensa repleta de filmes e uma

cadeira de ferro branca. Ele apresentou ter uma facilidade espantosa para datas e

meses e continua sendo uma pessoa muito divertida, daquelas que a gente não se

cansa de ouvir. Voltei a sua casa mais duas vezes e acredito ainda ficou muito a ser

contado...

Hoje fico pensando e cada vez mais me convenço que nós éramos um pessoal

aberto, mente aberta, e essa era nossa característica principal.

Meu nome é Orestes Nigro, nasci em julho na cidade de Itápolis. Tive uma

infância muito modesta, meu pai levantava de madrugada , passava os dias batendo

martelo na bigorna e quando não conseguia terminar o serviço continuava

trabalhando noite adentro à luz de um lampião. Minha mãe era costureira,

banqueteira, dava pensão para 8 estudantes e se houvesse algum trabalho mais que

ela pudesse fazer para ganhar algum dinheiro ela fazia. Acho necessário contar essas

coisas para você entender o desenrolar da minha vida acadêmica e como minha

infância deixou marcas e me fez transformar no profissional que fui e sou. Certo dia,

era criança, sai com um tio para passear no centro da minha cidade. Ao passarmos

pelo Boulevard Itápolis que é um lugar chiquérrimo onde só havia produtos

importados, percebi a presença de vários homens muito bem arrumados, de terno e

colete, sentados na mesinha de um bar fumando charutos. Fiquei encantado com

tanta elegância e perguntei ao meu tio quem era aquelas pessoas, afinal eu sempre as

via ali sentadas, conversando... fumando... sempre limpas, bem arrumadas... será

Page 78: Maria a Blaz Vasques Amorim

78 

 

que eram da polícia? Meu tio riu muito e disse que não, aqueles homens eram

capitalistas. Fiquei mais confuso ainda... o que era ser capitalista??? Meu tio, com

toda paciência que lhe era peculiar disse que eram pessoas que possuíam muito

dinheiro, tanto, que podiam emprestar a juros para outras pessoas desde que elas

assinassem letras promissórias. Letras promissórias??? Foi a primeira vez que ouvi

falar nisso na minha vida. Fiquei absolutamente admirado pensando que se aqueles

homens não trabalhavam e tinham aquele vidão... não tive dúvidas, disse a meu tio

que iria pedir para que meu pai parasse de trabalhar, colocasse um terno e viesse

para o Boulevard também. Quem sabe nossa vida melhoraria? Meu tio me olhou

com um meio sorriso e disse: Orestinho, ele me chamava de Orestinho porque meu

avô era Orestes, aprende uma coisa, quem trabalha não tem tempo de ganhar

dinheiro.

Resolvi que estudaria muito para ter uma vida melhor e lutaria para

proporcionar uma vida melhor às outras pessoas também. Consegui entrar na USP

Maria Antonia e foi ali que conclui o ensino superior. Logo ao terminar fui

convidado para lecionar na recém inaugurada Faculdade Municipal de São José do

Rio Preto. Era longe de São Paulo, mas eu não podia perder aquela oportunidade.

Logo que cheguei à cidade encontrei os colegas que haviam sido contratados, a

maioria deles também formara-se na USP. Em nossa primeira reunião de

congregação, o Rodolfo Azzi, que era professor de Psicologia, e era uma pessoa

genial perguntou que tipo de faculdade nós queríamos. Afinal, éramos considerados

malditos na USP porque criticávamos a estrutura dela e várias outras coisas com as

quais não concordávamos. Tínhamos que definir naquele momento que tipo de

faculdade iriamos construir: uma USP rural ou uma faculdade nova, como a USP que

sonhávamos? O Wilson Cantoni, que era inteligentíssimo, disse que construiríamos

uma faculdade nova, mas que não nos iludíssemos, pois iríamos assustar os

fazendeiros e empresários locais que, com certeza, se sentiriam ameaçados com

nossas propostas. Nós pretendíamos transmitir aos nossos alunos uma mentalidade

que iria refletir na casa deles, mostraríamos a injustiça social, lutaríamos por

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79 

 

melhores salários, por um país mais justo e sabíamos que teríamos que colher o fruto

da discórdia que iria haver.

A Faculdade foi fundada em 1957 e desde o inicio enfrentamos resistências.

Tanto pelo fato de termos tomado o lugar dos professores locais que tinham certeza

de lecionar nela como pelo fato de ter uma posição revolucionária, inovadora, que

rompia com os padrões existentes. Começamos modificando a relação

aluno/professor. Na USP chamávamos o professor de Vossa Excelência e em Rio

Preto era você. O Norman era Norman, o Orestes era Orestes e assim por diante. Na

USP os alunos tinham que vestir terno e gravata, e as moças vestido social... lá em

Rio Preto nossos alunos iam para a aula de chinelo de dedo, tiravam o chinelo na

classe e andavam descalços. Evidentemente acharam que isso ia contra a ordem e o

progresso, o que eu discordo, poderia ir contra a ordem, agora nós éramos o

progresso e isso chocou as pessoas de uma cidade conservadora do interior paulista.

Rapidamente percebeu-se que seria difícil para o município manter a

faculdade. Foi eleito, então para a prefeitura um homem muito inteligente chamado

Alberto Andaló. Logo no inicio ele nos chamou e disse que se não fizéssemos

alguma coisa a faculdade estava fadada a virar uma escola mista do Bairro da Boa

Vista, a região onde estava situada. Resolvemos lutar junto ao governo do Estado

para que a faculdade fosse estadualizada. O prefeito encabeçou um movimento

regional e nós fomos ajudá-lo, afinal éramos os principais interessados. Visitamos

todos os prefeitos da região... todos... até a Barranca do Rio Paraná, a Barranca do Rio

Grande, a Alta Araraquarense e solicitamos que eles enviassem, para a prefeitura de

Rio Preto, telegramas solicitando a estadualização,juntamos todos aqueles

telegramas e viemos direto para o palácio do governo, que ficava no centro de São

Paulo, dava para ver aqui da minha janela. O que vou contar agora foi uma reunião

histórica. Encontramo-nos com o Janio Quadros e o Alberto Andaló fez o pedido. Foi

cômico! O Jânio com aquele jeito peculiar de falar disse: Alllbbbeeerrrtoooo

Annndaaalloóóó, eu não posso te dar issooo.... o que você está me pedindo é um

absurdoooo..... O Alberto ficou muito bravo. Ele era o principal cabo eleitoral do

Jânio naquela região, um homem de muito prestigio, mas era também um cavalo de

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80 

 

mal-educado... virou as costas e disse ao Jânio: Então você vai pra puta que o pariu,

nos chamou e fomos saindo... quando estávamos quase na porta o Jânio disse nos

daria a Faculdade, mas que fazia questão que não houvesse nenhum professorzinho

local porque não queria que ninguém fizesse política com ela. Ele fazia questão que

os professores fossem todos formados pela USP. Conseguimos a estadualização da

faculdade que passou a se chamar Faculdade Isolada de São José do Rio Preto e aí

começaram nossos problemas.

Interesses locais haviam sido contrariados com a exigência do governador.

Nesse momento caiu por terra o castelo do Daud Jorge Simão, por exemplo, que

havia pensado o projeto da faculdade em beneficio próprio e que sentiu-se

tremendamente injustiçado, pois ele não havia se formado na USP, além disso era um

sujeito muito chato. Corria em Rio Preto uma piada que a primeira mulher dele que

havia sido atropelada ao atravessar a linha do trem, na verdade se suicidara, pois

nem ela conseguia agüentar mais o marido que tinha. Ele queria ser tudo, dizia que

tinha diploma de química, de odontologia, de direito e nós nos divertíamos muito

dizendo que ele também deveria ter diploma de culinária da Walita. Além de tudo

ele tinha mania de fazer trocadilho, tinha uma voz muito chata, era muito insistente e

nós percebemos que estava tentando influenciar nosso trabalho. Nós o isolamos e ele

percebeu isso. Juntou-se então a outros professores da cidade, que eram

considerados a elite intelectual e resolveram nos boicotar. Houve outro problema

sério: o diretor, Dr. Rafael Grisi, praticava várias irregularidades, usava transporte

público para fins particulares, não ficava na faculdade, suspeita-se que desviava

verbas, e isso nos levou a escrever várias denúncias para o secretário da educação, e

também nos valeu uma demissão, ele não renovou nossos contratos, porém por

pressão dos alunos teve que nos readmitir. Isso foi por volta de 1963.

Pelos jornais nos criticavam, não aceitavam convites para nada, criticavam

nossas aulas e até influenciaram o bispo auxiliar de Rio Preto que começou a fazer

campanha contra nós. Quando esse bispo soube que eu era católico mandou me

chamar ao palácio episcopal para questionar as leituras que eu havia indicado aos

alunos, imagine, ele estava uma fera, pois entre os textos estava Voltaire. Naquela

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81 

 

época a Igreja ainda tinha o Index de Livros Proibidos e dentre eles constavam os

textos de muitos filósofos importantes. Agora, como deixar de estudar esses autores

tão importantes com meus alunos? Nem pensar! Enfim, tudo isso criou uma mágoa

local que no futuro iria nos prejudicar muito, pois esses professores foram os

primeiros a depor contra nós quando fomos presos por ocasião do Golpe de 64.

Logo no inicio criamos um movimento que se transformou num movimento

nacional em defesa da escola pública no Brasil e vou explicar como ele surgiu.

Havia um projeto no Congresso Nacional, cujo porta-voz era o gorila do

Carlos Lacerda que mereceu uma paródia minha49 e era governador da Guanabara.

O Lacerda havia assinado um acordo com os americanos, não gosto nem de falar

nesse nome... americanos... tenho ojeriza a tudo que vem de lá, bem era um acordo

chamado MEC USAID... Meu Deus... isso acabou, liquidou com o ensino

público...imagine que começaram a distribuir verbas públicas para escolas

particulares, introduziram uma série de métodos de ensino americanos inadequados

ao ensino brasileiro... O Wilson Cantoni e o Norman Potter encabeçaram a elaboração

de um manifesto que foi assinado por muita gente importante, inclusive do Rio de

Janeiro que era a capital... até os trogloditas da História Natural como o Celso Abade

Mourão, assinaram... estávamos só nos defendendo... éramos escola pública... não

podíamos admitir aquilo. Acontece que os donos das porcarias das faculdades

particulares de Rio Preto, principalmente o de uma arapuca que ficava nas esquinas

das ruas Rubião Junior com a General Glicério, o Alin Atike , tinham gente na

Câmara Municipal e começaram a falar que aquele manifesto era comunista.

Imediatamente os “colegas” da História Natural, entre eles o Celso Abade Mourão e

o Luiz Dino Vizzoto resolveram ir até a Câmara e retirar a assinatura do documento.

Foi um dos primeiros passos para a cisão na Faculdade.

Imagine dizer que éramos comunistas. Eu não era comunista, sou católico.

Tínhamos pensamentos de esquerda que nos levavam a querer mudar, a querer                                                             

49   “Lá na direita, na direita  tem um gorila, que governa a Guanabara, que governa a Guanabara,  seu nome dá uma boa rima, seu nome dá uma boa rima. Adivinha, adivinha  tá na cara. Adivinha, adivinha  tá na cara”. 

 

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82 

 

melhorar, fazer uma distribuição de renda mais justa, dar oportunidade a todos para

estudar... isso não é comunismo gente!

Por volta de 1960 a Faculdade mudou de lugar. Fomos para dois prédios

combinados na Rua General Glicério e nosso espaço ficou muito maior. A cantina era

grande, tinha mesinhas, cadeiras, tinha um auditório, que embora fosse rústico, era

muito espaçoso, onde nós podíamos afastar as cadeiras e jogar ping-pong e isso

possibilitou o encontro de muita gente num mesmo local. Foi aí que surgiram os

primeiros movimentos para a criação do GRUTA, não só do GRUTA, mas de outras

coisas também. A Faculdade funcionava a todo vapor, pela manhã, a tarde e a

noite... com os mesmos alunos. Os cursos regulares eram ministrados no período da

manhã, a tarde fazíamos grupos de trabalho e a noite seminários, simpósios,

conferências. Os alunos tinham vida integral na Faculdade e até os que trabalhavam

davam um jeitinho de passar por lá.

O GRUTA era um grupo de teatro amador que além de fazer arte promovia

vários eventos também. Eu o criei como opção de conhecimento para os alunos e

também para me divertir, foi muito espontâneo, nada muito pensado. Levamos para

se apresentar na Faculdade a Inezita Barroso que sabe tudo de folclore, a Maria Lívia

São Marcos que era a maior violinista do Brasil; levamos o Gianfrancesco Guarnieri

para fazer uma conferência sobre teatro, ele acabou se tornando um grande amigo ,

tenho até algumas fotos dele jovenzinho, o Juca de Oliveira veio com ele e também

ficou meu amigo. Tempos depois resolvemos fazer a Semana de Estudos Brasileiros,

no mês de agosto e convidei a companhia de teatro do Fernando Torres, marido da

Fernanda Montenegro para se apresentar em Rio Preto. Ele aceitou e trouxe o

Francisco Cuoco, a Zilka Zalaberry, o Labanca, o Sérgio Brito e a própria Fernanda,

foi um sucesso. Eu tinha uma capacidade muito grande de organizar eventos

culturais de peso e eles foram acontecendo freqüentemente, até que o Cantoni um dia

me chamou e me perguntou se eu tinha noção do alcance desse movimento todo,

dessa organização do GRUTA, perguntou se eu percebia o que estávamos fazendo .

Respondi a ele que não tinha intenção de fazer movimento nenhum, que tudo era

uma grande diversão, porque eu vivia aquilo artisticamente. Ele disse que

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83 

 

organizássemos isso, que déssemos estrutura, fizéssemos um estatuto, porque

iríamos crescer muito. Se não houvesse havido a Revolução de 64 eu não sei o que

teria virado o GRUTA. Acho que um grande movimento.

O grupo empolgou muito e as pessoas foram cada vez mais participando, o

Edson Guiducci, o Grigor Vartanian, a Eudete Focchi que se tranformou no meu

braço direito, ela tinha uma cabeça muito boa, a Isabel... convidamos o Rubens Paiva,

que era um deputado empresário que tinha uma visão muito aberta para fazer uma

palestra lá, veio o Antônio Candido que era um santo. O Antônio Candido era uma

das pessoas mais prestigiadas da USP, não por decisões políticas, mas pela sua

capacidade como mestre da literatura brasileira, veio o Almino Afonso...eles vinham

falar sobre coisas que interessavam a todo mundo, inclusive a operários e

camponeses, embora nós não tivéssemos nada a ver com os movimentos deles. O

único contato que tivemos com camponeses foi quando o fazendeiro Olavo Fleury

permitiu que alfabetizássemos seus empregados pelo método Paulo Freire. O Olavo

permitiu e até isso nos prejudicou. Quando fomos presos isso depôs contra nós, mas

ninguém chamou o Olavo para depor, afinal ele era parte da elite... freqüentava o

Automóvel Clube...

Recordo-me bem de um poema do Vinicius de Moraes que transformamos

num jogral e que apresentamos, chamava-se Senhores Barões da Terra... sabe que

isso me lembra, já depois da Revolução, quando eu estava morando em Monte

Aprazível, recebi uma carta comunicando que havia recebido um premio de poesia

na categoria de poesia social. Era um prêmio para a América Latina. Eu e o Vinicius

recebemos, ele com Senhores Barões da Terra e eu com um poema cujo nome não

lembro, mas que colocava Jesus como líder revolucionário e era em forma de cruz.

Sabe, chegamos a publicar um livro de poesias de integrantes do GRUTA, a Primeira

Desova Poética.

Aí veio a Revolução! Fui acusado de ser comunista. Nunca li Marx e nem

tenho intenção de ler. Nunca fui teórico. Para mim política é um negócio que corre na

pele. Quando fui preso e o delegado perguntou se eu era comunista eu disse a ele

Page 84: Maria a Blaz Vasques Amorim

84 

 

que não sabia bem o que era. Falei que politicamente não era, pois não pertencia ao

partido e nunca havia lido nada sobre isso, nem que eu quisesse ser comunista

poderia afirmar isso, para ser comunista tem que se conhecer a teoria, os manifestos e

eu não conhecia. Disse a ele : o que sou doutor é um inconformista e dessa maneira

sou capaz de fazer coisas piores que os comunistas. Se souber de alguém que está

explorando, escravizando as pessoas o senhor me dá uma arma que vou lá e mato. O

senhor quer colocar aí que sou perigoso, coloque, agora comunista não sou.

Sabe, não acredito no comunismo. Quando era aluno da Letras na USP, havia

um rapaz todo descabelado, todo sujo, que era considerado um dos comunistas de lá.

Um dia estávamos eu e o Professor João Dias da Silveira conversando em frente à

universidade quando esse camarada passou e o professor Silveira disse que se

déssemos um bom emprego com o qual o rapaz pudesse comprar seu terno, ele

tinha certeza que o comunismo dele acabava como que por encanto. E eu vi isso

acontecer o tempo todo durante a minha vida.

Em Monte Aprazível havia um juiz de Direito novinho, cheio de idealismo, de

esquerda, o Dr. Wanderley Borges... de Monte ele foi transferido para o ABC, onde

participou do Movimento Operário, até que foi transferido para São Paulo. A última

vez que o vi foi em uma festa na casa dele , na Avenida Angélica, num apartamento

maravilhoso, com convidados do mais fino trato, não gente como a gente, com

uísque importado... logo pensei: ele se aburguesou... continuei amigo dele, não faço

distinção e ele até já morreu. Comunista.... tá bom!

Durante todo o processo diziam que o Cantoni era comunista, que comunista

que nada, ele era fabuloso, mas o sistema não tinha alcance para entender isso. A

própria policia de Rio Preto não sabia o que estava fazendo. O Heimer deu um baile

no delegado que perguntou a ele se ele se considerava subversivo. Ele pediu ao

delegado que definisse subversão. O delegado não soube fazê-lo e o Heimer disse

que ele estava falando besteira, isso lhe valeu muita pancada. O Heimer foi o único

que apanhou lá, muito. Ele enfrentava a policia e daqui acabou indo para o Chile,

depois com o Pinochet... deve ter voltado para a Alemanha.

Page 85: Maria a Blaz Vasques Amorim

85 

 

Nós fomos presos para desmontar esse nosso esquema, lógico!

Depois que saí da cadeia quase fui preso novamente porque resolvi ir até a

Faculdade buscar minhas coisas. Assim que cheguei lá foi uma choradeira, alunos me

abraçando... e aí aconteceu uma coisa muito triste. Havia um funcionário que eu levei

para a faculdade, pois ele era motorista de táxi e estava passando por dificuldades...

arrumei emprego para todos os filhos dele, pois bem, assim que me viu na faculdade

chamou uma verdadeira “Rota”, que me levou para a sala do novo diretor, que era

um Juíz de Direito chamado José de Castro Duarte, conhecido como “O Carrasco da

Ilha Grande”. Na sala ficaram o Aristides, os policiais e o diretor que começou a

gritar comigo dizendo que eu havia sido demitido para desinfetar a faculdade, que

não aparecesse mais lá... eu disse que não havia recebido nenhuma restrição de

movimentos, que apenas havia ido buscar minhas coisas... lá havia muitas coisas,

livros, jornais franceses que eu assinava, toda minha vida profissional. Ele

respondeu que no sábado próximo enviaria tudo para minha casa, que eu não pisasse

mais lá, se isto acontecesse seria preso e enviado para o Deops em São Paulo e o

Aristides assistindo tudo, não moveu um dedo...

Hoje fico pensando e cada vez mais me convenço que nós éramos um pessoal

aberto, mente aberta, e essa era nossa característica principal. Se um centro espírita

nos convidasse para fazermos uma palestra nós íamos, se o sindicato convidava o

Cantoni para uma conferência, ele ia. Ele tinha amizade com o Celso Furtado, com o

Almino Afonso, o Darcy Ribeiro era nossa amigo, o próprio Fernando Henrique, que

era de esquerda nessa época, depois você viu o que virou, era nosso amigo e a

Revolução foi feita contra essas pessoas, claro que se tínhamos amizade com elas....

Penso que as mais prováveis causas de nós termos sido as primeiras vitimas

foram que Rio Preto era na época um baluarte da direita reacionária brasileira, tanto

assim que ganhara o apelido de Dallas paulista, lembre-se do assassinato de

Kennedy. Era também uma cidade geograficamente estratégica para mais fácil acesso

às fronteiras de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, como foram os militares que

preparam o Golpe de 64.... para completar Rio Preto tinha na época as autoridades

Page 86: Maria a Blaz Vasques Amorim

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mais reacionárias do Brasil, prefeito Loft Bassit, juiz da comarca José de Castro

Duarte, e um delegado regional de polícia ambicioso demais em termos de carreira,

Tácito Pinheiro Machado, que deitou e rolou durante a primeira fase repressora e

como prêmio tornou-se Delegado Geral de Policia, segundo cargo mais importante

na hierarquia da Secretaria de Segurança Pública. Enquanto nas outras cidades da

região as autoridades discutiam para depois prender, Tácito primeiro prendia, para

depois discutir. Por isto logo no dia 1º de abril de 64, a cadeia de Rio Preto estava

cheia de presos políticos.

Page 87: Maria a Blaz Vasques Amorim

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JUCA DE OLIVEIRA

Entrei em contato com o Juca de Oliveira via e-mail conseguido por Ricardo

Santhiago50. Ele foi muito solicito e em seguida me recebeu no seu apartamento

localizado nos Jardins. Foi muito simpático, ficou emocionado enquanto narrava o

que havia acontecido em Rio Preto e ao final da entrevista me ofereceu uma

cachacinha...

Acredito que eles já tivessem o germe de 68, do que ocorreu na França, e isso

já estava engendrado dentro da escola. Era uma coisa viva, atuante, muito atuante.

Meu nome é Juca de Oliveira sou ator e escritor. Por volta dos anos 60, eu

fazia parte de um grupo de teatro chamado Arena que, de vez em quando, fazia

excursões pelo Brasil para mostrar as peças encenadas em São Paulo. Íamos para o

nordeste, para o sul do país e também para o interior de São Paulo, inclusive São José

do Rio Preto, cidade que passamos a visitar sempre que possível. Nosso primeiro

contato lá foi um grupo de teatro que havia na Faculdade, a Fafi. Em toda cidade

que o Arena visitava, estabelecíamos um contato muito próximo com os amadores de

teatro local e o meio universitário. Interagíamos com os jovens, s grupos de teatro

que se formavam sozinhos, grupos de teatro amador e, sobretudo, teatro de

estudantes. Em Rio Preto encontramos os participantes do GRUTA, o grupo de teatro

amador integrado por jovens extremamente interessados em problemas sociais e,

como no Arena fazíamos um teatro social e político, éramos militantes políticos,

alguns comunistas, outros trotskistas, fomos bem aceitos pelo grupo. O primeiro

contato na cidade foi com o Orestes Nigro, professor de francês, fundador e líder do

Gruta.

                                                            50  Produtor cultural  e mestrando da USP.

Page 88: Maria a Blaz Vasques Amorim

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Orestes, homem preocupado com questões sociais, organizara o seu grupo de

teatro dentro da Faculdade, a partir da música, violão, canto em permanentes saraus

alegres e muito concorridos pelos estudantes. Claro que as questões sociais estavam

sempre presentes nessas reuniões. O contato com esse grupo e o Teatro de Arena se

tornou muito estreito. Lá encenamos algumas de nossas peças. Eu mesmo voltei

várias vezes a Rio Preto, onde apresentei dois recitais de poesia. Também fazíamos

palestras sobre Teatro, Guarnieri falava sobre dramaturgia, Boal sobre direção.

Na faculdade havia uma professora, cujo nome não me lembro, assistente do

Orestes e que também ajudava a dirigir o grupo de teatro, o Gruta.

O que a gente constatava é que nessa faculdade a relação entre alunos e

professores era muito mais avançada e menos formal do que na maioria das

faculdades da época. Havia camaradagem intimidade e grande respeito. Imagine no

início dos anos 1960 professores de uma faculdade tocando violão, discutindo

política, fazendo teatro social e político dentro de uma instituição pública no interior

de São Paulo... Era impensável!

Claro que isso deve ter incomodado, e muito, setores mais conservadores da

cidade. Imagino que essa convivência tão democrática deva ter sido o fator principal

da intervenção militar que ocorreu na cidade em 64. O que não é de se espantar, pois

em todos os lugares onde havia movimentos culturais semelhantes aos de Rio Preto

deu-se reação semelhante por parte dos militares. Nós aqui em São Paulo, em 64,

tivemos o nosso teatro fechado e fomos exilados. Eu mesmo estive na Bolívia com o

Guarnieiri.

O Orestes era uma pessoa muito avançada para sua época, era um professor

com tendências socializantes, agindo abertamente dentro da faculdade, aplicando

um tipo de ensino diferente, democrático, sempre estimulando os alunos a se

inteirarem dos problemas sociais e políticos da cidade, do estado e do país. O

professor Orestes não era militante político, não era comunista. Apenas levou a idéia

de democracia para dentro da escola, o que fascinou os alunos, que antes eram

orientados segundo princípios tradicionais e pouco estimulantes. Era uma loucura!

Page 89: Maria a Blaz Vasques Amorim

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Samba... discussões políticas, teatro político... Violão, saraus! Almoçávamos com os

alunos, conversávamos sobre teatro, técnicas de interpretação, Guarnieri falava sobre

dramaturgia, sobre autores, Stanislavsky, “A Mandrágora”, Maquiavel e eles

adoravam.

Nosso contato ficou muito estreito e o Orestes acabou se tornando um grande

amigo, em quem confiávamos para falar ou discutir sobre qualquer tema, com ele ou

com o grupo de professores que ele liderava na Faculdade. Claro que também havia

professores que não concordavam com os métodos do professor Orestes, acredito

que tivessem ciúme por não desfrutarem do mesmo afeto dos alunos. Provavelmente

foram esses colegas do Orestes os primeiros a denunciar a democracia interna da

Escola aos movimentos reacionários da cidade. O que não era difícil. O Deops estava

em todo lugar, era só dizer que havia comunistas infiltrados ali e... pronto!

Quando houve a Revolução foi um Deus nos acuda! É lógico que o governo

militar, isso me parece absurdamente óbvio, queria acabar com as idéias sobre

educação do grupo do Orestes. Afinal durante o regime militar a orientação do

Ministério da Educação era no sentido de uma escola menos avançada, que não

tivesse professores de esquerda ou estudantes que participassem de movimentos

sociais, sobretudo ligados a sindicatos... E aí Rio Preto sofreu a intervenção. Afinal lá

havia tudo o que os militares não queriam.

O fato de o diretor, que foi nomeado para intervir na faculdade, ser chamado

de “carrasco da Ilha Grande” é bastante óbvio também.

Se você tem uma cidade como Rio Preto, no interior, conservadora, agrícola,

ligada à produção de café, à criação de gado, menos industrializada que Ribeirão

Preto, e nela surge um movimento cultural de esquerda, muito nítido e atuante, é

claro que para os conservadores poderia, quem sabe, haver alguma ligação desse

movimento com as Ligas Camponesas, com o Araguaia! Para o delírio deles qualquer

coisa servia... Por isso eles escalaram uma pessoa muito ligada aos militares e a

colocaram lá, pois acreditavam piamente que o movimento fosse politicamente

organizado... Uma bobagem.

Page 90: Maria a Blaz Vasques Amorim

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Claro que não havia nada de “subversivo ou de guerrilha” na faculdade. Foi

uma esquizofrenia, uma psicose, uma loucura o que aconteceu. Não existia nenhum

movimento organizado na Faculdade para “subverter a sociedade” Era apenas um

movimento cultural muito parecido com o nosso, nós também não tínhamos a

intenção de tomar o poder, o Arena só fazia teatro social, abordava problemas

sociais, denunciava, o que, na verdade, continuamos fazendo até agora. Eu mesmo

vou estrear uma peça que é um libelo, só que agora é contra a corrupção, a falta de

ética, sobre as coisas que vêm acontecendo em nosso país e que estão enfraquecendo

as instituições e ameaçando a democracia.

Houve intervenção em outras faculdades também. Na USP tomaram o

campus, expulsaram os professores, o Hildebrando foi para a França, ficou no

Instituto Pasteur, acabou de voltar ao Brasil, o Paulo Mendes Rocha, o Artigas, enfim,

amigos nossos foram afastados, aposentados, expulsos ou exilados. Acontecer isso na

USP era até esperado, mas em Rio Preto... Foi espantoso!

As idéias novas defendidas pelo Orestes no meio da caipirada... Foi

complicado. Veja, eu também sou caipira, moro numa fazenda em Itapira há 30 anos,

imagine se chega lá um grupo de esquerda e começa a pregar... aliás houve um

problema sério na cidade, em uma outra época, mas que ilustra o pensamento

conservador: o assassinato de Joaquim Firmino, delegado de polícia, mas que se

condoia da sorte dos escravos torturados pelos fazendeiros. Ele foi um líder

antiescravagista que se tornou mártir. Foi trucidado por 250 fazendeiros porque

estava acolhendo escravos que já eram livres, já havia ocorrido a abolição. Porém os

fazendeiros queriam aproveitá-los para fazer a última colheita de café... Ficaram

furiosos com Firmino, invadiram sua casa à noite e o mataram. Era o ano de 1888. Foi

um assunto que galvanizou o país todo. O advogado dos assassinos era o Assis

Brasil. Eles escreveram uma página na história que manchou para sempre a cidade.

Ela se tornou maldita, estigmatizada e, para resolver isso, trocaram o nome de Penha

do Rio do Peixe, que eu acho lindo, para Itapira. Isso dá para se ter uma idéia do

perigo que é defender uma idéia nova no interior, onde as pessoas são

conservadoras.

Page 91: Maria a Blaz Vasques Amorim

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Perto de Rio Preto tinha um líder camponês chamado Jofre Correa Neto que

costumava freqüentar algumas palestras. Isso, porém, era um problema dele. As

palestras eram abertas e, se o Prestes resolvesse ir, isso não significaria que era uma

fala comunista. E nem por isso o pessoal de Rio Preto tinha algo a ver com ele. Ele ia

às palestras, e daí? Achar que todo mundo é comunista é um absurdo, é o papel da

repressão. O papel dos conservadores é sempre esse.

Fico feliz por o Orestes estar vivo, tenho certeza que a preocupação dele

sempre foi com o social, com um mundo menos injusto e a conscientização da

juventude para tornar este mundo num lugar melhor. O Gruta para ele era uma

grande diversão, pois era quem mais se divertia. Ele cantava, fazia corais, jograis,

participava de tudo e, quando íamos para lá, era uma festa. Olhávamos para ele e o

víamos iluminado com aquela estudantada. Ele batia papo, estimulava todo mundo...

A questão dele era social... Queria fazer com que a situação ficasse legal, que todo

mundo tivesse tudo, que todos percebessem o caminho.

Acredito que eles já tivessem o germe de 68, do que ocorreu na França, e isso

já estava engendrado dentro da escola. Era uma coisa viva, atuante, muito atuante.

Eles moravam dentro daquela faculdade, de manhã até a noite existia movimento

naquele lugar. O Guarnieri, então, os estimulou para que escrevessem suas próprias

peças e músicas, pois ele era muito ligado à criação, um escritor famoso em quase

todo o mundo.

De repente eles estavam compondo, o Orestes tocando violão e o pessoal

cantando, compondo peças próprias, fazendo poesias. Essa era uma preocupação que

nós do Arena tínhamos, fazer com que os amadores não ficassem a reboque do que

acontecia no eixo Rio-São Paulo. Queríamos que eles produzissem sua própria

cultura, que procurassem seus próprios problemas, que eles fizessem o que fosse

possível dentro da realidade deles ao invés de importar tudo . Música e teatro e

cinema, que eles procurassem fazer tudo o que era possível, viável e eles estariam

fazendo uma coisa que, além de ser original, seria única, porque seria a realidade

deles, não? Isso também foi feito lá, o Guarnieiri estimulou muito nesse sentido.

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Depois de 64, mesmo com o Orestes afastado da Faculdade e tendo que se

mudar para uma cidade próxima de Rio Preto, Monte Aprazível, nosso contato

continuou. Estive em Monte Aprazível, fiz espetáculos em um circo, dei palestras,

debati com estudantes... Isso significa que, mesmo tendo problemas com os militares,

o Orestes continuou lutando por suas idéias.

Todos nós deveríamos nos orientar pelo seu exemplo.

Page 93: Maria a Blaz Vasques Amorim

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FRANZ WILHEIM HEIMER

Localizei o professor Heimer através do Centro de Estudos Africanos que

fica no ISCTE (Universidade Pública especializada em Ciências Sociais e

Empresariais, Sociologia do desenvolvimento e Sociologia africana), via internet.

Falamo-nos a princípio por e-mail e depois pelo skype, portanto esta entrevista,

embora tenha sido feita oralmente não obedeceu aos procedimentos padrões da

História Oral, uma vez que não fiquei frente a frente com meu colaborador, porém

julgo que ela é fundamental para o meu trabalho, por esse motivo resolvi utilizá-la.

Fui transferido para o DOPS, provavelmente, porque havia uma idéia

fantasmagórica de eu ser um agente internacional comunista.

Meu nome é Franz Wilheim Heimer e vou tentar me concentrar

especialmente para ver com o que posso contribuir para seu trabalho. Creio que

nesse sentido, minha contribuição baseia-se numa permanência relativamente curta

em São José do Rio Preto, de 1961 a 1964. Após o Golpe Militar, saindo do DOPS,

para onde fui enviado de Rio Preto, mudei-me com minha família para Belo

Horizonte, para assumir lá as funções de diretor da filial do Goethe-Institut (Instituto

de Cultura Alemã). Em razão da abertura de processo judicial em São José do Rio

Preto, tive que retornar para lá uma vez onde fui ouvido por um juiz (visivelmente

descrente quanto às acusações constantes nos autos.

A Embaixada da RF Alemanha impôs-me já em 1965 a saída do Brasil, que

seria ilegal face à lei brasileira, devido ao processo pendente, mas a mesma foi

negociada pela própria Embaixada com não sei qual entidade do complexo militar

então reinante.

Na Alemanha, deixei de imediato o domínio das letras, onde havia me

formado. Passei a ser pesquisador de um Instituto especializado nos estudos dos

“países em desenvolvimento”, com trabalhos inicialmente concentrados na América

Latina, que me levaram uma vez a uma breve estadia no Brasil, seguidos por uma

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94 

 

transição para o domínio dos estudos africanos. Fiz o doutoramento em Ciência

Política e Sociologia e fixei-me em Lisboa onde ensinei no ISCTE (Universidade

Pública especializada me Ciências Sociais e empresariais), Sociologia do

desenvolvimento e Sociologia africana, e estive na origem de um, hoje importante,

centro de estudos africanos.

Voltei algumas vezes ao Brasil, mas sempre para visitas familiares, e

ocasionalmente aproveitei para breves contatos com correligionários, por exemplo, o

falecido “Betinho”.

Sou professor catedrático aposentado desde 2000, mas de fato continuo ativo

como pesquisador sênior do CEA (Centro de Estudos Africanos).

Chegando a São José do Rio Preto em meados de 1961, fui de imediato

integrado a um grupo de professores da FAFI (Faculdade Isolada de Filosofia,

Ciências e Letras) que eram de forma imprecisa “da esquerda”(não comunista!) e

onde as figuras de maior destaque intelectual eram, pelo que me ficou na memória o

Professor Wilson Cantoni,(sociólogo), Flávio di Giorgio (letras latinas) e o Noman

Potter (letras inglesas).

Minha própria “socialização ideológica” havia sido marcada por uma

militância, na Alemanha e na central internacional com sede em Paris, da JEC/JUC

(Juventude Estudantil e Universitária Católica). Como minha primeira mulher, Maria

de Lourdes Oliveira Santos, provinha da JUC brasileira, concretamente a baiana,

tivemos contatos imediatos com figuras proeminentes desta em São Paulo, no Rio de

Janeiro e em Salvador.

Em 1962 tomei a iniciativa de viajar à Recife para encontrar o Paulo Freire e

seu grupo. Meu objetivo era informar-me detalhadamente sobre a experiência piloto

deles em alfabetização de adultos. Foi esse contato que levou a mim e minha então

mulher, a fundar em São José do Rio Preto, nos fins de 1962, inicio de 1963, o MCP

local. Tenho que salientar que este não teve qualquer ligação institucional com a

Faculdade, e que, se bem me recordo, nenhum outro docente da Faculdade chegou a

fazer parte. Em contrapartida, participaram duas ou três dúzias de estudantes, e

foram estes que se encarregaram da única atividade que chegou a concretizar-se, ou

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seja, um ou dois grupos de alfabetização em fazendas próximas a São José do Rio

Preto.

Sei que na mesma altura se fundou o GRUTA, e se a memória não me falha,

este foi animado pelo Orestes Nigro. Mas confesso que não tenho qualquer

recordação concreta do GRUTA, que tão pouco deve ter tido uma ligação

institucional com a FAFI. Não houve entre o GRUTA e o MPC nem ligação

institucional, nem informal, para além daquilo que uns e outros poderiam chamar de

contatos pessoais.

Em 1962 ou 1963, aparece em cena a AP (Ação Popular), um movimento

expressamente político que se originou em Belo Horizonte e cujo núcleo central

(original) provinha em geral da JUC. Vi a AP mencionada em dois ou três livros

sobre a época, mas em todos os casos com informações escassas e defeituosas. Não

tenho tempo e nem elementos para fazer aqui uma reconstrução da AP, que existiu

na clandestinidade durante vários anos, depois do Golpe Militar de 1964. O que acho

importante esclarecer é apenas que a AP desenvolveu uma ideologia não marxista

“de esquerda” que em retrospectiva, foi, a meu ver, mais intuitiva que consistente;

entrou de imediato em choque com o PCB, o PCdoB, o POLOP etc., etc.; que teve

rapidamente uma forte implantação nas universidades onde conquistou a

presidência da UNE, na pessoa do José Serra; que se lhe agregaram, de forma por

vezes pouco definida, uma série de intelectuais, inclusive Fernando Henrique

Cardoso; que começou a ter uma presença significativa entre os sindicatos rurais que

estavam em articulação, especialmente no Nordeste; que se engajou a fundo no

movimento de cultura popular; que não teve qualquer penetração nos sindicatos

urbanos, sejam os operários ou outros.

Foi a AP ainda em constituição que entrou em contato comigo depois de o

MCP de São José do Rio Preto estar constituído. Ficou decidido que eu constituiria

uma seção da AP em Rio Preto. Nesta entrou não apenas o pessoal do MCP, não o

MCP enquanto instituição, mas uma série de outras pessoas. Geralmente estudantes

da FAFI e alguns poucos docentes, entre eles o Flávio di Giorgio e o Orestes Nigro,

sendo que este último transitou mais tarde para o PCdoB quando este apareceu na

região. Cheguei a fazer parte, pelo Estado de São Paulo, da direção nacional da AP e

Page 96: Maria a Blaz Vasques Amorim

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também coordenei a dúzia e meia de núcleos de cultura popular que se constituíram

por todo o estado, majoritariamente com afinidade com a AP, alguns de inspiração

do PCB.

É preciso dizer que a seção de Rio Preto não chegou durante sua breve

existência (não sobreviveu ao golpe militar), a desenvolver qualquer atividade para

além, da já mencionada, alfabetização de adultos.

Nem a AP ou o MCP chegaram a ter sede, o que havia de documentação

ficou acumulado na minha casa. Quando o Golpe Militar se anunciou, queimei toda a

papelada da AP, e tenho a impressão de que a polícia local não só não chegou a saber

da existência dela, como nem sabia que no Brasil havia uma organização chamada

AP.

A documentação do MCP ficou inicialmente na casa de uma estudante de

cujo nome não recordo, e que não tinha qualquer envolvimento; sei que ela depois

ficou com medo e que minha então mulher organizou a remoção e a destruição do

material.

A AP e o MCP deixaram, praticamente de imediato, de ter qualquer

existência efetiva em São José do Rio Preto, depois da minha prisão quando veio o

golpe.

Sei que da FAFI, alguns poucos professores, lembro-me do Orestes Nigro e

do Eduardo Cañizal, e talvez uma dúzia de estudantes ficaram presos, mas não na

prisão comum, mas num edifício administrativo contíguo a esta, de construção

recente e que não estava sequer mobiliado. Passávamos os dias a fazer música, jogar

cartas e dominó, mas com poucas leituras e conversas sérias. A alimentação era

assegurada por familiares e amigos que a vinham trazer, e como os guardas não

levavam suas funções muito a sério (“Os senhores ainda vão ser nomes de ruas em

Rio Preto”, disse um deles), ficávamos sabendo o que se passava lá fora, e tivemos a

possibilidade de transmitir recados e até de enviar cartas.

Houve alguns interrogatórios por um delegado, perfeitamente educado e até

entediado, no sentido de já ter se convencido de que eram absurdas as acusações que

corriam pela cidade e que nos imputavam, isto é que estaríamos preparando uma

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intentona comunista armada, afirmando a rádio local que no sótão da minha casa

tinha sido encontrado um depósito de armas...

Durante toda esta fase, o único ato de intimidação que houve foi um dia de

prisão solitária que passei a mando de um sub-delegado que “não ia com a minha

cara”, e cuja ordem foi logo anulada. Não houve qualquer tortura, nem ameaça de

tortura. Fui transferido para o DOPS, provavelmente, porque havia uma idéia

fantasmagórica de eu ser um agente internacional comunista; a transferência fez-se

numa viatura da polícia, com o tal sub-delegado à paisana e dois policiais fardados,

os quais estavam visivelmente constrangidos com a encenação toda e até me

pagaram uma bebida numa parada...

Fui libertado pelo DOPS porque consideraram que a papelada transmitida

pela polícia de São José do Rio Preto não constituía base para nada e porque o

Consulado-Geral da RF Alemanha em São Paulo, alertado pela minha então mulher,

os contatou e os convenceu de que as acusações não tinham fundamento. Este último

ponto não deve, no entanto ter ficado totalmente claro: poucos dias depois de eu ter

alugado uma casa em Belo Horizonte apareceu lá um oficial do exército “apenas”

para dizer que “eles” sabiam onde eu me encontrava...

Isso é tudo... deve haver mais, mas minha memória já não alcança essa

jurássica parte da minha vida.

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CELSO ABADE MOURÃO

Esta entrevista com o Professor Celso Abade Mourão foi feita pela Professora

Nilce Aparecida Lodi no ano de 1978 em São José do Rio Preto. Como o referido

professor é falecido, a Professora Nilce, gentilmente, permitiu que eu a utilizasse, a

mesma foi transcriada para obedecer a prática da História Oral utilizada pelo Neho,

uma vez que ela é de suma importância para este trabalho.

O período de maior dificuldade de relacionamento, tanto com o corpo

docente como com o discente, ocorreu em torno de 1961, durante cerca de dois

anos. Não sei se poderíamos falar de dificuldade e facilidade de relacionamento ou

deterioração de relacionamento. Acho que a segunda alternativa se ajusta melhor à

situação.

Meu nome é Celso Abade Mourão, nasci em Leme, interior de São Paulo, me

formei em 1954 na USP, sou casado e tenho dois filhos.

A razão da minha vinda para lecionar na Faculdade Isolada de Rio Preto, logo

que ela foi fundada, tem duas respostas. Uma curta: fui convidado e aceitei; e uma

longa: Depois de licenciado, prestei concurso de ingresso ao magistério secundário e

escolhi Cadeira em São José do Rio Preto e Uchoa. Já em 1956, quando começa a

história da Faculdade, fui procurado pelo professor Rafael Grisi, por indicação do

doutor Michel P. Sawaya, para vir trabalhar na Faculdade. Lembrei ao professor

Grisi da conveniência de falar com outras pessoas que, na minha opinião, estavam

mais credenciadas para trabalhar no ensino universitário. Apontei a ele os nomes de

Pedro Henrique Saldanha, de Luiz Edmundo Magalhães e talvez mais alguns

outros. Disse-me ele haver formulado um convite ao Luiz Edmundo Magalhães, mas

este não havia aceitado. Vi, então, que o convite se endereçava a pessoas de nível de

formação igual ao meu, isto é, gente recém-formada, ainda sem nenhuma

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qualificação especial para o magistério superior. Entendi que se eu não o aceitasse,

ele seria formulado a pessoas nas mesmas condições que a minha e que ninguém

poderia fazer o melhor que eu, mas, no máximo, igual. Foi essa a razão de eu ter

aceito o convite.

Com relação ao corpo discente da faculdade devo dizer que houve uma época

em que a facilidade de relacionamento foi muito grande e houve um período em que

houve dificuldade de relacionamento, com grupos do corpo discente. Com o corpo

administrativo em geral, o relacionamento sempre foi bom, e não houve dificuldades,

exceto com algum funcionário, quando eu não me mostrava satisfeito com o serviço

prestado. Procurava, então, usar todos os meios ao meu alcance, para melhorar o

trabalho do funcionário.

Com relação ao corpo docente, desde que estou na faculdade, do seu início até

hoje, sempre tive meus colegas, os que são meus amigos, os que parecem não ser

amigos – não sei também se são inimigos – e os que eu diria indiferentes, um

relacionamento amistoso, de conversação, mas não propriamente no nível de

amizade.

Quanto ao período de maior dificuldade de relacionamento, tanto com o corpo

docente como com o discente, ocorreu em torno de 1961, durante cerca de dois anos.

Não sei se poderíamos falar de dificuldade e facilidade de relacionamento ou

deterioração de relacionamento. Acho que a segunda alternativa se ajusta melhor à

situação. Sempre contei com o apoio das direções da faculdade, desde o início até

hoje. Aliás, nessa relação diretor-professor sempre há os satisfeitos e os insatisfeitos.

Vou relacionar alguns pontos positivos e negativos das administrações da

Faculdade desde a minha vinda até 1970. Vou começar da frente para trás:

• Na administração do Doutor Michel P. Sawaya, um aspecto positivo, porém

negativo, foi a criação do curso de licenciatura em Ciências; o negativo foi a não

implantação do Departamento de Genética.

Page 100: Maria a Blaz Vasques Amorim

100 

 

• Na administração do Doutor Duarte, embora ele não tivesse entrosado com a vida

universitária, um aspecto positivo dele- e duvido que alguém conseguisse fazer o

mesmo – foi criar pacífica e tranqüilamente um bom ambiente nessa escola, sem

atitudes que se poderia esperar de um diretor-interventor como ele o foi; como

aspecto negativo, questão decorrente da sua falta de vivência universitária: aplicação

de rescisão de contrato a não doutores.

• Doutor João Dias da Silveira: o aspecto positivo foi uma adequação desse prédio,

derrubando e levantando paredes, mudando a estrutura do prédio de maneira a

torná-lo menos inadequado; aspecto negativo: uma perda, pelo menos aparente do

domínio da situação.

• Quanto a administração de Rafel Grisi: aspecto positivo: a biblioteca, que conta

atualmente com quase 40.000 volumes. Se nós fizermos um levantamento do

crescimento da biblioteca em cada uma das administrações, verificaremos que a

biblioteca da Faculdade de Filosofia já começou grande e assim começou porque o

professor Rafael Grisi a criou grande. Quanto à qualidade do material, porque

quantidade, mas de má qualidade não é vantagem, dizem que a biblioteca não valia

muito a pena, porque a qualidade não era a das melhores. Acho que ninguém tem o

direito de dizer isso, pois numa biblioteca cabe qualquer livro, por essa razão, esse eu

considero um ponto positivo. Ponto negativo na administração de Rafel Grisi: ele

poderia estar presente em Rio Preto mais do que esteve.

Dizer ser um ponto negativo da administração do Doutor Miguel P. Sawaya criar o

curso de Licenciatura em Ciências é uma posição, à primeira vista pelo menos, que

parece esquisita, porque não houve a contratação de nenhum professor e nem

compra de mais equipamento; então tudo aquilo que era realizado pelo grupo de

História Natural; por isso vou justificar a minha posição e não pretendo esgotar meus

argumentos nesse sentido. Em primeiro lugar esse curso é muito mal estruturado,

muito mal idealizado e teria sido melhor não tê-lo criado na faculdade de São José do

Rio Preto; em segundo lugar, agora já como aspecto específico dessa Escola, esse

curso se constituiu numa carga a mais para o corpo docente do curso de História

Page 101: Maria a Blaz Vasques Amorim

101 

 

Natural e com um equipamento, esse mesmo grupo de pessoas teve que estar a

serviço de dois de natureza muito diversa.

Outra questão importante é a participação dos alunos nos problemas da Escola

e vou dividi-la em duas partes:

Primeira: Participação dos alunos nos problemas da Escola como membros de

órgãos colegiados; deve e pode haver essa participação, pois entendo que eles têm

contribuição a dar, mas do modo como tem funcionado, a participação deles têm sido

mínima, pelo menos no que tenho observado em reuniões de congregação

atualmente, algumas do Conselho Superior a que tenho assistido, e algumas de

Departamentos, a participação deles é insuficiente. E se considerar que os estudantes

sempre lutaram por essa participação, vemos que eles ganharam um brinquedo e não

brincam com ele, ou pelo menos não brincam como gostaríamos que brincassem; o

que quero dizer com isso é que eles não se informam bem das coisas para depois dar

uma opinião. Em resumo: parecem não estar preparados para essa participação.

Segundo: Os alunos não sabem encarar certos problemas da Escola. Estou

muito preocupado com a mudança da Faculdade para o prédio novo que vai

começar a funcionar em salas de aula com mobiliários novos, e não tenho dúvidas

(levantei esse problema ontem na Congregação), que depois de 15 ou menos dias de

aulas, as carteiras vão estar cortadas, rabiscadas e riscadas. A falta de zelo pelo

patrimônio da Escola, como pelo próprio aspecto da Escola. Os estudantes

(certamente professores e funcionários também), sem dúvida contribuem para

manter essa Escola suja e isso é uma questão de mentalidade que precisava ser feita

antes de nos transferirmos para outro prédio; senão , logo o prédio novo vai ficar

ruim. Esta questão de conservação de material é um problema da Escola e disso os

estudantes absolutamente não participam, não tomam consciência.

Quanto à participação dos alunos nos problemas da Escola ao longo de sua

vida: houve época em que os alunos pretendiam ser capazes de participar, opinando

sobre uma série de coisas eles superestimaram sua capacidade de participação e aí

Page 102: Maria a Blaz Vasques Amorim

102 

 

houve muito palpite sem haver conhecimento de causa. Isso demonstra que eles não

estavam preparados e continuaram se preparar para dar sua contribuição.

Veja, embora eu ache positiva a contribuição do diretório acadêmico, ela não é

substancial para a elevação do nível intelectual dos alunos. Eles fazem cada vez

menos o que deveriam fazer: estudar. O nível dos alunos dessa Faculdade tem caído

de ano para ano. Quando das primeiras turmas dessa faculdade os estudantes se

utilizavam de meia dúzia de livros que poderiam ser em francês, inglês ou espanhol.

A evidência disso é que eles tiveram uma boa formação e é fácil verificar isso,

observando em que situação estão atualmente os alunos da faculdade, das primeiras

turmas. Depois o ensino foi degenerado, em conseqüência do aumento do número de

alunos, que não foi acompanhado nem pelo aumento de equipamento, nem pelo

aumento do número de professores; e se houve aumento não foi em proporções de

modo a atendera demanda discente e atualmente os estudantes de Citologia,

Genética e Evolução usam, quando muito, um livro há quase como que uma

imunização a qualquer livro que não seja escrito em português. A contribuição

positiva para elevação do nível intelectual da Faculdade que o estudante pode, e

deve querer dar, é estudar mais. E o nosso estudante tem estudado cada vez menos,

tenho certeza absoluta disso. Desde o começo da Faculdade, sempre achei que o

aluno dispersou a atenção que ele deveria dirigir ao estudo, para outras coisas. E se

continua assim é porque as coisas deixaram de ser umas e passaram a ser outras.

Houve época em que a dispersão do tempo para outras coisas que não estudo, era

um interesse muito grande por uma vida política, seja interna da Faculdade, seja de

âmbito nacional e internacional. Se atualmente a gente pode entender que, pelo

menos houve uma diminuição desse tipo de interesse, passou a haver um aumento

de interesse do aluno por outro tipo de atividade: é a preocupação dele querer dar

mais aulas no secundário, do que ele deveria, como estudante. Certamente, o aluno

como estudante, deve dar aulas e ele pode fazer isso melhor que o leigo que não tem

faculdade de Filosofia. O errado é que em vez dele procurar dar, digamos, 12 aulas

por semana, logo no segundo ou no terceiro ano de Faculdade assume compromisso

Page 103: Maria a Blaz Vasques Amorim

103 

 

de 40 aulas, se não mais do que isso. Parece ser esse um problema já abordado pela

legislação, de modo que é de se esperar uma melhoria: só esta questão do colégio não

poder atribuir aulas ao estudante de faculdade se houver incompatibilidade de

horário, já foi um grande passo, mas há mais coisas que ainda devem ser feita.

Percebo também rivalidades entre os cursos da Faculdade criados em 1957 e

também entre os criados após 1968.Vou dividir em duas partes: Rivalidade entre

cursos novos e já existentes. Houve e talvez agora um pouco mais (não sei se o termo

é rivalidade), gerada pela criação do Curso de Licenciatura em Ciências. Ela existe

entre alunos de Licenciatura em Ciências, de um lado, e História Natural do outro;

Licenciatura em Ciências de um lado e Matemática do outro. Isto também serve de

argumento para justificar porque foi um erro a criação do Curso de Licenciatura em

Ciências, porque acho que são (como chamo) “monstrinhos” e um “monstro” que

está se hipertrofiando cada vez mais. Isso decorre da estrutura do Curso de

Licenciatura em Ciências que dá ao licenciado mais atribuições do que ele é capaz de

desempenhar. Ele é legalmente credenciado a dar aulas de Matemática no primeiro

ciclo; essas deveriam ser atribuídas aos licenciados em Matemática. Esse deve ser o

foco de rivalidade entre Licenciatura em Ciências e Matemática.

O foco da rivalidade entre Licenciatura em Ciências e História Natural vem

também dos diretórios legais do licenciado em Ciências. Como o número de

licenciados em História Natural não é ainda suficiente para preencher as

necessidades do mercado de trabalho, então há disputa entre os dois tipos de

licenciados e, também entre os dois tipo de alunos da Faculdade por aulas do

segundo ciclo. Acontece que, pelo sistema de atribuição de pontos, não é raro o

licenciado em Ciências conseguir vantagens sobre o licenciado em História Natural.

É possível colecionar uma série de exemplo, mas no momento não me ocorre

nenhuma. Então, aqui rivalidade tem como causa a criação de um curso que nunca

deveria existir no país inteiro, nunca deveria Ter sido inventado, tal como foi

inventado, o curso de licenciatura em Ciências.

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Quanto a outro tipo de rivalidade em épocas passadas, não era propriamente

rivalidade, mas o confronto entre o tipo de atividade que era exercida por alunos de

História Natural e alunos de Letra e Pedagogia. O confronto das atividades de

História Natural de um lado, e Pedagogia e Letras do outro, é que enquanto os

alunos de Letras e Pedagogia tinham aulas um só período, os alunos de História

Natural tinham aulas em dois períodos. Então, sobrava muito tempo para alunos de

Letras e Pedagogia fazerem uma porção de coisas, não acontecendo o mesmo com os

alunos de História Natural . Conseqüentemente, pode ter surgido uma dúvida na

cabeça dos alunos de História Natural: “Nós estamos gastando mais tempo em

estudos; será que está certo isso, será que nosso tempo de estudo também não

deveria ser menos?” Mas eles estavam sempre conscientes da necessidade de

participação na vida de estudo da Faculdade. Sempre há exceções em toda situação.

E talvez houvesse um descontentamento por parte dos alunos de Letras e Pedagogia

pelo desinteresse de alunos de História Natural nas atividades que eles exerciam por

ter menos aulas dentro da escola.

Quanto à palavra descontentamento, pode ser que seja descontentamento

mesmo, ou outra coisa. Quanto ao desinteresse do aluno de História Natural porque

ficando no laboratório o dia todo ( e havia condições materiais para aulas práticas

muito eficientes no começo da Escola, muito mais do que hoje) estavam dirigindo a

sua atenção para aquilo a que deviam mesmo dirigir, quer dizer, estavam

procurando se formar da melhor maneira possível. E, quanto melhor formado estiver

o indivíduo, melhor, depois de licenciado, a contribuição que ele pode dar ao

país.Acredito firmemente que a instalação da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras trouxe benefícios à cidade e região e focalizando mais as conseqüências do

Curso de História Natural. Os cursos de Letras e Pedagogia também tem dado a sua

contribuição e posso dizer somente alguma coisa pelo menos conhecimento que

tenho desses cursos. Por exemplo, do curso de Letras e Pedagogia há uma porção de

Colégios na região cujos diretores são licenciados por essa Faculdade e efetivos na

direção. É uma contribuição positiva para a cidade e região. No caso de Letras, há ex-

alunos nossos dando aulas por aí, não só no secundário, mas também em outras

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Faculdades particulares, etc. Com relação à História Natural, o ensino de ciências na

região melhorou muito, depois da instalação do curso de História Natural. Sinto que

possa estar piorando como conseqüência da criação do Curso de Licenciatura em

Ciências, entre outras causas; mas isso não é um pecado da Faculdade, mas do curso

estar mal estruturado, melhor seria fechar todos eles...No nível do ensino superior, a

Faculdade de Filosofia de Votuporanga, por exemplo, tem no seu corpo docente ex-

alunos e professores desta Faculdade.

Houve uma época em que nossa Faculdade não era bem vista pela

comunidade e essa época coincide, mais ou menos, com o período de 1960 a 1964,

embora se deva dizer que mesmo nessa época a Faculdade era muito bem vista por

parte da Comunidade. Atualmente a Comunidade não vê a Faculdade como deveria;

a Comunidade sempre tem demonstrado desinteresse quase completo pela vida de

nossa Escola; poucos sabem o que acontece aqui e ninguém procura saber. É claro

que há honrosas exceções; mas a maioria desconhece.

Antigamente, tínhamos prazer de trazer conferencistas, pois o salão nobre

estava sempre cheio; de repente começou a cair a freqüência a tal ponto que, agora

quando vêm um conferencista podemos contar as pessoas que estão assistindo e se

verificarmos quem são elas, concluímos que são: o professor que convidou o

conferencista, a esposa dele, os colegas de trabalho com suas respectivas esposas ou

maridos e alguns amigos que se reúnem para escutar. Então isso criou, pelo menos

em mim, um desinteresse total para convidar conferencistas.

Antigamente, de um modo geral, a Faculdade não era bem vista. A idéia de

que o ambiente aqui era de agitação política se generalizava. Disse também que

deveria haver gente na Comunidade que achava estar muito bem assim; sempre há

os a favor de um estado de coisas e os contra. Com relação à época atual deve haver a

mesma coisa: de um modo geral, a Comunidade acha que o ambiente da Faculdade

é sadio, de preocupação com trabalho, mas acredito que há também aqueles que não

concordam com tal situação.

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Quanto ao fato da Faculdade de anteriormente não ser bem vista pela

Comunidade, por entender que nela havia um ambiente de agitação política,

precisamos distinguir dois aspectos: entre aquilo que se dizia e o que ficou realmente

provado ou não ficou provado. Mas falava-se não só de agitação política, como

também de um ambiente pouco recomendável do ponto de vista moral. Essa

segunda parte, tanto quanto eu sei, nunca foi demonstrada e os comentários eram

muito generalizados. Não tenho pessoalmente nenhuma prova de que isso tenha

ocorrido.

Não há dúvida que existiram, existem e sempre existiram grupos. Esses

podem e devem existir. O importante seria que cada um tivesse consciência de uma

coisa: não vou atrapalhar ninguém e que ninguém me atrapalhe; dessa maneira a

existência de grupo será até salutar, mas nem sempre isso acontece.

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107 

 

HÉLIO LEITE DE BARROS

Estive com o Professor Hélio em sua residência, um apartamento

transformado em loft na Pompéia e repleto de obras de arte produzidas por ele.

Coisas muito interessantes utilizando material de reciclagem, a maioria de plástico.

Conversamos longamente...

“O homem vira homem quando ele diz eu”

Meu nome é Hélio Leite de Barros, fui professor, hoje sou artista plástico,

cineasta... em 1971 fiz um filme com o Roberto Santos que foi selecionado pelo

Itamarati para ir ao festival de Berlim, mas depois... a censura, os milicos não

deixaram porque era... bem... a gente ganhou um prêmio do governador do estado,

era um filme coletivo e fiz uma das partes... nem gostei muito da parte que fiz... sabe,

eu estou querendo voltar ao cinema aproveitando as novas tecnologias digitais que

facilitam muito as coisas. Essa novidade cria a possibilidade de se fazer cinema sem a

necessidade daqueles esquemas de produção complicados que precisam de muito

dinheiro, equipe, câmeras pesadas... comprei uma dessas filmadoras de última

geração e tenho filmado minha neta para praticar... é muito bom filmar criança,

interessantíssimo, elas falam coisas muito interessantes...

Quando a criança começa a falar vira gente, como dizia Hegel “o homem vira

homem quando ele diz eu”. Quando se fala surge a consciência, surge a distinção

entre o eu e o resto e passamos a fazer parte de uma comunidade. Tenho uma neta

maravilhosa, inteligente, sensível... minha relação com ela não é apenas aquela entre

avô e neta, vejo nela uma fonte de conhecimento humano... creio que sou um avô

muito coruja.

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108 

 

Quando estou com ela lembro do período que lecionei em Rio Preto... eu

falava sobre o outro, comunidade, filosofia da linguagem há 40, 50 anos nas aulas de

Filosofia e Pedagogia... algumas coisas eu havia esquecido e ela está me ensinando

novamente... estou vendo surgirem nela a inteligência, isto é, as funções cognitivas

na sua maior pureza. Vejo surgir também os impulsos básicos como agressividade,

amor, carinho... isso é muito bom.

Tenho 3 filhos e dois netos. Uma neta de 20 anos do primeiro casamento e

outra de 4 anos do meu segundo casamento e... não, não estou no terceiro

casamento... separei-me da minha segunda esposa e estou sozinho... tenho apenas

dois filhos do primeiro casamento que nasceram pouco antes de eu ir para Rio Preto,

minha filha também se casou duas vezes... hoje isso é normal... é muito difícil viver

com uma pessoa durante muito tempo, conheço até alguns casos que dão certo, mas

cada vez vale menos como regra, não sei se é bom ou mau... aí é outra história... mas

enfim...

Nasci na cidade de São Paulo, em 1929, no bairro do Canindé, minha família é

muito numerosa, minha avó materna teve quinze filhos, imagine que ainda existe um

com 103 anos... está numa clínica, suas funções mentais estão muito avariadas... A

memória dele é do passado.

Estudei no Grupo Escolar Santo Antonio do Pari que era excelente... hoje

houve no ensino, de um modo geral, uma decadência da qualidade enorme...

Quando sai de Rio Preto voltei a dar aulas de Filosofia em colégios estaduais, um em

Osasco, já não era bom... bem, talvez minha visão fosse muito crítica... lembro até

hoje das minhas professoras, a dona Eudorina, a dona Neusa, que era uma mulher

muito afetiva, muito gorda... imagine que nas férias ela levava alguns alunos para

ficar na casa dela... hoje essa relação professor/aluno se perdeu. Sabe, nesse período

a mulher ou era professora ou prendas domésticas... não havia quase opções, só que

como professoras elas ganhavam bem, 3 ou 4 vezes o que se ganha hoje, então o

homem também podia sustentar sua família sendo professor. As professoras,

normalmente, eram filhas de famílias ricas.

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109 

 

Depois que saí do grupo escolar fui para um curso básico comercial, meu pai

achava importante aprender uma profissão... sempre tivemos algum dinheiro... eu

tinha família em Itapetininga que sofreu na crise do café, outra parte da família era

de Mirassol... minha mãe teve 11 filhos... era complicado sustentar todo mundo... por

isso fiz o técnico comercial ao invés de fazer o clássico, assim poderia me colocar no

mercado de trabalho mais rapidamente... comecei a trabalhar com 11 anos num

armazém de seco e molhados perto da minha casa e podia ajudar meus pais com um

dinheirinho... eu não queria fazer o tal básico comercial... uma coisa chatérrima,

parecia coisa de gente menos dotada de inteligência, não precisava pensar e era ruim.

Eu era muito curioso... tinha uma curiosidade imensa pelo conhecimento... tinha

vontade de crescer intelectualmente, então depois de dois anos no comercial arranjei

um jeito de fazer o colegial clássico... fiz madureza por correspondência e fui para a

faculdade de Filosofia. Quem me incentivou foi um professor de matemática que

também era filósofo, falava sobre os mais diversos assuntos, inclusive de religião, da

existência de Deus... ele me disse que isso se estudava no curso de Filosofia e aí eu

me apaixonei por Filosofia... meu lance era desvendar os enigmas do mundo.

Hoje o ensino está decadente e o começo dessa decadência do ensino

secundário foi em 1969 com a Reforma Passarinho, uma das piores coisas que

aconteceram neste país foi o Jarbas Passarinho na educação, ele implantou o acordo

com o USAID, veio aquela coisa de ensino técnico para formar mão-de-obra barata e

não pensante... foi um arraso, acabou com o ensino nesse país, acabou com a

Filosofia, com o Latim, com Francês... uma mudança estúpida, a aniquilação da

formação de consciência critica, de visão de mundo... esse tipo de ensino ficou

restrito a algumas escolas particulares caras, de elite.

Nesse período do clássico eu costumava freqüentar a Biblioteca Municipal

Mário de Andrade, lá encontrava amigos intelectuais, poetas... a livraria tinha um

excelente acervo de arte e era dirigida pelo Charles Nemet . Havia umas cabines

onde podíamos estudar, apresentar projetos, gostava de ir à museus que possuíam

coleções de obras bem diversificadas, meu favorito era o Museu de Arte Moderna, à

Cantina do Marinheiro que existe até hoje. Havia também um clube de cinema

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110 

 

dirigido pelo Paulo Emílio Sales Gomes que foi um grande critico e intelectual. Era

um homem charmoso, inteligente, conhecia muito de cinema, havia estudado na

França e nas sessões de cinema que ele fazia vi grandes clássicos do cinema francês e

americano como Jean Renois, Orson Welles. Tinha o Décio de Almeida Prado, um

crítico de teatro que escrevia no Estadão, o Sérgio Lineu, o Antônio Cândido, este

último de importância impar na minha formação, ele é brilhante, um grande

intelectual.

Não estou fugindo do assunto, mas acho importante falar da vida cultural

daquele período para entender nossa formação e o que aconteceu em Rio Preto.

Nesse período surge o Teatro de Arena, o TBC, Teatro Brasileiro de Comédia...

tinha a USP... para qualquer cidadão, que como eu, queria conhecimento, São Paulo

era maravilhosa, tinha apenas 1 milhão de habitantes, havia bares onde intelectuais

se reuniam para discutir, na rua Maranhão tinha um que o Chico Buarque

freqüentava. O Caio Prado morava em Higienópolis... enfim havia um universo sem

nenhum juízo de valor, era uma cultura superior que se realizava... havia livrarias

sensacionais como a Francesa, a Duas Cidades, a Paternon, onde eu comprava muitos

livros a prazo. Havia também o Teatro Municipal que frequentei muito com o

Mauricio Tragtemberg, o Bento Prado, o Roberto Schwarcz, eram óperas, musicais,

recitais, artistas que vinham do mundo todo.

O Roberto ainda está na ativa, um homem que pensa o Brasil muitíssimo bem.

Conheci o Manoel Carlos, o Maneco que hoje escreve novelas na Globo como ator...

ele era péssimo, ele mesmo dizia isso. Conheci também o Rui Fausto, que era irmão

do Bóris, o historiador. O Rui era trotskista, e fazíamos reuniões meio silgilosas na

casa dele em frente à Praça Buenos Ayres em Higienópolis. Tinha também o Jacó

Ginsburg, ele era judeu rico de Higienópolis, já o Mauricio era judeu pobre que

morava na Vila Maria Zélia, no Bom Retiro... chamávamos o Mauricio, brincando, de

“vaca revolucionária”. Ele era da esquerda radical judia...todos desse grupo

andavam com casacos de couro...era a juventude socialista judia.

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111 

 

Sabe a Gilda de Mello e Souza, mulher do Antonio Cândido? Ela é sobrinha do

Mário de Andrade, foi aluna do Antonio.

Fiz Faculdade de Filosofia e dei aulas no Colégio Alberto Conti, substituindo o

Décio de Almeida Prado, lá o Michel Lövy foi meu aluno e depois foi meu colega em

Rio Preto. Depois lecionei no Colégio Roosevelt e lá dei aulas para o Carlos

Guilherme Mota, a Marilena Chauí , o Sedi Hirano, o Gabriel Cohn, gente de valor.

Bem a faculdade de Rio Preto foi “inventada” por um “picaretão” chamado

Daud, no inicio era municipal, depois foi estadualizada no governo Jânio Quadros e

o Carvalho Pinto era secretário... acho que a única coisa boa que o Carvalho fez na

vida foi ajudar na estadualização da faculdade de Rio Preto. Claro que a faculdade

foi criada por razões de ordem política, para acomodar um grupo de pseudo-

intelectuais sem formação da cidade.

O Jânio estadualizou a faculdade, mas exigiu professores da USP, não queria

que a estadualização servisse para politicagem local de um grupo muito sacana,

canalha mesmo, que se considerava dono da faculdade. Esse foi o grupo que se

aproveitou da Revolução de 64 para tomar a faculdade novamente.

Bem, sob a direção do Rafael Grisi a faculdade quase desandou, uma ilha de

corrupção, sorte que lá havia gente muito boa, o Orestes Nigro, o Flávio de Giorgi, a

Maria Edith di Giorgi, entre outros e não deixamos a coisa degringolar. Claro que

havia os de direita como o Luiz Dino Vizotto, o Celso Abade Mourão, o Coronado de

Espanhol, esse último participou da queima de livros após a invasão dos militares.

Ele era também da Opus Dei. O assistente dele era o Eduardo Cañizal que foi

professor da ECA. Ele não fechava ideologicamente com o Coronado, era mais da

turma da esquerda...

Bem, quem me convidou para ir para lá foi o Rodolfo Azzi, sabe que depois da

cassação ele virou hippie, artesão? Ele era da cadeira de Psicologia. Fui ser assistente

dele. Eu já era casado nessa ocasião, casei em 1954 com a Mary Amazonas Leite de

Barros, que também foi professora lá em Rio Preto. Sabe, ainda tenho muita amizade

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112 

 

com a Mary, ela é mãe dos meus filhos, acho que ficaremos de alguma forma ligados

para o resto das nossas vidas, afinal tenho 78 anos...e não acharei ruim se você tivesse

imaginado que eu era mais novo... a Mary também está muito conservada.

Sabe, não gosto muito de rememorar essas coisas de Rio Preto, embora eu

saiba que é muito importante, é também muito doloroso, uma parte da história da

gente que é muito desagradável, que a gente quer esquecer... tem gente que quer

lembrar... é a questão da individualidade... cada um é um... ainda bem! Se bem que a

individualidade traz o problema da solidão, um terreno meio complicado, acho que

no fundo todos nós estamos sós, a gente tenta superar isso ligando-se a outras

pessoas... sabe... dizem que Bach era um solitário e por isso fez música, como forma

de superar a solidão básica.

Voltando à Rio Preto, foi a primeira faculdade do Brasil que teve

representação paritária e isso foi uma grande revolução na educação... também nos

valeu a pecha de “comunas” de Rio Preto...a coisa não era engolida pelo pessoal das

Ciências Naturais... a única coisa ruim eram as reuniões... sempre achei reunião uma

porra...acho que nesses momentos a democracia é meio cansativa... acho que no final

das reuniões todo mundo queria dizer:- vamos acabar logo com essa lenga-lenga,

mas era muito divertido.

Nunca fui muito de militância política, achava muito cansativo... aquelas

digressões, embora tivesse posição de esquerda não gostava de reuniões, gostava,

sim, de dar aulas, discutir com meus alunos, de pensar, de escrever... eu tinha

relações com pessoas do Partidão, mas não era militante. Admirava a JUC, mas

também não militava nela.

Estou percebendo que minha história faz parte da história da universidade

brasileira, da realidade socioeconômica desse país... estudei tanto na vida, ás vezes

chegava a tomar estimulante...

Sabe, o trabalho em Rio Preto era estimulante, professores de nível muito bom

querendo criar uma educação diferenciada. O Casimiro Reis Filho, o Orestes, o Azzi,

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113 

 

o Cantoni, o Lövy, o Traugtemberg, a Sara, esta última tem uma história a parte,

sofreu muito... o Casimiro era espírita... um espírita de esquerda... é até engraçado!

Ele era um cara bom, os espíritas são geralmente bons, o que não é o caso dos

protestantes, posso falar isso porque minha família é protestante... conheci muitos

espíritas bacanas, humanos, generosos.

Bem, nossa classe era muito rica intelectualmente, acho que não havia

militantes políticos, mas militantes culturais. A gente queria, representava e

procurava fazer algo para acontecer uma transformação na cabeça das pessoas, a

gente trazia coisas novas e claro, isso colidia com o padrão reinante que nos taxavam

de revolucionários. Agora, havia a militância, o Heimer com a AP, o MPC, era

intensa, o Azzi com o partidão... o problema era que os postos chaves da lei em Rio

Preto, delegado, juiz etc. eram da direita... então, já viu. Como eu gostava muito de

cinema acabei me engajando, dirigia um grupo de cinema. O MPC estava ligado ao

GRUTA, ao Ferreira Gullar, ao Augusto Boal, o Guarnieri, ao Juca de Oliveira... o

Orestes também era do MPC, participava das reuniões para discutir estratégias...

Lembro de uma ocasião em que passei “O encouraçado Potenkim” e depois

houve discussões com os camponeses que participavam do movimento de

alfabetização de adultos...

Embora fossemos bastante engajados, foi uma surpresa o Golpe. Claro que

esperávamos algum tipo de represália, estávamos mexendo muito com a sociedade,

mas o Golpe na faculdade ninguém esperava. O pessoal de direita, que nem de

direita podemos chamar porque eles não eram nada, foram apenas oportunistas, se

reuniu e aproveitou a oportunidade, o Daud era o principal denunciante e antes do

Golpe vinha se reunindo com o Tácito Pinheiro Machado, o delegado geral da cidade

que foi uma figura fundamental na invasão, ele estava macomunado com o juiz

Duarte, que “coincidentemente” foi ser o diretor da faculdade... bem feito para o

Daud que queria ocupar esse cargo.

Havia uma aluna, Yvone de Moura Campos que também denunciou os

professores e colegas... tudo por despeito. Ela era medíocre.

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114 

 

Na faculdade havia uma cadeira de Cultura Brasileira cujo professor, Diego de

Souza Antônio era discípulo do Florestan Fernandes e era um líder do pensamento

de esquerda, ele morreu jovem, do coração. Havia o Cantoni, de esquerda, o irmão

dele era violinista, o Humberto Cantoni... imagine que depois do Golpe, quem pegou

a cadeira de Cultura Brasileira foi um advogado da cidade que defendia a tese da

inferioridade do índio brasileiro... quer dizer, todo nosso trabalho, anos de estudo,

foram desprezados.

O Aluizio Reis de Andrade também foi muito importante, o Newton Ramos

de Oliveira também era demais... o Lövy é marxólogo de renome internacional,

porém antes do Golpe ele ganhou uma bolsa e foi para a França, está lá até hoje.

Se o Golpe não tivesse acontecido a faculdade de Rio Preto seria a melhor do

Estado de São Paulo, éramos de ponta, algo novo, uma força inovadora, um trabalho

de excelência, ousada, teria transformado Rio Preto... poderia ter sido uma coisa

muito positiva... hoje decaiu muito, não só ela, mas o ensino de uma maneira geral.

Poderia ter sido... mas não foi... uma pena!

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115 

 

ANOAR AIEX

A carta abaixo transcrita me foi enviada pelo professor Anoar Aiex após o

meu contato com ele por telefone. O Professor não quis fazer uma entrevista via

computador, uma vez que, como ele me disse, não gosta de mexer com tal máquina.

Como considerei importante o teor da mesma para este trabalho, resolvi, com a

autorização do professor Anoar, transcrevê-la e juntá-la às outras entrevistas,

seguindo o mesmo padrão de análise que desenvolverei com as últimas feitas

oralmente.

Estava, no entanto, tão deprimido pelas demissões e prisões dos meus

colegas e pela destruição de tudo que estávamos tentando criar em nosso

departamento. Por isto, resolvi sair do país e procurar trabalho aqui, nos Estados

Unidos.

Baseando-me exclusivamente em minha memória , que, infelizmente, não é

muito acurada sobre acontecimentos ocorridos há quase 50 anos, tentarei descrevê-

los da seguinte maneira: Comecei a trabalhar em Rio preto, na cadeira de Filosofia,

do departamento de Pedagogia, que estava organizado democraticamente, isto é, a

participação era paritária entre alunos e professores que tinham o mesmo direito de

voz e voto.

Esta inovação foi bastante significativa, pois criou grande dinamismo e

responsabilidade de todos os participantes do departamento. O desenvolvimento e

as inovações curriculares que estavam sendo processadas foram, abruptamente,

interrompidas pelo Golpe Militar de 1964, em que a repressão iniciada à nível

nacional, foi arbitrariamente executada pela autoridade local. Em Rio Preto, por

exemplo, o delegado aceitava denúncias anônimas, levando-o a aprisionar

inicialmente membros do corpo docente, e, mais tarde, do discente.

Page 116: Maria a Blaz Vasques Amorim

116 

 

Dessa perseguição, em parte anticomunista, em parte simplesmente

ressentimento local contra uma Faculdade repleta de “bárbaros” da Capital, resultou

a demissão de vários colegas e do desmembramento do departamento de Pedagogia.

Eu fui demitido num segundo grupo por não ter completado a minha tese de

doutoramento. Poderia ter entrado com um requerimento pedindo mais prazo para

completá-la, pois era impossível trabalhar numa tese num clima tão instável. Estava,

no entanto, tão deprimido pelas demissões e prisões dos meus colegas e pela

destruição de tudo que estávamos tentando criar em nosso departamento. Por isto,

resolvi sair do país e procurar trabalho aqui, nos Estados Unidos.

É isso que tenho a dizer.

Abraços

Anoar.

OS. Dê, por favor, meu abraço ao Orestes.

Page 117: Maria a Blaz Vasques Amorim

117 

 

SARA ROTTEMBERG

Estive com a Professora Sara em seu apartamento localizado próximo ao

estádio do Morumbi. Senhora simpática, alegre e de força de vontade incrível. Ela

havia sofrido um derrame há poucos meses, utilizava uma bengala, mas vive

sozinha, embora, segundo ela, os familiares estejam sempre por perto. Tem um

orgulho muito grande por ainda trabalhar como advogada e um olhar saudoso

aparece quando relembra os tempos de Rio Preto.

Éramos sonhadores, idealistas.

Meu nome é Sara Rottemberg. Sou professora. Minha formação deu-se na

Escola Caetano de Campos, que era a melhor escola secundária de São Paulo, cuja

diretora Carolina Ribeiro, por ser admiradora do Getúlio, ou talvez por ocupar um

cargo de confiança e ter que ser conivente com o governo, imprimia à escola uma

formação getulista. A função social da Caetano de Campos era formar uma elite,

principalmente feminina, que depois viria a ser as esposas de juízes,

desembargadores... estudavam lá as filhas das melhores famílias de São Paulo, havia

professores altamente qualificados, embora houvesse também os medíocres. As

pessoas costumavam falar que as moças que estudavam no Caetano estavam, na

verdade, esperando marido... isso é um absurdo, eu mesma não me casei.

Sou brasileira, não sigo religião nenhuma, embora meus pais fossem judeus e

eu tenha recebido uma educação com os preceitos da religião judaica... mesmo assim

não segui com a tradição do judaísmo... bem... meu pai era liberal... não ligava muito

para isso... mesmo assim acho que posso dizer que me considero do grupo judeu...

isso não impediu que minha melhor amiga fosse filha de alemães, a Gisela... havia

também uma menina chamada Karu Osoi, filha de um médico japonês, havia amigas

filhas de italianos... acho que os Spinelli... um grupo de amigas tão diversificado

acabou sendo isolado ... havia muita discriminação com filhos de imigrantes... a Karu

Page 118: Maria a Blaz Vasques Amorim

118 

 

Osoi acabou indo para o Japão e ficando por lá... também, na escola havia quase que

só filhas de fazendeiros de café... gente metida. No Colégio Roosevelt não havia esse

tipo de problema, era uma escola onde as pessoas tinham a cabeça avançada, lá não

era escola normal, era colegial, um povo menos “quadrado”.

A Universidade surgiu em São Paulo nos anos 1930 e se consolidou nos anos

1940. A primeira turma é formada na USP por volta de 1940, não me lembro

exatamente do ano, e esses primeiros formandos faziam parte dessa elite do Caetano

de Campos, não pense você que o povo participou dessa turma, a massa não teve

nenhuma participação no início da Universidade. Era uma inteligenttsia que não se

espalhava, trouxe muitos estrangeiros, assim houve, na verdade, a valorização do

europeu e então os filhos de imigrantes passaram a ser valorizados. Alí, éramos

medidos pela nossa capacidade, não por sermos estrangeiros.

No início eu não queria fazer Pedagogia, porém, havia feito o normal e só me

restou Pedagogia. O vestibular era tão ou mais difícil que agora, havia prova de

latim, de outras línguas... eu me preparei através de um cursinho ministrado pelo

grêmio da escola... veja, estou contando toda essa história porque ela é importante

para você perceber o tipo de professores faziam parte da Faculdade de Rio Preto...

bem, quando fui prestar o vestibular, em latim para todas as disciplinas, exame oral e

escrito, caiu justamente Guerras Púnicas em História... foi uma dúvida, mas o

professor Marcelo Francisco disse que eu havia passado porque sabia pensar... em

Literatura caiu Salúcio, um arcaico do qual nunca tinha ouvido falar, mas como sabia

bastante gramática, consegui.

No exame de Literatura Portuguesa caiu um autor clássico... eu só sabia sobre

ele o que tinha lido do Rama... e eu ali, fazendo um exame oral, e meu examinador

era o Professor Antonio Cândido, um grande literato... tive uma idéia... perguntei a

ele se podia fazer uma comparação... comparei esse autor clássico ao Hemingway,

falei do livro dele que eu mais gosto, é a história de uma pessoa que se buscou a vida

inteira, nunca esteve satisfeito consigo mesmo, deixa de casar com uma moça que

gosta muito por causa dessa busca... comparei o personagem de Hemingway ao

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119 

 

autor sobre o qual eu tinha que falar, pois ele se mata. O professor Antonio Cândido

disse: Olha, apesar de você só saber a biografia dessa sumidade da Literatura

Portuguesa, você vai entrar na Faculdade, pois foi incrível a maneira como uma

menina de 17 ou 18 anos inventou uma história e construiu uma relação entre o

fictício e o real, aqui, na hora. Do autor você não sabe quase nada, mas você deve

gostar muito de ler, e provou que é capaz.

Cursei Pedagogia, mas Pedagogia mesmo, não isso que se vê por aí hoje. Os

professores eram muito capacitados, tínhamos a possibilidade de conhecer outras

pessoas, de nos tornarmos seres humanos críticos, tínhamos a UNE, que era muito

atuante, éramos amigos dos universitários das outras faculdades da USP e, durante

um período, até dos do Mackenzie. No Mackenzie só estudavam os filhinhos de

papai, de famílias ricas, donos de bancos... quando fiquei mais adulta me afastei um

pouco dessas pessoas, afinal, enquanto a gente é estudante parece que todos são

iguais, mas depois... o dinheiro sempre foi a mola da diferença...

Eu estudava muito, sempre queria mais, além das disciplinas da Pedagogia

fazia algumas também na Filosofia, nas Ciências Sociais... minha mãe dizia que era

melhor eu levasse minha cama e ficasse morando, de vez, na faculdade... eu adorava

as aulas do Antonio Cândido...

Quando terminei o curso procurei emprego, precisava trabalhar, já era

1953...Prestei concurso para professora do normal de Sociologia da Educação.

Comigo concorreram o Janotti, o Rodolfo Azzi, o Aloísio Nunes Ferreira, pai do

atual político, que era advogado e foi um dos que ajudou fundar a Faculdade de Rio

Preto. Passei em primeiro lugar. Também concorreu com a gente o Selvin Bailey, que

depois foi um grande desembargador, ministro, era muito inteligente, de um

comportamento ético exemplar... ainda bem que ele não passou, senão teria sido um

professor, ao invés do jurista brilhante.

O exame era oral, mas não tive medo porque fui formada por grandes mestres

que me ensinaram... digamos que uma visão socialista...embora na USP houvesse um

grupo... digamos que...”quadrado”... eram os das Ciências Naturais... Bem, cada um

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120 

 

de nós escolheu uma cadeira e fui para Descalvado... sempre fui muito benquista,

querida como professora. Eu era muito exigente, procurava participar de tudo na

cidade, até dos eventos da igreja, que era pobre... eu não freqüentava a igreja, mas

ajudava a promover eventos para levantar fundos, como bailes, quermesses, bem

procurava fazer o que estivesse ao meu alcance. Como tinha muito tempo livre, além

de estudar , procurava outras atividades, fiz até curso de corte e costura. Havia

outras professoras da PUC de Campinas que não sabiam nada... imagine que elas

usavam o livro do Teobaldo Miranda Santos para dar aulas, um sujeito que não

escrevia nada, só compilava... eu era crítica, exigente, cobrava o português... nem

sempre agradava, mas depois de 20 anos, costumava encontrara alunos que diziam:-

Professora, ainda bem que a senhora era exigente, lembro de tudo que a senhora

ensinou, já dos outros professores... sabe esse menino que hoje é presidente da

Petrobrás, o Gabrielli, foi meu aluno, ele e o primo.

De Descalvado pedi remoção para o Vale do Paraíba, a cidade era Cruzeiro.

Também fiz muitas coisas lá, até na área de História, fiz uma exposição de todos os

utensílios de cozinha usados desde a monarquia até a época do Adhemar de

Barros... também estudei a chegada de imigrantes italianos por lá... nessa empreitada

tive a ajuda da Nô, Leonor, casada com o Márcio Thomaz Bastos, grande jurista,

ministro... estou contando isso porque é muito importante para as pessoas

entenderem minha formação. Conheci até a Ângela Maria, aquela que canta Babalu,

em Cruzeiro. Ela foi fazer um show lá. Foi nessa época, em 1956, que fui convidada

para lecionar em Rio Preto. Recebi uma cartinha, num papel pequeno, folha de

caderno, escrita a mão do Wilson Cantoni para dar aulas lá. Levei a idéia para os

meus pais que disseram que eu fizesse a escolha, afinal, se eu fosse feliz eles seriam

felizes também... por aí você como meus pais eram especiais.

Meu pai era um homem aberto, tinha idéias socialistas, nós não tínhamos

muito dinheiro, quando ele nasceu minha avó morreu e o pai dele, como bom judeu

casou-se com a cunhada... era para ele ter feito direito em Moscou, meu tio mais

velho havia feito engenharia em Praga e foi um bolchevique... mas meu pai veio para

o Brasil em 1914, aqui ele conheceu minha mãe e casou-se com ela, os judeus

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121 

 

estavam saindo para os Estados Unidos, para Amsterdan... a família era dos

Weinstock de Nova Iorque... o medo da guerra, porém, fez com meu avô e pais

pegassem o primeiro navio que estava saindo do porto e eles vieram para o Brasil.

Primeiro foram para Ribeirão Preto onde meu tio tinha uma farmácia, A Catedral,

depois viemos para São Paulo, meu pai, minha mãe, meu irmão e eu. Se meu pai

tivesse que comprar uma coisa para casa ou um quadro, com certeza, compraria o

quadro. Ele amava o belo, não tinha emprego fixo, mas trabalhava muito, nunca nos

faltou nada... ele contava muitas histórias e me arrependo de não tê-las anotado... era

anticlerical, gostava de contar histórias sobre rabinos... e o rabino nunca se dava

bem...essa formação que veio do berço pesou muito na minha vida.

Fui para Rio Preto em 1958. Quase todos os professores de lá queriam formar

uma escola com características bem brasileiras, queríamos nos livrar dessa coisa

européia e buscar as raízes para uma formação brasileira, como pensava o Darcy

Ribeiro que a gente conheceu muito, assim como a turma do Ceará... elaboramos,

então um plano de escola e convidamos todos que quisessem se agregar. Éramos

sonhadores, idealistas. Todos os professores da Filosofia, Letras e Pedagogia se

agregaram... o Norman, o Orestes, Cantoni, entre outros... o pessoal da Biologia,

Zoologia, enfim Ciências Naturais não aceitavam nossas propostas.

Começamos a trabalhar cada um no seu setor, tínhamos seminários diários de

estudo para construir a escola que a gente imaginava... foi uma revolução o método

que a gente começou. Pensávamos em formar uma escola com a predominância no

sentido evolutivo do pensamento, tudo interligado, Filosofia, Artes, Pedagogia...a

idéia era formar um homem brasileiro... queríamos criar a possibilidade para que as

pessoas pudessem pensar com mais amplitude... logo pensamos em teatro, o Orestes

adorou a idéia... formou-se o GRUTA. Não éramos só professores, no sentido da

palavra, queríamos mais... uma formação completa.

Rio Preto era o centro comercial da região, havia uma elite, muita fazenda de

gado, agricultura... as outras cidades eram incipientes, como Tanabi, Jales,

Votuporanga. Rio Preto tinha intelectuais, poetas como o Jamil Almansur Hadad, o

Page 122: Maria a Blaz Vasques Amorim

122 

 

Mauricio Goulart, grande historiador, o Rui Nazareth, um médico e também político

que se juntou a nós.

Não entramos muito em contato com a população... a não ser com nossos

alunos. Com eles íamos tomar sopa depois das aulas, toda noite, era um

relacionamento maravilhoso, éramos os mentores, não só intelectuais, mas de tudo,

de hábitos... começamos a mostrar a liberdade com responsabilidade... era natural

que fosse diferente dos costumes da cidade... tínhamos uma formação diferente... eu

mesma... veja houve um homem que se apaixonou por mim e ficou 11 anos

esperando que eu dissesse não... foi persistente, mas era casado, tinha uma filha..

não fui amante dele, mas ele me roubava do trabalho, não das aulas, do trabalho,

conheceu meus pais... foi uma paixão que durou muito tempo... tenho cartas e cartas

para provar isso. As pessoas diziam que eu era amante dele, mas não fui... ele me

chamava de gata, era um romântico... ele era militar e eu detesto militar, só que ele

havia feito escola militar por dinheiro, não por idealismo, depois que me conheceu

fez Pedagogia e nós dois fizemos Direito, depois da Revolução de 64 fui para a

Venezuela trabalhar numa escola rural... quando voltei foi que fizemos Direito em

Uberlândia... nunca ninguém soube lá que eu já era professora universitária... estudei

e ele estudou por minha causa... foi bonito... mas essa coisa da revolução...

Havia um pessoal de direita lá em Rio Preto, um delegado que era um... um

grupo do contra...tinha sido tão difícil o Goulart se tornar presidente e olhe que ele

cercou-se de pessoas muito capazes, o Almino Afonso que era um grande pensador,

o Paulo Freire... eram pessoas que como nós queriam mudar o Brasil, a Reforma

Agrária que já estava sendo aplicada em toda a América Latina, mas ainda era

incipiente no Brasil... o Estatuto da Terra que era super importante... a entourage do

João Goulart era... era a mudança... era o desejo de igualdade...

Agora, como quebrar uma hierarquia militar, uma estrutura tão enraizada? Só

se quebra com uma revolução, aí se quebra o pensamento e o pensamento é o

estímulo para poder fazer... infelizmente não estávamos preparados...os estudantes

queriam, nós queríamos uma maneira mais igual de viver , de estudar...A

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Universidade estava querendo que todos tivessem oportunidades, a formação que

dávamos formava pessoas altamente gabaritadas e seres pensantes... só que nem

todos pensavam assim e feriu-se a Constituição.... nós tínhamos que reagir... porém,

dentro da faculdade ninguém conversava com ninguém, sabíamos que as paredes

tinham ouvidos... conversávamos com os gestos, os olhos... havia tantos dedos-

duros... começou de fora e entrou na Faculdade... o turco Daud era terrível, pessoas

não formadas queriam tomar a faculdade só porque tinham ajudado a fundá-la, claro

que em benefício próprio...eram todos professores do Monsenhor Gonçalves, sem

formação universitária...com exceção de alguns da área de Zoologia... Esse grupo... o

Coelho, o Daud... não se conformavam com a relação que tínhamos com os alunos,

queriam a hierarquia e assim como eles, grande parte da população, a elite não

aceitava que professores e alunos pudessem aprender concomitantemente... não

aceitavam as novidades, os filmes que vínhamos buscar em São Paulo, as discussões,

as cervejas no barzinho do Seu Antonio...o Maia que abriu uma livraria onde se

vendia os livros de Marx, Engels etc. não aceitavam como transmitíamos o

conhecimento...

Havia uma integração grande entre as faculdades municipais do interior,

trocávamos informações, idéias... quando o Sartre esteve em Araraquara fomos vê-lo.

Depois da Revolução tudo ficou ruim... a própria faculdade... sorte que depois veio o

Professor Ab’Saber e foi ele que lutou para que pudéssemos, uma vez que havíamos

sido afastados, ao menos, nos aposentar...

Havia um grupo grande de professores que era contra a gente, o Celso Abade

Mourão, o Daud, o Vizotto, até o vigilante da escola a quem o Orestes havia

arrumado emprego, o Aristides, a Yvone de Moura Campos, essa sim, péssima, a

pior de todas... o Edoardo Querim, que a gente acreditava ser inofensivo, mas não

era... aquele Coelho que tomou a cadeira do Norman Potter...

O Anoir Aiex, um amigo eterno, foi para os Estados Unidos e não voltou,

muito inteligente, casou com uma americana que odiava galinha a cabidela... O

Heimer fundou a AP e fazia parte da JUC, junto com o GRUTA formaram a

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124 

 

alfabetização de adultos... foram todos presos. Sorte ter o Godói que era aquele meu

namorado... ele era militar, brigou com o delegado. Ele era Tenente Coronel, José

Ribeiro de Godói, quase perdeu o cargo por ajudar os presos, foi sempre generoso,

apesar de ser militar, se não tivesse ajudado... não sei não... Teve um professor que

foi o que mais sofreu,o João Cunha... tentei encontrar a esposa dele, a Ieda... eles

tinham muitos filhos... ele morreu e ela ficou desamparada com todas aquelas

crianças... uma injustiça.

Rio Preto foi a primeira faculdade que sofreu intervenção e creio que isso

aconteceu porque eles mediram nossa qualidade... não era interessante para eles...

formávamos acadêmicos pensantes e isso não era interessante para a direita, não

éramos uma escola clássica com formação clássica, estávamos muito a frente de

nosso tempo, não formávamos aberrações acadêmicas como essas que estão por ai.

Não basta saber ler e escrever... tem que saber pensar, criticar, agir e isso nos fez

servir de vidraça... os medíocres tinham ódio de nós. Depois de nós veio a

mediocridade como o Zeferino Vaz (Nhá Zefa) lá da PUC que andava com a

braguilha aberta... Rio Preto não estava preparada, não havia classes sociais lá, só

uma elite e é assim até hoje.

Acabei lecionando na Venezuela, no CIER, Centro Interamericano de

Educação Rural, depois fui funcionária da OEA, Organização dos Estados

Americanos, ganhei em dólares, voltei, comprei um apartamento, fiz direito e hoje

sou advogada, trabalho até agora, porque se não trabalhar não vivo, afinal minha

aposentadoria é mínima... agora estou lutado para ver se a anistia me dá um pouco

mais...

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125 

 

NILCE APARECIDA LODI

A professora Nilce me recebeu em sua casa, na cidade de São José do Rio Preto

numa tarde quente de julho de 2008. Ela estava me esperando com vários

documentos sobre a Faculdade, inclusive um boletim publicado por ela. Gentilmente

autorizou que eu utilizasse as entrevistas que havia feito anos atrás. Enquanto

conversávamos apareceram vários sobrinhos, todos recebidos carinhosamente.

Nós nem imaginávamos que eles, os militares, pudessem olhar para Rio

Preto. Foi um choque perceber que a Faculdade era visada, que nossos professores

estavam sendo presos.

Meu nome é Nilce Aparecida Lodi. Fiquei na Faculdade muitos anos, desde o

início até há pouco tempo quando me aposentei. Hoje as coisas são diferentes, mas

acho que a semente o que foi plantado lá atrás germinou. Comecei na Faculdade em

1957, fui aluna da primeira turma. Primeiro tínhamos uma universidade municipal,

depois o Jânio estadualizou e transformou-a em Faculdade Isolada de São José , nos

moldes de outras já existentes, como Franca, Prudente e Marília. Crescemos, e

embora os prédios fossem alugados no início, com o tempo a prefeitura comprou um

prédio na rua General Glicério, onde hoje funciona a Secretaria Municipal de

Educação. Ficamos lá até 1970 quando foi comprado um seminário que a igreja não

tinha dinheiro para terminar. Fomos mudando até que em 1975 percebemos um

clima de que haveria mudanças... essa mudança veio de cima para baixo com a

criação da UNESP que desorganizou tudo aquilo que tínhamos conseguido organizar

nos anos passados.

Bem, voltando a 1957 quando da estadualização, foram contratados

professores da USP como o Aloizio Andrade e o Casemiro dos Reis Filho, vieram o

Viszotto e o Abade Mourão para o Curso de História Natural. A Faculdade era uma

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126 

 

reivindicação da população de Rio Preto, era difícil mandar seus filhos estudarem na

USP em São Paulo, são mais de 400 quilômetros... Muita gente achava que era uma

utopia uma faculdade no interior, mas ela deu certo. Na minha formatura em 1961 o

orador foi o Fernando de Azevedo, o principal livro dele é “Educação em dois

mundos”. Ele disse que entendia o receio daqueles que não acreditavam no ensino da

Fafi no início, mas que essa dificuldade não existia, pois os professores que o Jânio

contratou eram os melhores. Primeiro vieram três professores estrangeiros: o

Antônio Pinto de Carvalho, o Edoardo Querin e o Arnold Von Brugenhagen, este

último alemão com uma visão de mundo muito positiva.

Esses professores vieram para Rio Preto trazendo muitas novidades. Nesse

período o prefeito era o Dr. Andaló e a cidade passava por um desenvolvimento

tremendo. Nesse primeiro momento, a faculdade, ainda municipal, esses professores

foram acolhidos, a elite ficou entusiasmada por ter com quem conversar, afinal eram

estrangeiros, algumas vezes o salário deles atrasava, mas sempre tinha alguém para

ajudar, como o Quincas Pereira, por exemplo.

Com a estadualização a proposta inicial da Faculdade foi mudando: era

necessário com que se conversasse a respeito de tudo, se refletisse sobre todos os

problemas e que se colocassem as diversas faces deles, isso foi gerando novas

atitudes na geração jovem, nos alunos. Não havia mais dogmas, podíamos discutir e

encontrar nossa própria resposta, muitas vezes ela coincidia com respostas já

estabelecidas, outras não. Os pais perceberam que seus filhos já não eram tão

religiosos, falavam sobre coisas que antes não eram abordadas... isso foi

incomodando. Os professores também tinham suas opiniões políticas e como

qualquer cidadão comum tinham o direito de debatê-las fora da Faculdade, as

discussões aço teciam fora da sala de aula também. Isso foi criando um mal estar e de

repente a sociedade, à qual pertence a elite, percebeu que aqueles professores iam

criar problemas para ela. Os questionamentos sobre organizações, entidades, voto

incomodava muito. Além disso, a Faculdade tinha problemas internos, um deles era

a idéia de departamento, representatividade, os professores da Letras e da Pedagogia

eram mais abertos, os da História Natural não eram vistos com agrado.

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127 

 

Os alunos da Letras e da Pedagogia tinham representantes dentro do

departamento e tínhamos o direito de modificar algumas coisas indo até contra

professores, que acatavam a nossa decisão. Havia também uma interdisciplinaridade

entre nós, diálogo. O pessoal da História Natural nunca aceitou isso e a distância

entre os departamentos e as pessoas que os compunham foi aumentando. Essa falta

de convivência resultou em falta de harmonia. Lembro que quando se deu o

afastamento do Grisi foi feito um documento e os professores assinaram, alguns

deles desistiram depois de assinar, foram à câmara municipal, o Celso Abade

Mourão foi um deles, ficou com muita raiva, ódio, acabou assinando um ofício de

apoio ao Grisi e a crise foi crescendo. Finalmente o Grisi saiu e o Dr. João Dias da

Silveira, que já era diretor em São Carlos, acumulou cargos. Ele era um pesquisador,

dialogava com todos os departamentos, não impunha nada, alguns professores da

Naturais não gostaram nada e a crise foi crescendo, crescendo e culminou com o

Golpe de 1964.

Comecei a trabalhar na Faculdade em 1962, em 63 já era assistente do

Casemiro Reis Filho e em 64 veio a bomba, a Revolução entre aspas.

Nós nem imaginávamos que eles, os militares, pudessem olhar para Rio Preto.

Foi um choque perceber que a Faculdade era visada, que nossos professores estavam

sendo presos. Até hoje não consigo ver com clareza o motivo deles voltarem tão

rapidamente o olhar para Rio Preto...tudo bem, tinha o GRUTA, o Heimer com o

Centro Popular de Cultura, a AP...

Eram grupos que estavam voltados para as questões sociais, não havia

partidos políticos, havia até padres envolvidos, como o Jarbas, que é padre aqui

agora e que era da JUC, o Gavino, o Zé Maria, todos padres...não havia propriamente

uma liderança, todos nós participávamos. Era o espírito da época. Agora, pode ser

que tenha havido em alguns uma visão de socialismo, mas não era, necessariamente

um socialismo marxista, afinal existe o socialismo cristão.

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128 

 

Até hoje não entendo esse medo da sociedade, dos militares... talvez fossem as

idéias, o manifesto dos professores em defesa da escola pública...esse manifesto foi

muito divulgado e talvez tenha chamado a atenção.

Não sei, pode ser que alguém da elite ou professores descontentes possam ter

procurado alguém, mas não sei, houve até uma disputa entre um professor que

depois veio a ser nosso diretor, o Antonio Bento Coelho, ele não era professor na

Faculdade na época, mas pegou um gancho num artigo do Casemiro e começou um

debate, ou melhor, uma briga. Eu já era assistente do Casemiro e disse a ele que não

gostava dessas brigas pelo jornal. Além do mais, era uma discussão absurda, como o

Casemiro podia ser comunista se ele era espírita “roxo”. Eu sou católica e ele sempre

me respeitou... uma discussão sem sentido, ele era um homem voltado para o ser

humano e pra Deus. As pessoas nem sabiam o que era comunismo.

É uma pena que a elite de Rio Preto não pensasse no espírito da Universidade,

que é a unidade na diversidade. Ninguém pensou: - Vamos escutar a todos, vamos

ver todas as doutrinas... poucas pessoas pensaram assim, e essa elite era culta,

esperava-se outra posição.

Enfim, não entendo o que poderia ter provocado esse olhar tão agressivo de

desconfiança para Rio Preto. As meninas do nosso grupo eram taxadas de melancia,

verdes por fora e vermelhas por dentro. Nosso comportamento ao freqüentar um

barzinho que depois virou uma casa de chá chamada “Luar de Agosto”, por causa do

filme do Marlon Brando, os agredia... achávamos que ficar andando de lá pra cá no

footing já era um negócio ultrapassado. Nossos hábitos foram mudando e isso foi

visto com muita reserva, afinal estávamos quebrando uma coisa que já estava

estruturada... aquela vidinha pacata estava se alterando... era uma sociedade

provinciana, cristalizada. Acho que quando criaram a Faculdade não pensaram onde

ela ia chegar.

Com certeza, as novidades foram criando a desconfiança. A eleita se

perguntava: “O que será que trouxemos para dentro de casa?” e aí não tinha mais

retorno.

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129 

 

Víamos a necessidade de alfabetizar os adultos para que eles tivessem a

possibilidade de melhorar de vida. Formamos alguns núcleos, eu a Cidinha, a

Lederci, enfim, as meninas da Pedagogia junto com a Professora Maria Edith di

Giorgi.. por causa disso acabaram na cadeia em celas junto com as prostitutas. Fui até

falar com o bispo auxiliar, pedir ajuda, mas o delegado se recusou a recebê-lo. Que

idéia mais espetafurdia, achar que alfabetização de adultos tinha a ver como o

comunismo.

Bem, prenderam todo mundo, depois vieram buscar os professores assistentes

para dar depoimento, como eu não me encontrava na Faculdade naquela hora fui até

a delegacia depois. Aguardei das 4 até as 7h para ser atendida junto com outros

professores assistentes.

Quando fui ser interrogada, o delegado fazia a pergunta e ele mesmo dava a

resposta. Os assistentes não ficaram presos, mas os professores sim, alguns nem

voltaram como o Cantoni, o Penteado e o Cunha, este último era da História Natural,

o único que era diferente dos outros. Ele era carioca, declarava ser do partido

comunista... no fim todos os professores que foram presos perderam o emprego. Veio

um interventor.

Esse interventor, o Dr. José de Castro Duarte era juiz. Ele era durão com os

alunos, mas gentil com a gente. Foram contratando novos professores, a maioria da

cidade, foi o caso do Coelho, as coisas foram se distanciando. O Coelho fez carreira

na Universidade e depois chegou a diretor em Assis. Ele tem capacidade intelectual

boa, mas havia ficado magoado porque ao invés de darem as aulas para ele no início,

chamaram o Norman Potter, uma americano alto, olhos claros, tipo 007, todo

misterioso. A maioria dos professores que assumiu depois do Golpe não tinha curso

universitário, então quando eles entravam em sala eram olhados com muita

desconfiança, era um conflito com cada um que entrava. Alguns alunos não tinham

problemas com os novos. Tivemos problemas com comportamento de alunos e de

professores.

Page 130: Maria a Blaz Vasques Amorim

130 

 

Foi bastante difícil, achei que não ia agüentar, tanto a parte psicológica quanto

a de trabalho. O número de turmas que eu tinha que cuidar dobrou. O Casemiro

dizia que eu ficasse calma, que daí a dois anos tudo teria passado... Não foi bem

assim.

A coisa mais dramática foi a perda dos nossos professores, nós os conhecíamos

a fundo, sabíamos do que eles eram capazes, não ficavam fazendo política em sala

de aula...foi uma perseguição, sim, perseguição. Às vezes eu pensava que teria sido

melhor se eu tivesse ido embora com eles, mas pensava que já que havia ficado era

aconselhável tocar as coisas da melhor maneira possível para quando eles voltassem.

Mas, eles não voltaram.

Foi uma experiência sofrida, mas aprendi muitas coisas, o ideal da educação e

consegui passar isso para os meus alunos.

Uma pena que a educação hoje esteja desse jeito... foi decaindo...decaindo...as

turmas na faculdade cada vez mais apáticas, alguns alunos ainda bons e era por esses

que os professores eram estimulados... e a coisa continuou caindo numa queda cada

vez maior.

Acho que ainda há possibilidade de melhora, de sair do buraco, existem

profissionais sérios, comprometidos com a educação e as coisas estão mais fáceis, os

tabus vão sendo derrubados.

Escrevi um boletim, o Sapere Audi sobre a Faculdade e fiz várias entrevistas

que você pode usar. Não consegui falar com o Mauricio Tragtemberg pois ele não

voltou a Rio Preto. O Michel Lövy quase nem chegou a vir e foi embora para a França

antes do Golpe.

Bem, acho que no final, perdemos. Perdemos aqueles professores

maravilhosos e hoje a universidade é mais quantitativa que qualitativa.

Page 131: Maria a Blaz Vasques Amorim

131 

 

GRIGOR VARTANIAN

Grigor Vartanian, hoje professor, recebeu-me em sua casa junto com a esposa.

A sala era espaçosa, o calor intenso. A sala onde se deu a entrevista tinha sofás

bastante confortáveis. A conversa não foi longa e bastante objetiva.

Foi um trauma ter sido preso. Depois disso fiquei com a boca cerrada, não

falava nunca o que eu pensava, tinha um medo danado de me expressar, de me

expor...

Sou o Grigor Vartanian. Fui muito tempo professor da Fafi, isto é, Unesp.

Comecei lá como aluno, passei no vestibular em dezembro de 1962, as aulas

começaram em março de 1964 e me formei em 1966. Logo que entrei na Faculdade

comecei a participar do diretório acadêmico da Filosofia, nas assembléias comecei a

pedir a palavra...falava...fui me liberando...havia um auditório e aquilo me

entusiasmava demais...falava...falava... eu era o “pêssego” dos jovens daquela

época...era o exagero político, pensava que podíamos mudar o modelo social, dar

oportunidades para as classes desprivilegiadas da sociedade...isso era o modismo da

minha época do final do colegial ao início da faculdade...eu tinha essa inclinação para

o discurso, além disso queria me tornar agradável para o grupo, que era considerado

evoluído.

Eu gostava muito dos professores, principalmente daqueles que vieram da

Europa, esses gozavam da minha apreciação total, havia o Prof. Arnold, alemão, o

Antonio Bellini, italiano... sabe esses professores estrangeiros eram mais

conservadores, mais adequados a cidade de São José do Rio Preto, na época, bastante

provinciana que costumava olhar os professores e alunos da Fafi com muita

desconfiança. Cansei de ouvir o seguinte conselho: “Olha você vai estudar na Fafi,

mas não se envolva com as pessoas de lá, lá o negócio é perigoso”. Esse se aplicava,

Page 132: Maria a Blaz Vasques Amorim

132 

 

não aos europeus, mas aos professores egressos da USP, que se trajavam de um

modo diferente eram mais “inconvenientes” eram menos formais, porém percebi que

lá tudo era coletividade, eu não era um alienígena, fazia parte de um todo.

Havia o professor Orestes Nigro que se destacava pela popularidade e isso me

influenciou, afinal eu era das Ciências Naturais, onde os professores eram mais

conservadores, adequados a mentalidade da cidade, como por exemplo o professor

Luiz Dino Vizotto, muito querido, muito amigo, protetor dos alunos, o Celso Abade

Mourão que era chefe de departamento.

Bem, houve uma eleição para o diretório acadêmico no meu segundo semestre

e resolveram me colocar numa chapa como tesoureiro, o Pedro Bonilha era o

candidato a presidente. Não me lembro com muita precisão porque eu não dava

muita atenção à isso, mas fomos eleitos, assumimos o diretório no final do mandato

da turma do Murilo Farinazzo... o Joacir Badaró também foi presidente do diretório,

os dois eram líderes renomados. Eu gostava muito dos professores da Pedagogia, da

Letras... do Professor Cantoni, do Fávio di Girogi, ele era muito distraído, lia jornal

sentado na calçada...eu costumava fugir das aulas de Biologia para assistir a aula

dele, ele falava dos grandes filósofos da Grécia, era fluente, tinha voz poderosa,

assim como o Professor Anoar Aiex... eu ficava bebendo a sabedoria deles. Eu era

muito jovem, estava apaixonado por eles, eram meus ídolos, trouxeram até o Juca de

Oliveira para ajudar a montar um grupo de teatro... ele tinha um entusiasmo...uma

vontade de mover as águas...chegamos até a ir ver uma peça no Teatro de Arena.

Em novembro de 1963 o presidente Kennedy foi morto. Fiquei em choque.

Lembro que o Professor Prósperi me pegou pelo braço e disse:- “Grigor, te proíbo de

abrir a boca, de ir nessas assembléias, você é muito impulsivo e tenho certeza que

essa morte é sinal que virá uma revolução de direita na América do Sul,

principalmente no nosso país... os líderes de esquerda vão ser implacavelmente

perseguidos... não quero você metido nisso, não quero ninguém apontando para

você e dizendo que você era comunista.”Obedeci, em parte. Diminui a freqüência nas

assembléias.

Page 133: Maria a Blaz Vasques Amorim

133 

 

Então aconteceu a Revolução de 31 de março. Pouco tempo antes, em janeiro

de 1964, eu havia ido numa reunião da UEE (União Estadual dos Estudantes) na

região de Campinas e em meados de fevereiro fui à São Paulo num encontro na Praça

da Sé e quando estávamos chegando lá encontramos a polícia. Houve tiros, confusão

e o grupinho de Rio Preto de dispersou. Voltamos para Rio Preto, demoramos 2 ou 3

dias para chegar, ficamos com receio...aí veio a Revolução e ficamos com receio de

falar sobre esses acontecimentos dentro da Universidade, ficou um clima meio de

pânico lá. Alguns dias depois um policial civil bateu na minha porta... eu não estava

em casa, então no outro dia fui falar com o delegado, o Doutor Mariano. Perguntei o

porquê da ida do policial à minha casa, não havia matado ninguém. O delegado

disse que era eu um jovem líder, instigador de jovens. Fui liberado, mas no outro dia

a polícia veio com uma viatura e fui preso. Não fui nem para o presídio, fiquei na

cadeia mesmo e lá estava também o Pedro Bonilha. Ficamos presos na delegacia

cerca de uma semana, de lá nos transferiram para a cadeia perto do cemitério. Só

tinha preso político e ficaram ameaçando de nos mandar para São Paulo.

Acho que a primeira faculdade que sofreu intervenção dos militares tenha

sido a de Rio Preto porque a cidade era muito conservadora, provinciana e aqueles

professores que vieram da USP foram absorvidos por ela, e não os da cidade, os

professores de São Paulo eram considerados estrangeiros, houve sempre uma rixa

entre eles e o professor Daud Jorge Simão, ele considerava os uspianos como um

corpo estranho que tinha que ser extirpado da faculdade, acho que ele era movido

por um certo revanchismo por ter sido preterido na faculdade. ““Ele era extremado,

mas amabilíssimo, foi meu professor no colegial, costumava falar algumas frases

bonitas como:-” Não encoste sua cabeça no travesseiro sem ter construído alguma

coisa hoje”. Eu anotava essas frases, devia ter umas oitenta. Mas o ego dele era um

problema e ter sido preterido era complicado para ele. Não havia comunistas na

faculdade, só queriam que o povo pudesse participar do poder... na época o rótulo de

comunista era intolerável...eu tinha uma formação religiosa sólida e me perguntava,

apenas, se esse mundo tão bom não deveria ser mais justo.

Page 134: Maria a Blaz Vasques Amorim

134 

 

Esses professores abriam os horizontes para a gente, mas não acho que depois

deles a faculdade tenha perdido a qualidade, e estou falando isso do alto dos meus

65 anos. Dentre os próprios professores havia aqueles que não estavam tão

preocupados com o social. O Heimer era um que tinha uma visão do social, era

humanitário, solidário... era uma visão teológica, dava cursos para operários da

construção civil, estava organizando um sindicato... até ajudei a montar o material

desse curso... era trabalho voluntário que eu fazia quando não estava lecionando

para minha sobrevivência.

Foi um trauma ter sido preso. Depois disso fiquei com a boca cerrada, não

falava nunca o que eu pensava, tinha um medo danado de me expressar, de me

expor... fico admirado com o direito das pessoas falarem hoje, nós falávamos 10%

disso e olha o que aconteceu... essas pessoas de hoje seriam degoladas! Se eu voltasse

no tempo, acho que com a experiência que tenho hoje... vendo como você tem pouca

gerência sobre as coisas que acontecem na sua vida... acho que resolveria as coisas

sem causar nenhum conflito.

Tenho três filhos e eles são mais calmos, mais conservadores, ensinei a eles

que não conseguimos mudar a gente mesmo, que dirá o mundo? Se você não puder

falar alguma coisa é melhor não falar nada.

O delegado sempre me perguntava onde eu tinha aprendido as coisas que

falava e eu respondia que tinha sido com a Bíblia que meu pai lia toda noite, e tinha.

Encontrei gente como o Casemiro Reis Filho que era maravilhoso e pregava aquilo

que aprendi em casa... Sabe, esses professores da USP também tinham o ego

inflamado, eles sabiam tudo, os outros eram ignorantes, até o prefeito... imagina a

dimensão...era uma USP em São José do Rio Preto. Acho que eles não estavam

preparados para uma USP caipira e a cidade não estava preparada para eles,

chamavam muito a atenção e daí surgiu o conflito. Os professores não eram

comunistas, eles queriam justiça social, mas o que havia não era injustiça social, era

incompetência social do Estado brasileiro e isso continua, mesmo com um

presidente que deveria ser uma liderança social, a corrupção é enorme , isto é um

Page 135: Maria a Blaz Vasques Amorim

135 

 

pântano, temos que pensar em outro modelo, duríssimo como era no Iraque e olhe

que meu pai foi fugitivo do massacre turco. Admirava muito o Alberto Fujimori, ex-

presidente do Peru, que as 6h30 da manhã estava numa favela vendo a construção de

casa populares... e deu no que deu. Há muita gente corrupta no Brasil... imagina que

eu ia dar um curso na Universidade Federal de Teresina e me mandaram 12

passagens. Usei 9 e tentei devolver as outras e não consegui. O Ministério da

Educação e Cultura disse que não podia aceitar porque a verba já tinha sido gasta,

então viajei com minha mulher...veja, fui induzido a cometer uma fraude.

Hoje em dia só leciono como voluntário, agora que estou aposentado da

UNESP, onde fui professor adjunto, faço coisas que gostaria de ter feito e não tive

tempo quando estava na ativa. A falta de educação, em todos os sentidos do termo,

nos dias atuais é enorme...ninguém segue as leis de trânsito, os alunos não respeitam

professor, jogam lixo na rua, acho que isso é uma coisa nossa, do brasileiro.

Sabe, embora eu veja como está a educação hoje, ainda tenho esperança. Os

professores precisam ter apoio, contar com tecnologia, se bem que a tecnologia hoje

está banalizada, o povo usa celular para falar bobagens... se você não tem nada de

importante para falar é melhor calar a boca, meditar um pouco sobre a existência,

sobre a inevitabilidade da morte...acho que a humanidade tem um caminho muito

difícil pela frente... há uma degradação de valores, da moral coletiva, da ética, todo

mundo muito hedonista...é um culto ao prazer extremado sem fazer nenhum

sacrifício. Sabe, uma vez formei um grupo de 40 pessoas, o objetivo era o

autoconhecimento e a solidariedade, visitávamos hospitais aqui em Rio Preto... fiz

um teste com eles, pegávamos todas as contas e dinheiro de cada um e pagávamos

tudo junto... eles não agüentaram o tranco... o leão rugiu dentro deles e eles não

agüentaram... o ser humano está perdendo o domínio de si, está se entregando aos

instintos primitivos... e olhe o que está acontecendo.

Page 136: Maria a Blaz Vasques Amorim

136 

 

MARIA DE LOURDES CÁPUA

Conversei com a Profa. Maria de Lourdes na sede do Sindicato dos

Supervisores de Ensino do Estado de São Paulo onde ela trabalha após sua

aposentadoria. De todos os colaboradores ela foi a mais emotiva. Chorou muito,

manteve longos silêncios e percebi que ainda existe uma mágoa e uma sensação de

impotência muito grandes nela. Ela sugeriu que eu organizasse uma reunião com

todas as pessoas que entrevistei para este trabalho. Diz que tem saudade.

Sabe, ficar na cadeia uma semana não foi o mais difícil, mas na hora em que

saí e voltei para faculdade... desculpe, choro ainda quando me lembro... quando

voltei para a faculdade meus professores queridos não estavam mais lá...

Nasci em Lins, interior de São Paulo, mas fui criada em Poloni, uma cidade tão

pequena que, costumo brincar, nem existe no mapa. Fiz o curso primário lá, e era só

o que tínhamos, então para cursar o ginásio e a escola normal tive que viajar para

Monte Aprazível, outra cidade próxima, durante anos. Na verdade, o último ano da

escola normal fiz em São José do Rio Preto. Logo que sai do segundo grau entrei na

faculdade. Somos cinco irmãos e três deles são professores, não me casei e hoje tenho

até sobrinho neto. Sempre que possível auxilio meus sobrinhos com os estudos

O ingresso na Fafi foi uma coisa maravilhosa e provocou em mim um grande

amor. Era uma faculdade modelo, os professores eram da USP, tinham um jeito de

ensinar... muito, muito bom, principalmente o de Sociologia, Wilson Cantoni... os de

Filosofia, Aiex e Aloisio Reis de Andrade, também eram especiais... me apaixonei por

essas disciplinas por causa dos professores que tive... só o final do curso não teve

nada de glorioso... fui parar na cadeia.

Page 137: Maria a Blaz Vasques Amorim

137 

 

Sabe, ficar na cadeia uma semana não foi o mais difícil, mas na hora em que

saí e voltei para faculdade... desculpe, choro ainda quando me lembro... quando

voltei para a faculdade meus professores queridos não estavam mais lá, muitos

colegas tinham ido embora... se isso não tivesse acontecido creio que teria feito

carreira universitária, mas depois do que presenciei em Rio Preto... não... nunca.

Foi uma espécie de desilusão, uma coisa tão boa ser destruída... o Gruta que

trabalhava com cultura, o Heimer, que fundou a AP, com a alfabetização de

adultos...fiz até o treinamento, e foi por causa desse movimento que viramos vítimas.

Fazíamos o trabalho numa escola no bairro Esplanada, a noite, porém outros

professores como o Newton Ramos de Oliveira trabalhavam em outros locais... foi

um trabalho muito bonito e isso me emociona muito... são tantas lembranças.

Bem, depois do Golpe voltei para a faculdade e aí, a única coisa que eu queria

era terminar o curso o mais rápido possível, doía ter aulas com o Coelho, um

professor medíocre, depois de ter tido grandes mestres. Assim que me formei vim

para São Paulo lecionar, primeiro lecionei História, embora não tivesse feito

faculdade de História, na minha grade havia tantas horas de História que isso me

habilitou. Em São Paulo acabei prestando concurso para diretora de escola e depois

virei supervisora, e é isso que faço até hoje, embora esteja aposentada, atuo no

sindicato. Fazemos um jornal, pelo menos um encontro anual, chamamos pessoas

para dar palestras... acho que continuo fazendo o mesmo que fazia em Rio Preto no

início da Faculdade, porém agora não corro o risco de ser presa.

Depois do Golpe mantive contato com o Orestes, que ficou um tempo

morando em Monte Aprazível e com o Aloizio que é casado com uma colega... As

aulas da faculdade eram muito boas, os professores exigiam a participação da gente o

tempo todo, devo esclarecer que nem todos professores eram assim, o de Matemática

era terrível. Ele começava a aula dizendo que não íamos aprender nada... agora os

outros...era um entusiasmo... a gente confiava neles e vice-versa. Eram bem jovens.

Alguns pais não gostavam deles, mas os meus, que os conheceram quando fizemos

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um evento de arte em Poloni, gostaram muito. Fazíamos eventos em cidades da

região.

Quando fui presa, meu pai que era político e tinha seus contatos não me

deixou ficar muito tempo na cadeia. Repito, não fiquei traumatizada por ter sido

presa, meu trauma foi ver que nós tínhamos um negócio tão bem feito para mudar o

mundo radicalmente, um modelo tão especial, não ter dado certo. O diretor que

assumiu a faculdade, um tal de José Duarte conhecido como “carrasco da Ilha

Grande”, ajudou a repressão, ajudou entregar todo mundo, nem pensou nos alunos.

Horas depois do Golpe os interventores estavam lá em Rio Preto, não tinha militar,

mas quem estava lá, estava a mando dos militares. A própria cidade não nos apoiou,

achavam bom, para eles nós sempre fomos alienígenas. Teve uma colega, a Yvone

Morão, que denunciava todo mundo, o Professor Daud... essas pessoas nem me

conheciam direito e me denunciaram... denunciaram professores... eles queriam o

lugar deles na faculdade... tanto que depois o Daud virou professor e a Yvone

também... acho que se aposentou na UNESP. Era pura inveja! Além da inveja, tinha o

delegado Tácito de Pinheiro Machado, que queria fazer carreira... até entendo o lado

do Daud e do Tácito, mas a Yvone... uma aluna, que teve professores como aqueles

da USP, ser reacionária... não entendo.

O nome que dou para aquele acontecimento de 64 é Golpe. Foi um Golpe

mesmo... diziam que o país estava sendo invadido por comunistas, uma grande

desculpa, o que eles queriam era tomar o poder... fui muito prejudicada, quando

prestei o concurso para diretora minha nomeação não saía... é que meu nome estava

no DEOPS, tive que entrar na justiça e só pude assumir dois anos depois.

Se não tivesse havido o Golpe a Faculdade hoje seria uma coisa muito

desenvolvida, acho que eu até estaria dando aula lá. Acho que foi por causa da

Faculdade de Rio Preto que resolveram transformar as faculdades do interior em

UNESP... com a UNESP foi possível mudar o grosso do corpo docente. Acho que tive

muita sorte de estudar na Faculdade, embora depois da intervenção...

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139 

 

Os professores eram tão unidos aos alunos que conseguimos mandar o Rafael

Grisi, que segundo consta desviava verbas, embora.

Sabe, o que mais me machuca é ver a educação indo mal, muito mal. Não

consigo enxergar uma solução a curto prazo, nossos governos não estão interessados

em investir na educação...o próprio Serra, que era uma pessoa que eu admirava, olha

o que ele faz, nada, não faz nada pelo professor e ainda diz que a educação está ruim,

não pelo salário do professor, mas por incompetência dos mesmos... a culpa do aluno

não aprender é só do professor, o professor tem que ser castigado se ele não

aprender... não sei se rio ou se choro.

Sem exagero, hoje em dia só vai ser professor quem não tem habilidade para

ser caixa de supermercado. Isso poderia ser resolvido se houvesse uma prova séria

para verificar o conhecimento do professor... aí as coisas mudariam. Só que para

fazer isso tem que ter vontade política... você corre o risco de ter professores bons

que vão ensinar os alunos a pensar... foi o que aconteceu em Rio Preto, a gente

pensava, achava que o Brasil ia dar certo... não existe arrependimento sobre o que fiz

em Rio Preto, na verdade só me arrependo de não ter feito mais. Achava e continuo

achando o conhecimento fundamental e fico feliz por ter brigado pelos meus sonhos.

Page 140: Maria a Blaz Vasques Amorim

140 

 

EDSON GUIDUCCI

Entrevistei o Edson em Monte Aprazível, a cidade onde ele mora hoje e onde fui

criada. Foi difícil conseguir encontrá-lo. Devo sua localização á uma colega dos

tempos de adolescência, Vânia Leal. Ele está casado com uma professora de

Português, com a qual tive aulas em meados dos anos 1970, Dna. Neli. Foi muito

bom reencontrá-la . A entrevista foi objetiva. Edson mostra um desencanto grande

com a educação.

Sabe, o projeto pedagógico da turma de humanas era fantástico, tinham um

grande projeto educacional, tanto que foi a primeira faculdade que sofreu

intervenção em 64, no Brasil...

Meu nome é Edson Guiducci. Eu era funcionário da Fafi, mais tarde prestei

vestibular e fui cursar História Natural. Logo no início me integrei com o grupo do

Orestes, o Gruta... sabe eu cantava moda de viola, gostava de poesia e o Gruta era um

grupo artístico... nem sei o que estava fazendo num curso de Ciências...passei a

participar muito do grupo e o Orestes era nosso grande guru, um verdadeiro líder.

Nossa preocupação maior era com aquele período político, na verdade não

tínhamos preocupação de fazer sucesso... afinal muitos já trabalhavam, inclusive eu...

embora alguns só estudassem. Fazíamos todo tipo de arte, cheguei a escrever,

inclusive, algumas peças de teatro, versos... fazíamos grandes apresentações,

tínhamos até um grupo de jogral. Fazíamos apresentação pelo interior todo: na

Faculdades de Araraquara, Rio Claro, São Carlos... vivíamos nesse mundo e

acreditávamos que era uma coisa boa. Publicamos até um livro de poesias ode

escrevi uma coisa que acho bonita até hoje: O gigante de espuma...era uma analogia

ao Brasil.

Sabe, posso dizer que éramos uma esquerda festiva, um grupinho ingênuo,

ninguém sabia muita coisa... claro que havíamos lido um coisinha ou outra do Che

Guevara, dos guerrilheiros, mas ninguém tinha revólver, garrucha, não tínhamos

nada, éramos um grupinho idealista, boboca, que achava que com aquilo, o teatro, as

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artes, melhoraria alguma coisa. Aí veio a revolução... 1964... Eu lecionava em Ibirá.

As 5 ou 6 horas da tarde do dia 1º. de abril fui preso. Fui detido com o Orestes e com

a turma toda. Fiquei preso uns 20 e tantos dias... não fui torturado, não aconteceu

coisa mais grave... houve um período de tensão e aí sai da cadeia. Acabei me

formando...fui pra Brasília, mas minha ficha corrida no DEOPS ficou. Eu nem era

comunista, não era de partido nenhum... a atividade cultural era nossa bandeira.

Um dia, por volta de 1969, 1970, eu dava aulas na UNB havia 4 anos, era

concursado... fui exonerado... soube imediatamente porque... haviam achado meu

dossiê... mas eu lecionava em outras escola, já era casado...não me prejudicou muito...

Agora a Revolução foi uma desgraça, fez uma desgraça.

Sabe, o projeto pedagógico da turma de humanas era fantástico, tinham um

grande projeto educacional, tanto que foi a primeira faculdade que sofreu

intervenção em 64, no Brasil...já nas ciências naturais...era assim... eu não senti a força

da Faculdade...hoje sei que foi uma grande escola, todos que saíram de lá se deram

bem, se firmaram como profissionais...foi desse estudo que veio o meu futuro.

Sabe lembro do meu mestre de Didática, acho que o nome era Arruda

Penteado...ele dizia que Rio Preto era a Méca das bruxas, foi uma cidade que delatou

todo mundo, a sociedade não aceitava aquela dose de modernidade que estava se

estabelecendo ali com a faculdade. Era gente de fora... olha eu tinha colegas da USP,

que quando chegavam ali para pesquisa e conversavam com a gente... ficavam

bobos... diziam: - Vocês já estão vendo isso? Nós ainda não vimos! Era uma

faculdade que formava, não só conteúdo, mas formava a mentalidade científica...

havia seriedade sabe? E era assim em todos os cursos. Havia grandes profissionais...

tínhamos certeza de que íamos ser grandes... de repente... caiu tudo por terra. Acho

que esses professores tinham um grande projeto... até hoje quando encontro um

colega daqueles tempos ouço: -Ah que saudade! Foi uma coisa que marcou todo

mundo.

Nós tínhamos formação política... acho que ia além da política, era

ideológica... era uma vontade que o Brasil desse certo, que progredisse.. e a revolução

podou todo mundo.

A educação é uma decepção... o aluno hoje é um estranho... falei para a Neli,

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minha mulher, que embora tenha capacidade, era hora de me aposentar.. não tenho

mais acesso ao aluno... a escola está indo do jeito que Deus dará, vejo isso com muita

tristeza, leio jornais, não se cobra nada, não existe um plano definido... sou muito

pessimista em relação ao futuro que nos espera... não vamos ter mais bons

profissionais, nem de nível médio capazes de movimentar uma máquina, de

produzir qualquer coisa... simplesmente virou uma bandalheira...isso é o que tenho

visto em sala de aula.

Hoje você está dando aula e o aluno está mandando torpedo para os outros,

você não pode fazer nada, se fizer a direção chama sua atenção... alunos agridem

professores e a diretora não faz nada... estou totalmente descrente... sempre dei aulas

em escolas boas... na UNB, no Colégio Objetivo de Brasília, no Seta, aqui em Rio

Preto, escolas de alto nível, mas está tudo igual... um caos.

O que fiz em 64 e antes foi consciente, não ficou arrependimento. Fiz

acreditando em uma verdade... era inocente...idealista, não tenho ressentimento,

apenas lamento pelo que a gente passou.

Criei meus quatro filhos, todos formados. Lembro daquele período como uma

coisa obscura, triste, um atraso para o país, um enorme atraso. Veja, hoje o Congresso

está lá, instalado, um monte de medidas provisórias, discutindo partidos, havendo

recessos... como se o país pudesse esperar esse tempo e essas discussões. É uma

democracia sem cabeças pensantes... eu sempre fui de esquerda, do PT e hoje vejo o

Lula... fazendo acordos, que partido governa o Brasil hoje? O PT, o PMDB? O

PSDB?... É uma miscelânea e não vão largar o poder tão cedo... estamos na mão dessa

camarilha... então só me resta aguardar o que vem por aí... esse populismo terrível...

Lamento por esses jovens... se eles não estudarem muito e bem... sabe, fico o

dia inteiro lendo, não faço mais nada. Acredito que só quem estiver preparado, for

um intelectual vai poder vencer com dignidade, talvez modificar isso tudo aqui,

porém não estou enxergando como, não vejo o fio da meada.

Falo para a Neli, essa pessoa maravilhosa que me esperou 18 anos...

namoramos na juventude, fui embora, casei com outra, tive 4 filhos e ela me

esperou... agora estamos juntos e hoje sou um cara feliz... tive pai pedreiro, minha

mãe era uma coitadinha, analfabeta e hoje estou aqui, tenho 70 anos e estou feliz.

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143 

 

LUIZ DINO VIZOTTO

O Professor Vizotto me recebeu, gentilmente, em sua casa no dia de seu

aniversário. É uma casa espaçosa, bem decorada e confortável. Sua esposa, uma

mulher bonita, elegante, serviu suco e a conversa foi longa, interrompida várias

vezes por telefonemas de felicitações e pelos seus cachorros.

Quando começaram os movimentos em 1962, 63, 64... foi o fim...

Vim para Rio Preto em 1956, meu nome é Luiz Dino Vizotto. A Faculdade de

Rio Preto estava, ainda, num período de estruturação, era uma proposta nova de

alguns políticos da cidade. O primeiro professor a chegar foi um português, o

Antonio Pinto de Carvalho, ele ajudou a organizar tudo. A medida que a

estruturação ia tomando forma outros professores foram chegando, o Wilson

Cantoni, o Casemiro dos Reis Filho... , mas a maioria era de professores da cidade

que davam aulas no Ensino Médio e foram assumindo as cadeiras desde 1955. Não

vim logo do início porque a cadeira disponível não era aquilo que eu fazia... eu era

biólogo... gostava de lidar com bichos, a Zoologia. Quando foi possível atuar na

minha área, resolvi aceitar.

Naquela época professor ganhava bem, eu tinha duas cadeiras em Araçatuba,

posso dizer que ganhava o mesmo que um juiz. Embora fosse professor do Ensino

Médio ganhava o suficiente para freqüentar clubes, éramos solteiros... depois veio a

degradação... uma pena! Hoje professores do Ensino Médio ganham menos que

soldados...um absurdo... bem, continuando... viemos eu, o Aloizio Reis de Andrade,

o Cantoni... O primeiro dia de aula foi em 1º. de Abril de 1957... acho que tenho uma

fotografia do corpo docente...saiu nos jornais. Havia também o Norman Potter, de

Inglês, o João Jorge da Cunha de mineralogia... quando o Norman saiu em 1964 foi

para a Alemanha e depois para os estados Unidos, para o Texas. Almoçávamos

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144 

 

juntos... depois por volta de 1980, já Unesp, a anistia permitiu que o Norman

voltasse, mas ele já voltou combalido, doente e acabou morrendo. Havia também o

Rodolfo Azzi que era professor de Psicologia... nunca mais ouvi falar dele... tem um

irmão dele que parece que é da Letras na USP, não sei se ainda é, mas o Rodolfo...

não sei se faleceu.

Por volta dos anos 1960 veio a Sara Rottemberg que foi um elemento muito

importante na Pedagogia... acho que ela não fazia parte do contingente que foi

cassado, acho que em 1976 ela estava em Marília...ou seria Araraquara? Ela tem

vindo para cá nas comemorações de final de ano... há algum tempo ela queria meu

holerite para ver se conseguia uma aposentadoria maior...

Quando vim para cá não existia essa coisa de pós-graduação...funcionava

assim: você fazia um trabalho de pesquisa inteirinho, anexava fotografias, fazia toda

produção e levava para a USP para arranjar um orientador, conversava com um

professor, ele lia seu trabalho, aceitava te orientar e daí dois meses você defendia na

Congregação. Fazíamos cópias no mimeógrafo e defendíamos. Hoje é diferente, você

cursa disciplinas para os créditos correspondentes, faz mestrado antes de ir para o

doutorado e já vai com uma base boa e as leis acabam te favorecendo, quem tem só

mestrado não pode ser titular, naquela época íamos pra o doutorado direto e já

éramos titulares, não precisava de currículo, de memorial, nada disso... no caso da

Sara, ela não havia feito doutoramento... ela disse que não estava mais na

Faculdade... aí o salário não poderia ser o mesmo, mas então entram os advogados,

justiça... a Sara fez Direito e advoga até hoje.

Bem, finalmente a Faculdade se estruturou... por volta de 1960 fazíamos

bailinhos, quando era aniversário de alguém íamos até a casa para a festa... bem

houve um certo... na História Natural, com exceção do Cunha que era carioca e

filiado ao PCdo B... naquela época ser... quer dizer quem era do PCdoB era meio...

desculpa, não consigo falar isso sem rir, olha era uma certa coisa, mas eu me dava

bem com o Cunha, ele era um sujeito ativo, participava de reuniões aqui, em Nova

Granada, mas nós fizemos as mudanças na Faculdade que hoje é uma Universidade.

Page 145: Maria a Blaz Vasques Amorim

145 

 

Começamos no Instituto de Educação com seis salas, alugamos outro prédio onde

hoje é a sorveteria Alaska, com biblioteca e mais salas de aulas... em 1958 estabeleci o

biotério, tínhamos um quintal grande, fazíamos bailinhos com alunos, professores...

era essa relação.

Quando começaram os movimentos em 1962, 63, 64... foi o fim... veja, eles

trouxeram professores da Alemanha, o Heimer que acabou se envolvendo com

movimentos da zona rural, ele era um bom professor, gostava dele, mas... foi exilado,

a senhora me disse que ele está em Portugal...e eu achei que ele quisesse, como foi

para a Alemanha... ele tinha um envolvimento muito grande com a igreja católica,

fundo a Ação Popular, mas movimentos assim chocavam a comunidade local, eles

achavam que a coisa estava extrapolando, então a pressão da comunidade foi grande

também, nesse sentido.

Aí teve o Jânio e com o Goulart vieram os movimentos, veio problema de

todos os lados, era problema na marinha, problema não sei onde, aquela coisa toda...

e houve a implantação do Regime Militar... quem estava aqui nessa época era o

professor João Dias que substituiu Grisi... houve uma briga entre o Grisi e esse

grupo, eles não aceitavam mais o Grisi, não sei o que aconteceu, eles acabaram

levando o Grisi para fora... na verdade ele sempre foi um sujeito esquisito... morreu

também. Ele fazia umas coisas que o grupo não gostava... comprava livros no sebo e

obrigava os professores assinarem uma lista com o nome daqueles livros como se

fossem importantes para a biblioteca. Quem não assinasse estava fora, então

assinávamos, antes que aconteça um mal pior vamos assinar.

Veio o Golpe Militar... nenhum professor foi preso, só um aluno que se

chamava Grigor Vartaniam... era um menino extraordinário, estava na finalização do

curso, íamos na cadeia visitá-lo...nenhum professor, que eu me lembre, foi preso.

Talvez só o Orestes tenha ficado preso, não me lembro... até me lembro que havia um

grupo de teatro... uma vez o Juca de Oliveira veio aqui fazer uma palestra sobre o

envolvimento dos alunos com o teatro, fizeram até umas peças interessantes... mas

durou pouco, não passou de 1962, o Orestes virou adepto dessa cultura, levava

Page 146: Maria a Blaz Vasques Amorim

146 

 

alguns alunos para todo lado...falavam de cinema cultural...não me lembro bem, era

um movimento cultural, mas porque trabalhava com cultura, não era um movimento

no sentido mais amplo. Agora quando você vive numa cidade, como você, como eu e

aparece uma pessoa com uma cultura mais elevada em relação ao que existe na boca

do sertão, como era chamado isso aqui, causa certo impacto e como a gente está

envolvido com a comunidade, ela começa a te pressionar.

No momento em que se implanta a Ditadura troca-se a direção da Faculdade,

vem o José de Castro Duarte, juiz, diretor do fórum...sabe...um mão de ferro. Então

ele aproveita que a comunidade pressionava para tirar alguns elementos que eles

julgavam....contrários à situação atual... bem ele monta um processo com o Doutor

Tácito Pinheiro e o Dr. Mariano, que já faleceu...ele foi meu contemporâneo no

Ginásio... fizeram todo aquele processo, aquela coisa...a gente falava, tinha que falar...

então era aquela coisa, como na História Natural não tinha nenhum adepto de

partido político, como tínhamos que dar um curso de 5.500 horas em 4 anos, não

tínhamos tempo de nos envolver com movimentos... então houve certo

estremecimento do pessoal da Pedagogia e da Letras com os professores da História

Natural, e depois...todo homem nasce político, queira ou não...

Quando se estabelece o período militar...pega um, pega outro... O Cantoni,

coitado, um intelectual, se exilou... foi embora assim...outros que ficaram... você

sabe, o pessoal vai na sua casa, você fica numa situação...acaba tendo que falar o você

sabe. Teve um que jogou uma mala de livros na represa, agora o Cantoni, nem

esperou começar o tal processo, foi embora logo.

Tivemos o Luis Ferreira Martins, que era secretário da educação, fiquei como

diretor então. Nesse período, minha mulher, que era da cadeira de Espanhol teve uns

problemas, não tive dúvida, fiz uma reunião na congregação e acabei com o grupo

que era contrário... veja, eu não estava defendendo minha mulher, e sim uma

profissional... ganhei antipatia generalizada do grupo. O problema era que ela era do

espanhol e tinha feito doutoramento em Literatura Portuguesa... toda vez que ela ia

para Portugal, ou para USP para trabalhar com o material o Antonio Cândido era um

Page 147: Maria a Blaz Vasques Amorim

147 

 

problema. Depois que fiz o pronunciamento na Congregação, isso é até divertido,

quase fui linchado, sofri meses.

O fato era que esses grupos se chocavam desde 1955, havia esse grupo que

tinha uma ideologia que se chocava com a comunidade, e também com a gente da

História Natural que não éramos políticos, com exceção do Cunha... mas eu me dava

bem com todos eles... costumavam dizer que tinham um projeto pedagógico, não vi

nada disso...Cantoni chegou a publicar um trabalho sobre a questão da representação

de alunos, na verdade ela já existia, mas era um ou dois alunos por departamento,

agora ter uma igualdade... bem nós da História Natural não éramos políticos... o

Cantoni era o farol que guiava essa turma, depois veio o Golpe...uns fugiram, outros

ficaram na miséria, foram vender sanduíches na rua, o Cunha foi para o Rio e

morreu, o Aiex foi para os Estados Unidos... perdi o contato com ele completamente.

Olha, por exemplo, a Yvone foi crucificada, era aluna, mulher de um deputado, foi

contrária ao grupo... o depoimento dela foi muito incisivo. O Daud também era

contrário a esse grupo, foi o criador da Faculdade, era muito radical, incisivo, acho

que foi ele que trouxe a Yvone para a Faculdade. Sei que existe um calhamaço de

depoimentos de professores...

Aposentei-me em 1985, fui representante da FAPESP, vivi os dois períodos

dessa instituição, como Faculdade Isolada e como UNESP, acho que até misturei as

coisas...

Se não tivesse acontecido o Golpe Militar...bem que tipo de regime o João

Goulart teria implantado no Brasil? Seria o comunismo? Socialismo? Se valessem

todos os projetos que estavam em andamento aqui, creio que essa Faculdade se

projetaria no Brasil, teria inovação, seria diferente da USP que nunca gostou de nós,

povo do interior, a UNICAMP é mais evoluída, a USP até tem setores mais

evoluídos, mas tem outros que são conservadores. Agora como teria sido... hoje as

coisas estão tão diferentes, ninguém mais se fala, ninguém visita ninguém... Nada.

Page 148: Maria a Blaz Vasques Amorim

148 

 

CORONEL ANTONIO RIBEIRO DE GODÓI

Entrevistei o Coronel Godói em sua chácara, perto de São José do Rio Preto.

Quando cheguei havia uma mesa de café da manhã com várias opções de doces e

salgados. O Coronel foi muito agradável e prestativo. Ficou emocionado quando

falou da Profa. Sara Rottemberg.

O João Goulart ia dar um Golpe, olha o comício que ele fez na Central do

Brasil, os militares só deram um contragolpe antes dele fazer besteira.

Meu nome é Coronel Antonio Godóy, tenho 86 anos, fui comandante da

polícia militar aqui da região de Rio Preto. Passei para a reserva em 1962 e resolvi

fazer faculdade. Entrei na FAFI, estava no terceiro ano quando houve a Revolução de

1964. O coronel que estava no cargo quando aconteceu isso era meu amigo, tinha

muita consideração por mim e me respeitava muito.

Alguns dias antes do Golpe me chamaram na corporação. Entrei numa sala e

lá estavam reunidos vários oficiais, o delegado regional e o coronel. Estavam

justamente planejando... eu não diria um ataque...bem, entrarem na Faculdade e

prenderem os alunos e professores, era sabido que nos últimos 3 ou 4 meses esses

indivíduos haviam se entusiasmado com o Governo Goulart, começaram a fazer

comícios, teatro, todos apoiando o caminho que o Goulart estava tomando, esse

negócio de reforma agrária, diziam que alguns professores eram comunistas, não sei

se eram ou não, mas as coisas estavam fervilhantes... alguns professores eram os mais

entusiasmados, começaram a pregar a destruição da família, a revolta do sistema

familiar, falavam sobre como as mulheres deveriam agir e vestir, havia algumas

exageradas que começaram a usar vestidos curtos, mostrando a calcinha, sentavam

Page 149: Maria a Blaz Vasques Amorim

149 

 

na rua, fumavam charutos, agrediam a sociedade. O povo, em geral se revoltou, não

queriam isso, não estavam acostumados.

Houve exagero por parte dos alunos, incentivados por professores que

pregavam a revolta dos filhos contra os pais... essas conversas tolas de juventude mal

orientada... bem, as autoridades estavam planejando entrar na Faculdade e prender

todo mundo. Pedi ao Delegado regional, Dr. Tácito, que não fizesse isso, afinal a

juventude que estava lá nem sabia o que estava fazendo, pedi para eles não

prenderem aluno.

Depois da reunião fui até a Faculdade e estava tendo um comício, chamei o

presidente do diretório, acho que Murilo Farinazzo era o nome dele, expliquei a

situação e pedi para eles pararem com aquilo, senão iria todo mundo preso. Ele falou

com o pessoal e acabei vaiado, achavam que eu não estava do lado deles, na verdade

eu não estava de lado nenhum, não queria que os prendessem.

No dia seguinte continuou tudo igual, então lavei as minhas mãos. Fui e falei

para o meu colega que não iria assumir a responsabilidade, então eles foram lá e

prenderam um monte de gente. O Cantoni mesmo fugiu para o Chile... sabe quando

vem um regime forte com ou sem razão, a polícia excede...até um político falou que

não tinha medo de ditadura, tinha medo do guarda da esquina, esse sim se excede.

Sabe, aconteceu primeiro a intervenção em Rio Preto porque esses professores

e alunos já vinham marcados pelo povo. Uns dias antes da revolução teve até

passeata pela família aqui, o povo estava revoltado contra a Faculdade porque eles

estavam pegando pesado justamente contra os costumes da cidade, que eram

costumes pacíficos... até em São Paulo houve aquele enfrentamento entre a USP

Maria Antonia e o Mackenzie...

Agora aqui, como havia só uma faculdade a polícia teve que agir mesmo.

Tinha um agitador, o Cunha, esse era um dos mais agitadores... tinha o Orestes, mas

esse não era tanto, não se expunha muito... eles agiam dentro da própria sala de aula

aconselhando os alunos a fazer isso ou aquilo... o comandante da polícia dessa época

Page 150: Maria a Blaz Vasques Amorim

150 

 

era o Eduardo Monteiro, que nós chamávamos de Bitu. Sabe, no ano passado teve

um desfile em São Paulo e ele desfilou montado num cavalo. Ele é muito bom, muito

consciencioso, não houve violência aqui, não machucaram ninguém, só prenderam e

deixaram a policia civil resolver o problema.

Na civil tinha um delegado chamado Tácito Pinheiro... esse era meio

complicadinho, causou toda essa situação política aqui, agressões, prisões... as

agressões foram causadas pela policia civil, a militar não interveio, não.

Eu só tentei ajudar, inclusive depois de ter estourado a revolução, alguns

professores queriam ir para São Paulo e ajudei que eles embarcassem para não serem

presos, fiz o que pude, até comida para a família de um professor que era mais

exaltado, apoiava o João Goulart, eu levei... ele tinha um monte de filhos...eu achava

aquilo um absurdo. Eu não concordava com a posição dele, mas a família, os filhos,

não podiam ficar sem comer.

Esse negócio de bater na porta de sujeito, tirá-lo de casa, prender, bater, matar,

eu sou contra... sei que houve isso no movimento revolucionário, mas não há

revolução que não tenha violência de ambas as partes, temos até o caso de um

tenente que foi mandado para prender um grupo de terroristas que estava no Vale

do Ribeira com o Lamarca... quando os terroristas conseguiram pegar os militares,

esse tenente propôs um acordo, pediu para soltar os companheiros que ele ficava de

refém, eles soltaram, mas o que fizeram com o coitado... as maiores barbaridades,

mataram ele aos poucos, castraram o pobre... e o pior é que esse pessoal é que manda

no Brasil agora, os políticos do Lula são os terroristas ferozes que mandam no Brasil

agora... até premiaram a família do Lamarca e eu até hoje luto por uma pensão

decente.

Sabe, não sou contra as ideias, tenho até amigos que eram considerados

comunistas antes da revolução, tem o Cavalcante, o Rodrigues Lisboa, um jornalista

cujo nome não lembro agora... eu tinha muita consideração por eles... não tenho nada

contra as ideias, tenho contra a violência, seja de um lado ou de outro.

Page 151: Maria a Blaz Vasques Amorim

151 

 

Tudo foi por causa do João Goulart, ele não devia nem ter assumido, assumiu,

depois fez um plebiscito e virou presidente, então ele pregava essa coisa do rico

contra pobre, essa coisa que o MST está fazendo agora, começou a fazer uma

inversão... quebrar a hierarquia, o João Goulart ia dar um Golpe, olha o comício que

ele fez na Central do Brasil, os militares só deram um contragolpe antes dele fazer

besteira, eles fizeram coisas boas, ficaram 20 anos mandando, não vou dizer que não

houve desmando, mas você sabe... na revolução, seja onde for, você cerceia a

liberdade para manter o novo regime, e quem fez as barbaridades não foi a cúpula,

foi o guarda de esquina... isso aconteceu no mundo inteiro... esse negócio de matar

dentro da prisão não foi coisa de chefes militares, a cúpula não comungava com essas

barbaridades, a parte eu era comandada era que exagerava, veja no Iraque, na

Venezuela, para manter o poder ou a sua posição tem que haver exageros, isso é

normal, embora não seja o ideal.

Eu gostava muito do Mauricio Tragtemberg, ele era muito culto, sempre dava

uma espezinhada nos militares, quando eu estava presente ele dizia que o Duque de

Caxias era contrabandista, ríamos muito disso. Embora fosse muito culto, às vezes ele

ficava pregando essas bobagens.

Os professores, embora , embora com essa visão de esquerda, eram

entusiasmados, excelentes profissionais... depois da revolução, quando eles forma

embora, o ensino caiu muito, os professores da região não eram tão capazes, tão

entusiasmados. A qualidade de ensino caiu assustadoramente... depois foi

conseguindo se levantar novamente, hoje é muito boa, é a UNESP. O próprio

interventor era muito duro, o José de Castro Duarte, ele chegou colocar o Orestes

para fora da Faculdade quando ele veio buscar uns livros dele.

Agora, a sociedade conservadora de Rio preto contribuiu para que tudo

acontecesse, ela se revoltou contra a faculdade e apoiou a revolução.

Page 152: Maria a Blaz Vasques Amorim

152 

 

ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

Como compreender e analisar as histórias que ouvimos, que se situam na

fronteira das relações entre o que é exterior ao indivíduo e ao que ele traz em seu

íntimo, com seus dilemas e contradições? Se nas entrevistas de História Oral de vida

o que recolhemos são memórias, como interpretar o que ouvimos? Analisando a

memória coletiva, Halbwachs enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que

estruturam nossa memória e que a inserem na coletividade a que pertencemos.

Ainda segundo o mesmo autor:

“Para que a nossa memória se beneficie dos

outros, não basta que eles nos tragam seus

testemunhos: é preciso também que ela não

tenha deixado de concordar com suas

memórias e que haja suficientes pontos de

contato entre ela e as outras para que a

lembrança que os outros nos trazem possa ser

reconstruída sobre uma base

comum”(HALBWACHS, M.: 2006)

A leitura de uma ou mais entrevistas não é um trabalho simples. Neste

trabalho delimito o problema da pesquisa que é a história dos envolvidos na

intervenção de 1964 na FAFI, a própria intervenção e as conseqüências imediatas da

mesma e a trajetória da Faculdade. Considerando que estou trabalhando com várias

entrevistas, levei em conta as disposições que meu colaborador quis manifestar por

meio da sua narrativa, e que o que emergiu delas se trata de uma construção que

cada indivíduo elabora a partir da sua experiência.

Assim, pretendi analisar as narrativas, considerando o curso de vida de cada

colaborador, o papel social desempenhado por eles em suas vidas, pois, como

reconhece Éclea Bosi, as lembranças transmitidas por um indivíduo estão presas às

suas trajetórias de vida, o que lhe permite oferecer um testemunho das

transformações ocorridas ao seu redor e, ao mesmo tempo, produzir uma análise das

mudanças por ele percebidas.

Page 153: Maria a Blaz Vasques Amorim

153 

 

Pretendi construir evidências e estabelecer correlações que possam contribuir

para que os objetivos da pesquisa sejam alcançados da melhor forma possível.

(DELGADO. 2007)

Segundo Meihy e Hollanda, análise em História Oral é um procedimento

premeditado, especificado no projeto e disso dependente. (MEIHY, HOLLANDA.

2007)

Neste trabalho segui as seguintes etapas propostas por Lucilia de Almeida

Delgado para a análise das narrativas:

• Análise temática do conteúdo das entrevistas, destacando-se temas gerais;

• Realização de uma nova análise das narrativas, de acordo com os temas

destacados anteriormente, objetivando compreender o conteúdo das entrevistas,

indicando sua especificidade;

• Realizar o agrupamento de um conjunto de entrevistas no qual cada

entrevista possa se constituir como uma unidade especial, e o conjunto delas possa

ser cruzado, comparando-se as versões e informações obtidas. (DELGADO.2007).

• Após a análise das entrevistas procedi o cotejamento das mesmas com os

documentos escritos para elaborar o que se segue nesse trabalho.

É importante, neste momento, descrever o contexto que acompanhou essas

entrevistas. A maioria dos entrevistados se mostrou muito disposta a contar a

história e pode-se perceber nas suas narrativas certa mágoa que ninguém ainda

tivesse tido a idéia de contar a história da FAFI, como eles chamam a faculdade com

um tom de nostalgia. Muitos deles me disseram que estava na hora da história ser

contada. Um dos contatados, porém, se recusou a falar , demonstrou certo medo e

disse que nunca mais queria ouvir falar daquele tempo horroroso.

Partindo da perspectiva que narrar é algo difícil, que exige um forte exercício

da memória, as entrevistas foram longas e carregadas de silêncios. Percebi que, por

vezes, eles significavam frustração, mágoa, saudade e por outras, a certeza de que o

passado fora melhor que o presente. Nesse sentido, o passado sendo melhor que o

presente foi muito comum ouvir nas narrativas que: “a educação naquela época era

excelente”, “que os jovens sabiam pensar” e que hoje a educação está um caos sem

Page 154: Maria a Blaz Vasques Amorim

154 

 

muita esperança de mudança. Esse tipo de afirmação me levou a Jerzi Szacki, que

escreve sobre a questão das utopias ou felicidade imaginada. Para esse autor :

“Será utópico, para nós, todo revolucionário que desconhecer a

idéia de um período intermediário, que imaginar uma

transformação social que introduza uma quebra na

continuidade histórica, como substituição direta das relações

boas por más.” ( SZACKI, J.:1972, p.16)

Assim o que se percebe nas narrativas, tanto de professores quanto de alunos

é que o tempo passado foi diferente ou melhor que o tempo presente, assim como o

lugar do passado é melhor. Aquela Faculdade de 1957 em São José do Rio Preto era

sem dúvida melhor que a de hoje, embora as dificuldades fossem muito maiores, o

espaço mais exíguo, eles afirmam que eram felizes, tinham esperança de

transformação do mundo pela educação, e era lá, no interior que essa transformação

se deu. A avaliação negativa do presente é acentuada pelo contraste de um passado

melhor. ( SZACKI, J.:1972, p.16)

Page 155: Maria a Blaz Vasques Amorim

155 

 

A criação da Faculdade

Segundo Casemiro Reis Filho, em 1955, na cidade de São José do Rio Preto,

“Começou um movimento para se criar uma Faculdade.

Eu defendi a criação de uma Faculdade de Direito, mas as

pessoas achavam melhor criar uma Faculdade de Filosofia. Eu

era contra a justificativa que o pessoal da cidade dava: queriam

uma Faculdade de Filosofia porque assim as meninas não

precisariam vir para São Paulo e “se perderem” aqui. Fui voto

vencido”. (REIS FILHO. 1984)

A Faculdade era uma aspiração da sociedade riopretense, mormente de um

grupo de professores do Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves, entre eles o

professor Daud Jorge Simão, também vereador. No jornal O Estudante, edição de

maio de 1955, publicado pelo grêmio do Monsenhor Gonçalves, o referido professor

escreve um artigo longo onde defende a criação da Faculdade e termina assim a sua

argumentação:

“Tiremos da frente aqueles que não acreditam nos

valores culturais. Quando os cursos estiverem funcionando,

busquemo-los para que se integrem na nova geração que

emergirá das forças positivas que constroem e não daquelas que

emperram o progresso da humanidade”. (O ESTUDANTE.

Maio/1955. No. 1)

A criação da Faculdade também foi defendida em um programa de rádio

chamado A Voz do Estudante, no dia 5 de junho de 1955, produzido, escrito e

dirigido por Antonio Luiz Pimentel na emissora PRB8 Rádio Rio Preto, uma das

emissoras afiliadas á Rede Piratininga. A narração foi de Ebrahim Ramadan e o texto

dizia o seguinte:

“O sonho de todos os estudantes de Rio Preto e

região, foi realizado. Foi aprovado na Câmara Municipal o

projeto de lei do Prof. Daud Jorge Simão que propunha a

Page 156: Maria a Blaz Vasques Amorim

156 

 

criação de uma universidade em São José do Rio Preto.

Depois de duas ou três sessões inúteis, por falta de

quorum, conseguiu-se, finalmente, reunir-se os senhores

vereadores para a discussão do projeto. Magnífica e

sensacional foi aquela noite, em que em nada menos de 5

horas se travou estrondosa discussão espetacularmente

sustentada pelo Dr. Daud explicando àqueles que não

entendiam ou não queriam entender, a finalidade e

objetivo de seu projeto sobre a criação da universidade.[...]

Resta-nos esperar e aguardar a decisão. Por enquanto

queremos somente esternar os nossos agradecimentos ao

professor Daud Jorge Simão e os nossos parabéns pela sua

brilhante atuação em defesa da causa estudantil.”51

O Prefeito de Rio Preto, Philadelpho Gouveia Neto, em 26 de maio de 1955,

promulgou o Projeto de Lei no. 30/55, que dispunha sobre a criação da Universidade

Municipal de São José do Rio Preto, e em 25 de agosto do mesmo ano o Decreto 249,

criou a primeira unidade universitária riopretense: a Faculdade de Filosofia, Ciências

e Letras. Em 13 de dezembro de 1955 chegou à cidade o Prof. Dr. Rafael Grisi,

encarregado de ultimar os preparativos necessários à instalação e funcionamento da

Faculdade. O Professor Grisi foi o primeiro diretor da instituição.

A Faculdade funcionou nos seus primeiros anos com recursos municipais, e

em 1956, chegaram a Rio Preto os primeiros professores estrangeiros para lecionar

nela. São eles Dr. Erich Arnold Von Bruggenhagen, Dr. Edoardo Querin e Dr.

Antonio Pinto de Carvalho, e também os brasileiros Luiz Dino Vizotto e Celso Abade

Mourão.

A municipalidade não conseguiu, porém sustentar a Faculdade e o dr. Aloysio

Nunes Ferreira em 13 de setembro de 1956 pleiteou junto ao governo estadual a

criação de uma Faculdade como Instituto Isolado do Sistema Estadual de Ensino

                                                            51 Respeitei a grafia que estava no texto lido, pelo locutor. 

Page 157: Maria a Blaz Vasques Amorim

157 

 

Superior. Somente em 1957, pressionado pelo prefeito Alberto Andaló a Faculdade

foi estadualizada. Essa questão é colocada pelos nossos colaboradores:

“Primeiro tínhamos um Faculdade municipal, depois o

Jânio estadualizou e transformou-a em Faculdade Isolada de

São José do Rio Preto” (Profa. Nilce Lodi)

“O que vou contar agora foi uma reunião histórica.

Encontramo-nos com o Jânio Quadros e o Alberto Andaló fez o

pedido. Foi cômico! O Jânio com aquele jeito peculiar de falar

disse: Allllbbbeeerrrrtooo Annndalóóóó, eu não posso te dar

isssooo.. o que você está me pedindo é um absurdooooo... O

Alberto ficou muito bravo. Ele era o principal cabo eleitoral do

Jânio naquela região, um homem de muito prestígio, mas

também um cavalo de mal-educado... virou as costas e disse ao

Jânio: Então você vai pra puta que o pariu, nos chamou e fomos

saindo... quando estávamos perto da porta o Jânio disse que nos

daria a Faculdade”. (Prof. Orestes Nigro)

Os principais jornais da cidade comemoram a conquista e em grande

editoriais informaram à população:

“O grande benemérito. O Governador Jânio Quadros

merece, sem favor nenhum, o título de grande benemérito da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio

Preto.”(Correio da Araraquarense, 10 de abril de 1957).

“Sonho que se transforma em realidade: Rio Preto, mui

justamente, festeja hoje um de seus maiores acontecimentos,

qual seja a instalação da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras, da Universidade Municipal”.(Correio da Araraquarense,

10 de abril de 1957).

“A nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São

José do Rio Preto é o novo centro regional de ensino e pesquisa

a serviço do progresso técnico e social da região. Formação

Page 158: Maria a Blaz Vasques Amorim

158 

 

científica e pedagógica adequada de futuros professores do

ensino secundário, ao lado da preparação de investigadores e

especialistas de vários ramos do conhecimento

humano.”(Revista Atualidades Pedagógicas, Agosto de 1960,

p35).

Vários artigos divulgados, inclusive, pelo Jornal Diário de São Paulo, dão a

dimensão da importância da criação da FAFI. A carta convite para a aula magna foi

publicada no jornal A Notícia.52

Por que era tão importante a criação de uma Faculdade em Rio Preto? O final

da Segunda Guerra imprimia ao país novas necessidades que a educação não podia

ignorar. Era um período de transitoriedade em que havia intensa manifestação a

respeito dos rumos do sistema educacional. A partir da década de 1950, havia dois

processos fundamentais, ambos com grande repercussão sobre o encaminhamento

das questões educacionais: um processo de redemocratização, com o fim da ditadura

Vargas, e um processo de desenvolvimento comandado pela segunda

industrialização. É dessa época a percepção de dois Brasis, um arcaico, tradicional, e

outro moderno, e a crença em que o desenvolvimento de sua porção moderna levaria

à superação das suas contradições, fazendo-o, finalmente dar o salto para o

futuro.(LAMBERT. 1959)

A educação seria a maneira de transformar o Brasil em uma nação moderna.

O educador e filósofo Anísio Teixeira, na década de 1950 ao fazer uma palestra no

Rio de Janeiro alertava:

“(...) a educação não é apenas um processo de formação

e aperfeiçoamento do homem, mas o processo econômico de

desenvolver o capital humano da sociedade.”(TEIXEIRA. 1957)

Parece que a preocupação com a qualidade da educação na recém criada

Faculdade Isolada de São José do Rio Preto também afetava Jânio Quadros. O

governador exigiu do prefeito Alberto Andaló que os professores da nova instituição

                                                            52 Ver em Anexo 2 

Page 159: Maria a Blaz Vasques Amorim

159 

 

fossem formados pela USP, e essa decisão teve sérias consequências. A professora

Nilce Lodi conta que:

“Quando da estadualização foram contratados

professores da USP com o Aloizio Reis de Andrade, o Casemiro

Reis Filho[...] A faculdade era uma reivindicação da população

de Rio Preto, era difícil mandar seus filhos estudarem na USP

de São Paulo. Muita gente achava que era uma utopia uma

faculdade no interior[...]Esses professores vieram para Rio Preto

trazendo muitas novidades”.

O professor Hélio Leite de Barros conta que:

“O Jânio estadualizou a Faculdade, mas exigiu

professores da USP, não queria que a estadualização servisse

para politicagem local.”(Prof. Hélio Leite de Barros).

Eram professores jovens, vindos da capital para o interior com vontade de

ensinar, despertaram nesse primeiro momento certa desconfiança, inclusive de seus

pares da capital. Havia o receio de uma USP caipira, que não se concretizou. A

Faculdade de Rio Preto obteve o grau de excelência pela maneira desses jovens

professores encararem a educação. Casemiro dos Reis Filho, Wilson Cantoni, Orestes

Nigro e outros fizeram com que a Faculdade se destacasse até 1964 pela seriedade,

qualidade e entusiasmo com que alunos e professores se dedicavam às tarefas

acadêmicas. Os alunos e professores entrevistados forma unânimes em afirmar essa

excelência:

“Era uma Faculdade que formava, não só conteúdo, mas

formava a mentalidade cientifica... havia seriedade sabe? E era

assim em todos os cursos. Havia grandes profissionais...

tínhamos certeza de que íamos ser grandes”(Edson Guiducci)

“Sabe, o trabalho em Rio Preto era estimulante,

professores de nível muito bom querendo criar uma educação

Page 160: Maria a Blaz Vasques Amorim

160 

 

diferenciada. O Casemiro Reis Filho, O Orestes, o Azzi, o

Cantoni, o Lövy, o Tragtenberg, a Sara...”(Prof. Hélio Leite de

Barros)

“Eu gostava muito daqueles professores... havia o

professor Orestes Nigro que se destacava pela popularidade e

isso me influenciou.”(Grigor Vartaniam)

“O ingresso na Fafi foi uma coisa maravilhosa e

provocou em mim um grande amor. Era uma faculdade

modelo, os professores eram da USP, tinham um jeito de

ensinar... muito, muito bom, principalmente o de Sociologia, o

Wilson Cantoni.. os de Filosofia, Aiex e Aloisio Reis de

Andrade também eram especiais...” (Maria de Lourdes Cápua)

“Eu gostava muito do Mauricio Tragtenberg, ele era

muito culto, sempre dava uma espezinhada nos militares,

quando eu estava presente ele dizia que o Duque de Caxias era

contrabandista, ríamos muito disso. “( Coronel Godói)

Os professores da FAFI vieram para Rio Preto com o intuito de criar um novo

tipo de educação. Havia novos projetos culturais e ideológicos a serem colocados em

prática. Os anos 1950 foram marcados por uma crise no moralismo rígido da

sociedade. O sonho americano já não conseguia mais empolgar a juventude. A

segunda metade dos anos 50 já prenunciava como seriam os anos 1960: a literatura

beat de Kerouac, o rock de garagem, os movimentos do cinema e de teatro de

vanguarda eram assuntos de interesse de jovens do mundo todo, inclusive dos

brasileiros.

Os professores da FAFI faziam parte dessa juventude, muitos eram solteiros e

os casados já viam o casamento com outros olhos. Os jovens de Rio Preto passaram a

admirá-los e consequentemente pela educação que eles propunham. Os professores

da Maria Antonia viam a questão da educação como fator primordial:

Page 161: Maria a Blaz Vasques Amorim

161 

 

“Resolvi que estudaria para ter uma vida melhor e

lutaria para proporcionar uma vida melhor para outras pessoas

também”.(Prof. Orestes Nigro)

“Bem, nossa classe era muito rica intelectualmente, acho

que não havia militantes políticos, mas militantes culturais. A

gente queria, representava e procurava fazer algo para

acontecer uma revolução na cabeça das pessoas, a gente trazia

coisas novas, e claro, isso colidia com o padrão reinante que nos

taxava de revolucionários” (Prof. Hélio Leite de Barros).

“Começamos a trabalhar cada um no seu setor.

Tínhamos seminários diários de estudo para construir a escola

que a gente imaginava... foi uma revolução o método que a

gente começou. Pensávamos em fazer uma escola com

predominância no sentido evolutivo do pensamento, tudo

interligado, Artes, Filosofia, Pedagogia... a idéia era formar o

homem brasileiro... queríamos criar possibilidade para que as

pessoas pudessem pensar com mais amplitude... logo pensamos

no teatro.”(Profa. Sara Rotemberg)

“O que a gente constatava é que nessa Faculdade a

relação entre alunos e professores era muito mais avançada e

menos formal do que na maioria das faculdades da época.

Havia camaradagem, intimidade e grande respeito.”(Juca de

Oliveira, ator).

O GRUTA

Nesse final dos anos 1950, havia pessoas, como o professor Orestes que

encaravam a arte como uma forma muito importante de educação. Embora não se

assumisse comunista, percebe-se na fala desse professor e de muitos de seus colegas

e alunos a necessidade de abordar questões políticas e sociais em contexto nacional.

Os jovens queriam afirmarem-se como jovens e buscavam romper com as

regras tradicionais de então. Refletiam e denunciavam as injustiças cometidas na

Page 162: Maria a Blaz Vasques Amorim

162 

 

sociedade na busca de um mundo mais equilibrado e honesto. Esse período

correspondeu a uma fase de excepcional de florescimento da cultura brasileira. A

politização das massas se tornou o terreno fértil sobre o qual frutificaram iniciativas

de cultura popular como nunca havia ocorrido em épocas anteriores.(GORENDER,

1987).

No campo artístico, verificou-se um crescimento em diversas áreas, um sopro

de entusiasmo renovador percorreu a música popular, o teatro e a literatura. É a fase

de ouro do cinema novo, do Teatro de Arena, da arquitetura de Brasília. Um grande

impulso intelectual acompanhou o maior movimento de massas da história

brasileira. Tudo isso também repercutiu no campo da educação.(SILVA, 2006).

Havia uma mobilização nacionalista nos fins de 1950 e início dos 1960, que

envolveu também a área cultural onde a produção foi marcada pelas propostas das

esquerdas, principalmente do PCB. A cultura, então encarada como instrumento de

transformação social andou junto com a política, não só nesse momento, mas durante

toda a década de 1960.(PAES. 1997).

Surgiu então, um público interessado em ver abordadas, no palco, questões

políticas em contexto nacional. Com esse objetivo, novos dramaturgos buscam na

pobreza do interior e da periferia o protagonista ideal. Nasceu, assim, uma tendência

que seria predominante nos anos seguintes. Gianfrancesco Guarnieri, Juca de

Oliveira, Oduvaldo Vianna Filho, Augusto Boal, entre outros, fazem parte de uma

geração que descobre nos problemas sociais a fonte de sua dramaturgia. Segundo

Paulo Pontes, o povo é “a única fonte de identidade nacional”.(PONTES. 2001)

Entendia-se por povo aquele que era explorado, que levava a vida à margem dos

meios de produção do saber. A ideia de que os fracos, unindo-se, derrotam os fortes,

ganhou muitas versões.

Os heróis que, supõe-se terem morrido por uma causa coletiva como

Lampião, Antonio Conselheiro, Zumbi etc. , mereceram várias peças. Era a busca da

brasilidade e a estreita vinculação entre arte e política.(RIDENTI. 2000). Por volta de

1955 havia uma concepção de que era importante ter uma participação de teatro de

Page 163: Maria a Blaz Vasques Amorim

163 

 

um grupo amador.(Vera Vertel in RIDENTI. 2000). Nessa tendência, surgiu na FAFI

o GRUTA, Grupo de Teatro Amador, criado pelo professor Orestes Nigro com o

auxílio de Juca de Oliveira e Gianfrancesco Guarnieri. Embora o referido professor

diga não ter tido nenhuma motivação política para a criação do grupo, essa

motivação aparece na entrevista do professor Orestes:

“O GRUTA era um grupo de teatro amador que, além

de fazer arte, promovia vários eventos também. Eu o criei como

opção de conhecimento para os alunos e também para me

divertir, foi muito espontâneo, nada muito pesado. Levamos

para se apresentar na Faculdade a Inezita Barros, que sabe tudo

de folclore, a Maria Lívia São Marcos que era a maior violinista

do Brasil; levamos o Guarnieri para fazer um conferência sobre

teatro, ele acabou se tornando um grande amigo, tenho até

algumas fotos dele jovenzinho. O Juca de Oliveira veio com ele

e também ficou meu amigo. Tempos depois resolvemos fazer a

Semana de Estudos Brasileiros, no mês de agosto, e convidei a

companhia de teatro do Fernando Torres, marido da Fernanda

Montenegro, para se apresentar em Rio Preto. [...] Eu tinha

capacidade muito grande de organizar eventos culturais e eles

foram acontecendo frequentemente, até que o Cantoni um dia

me chamou e perguntou se eu tinha noção do alcance desse

movimento todo, dessa organização do GRUTA, perguntou se

eu percebia o que estávamos fazendo. Respondi a ele que não

tinha intenção de fazer movimento nenhum, que tudo era uma

grande diversão, porque eu vivia tudo aquilo artisticamente.

Ele disse que organizássemos isso, que déssemos estrutura,

fizéssemos um estatuto, porque iríamos crescer muito.”(Prof.

Orestes Nigro).

Embora negando a motivação política o Prof. Orestes criou um estatuto para o

GRUTA, cuja cópia integra o processo militar, denominado “Objetivos e Carta de

Princípios”. Tal documento diz o seguinte:

Page 164: Maria a Blaz Vasques Amorim

164 

 

“I - O GRUTA tem por finalidade promover, através de

instrumentos artísticos adquiridos na escola e dos trazidos de

acervo artístico do povo, as seguintes metas: 1- a tomada de

consciência das classes oprimidas através de seus problemas

sócio-econômicos-culturais e conseqüente ruptura com esquemas

sociais desatualizados. 2- a mobilização dos estudantes, no

sentido de compreender a sua própria realidade e atuar sobre ele,

assim como de preparar-se para atuar sobre a realidade das

classes indiadas na nota 1.

II- Enquanto a realidade brasileira que se apresenta à

nossa geração, é imperioso que cada cidadão empregue os meios

de que dispõe, os instrumentos de cujo manejo está capacitado, a

fim de oferecer sua contribuição para a solução dos problemas

que caracterizam esta realidade, assim como lutar para atingir as

condições indispensáveis à soberania nacional que implicam na

emancipação econômica, política e cultural do povo brasileiro.

Os intelectuais, ou os assim chamados, os educadores, os

universitários, todos temos como meio de luta e atuação, além

dos instrumentos próprios ao trabalho do ensino, de pesquisa e

de reflexão, os processos de manifestação artística, os quais,

dentre todos são os que melhor comunicam ao povo, e que melhor

manejo é nos dado praticar. Assim, os universitários da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras meramente

entretenedores que possa ter a arte de um povo sem problemas e

também, embora não afirmando se esta a arma mais eficaz de

luta, dentro de um plano geral dispõe-se a empreender com a

serenidade de uma militância, um trabalho de cultura popular

que abranja seus dois caminhos naturais: aquele de levar ao povo

a mensagem de luta e o trazer do povo todas as suas

virtualidades culturais, dando-lhe a dignidade e a imensa

significação que a sua autenticidade garante.

Page 165: Maria a Blaz Vasques Amorim

165 

 

Para o membro do GRUTA o trabalho artístico é um ato

cívico, revolucionário e por isso patriótico, não se reconhecerá

nas demonstrações de afirmação pessoal ou do grupo, tão

abundantes nos meios artísticos convencionais, uma

manifestação própria ao GRUTA. Na segurança e na plena

confiança do sentido autêntico da cultura popular, subscrevemos

nossa Carta de Princípios”.

Observa-se que a participação, tanto da parte de artistas como de intelectuais,

foi considerada prioritária, tentando-se, através dela, um trabalho comum, tendo de

um lado a massa da população brasileira e, de outro, o meio intelectual e artístico.

(AMARAL,1984). Percebe-se que um fenômeno novo parecia tornar-se muito nítido:

a consideração do “popular” para o meio intelectual e artístico, a arte contribuindo

vigorosamente para chamar a atenção de um número maior de pessoas. A Faculdade

e seus integrantes aparecem como elementos-chave para mudar a realidade

brasileira.

Em Rio Preto o GRUTA apresentou o Teatro de Arena para audiências

populares de bairros periféricos que ocuparam as instalações de um

circo.(OLIVEIRA. 1989, p.198) O GRUTA desenvolvia trabalhos artísticos seguidos

de análises criticas e debate com a população presentes nesses espetáculos. Suas

práticas, maneiras de trabalhar, o modo como incomodou muitas pessoa, estão

presentes na fala dos colaboradores e nos depoimentos colhidos pela polícia quando

da intervenção da Faculdade:

“Eu tinha uma capacidade muito grande de realizar

eventos culturais de peso e eles foram acontecendo

frequentemente [...] O grupo empolgou muito e as pessoas

foram cada vez mais participando, o Edson Guiducci, o Grigor

Vartaniam, a Eudete Fochi, que se transformou no meu braço

direito, ela tinha uma cabeça muito boa... a Isabel... convidamos

o Rubens Paiva, que era um deputado empresário e tinha uma

Page 166: Maria a Blaz Vasques Amorim

166 

 

visão muito aberta, para fazer uma palestra lá, veio o Antonio

Cândido...” (Prof. Orestes Nigro)

“ Por volta dos anos 60, eu fazia parte de um grupo de

teatro chamado Arena que, de vez em quando, fazia excursões

pelo Brasil para mostrar as peças encenadas em São Paulo.

Íamos para o nordeste, para o sul do país e também para o

interior de São Paulo, inclusive São José do Rio Preto, cidade

que passamos a visitar sempre que possível. Nosso primeiro

contato lá foi um grupo de teatro que havia na Faculdade, a

FafiOrestes, homem preocupado com questões sociais,

organizara o seu grupo de teatro dentro da Faculdade, a partir

da música, violão, canto em permanentes saraus alegres e muito

concorridos pelos estudantes. Claro que as questões sociais

estavam sempre presentes nessas reuniões. O contato com esse

grupo e o Teatro de Arena se tornou muito estreito. Lá

encenamos algumas de nossas peças. Eu mesmo voltei várias

vezes a Rio Preto, onde apresentei dois recitais de poesia.

Também fazíamos palestras sobre Teatro, Guarnieri falava

sobre dramaturgia, Boal sobre direção. ”(Juca de Oliveira)

“Sei que a mesma altura se fundou o GRUTA, e se a

memória não me falha, este foi animado pelo Orestes Nigro,

mas confesso que não tenho qualquer recordação concreta do

GRUTA, que tão pouco deve ter tido uma ligação institucional

com a Fafi. Não houve entre o GRUTA e o MPC nem ligação

institucional, nem informal, para além daquilo que uns e outros

poderiam chamar de contatos institucionais”. (Franz Wilheim

Heimer)

“Agora, havia a militância, o Heimer com a AP, o MPC,

era intensa, o Azzi com o partidão...[...] Como eu gostava de

cinema acabei me engajando, dirigia um pouco de cinema. O

MPC estava ligado ao GRUTA, ao Ferreira Gullar, ao Augusto

Boal, o Guarnieri, ao Juca de Oliveira... O Orestes também era

Page 167: Maria a Blaz Vasques Amorim

167 

 

do MPC, participava das reuniões para discutir

estratégias.”(Prof. Hélio Leite de Barros)

“O GRUTA trabalhava com cultura.” (Maria de Lourdes

Cápua).

“Tinha o GRUTA, o Heimer com o Centro Popular de

Cultura, a AP... eram grupos que estavam voltados para as

questões sociais. Não havia partido político.”(Profa. Nilce

Aparecida Lodi).

“Logo no início me integrei com o grupo do Orestes, o

GRUTA... sabe eu cantava moda de viola, gostava de poesia e o

GRUTA era um grupo artístico... nem sei o que estava fazendo

num curso de Ciências...passei a participar muito do grupo e o

Orestes era nosso grande guru, um verdadeiro líder.

Nossa preocupação maior era com aquele período político, na

verdade não tínhamos preocupação de fazer sucesso... afinal

muitos já trabalhavam, inclusive eu... embora alguns só

estudassem. Fazíamos todo tipo de arte, cheguei a escrever,

inclusive, algumas peças de teatro, versos... fazíamos grandes

apresentações, tínhamos até um grupo de jogral. ” (Edson

Guiducci)

Nos depoimentos, constam também, a cópia de um caderno da disciplina de

Pesquisa em Sociologia da aluna Flávia J. Pereira onde o GRUTA aparece assim:

“GRUTA

Finalidade: Conscientizar movimento local. Não tem

plataforma ideológica explicitada. Uso da arte como meio de

ação.

Liderança: O grupo existe em torno do líder –líder

potervaliosa.

Page 168: Maria a Blaz Vasques Amorim

168 

 

Tipo de relação: Relação pessoal com o grupo e influência

de um grupo radical: maior atividade e mais afinidade com a

atitude psicológica do líder.” (P. 554 do processo militar).

“...tem conhecimento do GRUTA, órgão independente e

que se destina ao desenvolvimento cultural e artístico da

população de Rio preto; que, no campo do teatro, tem

conhecimento apenas de uma apresentação na Faculdade, da

peça “Auto dos 99%” que para o declarante, vera sobre

problemas na Universidade Brasileira; que em relação a outras

peças apresentadas pelo GRUTA, desconhece-lhes o assunto,

apena tendo ouvido breves referências.”(Depoimento do Prof.

Hélio Leite de Barros, p 384 do processo militar.”

Sobre o GRUTA, ainda existe um oficio endereçado ao Dr. Delegado Regional

de Polícia, que era o Dr. Tácito Pinheiro Machado, assinado por dois delegados

locais, Dr. Mariano Pereira de Andrade e Dr. José Domingos Ferreira que diz o

seguinte:

“Sobre as diligencias encetadas para a apuração de

possíveis práticas subversivas por professores da Faculdade de

Filosofia desta cidade de São José do Rio Preto, nesta altura, já

permitem admitir que o movimento da AP desenvolvido nesta

entidade estundantil, por alguns professores, e coordenado pelo

professor Franz Heimer, já se encontrava em fase de ação, quer

através do MPC e GRUTA, órgãos dos estudantes locais.

Quanto ao propósito subversivo basta dizer que este

movimento, outro fim não possuía, senão transformar 53 a

estrutura sócio-econômica do paíz54, até mesmo pela violência

[...]”( P 1032 do processo militar).

Ainda no depoimento de Vanda Aparecida de Lima, aluna, consta o seguinte:

                                                            53 Grifo do escrivão de polícia no documento original. 54 Grafia constante no documento original. 

Page 169: Maria a Blaz Vasques Amorim

169 

 

“... que o coordenador do GRUTA é o professor Orestes

Nigro; que trata-se de grupo, cuja finalidade é a politização do

povo, através da arte dramática; que o GRUTA segue também

ideologia de esquerda, o mesmo acontecendo com o CAF, MPC

e PAI, sendo este último Partido Acadêmico Independente.”55

(p. 1572 do processo militar)

Percebe-se pelas narrativas que os integrantes do GRUTA queriam mudanças

sociais radicais e que o teatro era um meio para que elas acontecessem, porém não

tinham propostas político-partidárias. Eles tinham consciência dos problemas socio-

políticos e econômicos do seu tempo. O teatro foi o meio escolhido por eles para

tentar mudar e conscientizar as pessoas porque acreditavam que era o único meio de

agir diretamente sobre a consciência das pessoas, portanto um instrumento ativo e

enérgico, capaz de revolucionar a ordem social vigente. Antonin Artaud pensa o

teatro dessa maneira também, isto é, a revolução deve ocorrer “pela cultura, na

cultura” (FELÍCIO.1996)

No prefácio de O teatro e seu duplo, ele reflete sobre a cultura contrapondo duas

diferentes formas de compreendê-la. Uma, dominante na sociedade ocidental, coloca

a cultura como algo separado da vida, como um sistema de conhecimentos,

informações, instrução. Esta visão de cultura traz consigo uma noção elitista e

dualista – o culto e o inculto – a idéia da “aquisição” de cultura que remete a uma

desconexão. “Como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a

verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida”

(ARTAUD, 1993).

Em oposição a esta “idolatria da cultura”, ele apresenta a idéia da “cultura em

ação”, que se torna no homem como que um novo órgão, uma espécie de segundo

espírito e que rege as ações mais sutis, o espírito presente nas coisas. Esta cultura é a

autêntica, segundo ele. A cultura funde-se com a vida e a vida com a cultura,

promovendo a integração do ser humano. Assim, “A verdadeira cultura pressupõe

                                                            55 Manterei, neste trabalho,  a grafia original nas transcrições dos documentos. 

Page 170: Maria a Blaz Vasques Amorim

170 

 

uma modificação integral, mágica, do ser no homem, numa união entre corpo e

espírito, em que este último é cultivado no corpo que, por sua vez, trabalha o

espírito” (FELÍCIO, 1996).

Assim como a revolução de Artaud passa por uma transformação na maneira

da sociedade compreender a vida, para os integrantes do GRUTA, além de

compreendê-la o teatro pretendia transformações nas estruturas mais profundas, na

forma da sociedade viver suas relações, não como indivíduos isolados, mas como um

ser integrado ao social. A arte não era algo a se apreciar, mas algo a ser vivido.

É interessante notar, porém, que embora os colaboradores sempre apresentem

o GRUTA, o MPC e a AP interligados, seus criadores não o fazem. Tanto o Professor

Orestes quanto o Professor Heimer tentam anular a importância desses movimentos

dentro da FAFI. Além disso, procuram desviar o assunto quando indagados sobre

eles e, por vezes, característica mais notada no professor Heimer, optam pelo

silêncio. Assim como as palavras, o silêncio está determinado por suas condições de

produção.

Segundo Eni Orlandi há muitas formas de silêncio; entre elas estão o “silêncio

imposto” e o “silêncio proposto”. O imposto significa exclusão, e é forma de

dominação, já o proposto vem do oprimido e representa uma forma de resistência, e

creio que caiba acrescentar que também pode significar uma forma de defesa ou de

auto-proteção. Possivelmente o conceito de “silêncio proposto” pode ser aplicado a

ambos os professores. É preciso levar em consideração que a censura se instaurou

como um fato nos idos dos anos 1960. Em tempos de ditadura há uma

predominância do “silêncio imposto”, onde o regime “proíbe certas palavras para se

proibirem certos sentidos”(ORLANDI, 1991). Esse tipo de silêncio provoca nos

indivíduos de uma sociedade o medo. Ele é tão grande, que mesmo após o período

de dominação ele continua presente. Marco Antonio De La Parra, escritor chileno

escreve sobre esse medo:

Page 171: Maria a Blaz Vasques Amorim

171 

 

“Me da miedo hablarle. Sabia? Me da miedo dirigirle la

palabra. A mi padre Le daria miedo si supiera que estoy a solas

com usted. A mi madre también. A mis hijos no sé, son más

valientes que yo, son de otra generación. Tal vez no sean ni

valientes. Tal ellos no entiendan mi cautela, el efecto de su

presencia em mi lenguaje, el impacto...usted sabe...em mis

palabras, Es decir em mi espíritu. A mi usted me da miedo.”

(DE LA PARRA, 1998).

Fica claro no texto acima que o nome, a figura, a presença do ditador

causaram e continuam causando medo, afinal o escritor viveu o tempo do “silêncio

imposto.” É possível que esse mesmo tipo de medo perdure, fazendo parte, de forma

já inevitável, do imaginário dos dois professores, mesmo que inconscientemente, pois

nenhum deles se referiu a esse medo. Pude perceber na narrativa de todos os

colaboradores esse silêncio incômodo, presente, repleto de significados. Dentre

todos, apenas um colocou em palavras o que sentia sobre o silêncio:

“Em novembro de 1963 o presidente Kennedy foi morto.

Fiquei em choque. Lembro que o Professor Prósperi me pegou

pelo braço e disse:- “Grigor, te proíbo de abrir a boca, de ir

nessas assembléias, você é muito impulsivo e tenho certeza que

essa morte é sinal que virá uma revolução de direita na América

do Sul, principalmente no nosso país... os líderes de esquerda

vão ser implacavelmente perseguidos... não quero você metido

nisso, não quero ninguém apontando para você e dizendo que

você era comunista.”Obedeci, em parte. Diminui a freqüência

nas assembléias.

Foi um trauma ter sido preso. Depois disso fiquei com a

boca cerrada, não falava nunca o que eu pensava, tinha um

medo danado de me expressar, de me expor... fico admirado

com o direito das pessoas falarem hoje, nós falávamos 10%

disso e olha o que aconteceu... essas pessoas de hoje seriam

degoladas! Se eu voltasse no tempo, acho que com a experiência

Page 172: Maria a Blaz Vasques Amorim

172 

 

que tenho hoje... vendo como você tem pouca gerência sobre as

coisas que acontecem na sua vida... acho que resolveria as

coisas sem causar nenhum conflito.

Tenho três filhos e eles são mais calmos, mais

conservadores, ensinei a eles que não conseguimos mudar a

gente mesmo, que dirá o mundo? Se você não puder falar

alguma coisa é melhor não falar nada.”(Grigor Vartanian).

Penso que o silêncio desses professores não é ausência de linguagem, de

significado, de sentido; também não é “complemento de linguagem”. Ele tem

significância própria [...]o silêncio não está apenas entre as palavras. Ele as atravessa.

Acontecimento essencial da significação, ele é matéria significante por

excelência”.(ORLANDI,2002)

Está bastante claro nas narrativas e nos depoimentos do processo militar que o

GRUTA e o MPC tivessem ligação, se não em todos os pontos, pelo menos em um

deles: na alfabetização de adultos. O professor Heimer tinha profunda ligação com

Paulo Freire e com o MCP e é sabido que o Movimento de Cultura Popular tinha

como objetivos, segundo Cunha e Góes (1985),

“promover e incentivar a educação de crianças,

adolescentes e adultos; atender ao objetivo fundamental da

educação, que é o de desenvolver plenamente todas as

virtualidades do ser humano; proporcionar a elevação do nível

cultural do povo; colaborar para a melhoria do nível material

do povo. Formar quadros destinados a interpretar, sistematizar

e transmitir os múltiplos aspectos da cultura popular.”

Assim como o MPC, o GRUTA também queria o desenvolvimento de uma

cultura mais autenticamente nacional, buscando as raízes dessa cultura e

transformando o povo pela alfabetização. O movimento de alfabetização de adultos

é visto de maneiras diferentes por colaboradores e alguns depoentes do processo

militar ligados a elite riopretense:

Page 173: Maria a Blaz Vasques Amorim

173 

 

“... O Heimer fundou a AP e fazia parte da JUC, junto

com o GRUTA formaram a alfabetização de adultos... foram

todos presos.” (Profa. Sara Rotenberg)

“Víamos a necessidade de alfabetizar os adultos para

que eles tivessem a possibilidade de melhorar de vida.

Formamos alguns núcleos, eu a Cidinha, a Lederci, enfim, as

meninas da Pedagogia junto com a Professora Maria Edith di

Giorgi. Por causa disso acabaram cadeia em celas junto com as

prostitutas. Fui até falar com o bispo auxiliar, pedir ajuda, mas

o delegado se recusou a recebê-lo. Que idéia mais espetafurdia,

achar que alfabetização de adultos tinha a ver como o

comunismo.”(Profa. Nilce Lodi).

“... o Gruta que trabalhava com cultura, o Heimer, que

fundou a AP, com a alfabetização de adultos...fiz até o

treinamento, e foi por causa desse movimento que viramos

vítimas. Fazíamos o trabalho numa escola no bairro Esplanada,

a noite, porém outros professores como o Newton Ramos de

Oliveira trabalhavam em outros locais... foi um trabalho muito

bonito e isso me emociona muito... são tantas

lembranças.”(Maria de Lourdes Cápua)

“Em contrapartida (movimento de alfabetização),

participaram duas ou três dúzias de estudantes, e foram esses

que se encarregaram da única atividade que chegou a

concretizar-se, ou seja, um ou dois grupos de alfabetização em

fazendas próximas a São José do Rio Preto” (Prof. Franz

Wilheim Heimer)

“O único contato que tivemos com camponeses

foi quando o fazendeiro Olavo Fleury permitiu que

alfabetizássemos seus empregados pelo método Paulo Freire. O

Olavo permitiu e isso até nos prejudicou. Quando fomos presos

isso depôs contra nós, mas ninguém chamou o Olavo para

depor, afinal ele era parte da elite.”(Prof. Orestes Nigro)

Page 174: Maria a Blaz Vasques Amorim

174 

 

Nos depoimentos que constam no processo militar encontramos a

seguinte conclusão em ofício assinado pelos delegados Andrade e Ferreira:

“A simples leitura das declarações do Prof. Franz e

do Sr. Ethevaldo Mello de Siqueira e finalmente o apoio que tal

movimento recebia dos órgãos federais então subordinados ao

Sr. João Goulart, revelam o quão sérias seriam as consequências

desse movimento. Entendemos Sr. Regional, ser indispensável o

encaminhamento desse professor à Delegacia especializada do

DOPS”.(Oficio endereçado ao Dr. Delegado regional pelos

delegados Mariano Pereira de Andrade e José Domingos

Ferreira, constante no processo militar na p 1032)

O professor Heimer foi o único professor encaminhado ao DOPS, onde

segundo ele ficou alguns dias. Ele fez tal afirmação na entrevista que me concedeu.

Segundo o depoente Euclides Pelacani:

...“no decorrer do mês de janeiro p.passado, talvez

no princípio, apareceram na fazenda onde trabalha uns

professores de São José do Rio Preto, de nomes Nilton e

Orestes, e as moças que os acompanhavam, Lederci Gigante e

Eliza Penhavel; que durante uns quinze dias os professores

ficaram tomando dados dos alunos que quisessem ser

alfabetizados em quarenta dias; que convidaram para

freqüentar a escola de adultos, tanto velhos como moços,

crianças, sendo que “insistiam muito para que todos entrassem

na escola, chegando mesmo a obrigar”; que inicialmente

ensinavam e mostravam as letras do alfabeto, passando

inclusive filmes de figuras como por exemplo casa, cavalo e

seus respectivos nomes, de onde os alunos copiavam; que esse

tipo de ensino durou uns quinze dias Quando os professores

então passaram a perguntar aos alunos se sabiam o que era

sindicato, reforma agrária, se o patrão era bom com els(alunos)

[...]”que os professores não falassem ao professor ou ao

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175 

 

administrador o que se passava na escola, que era para ficar

entre nós”. ((Euclides Pelacani, aluno da alfabetização de

adultos, p. 1160 do processo militar)

“... foi matriculado por tais professores que ficou

sabendo chamar-se Nilton, Lederci e Orestes, sendo que uns

outros mais nem ficou sabendo o nome[...] que juntamente com

37 outras pessoas passou a freqüentar as aulas, na sala da

máquina da fazenda, cedida pelo proprietário uma vez que os

referidos professores haviam anunciado um curso de

alfabetização em apenas 40 dias, pelo fato de ser diferente

daquele ensino comum feito durante o dia. [...] diziam que o

patrão era rico sozinho e eles que trabalhavam eram pobres,

referiam-se muito a uma tal SUPRA, dizendo que esta ia

resolver o problema do pessoal da lavoura, necessitando para

tanto formar um sindicato”. (Sebastião José da Rocha, aluno da

alfabetização de adultos, p. 1161 do processo militar)

Possivelmente o GRUTA , o MPC e a AP estivessem interligados em Rio

Preto, partindo da análise da documentação amealhada. Em 1961 já havia o MEB,

Movimento de Educação de Base, que surgiu como uma iniciativa da Igreja Católica,

à qual pertencia o Prof. Heimer , que fazia, inclusive, parte da JUC, Juventude

Universitária Católica. O MCP, nascido no Recife, do qual participava Paulo Freire,

amigo do prof. Heimer, tinha objetivo de alfabetizar utilizando novos métodos, por

meio de debates, por exemplo. O CPC, Centro Popular de Cultura ligado a UNE,

União Nacional dos Estudantes, congregava artistas e intelectuais da época. Os

principais agentes de sua criação foram três atores do Teatro de Arena, Oduvaldo

Viana Filho, Carlos Estevam Martins e Leon Hirzman, desse teatro também faziam

parte Gianfrancesco Guarnieri e Juca de Oliveira, muito ligados ao professor Orestes

e ao GRUTA. O objetivo do CPC era levar cultura às classes mais desfavorecidas da

sociedade, utilizando para isso peças teatrais, e em 1963 foi criado o departamento de

alfabetização de adultos.

Page 176: Maria a Blaz Vasques Amorim

176 

 

Por que os professores se esforçam para minimizar sua atuação e outros

colaboradores e depoentes apresentam narrativas que dão uma ideia diferente dos

mesmos acontecimentos?

A memória coletiva, esta deve ser compreendida como um fenômeno

coletivo e social, individualmente seria formada na interação social, ou seja, no

convívio entre indivíduos e suas tradições. Portanto, ela é uma operação coletiva e,

sobretudo seletiva dos acontecimentos e das perspectivas do passado, sendo

impossível pensar em alguma memória coletiva que não tenha se desenvolvido em

um quadro especial. (HALBWACHS, 1990).

Para Pierre Nora existem os “lugares da memória”, onde o local é

concebido como um espaço material, simbólico e funcional, no qual se engendra uma

parte da memória nacional. Portanto, baseando-se no conceito de memória coletiva

adotado por Halbwachs pode-se afirmar que a memória construída pelos integrantes

do GRUTA e do MPC de São José do Rio Preto é um exemplo de formação de

memória coletiva, pois ambos estavam ligados ao contexto das experiências vividas

naquele lugar. As memórias formadas nesses “lugares de memória” nem sempre se

lembram das mesmas coisas, ainda mais que no caso da Ditadura brasileira

desenvolveu-se um embate entre as memórias oficiais e as subterrâneas, ocorrendo

um enquadramento da memória, pois nem tudo foi divulgado, algumas não querem

se revelar, ainda hoje, enquanto outras lutam para que isso aconteça.

Além das questões dos movimentos culturais em São José do Rio Preto,

sabe-se que desde o inicio se estabeleceu um embate entre professores da cidade

versus professores da USP e entre esses últimos e a elite da cidade.

Para Zuleika Aum Attab, a “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de

São José do Rio Preto foi implantada sofrendo hostilidade, até certo ponto latente da

área municipal e suportando também o impacto da hostilidade manifesta dos

círculos universitários da capital do Estado”(ATTAB. 1973). Para Newton Ramos de

Oliveira

Page 177: Maria a Blaz Vasques Amorim

177 

 

“a classe dominante local e seus intelectuais”

pretendiam implantar “uma escola que formasse estudiosos

tradicionais e adaptados ao sistema, capazes de atuar com

neutralidade acadêmica”. Mas, “quando a Filosofia se instalou e

adotou como lema a frase de Kant- Sapere Aude”- a camada

enriquecida de Rio Preto “não imaginou que o pensamento

fosse atualizado, envolvendo práxis coletiva institucionalizada

por um ágil e democrático sistema departamental.” (OLIVEIRA,

1989)

Alguns professores da cidade, entre eles Daud Jorge Simão, não

concordavam, em absoluto, com a vinda dos professores da USP, chamados por eles

de “estrangeiros”. Pessoas respeitadas na comunidade, professores do Monsenhor

Gonçalves, uma das mais respeitadas escolas secundárias de Rio Preto, também

faziam parte da elite da cidade.

As práticas não ortodoxas dos professores da USP não agradavam a

sociedade elitizada que criava suas filhas para o casamento. Era necessário estudar,

mas não mudar a sociedade, segundo suas convicções. Travou-se inicialmente um

embate entre professores da cidade, da Pedagogia e Letras e da História Natural. A

questão era a representação paritária. Enquanto os professores da Letras e Pedagogia

a defendiam, os de História Natural a abominavam:

“Voltando à Rio Preto, foi a primeira faculdade do

Brasil que teve representação paritária e isso foi uma grande

revolução na educação... também nos valeu a pecha de

comunas de Rio Preto...a coisa não era engolida pelo pessoal

das ciências naturais... a única coisa ruim eram as reuniões...

sempre achei reunião uma porra...acho que nesses momentos a

democracia é meio cansativa... acho que no final das reuniões

todo mundo queria dizer:- vamos acabar logo com essa lenga-

lenga, mas era muito divertido.”(Prof. Hélio Leite de Barros)

“Além disso, a Faculdade tinha problemas

internos, um deles era a idéia de departamento,

Page 178: Maria a Blaz Vasques Amorim

178 

 

representatividade, os professores da Letras e da pedagogia

eram mais abertos, os da História Natural não eram vistos com

agrado.

Os alunos da Letras e da Pedagogia tinham

representantes dentro do departamento e tínhamos o direito de

modificar algumas coisas indo até contra professores, que

acatavam a nossa decisão. Havia também uma

interdisciplinaridade entre nós, diálogo. O pessoal da História

Natural nunca aceitou isso e a distância entre os departamentos

e as pessoas que os compunham foi aumentando. Essa falta de

convivência resultou em falta de harmonia.”(Profa. Nilce Lodi)

“Participação dos alunos nos problemas da escola

como membros de órgão colegiados; deve e pode haver essa

participação, pois entendo que eles têm contribuição a dar, mas

do modo como tem funcionado, a participação deles tem sido

mínima, pelo menos o que tenho observado”. (Prof. Celso

Abade Mourão)

“O fato era que esses grupos se chocavam desde

1955, havia esse grupo que tinha uma ideologia que se chocava

com a comunidade, e também com a gente da História Natural

que não éramos políticos, com exceção do Cunha... mas eu me

dava bem com todos eles... costumavam dizer que tinham um

projeto pedagógico, não vi nada disso...Cantoni chegou a

publicar um trabalho sobre a questão da representação de

alunos, na verdade ela já existia, mas era um ou dois alunos por

departamento, agora ter uma igualdade... bem nós da História

Natural não éramos políticos...”(Prof. Luiz Dino Vizotto)

Na representação paritária da FAFI alunos e professores estavam em

mesmo número para decidir os caminhos da Faculdade. Os professores

“estrangeiros” apoiavam essa decisão, os da História Natural, não, com exceção do

Prof. João Jorge Cunha.

Page 179: Maria a Blaz Vasques Amorim

179 

 

Outro problema enfrentado foi com relação ao diretor , o senhor Rafael

Grisi. As narrativas dizem o seguinte a esse respeito:

”Quanto a administração de Rafel Grisi: aspecto positivo: a

biblioteca, que conta atualmente com quase 40.000 volumes. Se

nós fizermos um levantamento do crescimento da biblioteca em

cada uma das administrações, verificaremos que a biblioteca da

Faculdade de Filosofia já começou grande e assim começou

porque o professor Rafael Grisi a criou grande. Quanto à

qualidade do material, porque quantidade, mas de má

qualidade não é vantagem, dizem que a biblioteca não valia

muito a pena, porque a qualidade não era a das melhores. Acho

que ninguém tem o direito de dizer isso, pois numa biblioteca

cabe qualquer livro, por essa razão, esse eu considero um ponto

positivo. Ponto negativo na administração de Rafel Grisi: ele

poderia estar presente em Rio Preto mais do que esteve.”(Prof.

Celso Abade Mourão)

“Houve outro problema sério: o diretor, Dr. Rafael Grisi,

praticava várias irregularidades, usava transporte público para

fins particulares, não ficava na faculdade, suspeita-se que

desviava verbas, e isso nos levou a escrever várias denúncias

para o secretário da educação, e também nos valeu uma

demissão, ele não renovou nossos contratos, porém por pressão

dos alunos teve que nos readmitir. Isso foi por volta de 1963.”

(Prof. Orestes Nigro)

“Bem, sob a direção do Rafael Grisi a faculdade quase

desandou, uma ilha de corrupção, sorte que lá havia gente

muito boa, o Orestes Nigro, o Flávio de Giorgi, a Maria Edith di

Giorgi, entre outros e não deixamos a coisa degringolar.”(Prof.

Hélio Leite de Barros)

Na residência do prof. Heimer foram encontradas várias cartas, a maioria

dirigida ao chefe de gabinete do secretário da educação Chopim Tavares de Lima

Page 180: Maria a Blaz Vasques Amorim

180 

 

denunciando o diretor Sr. Rafael Grisi por improbidade administrativa e corrupção,

algumas assinadas por vários professores da Letras e Pedagogia. Junto com as cartas

havia um telegrama de Chopin que dizia:

“Recebi sua carta PT Tomei providências enérgicas PT Estou esperançoso solução

favorável PT Seja reservado PT Chopim Tavares de Lima Chefe de Gabinete”

Após o afastamento do diretor Grisi, assumiu o Dr. João Dias da Silveira,

estimado pelos professores. A sociedade riopretense, porém não aceitava as

mudanças colocadas em prática pelos novos educadores. Alunos não precisavam ir

de sapatos para a Faculdade, podiam usar chinelos. Os ternos eram dispensados e

permitia-se, inclusive bermudas. Os colaboradores descreveram as relações entre

sociedade e professores da FAFI:

“Embora fossemos bastante engajados, foi uma surpresa

o Golpe. Claro que esperávamos algum tipo de represália,

estávamos mexendo muito com a sociedade, mas o Golpe na

faculdade ninguém esperava.”(Prof. Hélio Leite de Barros)

“...sabe esses professores estrangeiros eram mais

conservadores, mais adequados a cidade de São José do Rio

Preto, na época, bastante provinciana que costumava olhar os

professores e alunos da Fafi com muita desconfiança. Cansei de

ouvir o seguinte conselho: “Olha você vai estudar na Fafi, mas

não se envolva com as pessoas de lá, lá o negócio é perigoso”.

Esse se aplicava, não aos europeus, mas aos professores

egressos da USP, que se trajavam de um modo diferente eram

mais “inconvenientes” eram menos formais, porém percebi que

lá tudo era coletividade, eu não era um alienígena, fazia parte

de um todo.”(Grigor Vartanian)

“...alguns professores eram os mais entusiasmados,

começaram a pregar a destruição da família, a revolta do

sistema familiar, falavam sobre como as mulheres deveriam

agir e vestir, havia algumas exageradas que começaram a usar

Page 181: Maria a Blaz Vasques Amorim

181 

 

vestidos curtos, mostrando a calcinha, sentavam na rua,

fumavam charutos, agrediam a sociedade. O povo, em geral se

revoltou, não queriam isso, não estavam acostumados.Houve

exagero por parte dos alunos, incentivados por professores que

pregavam a revolta dos filhos contra os pais... essas conversas

tolas de juventude mal orientada...

Sabe, aconteceu primeiro a intervenção em Rio

Preto porque esses professores e alunos já vinham marcados

pelo povo. Uns dias antes da revolução teve até passeata pela

família aqui, o povo estava revoltado contra a Faculdade

porque eles estavam pegando pesado justamente contra os

costumes da cidade, que eram costumes pacíficos... até em São

Paulo houve aquele enfrentamento entre a USP Maria Antonia

e o Mackenzie...”

Agora, a sociedade conservadora de Rio preto

contribuiu para que tudo acontecesse, ela se revoltou contra a

faculdade e apoiou a revolução.”(Coronel Godói)

“Rio Preto era o centro comercial da região, havia uma

elite, muita fazenda de gado, agricultura... as outras cidades

eram incipientes, como Tanabi, Jales, Votuporanga. Rio Preto

tinha intelectuais, poetas como o Jamil Almansur Hadad, o

Mauricio Goulart, grande historiador, o Rui Nazareth, um

médico e também político que se juntou a nós.

Não entramos muito em contato com a

população... a não ser com nossos alunos. Com eles íamos

tomar sopa depois das aulas, toda noite, era um

relacionamento maravilhoso, éramos os mentores, não só

intelectuais, mas de tudo, de hábitos... começamos a mostrar a

liberdade com responsabilidade... era natural que fosse

diferente dos costumes da cidade... tínhamos uma formação

diferente... “(Profa. Sara Rotenberg)

Page 182: Maria a Blaz Vasques Amorim

182 

 

“Esses professores vieram para Rio Preto trazendo

muitas novidades. Nesse período o prefeito era o Dr. Andaló e a

cidade passava por um desenvolvimento tremendo. Nesse

primeiro momento, a Faculdade ainda municipal, esses

professores foram acolhidos, a elite ficou entusiasmada por ter

com quem conversar, afinal eram estrangeiros, algumas vezes o

salário deles atrasava, mas sempre tinha alguém para ajudar,

como o Quincas Pereira, por exemplo. Com a estadualização a

proposta inicial da Faculdade foi mudando: era necessário com

que se conversasse a respeito de tudo, se refletisse sobre todos

os problemas e que se colocasse as diversas faces deles, isso foi

gerando novas atitudes na geração jovem, nos alunos. Não

havia mais dogmas, podíamos discutir e encontrar nossa

própria resposta, muitas vezes ela coincidia com respostas já

estabelecidas, outras não. Os pais perceberam que seus filhos já

não eram tão religiosos, falavam sobre coisas que antes não

eram abordadas... isso foi incomodando. Os professores

também tinham suas opiniões políticas e como qualquer

cidadão comum tinham o direito de debatê-las fora da

Faculdade, as discussões aço teciam fora da sala de aula

também. Isso foi criando um mal estar e de repente a sociedade,

à qual pertence a elite, percebeu que aqueles professores iam

criar problemas para ela. Os questionamentos sobre

organizações, entidades, voto, incomodava muito.” (Profa.

Nilce Lodi)

“Pelos jornais nos criticavam, não aceitavam

convites para nada, criticavam nossas aulas e até influenciaram

o bispo auxiliar de Rio Preto que começou a fazer campanha

contra nós. Quando esse bispo soube que eu era católico

mandou me chamar ao palácio episcopal para questionar as

leituras que eu havia indicado aos alunos, imagine, ele estava

uma fera, pois entre os textos estava Voltaire. Naquela época a

Igreja ainda tinha o Index de Livros Proibidos e dentre eles

Page 183: Maria a Blaz Vasques Amorim

183 

 

constavam os textos de muitos filósofos importantes. Agora,

como deixar de estudar esses autores tão importantes com

meus alunos? Nem pensar!” (Prof. Orestes Nigro)

“Claro que isso deve ter incomodado, e muito, setores

mais conservadores da cidade. Imagino que essa convivência

tão democrática deva ter sido o fator principal da intervenção

militar que ocorreu na cidade em 64. O que não é de se

espantar, pois em todos os lugares onde havia movimentos

culturais semelhantes aos de Rio Preto deu-se reação

semelhante por parte dos militares. Nós aqui em São Paulo, em

64, tivemos o nosso teatro fechado e fomos exilados. Eu mesmo

estive na Bolívia com o Guarnieri.”(Juca de Oliveira)

“Se você tem uma cidade como Rio Preto, no

interior, conservadora, agrícola, ligada à produção de café, à

criação de gado, menos industrializada que Ribeirão Preto, e

nela surge um movimento cultural de esquerda, muito nítido e

atuante, é claro que para os conservadores poderia, quem sabe,

haver alguma ligação desse movimento com as Ligas

Camponesas, com o Araguaia! Para o delírio deles qualquer

coisa servia...”(Juca de Oliveira)

Para refletir sobre a relação entre professores que vieram da USP para a

FAFI e a sociedade elitista riopretense, creio que pode-se recorrer ao livro de Norbert

Elias e John Scotson “Estabelecidos e Outsiders”.

O texto de Elias e Scotson é a respeito de um estudo realizado na

comunidade Wiston Parva, na Inglaterra, onde os autores empreenderam uma

reflexão teórica que provocou mudanças nos rumos da teoria social contemporânea,

sobre os tópicos referentes às desigualdades sociais e das relações de poder delas

decorrentes.(MICELI, 2000)

A comunidade de Wiston Parva apresentava no seu interior uma clara

divisão. Havia dois grupos: Os “estabelecidos”, moradores no local de longa data e

Page 184: Maria a Blaz Vasques Amorim

184 

 

os “outsiders”, um grupo novo de residentes. Sendo assim, nessa comunidade

observou-se a situação de “estabelecidos- outsiders”. Ou seja, o grupo estabelecido

atribuía a seus membros qualidades superiores excluindo os “outsiders” e o controle

social era mantido através de fofocas elogiosas ou depreciativas. A peça central dessa

figuração é um equilíbrio instável do poder.

A superioridade de forças do grupo “estabelecido” baseava-se no alto

grau de coesão de famílias que se conheciam há duas ou três gerações, em contraste

com os moradores recém chegados, que eram estranhos não apenas para os antigos

residentes como também entre si. Essa falta de coesão era usada para excluir e

estigmatizar os “outsiders”. “Assim, a exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo

grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse sua

identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros no seu lugar”.(ELIAS

e SCOTSON,2000,p.22)

A partir do livro pode-se encaminhar comentários sobre os

acontecimentos em Rio Preto. Os estabelecidos queriam uma universidade, não para

mudar, e também não procuravam por educação de ponta. Ela teria três funções

específicas: dar créditos na política a alguns de seus “inventores”; proporcionar

emprego a um grupo de professores de famílias antigas da cidade e que lecionavam

apenas em escolas secundárias; permitir que, principalmente, as moças da sociedade

não precisassem sair da proteção da família e se aventurar a cursar a USP em São

Paulo.

O governador Jânio Quadros com a institucionalização frustrou tais

expectativas. Trouxe para Rio Preto os “outsiders”, um grupo de professores que

encarava a educação como forma de mudar as relações sociais existentes no país, e

que em Rio Preto eram muito bem estabelecidas. Em um primeiro momento tentou-

se excluir aqueles indivíduos, até mesmo pela execração pública através de jornais.

A peça central de estabelecidos-outsiders é um equilíbrio instável de

poder, com as tensões que lhe são inerentes. Um grupo só pode estigmatizar o outro

com eficácia se está bem instalado em posição de poder das quais o grupo

Page 185: Maria a Blaz Vasques Amorim

185 

 

estigmatizado é excluído. Segundo Elias e Scotson, na mecânica da estigmatização é

necessário considerar o papel que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre

outros e de seu próprio status como membro desse grupo. Os membros dos grupos

“outsiders” são tidos como não observantes das normas e restrições dos grupos

“estabelecidos”. A sociedade e os professores de Rio Preto, assim como as

instituições públicas, nesse caso o delegado e igreja, uniram-se contra os professores

que vieram da USP e que estavam tentando quebrar normas e restrições

estabelecidas na cidade.

Os professores da cidade, aqueles que pretendiam um cargo na FAFI faziam

parte da elite e achavam que a faculdade deveria ser para eles, auxiliaram os

militares, entregando colegas e alunos, pois assim poderiam ficar com os cargos que

almejavam.

Outrossim, parece que os professores uspianos não se preocupavam em ser

outsiders, em alguns momentos das narrativas isso aparece. Quando eles falam a

respeito da escola que queriam implantar em Rio Preto em nenhum momento dizem

que procuraram saber que tipo de aluno estudava lá, quem eram seus pais... Se os

“estabelecidos” não aceitavam os uspianos, estes não se preocuparam em procurar

saber o que aquela população esperava de uma Faculdade. As narrativas sobre como

viam o trabalho na faculdade, não mostram a preocupação de serem aceitos pela

elite, pelo contrário, eles tinham consciência de seu conhecimento, enquanto a parte

da sociedade com mais recursos financeiros era ignorante. O importante era

desenvolver uma Faculdade de ponta e eles acreditavam que eram plenamente

capazes de fazê-lo.

“Fui para Rio Preto em 1958. Quase todos os professores

de lá queriam formar uma escola com características bem

brasileiras, queríamos nos livrar dessa coisa européia e buscar

as raízes para uma formação brasileira, como pensava o Darcy

Ribeiro que a gente conheceu muito, assim como a turma do

Ceará... elaboramos, então um plano de escola e convidamos

todos que quisessem se agregar. Éramos sonhadores, idealistas.

Page 186: Maria a Blaz Vasques Amorim

186 

 

Todos os professores da Filosofia, Letras e Pedagogia se

agregaram... o Norman, o Orestes, Cantoni, entre outros... o

pessoal da Biologia, Zoologia, enfim da História Natural não

aceitavam nossas propostas. Começamos a trabalhar cada um

no seu setor...” (Profa. Sara Rotenbetg)

“Sabe, o trabalho em Rio Preto era estimulante,

professores de nível muito bom querendo criar uma educação

diferenciada. O Casimiro Reis Filho, o Orestes, o Azzi, o

Cantoni, o Lövy, o Traugtenberg, a Sara, esta última tem uma

história a parte, sofreu muito... o Casimiro era espírita... um

espírita de esquerda... é até engraçado! Ele era um cara bom, os

espíritas são geralmente bons, o que não é o caso dos

protestantes, posso falar isso porque minha família é

protestante... conheci muitos espíritas bacanas, humanos,

generosos.” (Prof. Hélio leite de Barros).

“É uma pena que a elite de Rio Preto não pensasse no

espírito da Universidade, que é a unidade na diversidade.

Ninguém pensou: - Vamos escutar a todos, vamos ver todas as

doutrinas... poucas pessoas pensaram assim, e essa elite era

culta, esperava-se outra posição.

Enfim, não entendo o que poderia ter provocado esse

olhar tão agressivo de desconfiança para Rio Preto. As meninas

do nosso grupo eram taxadas de melancia, verdes por fora e

vermelhas por dentro. Nosso comportamento ao freqüentar um

barzinho que depois virou uma casa de chá chamada “Luar de

Agosto”, por causa do filme do Marlon Brando, os agredia...

achávamos que ficar andando de lá pra cá no footing já era um

negócio ultrapassado. Nossos hábitos foram mudando e isso foi

visto com muita reserva, afinal estávamos quebrando uma coisa

que já estava estruturada... aquela vidinha pacata estava se

alterando... era uma sociedade provinciana, cristalizada. Acho

Page 187: Maria a Blaz Vasques Amorim

187 

 

que quando criaram a Faculdade não pensaram onde ela ia

chegar.”(Profa. Nilce Lodi)

“Com certeza, as novidades foram criando a

desconfiança. A elite se perguntava: “O que será que trouxemos

para dentro de casa?” e aí não tinha mais retorno.”(Profa. Nilce

Lodi)

“O Orestes era uma pessoa muito avançada para sua

época, era um professor com tendências socializantes, agindo

abertamente dentro da faculdade, aplicando um tipo de ensino

diferente, democrático, sempre estimulando os alunos a se

inteirarem dos problemas sociais e políticos da cidade, do

estado e do país. O professor Orestes não era militante político,

não era comunista. Apenas levou a idéia de democracia para

dentro da escola, o que fascinou os alunos, que antes eram

orientados segundo princípios tradicionais e pouco

estimulantes. Era uma loucura! Samba... discussões políticas,

teatro político... Violão, saraus! Almoçávamos com os alunos,

conversávamos sobre teatro, técnicas de interpretação,

Guarnieri falava sobre dramaturgia, sobre autores,

Stanislavsky, “A Mandrágora”, Maquiavel e eles

adoravam.”(Juca de Oliveira)

Penso também que a sociedade elitista de Rio Preto cedo se decepcionou com

a Faculdade. Que tipo de professores universitários eram aqueles, tão opostos aos

catedráticos e mestres que conheciam de outras Faculdades como a USP, por

exemplo? Pela descrição de Yara Attab pode-se perceber como esses professores

passaram a ser vistos: “A maioria, além de agnóstica, era jovem, descuidada com a

aparência e muito agressiva”.(ATTAB.1973)

Os professores responderam também, publicamente, aos artigos publicados

contra eles.56 O embate se estabeleceu então. De um lado professores e alunos da

                                                            56 Ver os artigos no Anexo 3 

Page 188: Maria a Blaz Vasques Amorim

188 

 

Pedagogia e Letras, do outro, professores da História Natural, políticos e autoridades

de direita, além da elite da sociedade riopretense.

Antes do Golpe, sabe-se hoje, o trabalho de alguns professores vinha sendo

observado pelas autoridades de Rio Preto. Sabe-se também que o Golpe Militar

vinha sendo gestado desde Getúlio, porém professores da FAFI não esperavam que a

intervenção acontecesse em Rio Preto logo no dia 1º. De Abril de 1964, o que não era

o caso do Coronel Godói:

“Alguns dias antes do Golpe me chamaram na

corporação. Entrei numa sala e lá estavam reunidos vários

oficiais, o delegado regional e o coronel. Estavam justamente

planejando... eu não diria um ataque...bem, entrarem na

Faculdade e prenderem os alunos e professores, era sabido que

nos últimos 3 ou 4 meses esses indivíduos haviam se

entusiasmado com o Governo Goulart, começaram a fazer

comícios, teatro, todos apoiando o caminho que o Goulart

estava tomando, esse negócio de reforma agrária, diziam que

alguns professores eram comunistas, não sei se eram ou não,

mas as coisas estavam fervilhantes...” (Coronel Godói).

Para os professores e estudantes da Letras e Pedagogia a surpresa foi enorme:

“Aí veio a revolução... 1964... Eu lecionava em Ibirá.. 5

ou 6 horas da tarde do dia 1º. De abril fui preso. Fui detido com

o Orestes e com a turma toda. Fiquei preso uns 20 e tantos

dias... não fui torturado, não aconteceu uma coisa mais grave...

houve um período de tensão e aí sai da cadeia.” (Edson

Guiducci)

“Bem, prenderam todo mundo, depois vieram buscar os

professores assistentes para dar depoimento, como eu não me

encontrava na Faculdade naquela hora fui até a delegacia

depois. Aguardei das 4 até as 7h para ser atendida junto

com outros professores assistentes.

Page 189: Maria a Blaz Vasques Amorim

189 

 

Quando fui ser interrogada, o delegado fazia a pergunta

e ele mesmo dava a resposta. Os assistentes não ficaram presos,

mas os professores sim, alguns nem voltaram como o Cantoni,

,o Penteado e o Cunha, este último era da História Natural, o

único que era diferente dos outros. Ele era carioca, declarava ser

do partido comunista... no fim todos os professores que foram

presos perderam o emprego.”

“Embora fossemos bastante engajados, foi uma surpresa

o Golpe. Claro que esperávamos algum tipo de represália,

estávamos mexendo muito com a sociedade, mas o Golpe na

faculdade ninguém esperava. “ (Prof. Hélio Leite de Barros).

A intervenção foi rápida e certeira. Inicialmente, no dia 1º. De Abril foi aberta

uma Sindicância Policial que se transformou em 13 de outubro de 1964 em Processo

Crime e posteriormente, em 11 de janeiro de 1967, em Processo Militar, este último

enquadra os professores no artigo 9º. e 12º. Da Lei 1802. Tomou posse como diretor

da Faculdade um Juiz de Direito da cidade e as denúncias se avolumavam. A

intervenção foi vista da seguinte maneira pelo Coronel Godói:

“Agora aqui, como havia só uma faculdade a polícia

teve que agir mesmo. Tinha um agitador, o Cunha, esse era um

dos mais agitadores... tinha o Orestes, mas esse não era tanto,

não se expunha muito... eles agiam dentro da própria sala de

aula aconselhando os alunos a fazer isso ou aquilo... o

comandante da polícia dessa época era o Eduardo Monteiro,

que nós chamávamos de Bitu. Sabe, no ano passado teve um

desfile em São Paulo e ele desfilou montado num cavalo. Ele é

muito bom, muito consciencioso, não houve violência aqui, não

machucaram ninguém, só prenderam e deixaram a policia civil

resolver o problema.

“Na civil tinha um delegado chamado Tácito Pinheiro...

esse era meio complicadinho, causou toda essa situação política

Page 190: Maria a Blaz Vasques Amorim

190 

 

aqui, agressões, prisões... as agressões foram causadas pela

policia civil, a militar não interveio, não.

Esse negócio de bater na porta de sujeito, tirá-lo de casa,

prender, bater, matar, eu sou contra... sei que houve isso no

movimento revolucionário, mas não há revolução que não

tenha violência de ambas as partes, temos até o caso de um

tenente que foi mandado para prender um grupo de terroristas

que estava no Vale do Ribeira com o Lamarca... quando os

terroristas conseguiram pegar os militares, esse tenente propôs

um acordo, pediu para soltar os companheiros que ele ficava de

refém, eles soltaram, mas o que fizeram com o coitado... as

maiores barbaridades, mataram ele aos poucos, castraram o

pobre...”(Coronel Godói)

Professores e alunos presos têm outra visão:

” O pessoal de direita, que nem de direita podemos

chamar porque eles não eram nada, foram apenas oportunistas,

se reuniu e aproveitou a oportunidade, o Daud era o principal

denunciante e já ates do golpe vinha se reunindo com o Tácito

Pinheiro Machado, um delegado geral da cidade que foi uma

figura fundamental na invasão, ele estava macomunado com o

juiz Duarte, que “coincidentemente” foi ser o diretor da

faculdade... bem feito para o Daud que queria ocupar esse

cargo.Havia uma aluna, Yvone de Moura Campos que também

denunciou os professores e colegas... tudo por despeito. Ela era

medíocre.”(Prof. Hélio Leite de Barros)

“Até hoje não entendo esse medo da sociedade,

dos militares... talvez fossem as idéias, o manifesto dos

professores em defesa da escola pública...esse manifesto foi

muito divulgado e talvez tenha chamado a atenção.

Não sei, pode ser que alguém da elite ou professores

descontentes possam ter procurado alguém, mas não sei, houve

Page 191: Maria a Blaz Vasques Amorim

191 

 

até uma disputa entre um professor que depois veio a ser nosso

diretor, o Antonio Bento Coelho, ele não era professor na

Faculdade na época, mas pegou um gancho num artigo do

Casemiro e começou um debate, ou melhor, uma briga. Eu já

era assistente do Casemiro e disse a ele que não gostava dessas

brigas pelo jornal. Além do mais, era uma discusão absurda,

como o Casemiro podia ser comunista se ele era espírita “roxo”.

Eu sou católica e ele sempre me respeitou... uma discussão sem

sentido, ele era um homem voltado para o ser humano e pra

Deus. As pessoas nem sabiam o que era comunismo.” (Profa.

Nilce Lodi)

“Quando fui presa, meu pai que era político e

tinha seus contatos não me deixou ficar muito tempo na cadeia.

Repito, não fiquei traumatizada por ter sido presa, meu trauma

foi ver que nós tínhamos um negócio tão bem feito para mudar

o mundo radicalmente, um modelo tão especial, não ter dado

certo. O diretor que assumiu a faculdade, um tal de José Duarte

conhecido como “carrasco da Ilha Grande”, ajudou a repressão,

ajudou entregar todo mundo, nem pensou nos alunos. Horas

depois do Golpe os interventores estavam lá em Rio Preto, não

tinha militar, mas quem estava lá, estava a mando dos militares.

A própria cidade não nos apoiou, achavam bom, para eles nós

sempre fomos alienígenas. Teve uma colega, a Yvone Mourão,

que denunciava todo mundo, o Professor Daud... essas pessoas

nem me conheciam direito e me denunciaram... denunciaram

professores... eles queriam o lugar deles na faculdade... tanto

que depois o Daud virou professor e a Yvone também... acho

que se aposentou na UNESP.Era pura inveja! Além da inveja,

tinha o delegado Tácito de Pinheiro Machado, que queria fazer

carreira... até entendo o lado do Daud e do Tácito, mas a

Yvone... uma aluna, que teve professores como aqueles da USP,

ser reacionária... não entendo.

Page 192: Maria a Blaz Vasques Amorim

192 

 

O nome que dou para aquele acontecimento de 64

é Golpe. Foi um Golpe mesmo... diziam que o país estava sendo

invadido por comunistas, uma grande desculpa, o que eles

queriam era tomar o poder... “(Maria de Lourdes Cápua)

“Então aconteceu a Revolução de 31 de março.

Pouco tempo antes, em janeiro de 1964, eu havia ido numa

reunião da UEE (União Estadual dos Estudantes) na região de

Campinas e em meados de fevereiro fui à São Paulo num

encontro na Praça da Sé e quando estávamos chegando lá

encontramos a polícia. Houve tiros, confusão e o grupinho de

Rio Preto de dispersou. Voltamos para Rio Preto, demoramos 2

ou 3 dias para chegar, ficamos com receio...aí veio a Revolução

e ficamos com receio de falar sobre esses acontecimentos dentro

da Universidade, ficou um clima meio de pânico lá. Alguns dias

depois um policial civil bateu na minha porta... eu não estava

em casa, então no outro dia fui falar com o delegado, o Doutor

Mariano. Perguntei o porquê da ida do policial à minha casa,

não havia matado ninguém. O delegado disse que era um

jovem líder, instigador de jovens. Fui liberado, mas no outro dia

a polícia veio com uma viatura e fui preso. Não fui nem para o

presídio, fiquei na cadeia mesmo e lá estava também o Pedro

Bonilha. Ficamos presos na delegacia cerca de uma semana, de

lá nos transferiram para a cadeia perto do cemitério. Só tinha

preso político e ficaram ameaçando de nos mandar para São

Paulo.”(Grigor Vartanian)

“O desenvolvimento e as inovações curriculares

que estavam sendo processadas foram, abruptamente,

interrompidas pelo Golpe Militar de 1964, em que a repressão

iniciada à nível nacional, foi arbitrariamente executada pela

autoridade local. Em Rio Preto, por exemplo, o delegado

aceitava denúncias anônimas, levando-o a aprisionar

inicialmente membros do corpo docente, e, mais tarde, do

discente.

Page 193: Maria a Blaz Vasques Amorim

193 

 

Dessa perseguição, em parte anticomunista, em parte

simplesmente ressentimento local contra uma Faculdade

repleta de “bárbaros” da Capital, resultou a demissão de vários

colegas e do desmembramento do departamento de Pedagogia.

...depois da Revolução de 64 fui para a Venezuela

trabalhar numa escola rural... quando voltei foi que fizemos

Direito em Uberlândia... nunca ninguém soube lá que eu já era

professora universitária...

Havia um pessoal de direita lá em Rio Preto, um delegado que

era um... um grupo do contra...tinha sido tão difícil o Goulart se

tornar presidente e olhe que ele cercou-se de pessoas muito

capazes, o Almino Afonso que era um grande pensador, o

Paulo Freire... eram pessoas que como nós queriam mudar o

Brasil, a Reforma Agrária que já estava sendo aplicada em toda

a América Latina, mas ainda era incipiente no Brasil... o

Estatuto da Terra que era super importante... a entourage do

João Goulart era... era a mudança... era o desejo de igualdade...

Agora, como quebrar uma hierarquia militar, uma estrutura tão

enraizada? Só se quebra com uma revolução, aí se quebra o

pensamento e o pensamento é o estímulo para poder fazer...

infelizmente não estávamos preparados...os estudantes

queriam, nós queríamos uma maneira mais igual de viver , de

estudar...A Universidade estava querendo que todos tivessem

oportunidades, a formação que dávamos formava pessoas

altamente gabaritadas e sers pensantes... só que nem todos

pensavam assim e feriu-se a Constituição.... nós tínhamos que

reagir... porém, dentro da faculdade ninguém conversava com

ninguém, sabíamos que as paredes tinham ouvidos...

conversávamos com os gestos, os olhos... havia tantos dedos-

duros... começou de fora e entrou na Faculdade... o turco Daud

era terrível, pessoas não formadas queriam tomar a faculdade

Page 194: Maria a Blaz Vasques Amorim

194 

 

só porque tinham ajudado a fundá-la, claro que em benefício

próprio...”(Profa. Sara Rottenberg)

“Sei que da FAFI, alguns poucos professores, lembro-

me do Orestes Nigro e do Eduardo Cañizal, e talvez uma dúzia

de estudantes ficaram presos, mas não na prisão comum, mas

num edifício administrativo contíguo a esta, de construção

recente e que não estava sequer mobiliado. Passávamos os dias

a fazer música, jogar cartas e dominó, mas com poucas leituras

e conversas sérias. A alimentação era assegurada por familiares

e amigos que a vinham trazer, e como os guardas não levavam

suas funções muito a sério (“Os senhores ainda vão ser nomes

de ruas em Rio Preto”, disse um deles), ficávamos sabendo o

que se passava lá fora, e tivemos a possibilidade de transmitir

recados e até de enviar cartas.

Houve alguns interrogatórios por um delegado,

perfeitamente educado e até entediado, no sentido de já ter se

convencido de que eram absurdas as acusações que corriam

pela cidade e que nos imputavam, isto é que estaríamos

preparando uma intentona comunista armada, afirmando a

rádio local que no sótão da minha casa tinha sido encontrado

um depósito de armas...

Durante toda esta fase, o único ato de intimidação que

houve foi um dia de prisão solitária que passei a mando de um

sub-delegado que “não ia com a minha cara”, e cuja ordem foi

logo anulada. Não houve qualquer tortura, nem ameaça de

tortura. Fui transferido para o DOPS, provavelmente, porque

havia uma idéia fantasmagórica de eu ser um agente

internacional comunista; a transferência fez-se numa viatura da

polícia, com o tal sub-delegado à paisana e dois policiais

fardados, os quais estavam visivelmente constrangidos com a

encenação toda e até me pagaram uma bebida numa

parada...”(Prof. Franz Heimer)

Page 195: Maria a Blaz Vasques Amorim

195 

 

“Claro que não havia nada de subversivo ou de

guerrilha na faculdade. Foi uma esquizofrenia, uma psicose,

uma loucura o que aconteceu. Não existia nenhum movimento

organizado na Faculdade para subverter a sociedade”(Juca de

Oliveira)

“Aí veio a Revolução! Fui acusado de ser comunista.

Nunca li Marx e nem tenho intenção de ler. Nunca fui teórico.

Para mim política é um negócio que corre na pele. Quando fui

preso e o delegado perguntou se eu era comunista eu disse a ele

que não sabia bem o que era. Falei que politicamente não era,

pois não pertencia ao partido e nunca havia lido nada sobre

isso, nem que eu quisesse ser comunista poderia afirmar isso,

para ser comunista tem que se conhecer a teoria, os manifestos e

eu não conhecia. Disse a ele : o que sou doutor é um

inconformista e dessa maneira sou capaz de fazer coisas piores

que os comunistas. Se souber de alguém que está explorando,

escravizando as pessoas o senhor me dá uma arma que vou lá e

mato. O senhor quer colocar aí que sou perigoso, coloque, agora

comunista não sou.”(Pof. Orestes Nigro)

“Durante todo o processo diziam que o Cantoni era

comunista, que comunista que nada, ele era fabuloso, mas o

sistema não tinha alcance para entender isso. A própria policia

de Rio Preto não sabia o que estava fazendo. O Heimer deu um

baile no delegado que perguntou a ele se ele se considerava

subversivo. Ele pediu ao delegado que definisse subversão. O

delegado não soube fazê-lo e o Heimer disse que ele estava

falando besteira, isso lhe valeu muita pancada. O Heimer foi o

único que apanhou lá, muito. Ele enfrentava a policia e daqui

acabou indo para o Chile, depois com o Pinochet... deve ter

voltado para a Alemanha.”(Prof. Orestes Nigro)

“Depois que saí da cadeia quase fui preso novamente

porque resolvi ir até a Faculdade buscar minhas coisas. Assim

que cheguei lá foi uma choradeira, alunos me abraçando... e aí

Page 196: Maria a Blaz Vasques Amorim

196 

 

aconteceu uma coisa muito triste. Havia um funcionário que eu

levei para a faculdade, pois ele era motorista de táxi e estava

passando por dificuldades... arrumei emprego para todos os

filhos dele, pois bem, assim que me viu na faculdade chamou

uma verdadeira “Rota”, que me levou para a sala do novo

diretor, que era um Juíz de Direito chamado José de Castro

Duarte, conhecido como “O Carrasco da Ilha Grande”. Na sala

ficaram o Aristides, os policiais e o diretor que começou a gritar

comigo dizendo que eu havia sido demitido para desinfetar a

faculdade, que não aparecesse mais lá... eu disse que não havia

recebido nenhuma restrição de movimentos, que apenas havia

ido buscar minhas coisas... lá havia muitas coisas, livros,

jornais franceses que eu assinava, toda minha vida profissional.

Ele respondeu que no sábado próximo enviaria tudo para

minha casa, que eu não pisasse mais lá, se isto acontecesse seria

preso e enviado para o Deops em São Paulo e o Aristides

assistindo tudo, não moveu um dedo... “(Orestes Nigro).

A maioria das pessoas que foram presas mostra decepção com os rumos da

escola hoje. Muitos mostram nas narrativas um anseio utópico na realização de

sonhos que foram considerados possíveis e não se realizaram. Essa perspectiva

implica compreender que o momento atual não é o desejado e remete a uma

proposta utópica, de fato, quando buscam o ideal num passado desaparecido, as

utopias levam consigo a marca do tempo. Utopias são “respostas não somente a

perguntas sobre a condição humana mas ao que não foi e poderia ter

sido”.(SZACHI.1972)

Quando nossos colaboradores falam do que foi e do que poderia ter sido a

Faculdade a mágoa está quase sempre presente, assim como a desilusão e o

sentimento de impotência. A educação, hoje, para eles é péssima.

“Eu fui demitido num segundo grupo por não ter

completado a minha tese de doutoramento. Poderia ter entrado

com um requerimento pedindo mais prazo para completá-la,

Page 197: Maria a Blaz Vasques Amorim

197 

 

pois era impossível trabalhar numa tese num clima tão instável.

Estava, no entanto, tão deprimido pelas demissões e prisões dos

meus colegas e pela destruição de tudo que estávamos tentando

criar em nosso departamento. Por isto, resolvi sair do país e

procurar trabalho aqui, nos Estados Unidos.”(Prof. Anoar Aiex)

“Rio Preto foi a primeira faculdade que sofreu

intervenção e creio que isso aconteceu porque eles mediram

nossa qualidade... não era interessante para eles... formávamos

acadêmicos pensantes e isso não era interessante para a direita,

não éramos uma escola clássica com formação clássica,

estávamos muito a frente de nosso tempo, não formávamos

aberrações acadêmicas como essas que estão por ai. Não basta

saber ler e escrever... tem que saber pensar, criticar, agir e isso

nos fez servir de vidraça... os medíocres tinham ódio de nós.

Depois de nós veio a mediocridade como o Zeferino Vaz (Nhá

Zefa) lá da PUC que andava com a braguilha aberta... Rio Preto

não estava preparada, não haviam classes sociais lá, só uma

elite e é assim até hoje.”(Profa. Sara Rottenberg)

“...tínhamos certeza de que íamos ser grandes... de

repente... caiu tudo por terra. Acho que esses professores

tinham um grande projeto... até hoje quando encontro um

colega daqueles tempos ouço: -Ah que saudade! Foi uma coisa

que marcou todo mundo.

Nós tínhamos formação política... Cho que ia além da política,

era ideológica... era uma vontade que o Brasil desse certo, que

progredisse.. e a revolução podou todo mundo.

A educação é uma decepção... o aluno hoje é um estranho... falei

para a Neli, minha mulher, que embora tenha capacidade, era

hora de me aposentar.. nãoo tenho mais acesso ao aluno... a

escola está indo do jeito que Deus dará, vejo isso com muita

tristeza, leio jornais, não se cobra nada, não existe um plano

definido... sou muito pessimista em relação ao futuro que nos

espera... não vamos ter mais bons profissionais, nem de nível

Page 198: Maria a Blaz Vasques Amorim

198 

 

médio capazes de movimentar uma máquina, de produzir

qualquer coisa... simplesmente virou uma bandalheira...isso é o

que tenho visto em sala de aula. Hoje você está dando aula e o

aluno está mandando torpedo para os outros, você não pode

fazer nada, se fizer a direção chama sua atenção... alunos

agridem professores e a diretora não faz nada... eu estou

totalmente descrente... sempre dei aulas em escolas boas... na

UNB, no Colégio Objetivo de Brasília, no Seta, aqui em Rio

Preto, escolas de alto nível, mas está tudo igual... um

caos.”(Edson Guiducci)

“Uma pena que a educação hoje esteja desse jeito...

foi decaindo...decaindo...as turmas na faculdade cada vez mais

apáticas, alguns alunos ainda bons e era por esses que os

professores eram estimulados... e a coisa continuou caindo

numa queda cada vez maior.

Acho que ainda há possibilidade de melhora, de

sair do buraco, existem profissionais sérios, comprometidos

com a educação e as coisas estão mais fáceis, os tabus vão sendo

derrubados.”(Profa. Nilce Lodi)

“Bem, depois do Golpe voltei para a faculdade e aí, a

única coisa que eu queria era terminar o curso o mais rápido

possível, doía ter aulas com o Coelho, um professor medíocre,

depois de ter tido grandes mestres.”(Maria de Lourdes Cápua)

As razões para o Golpe ainda não são claras para alguns colaboradores, que tentam

durante a narrativa encontrar justificativas para tal fato:

“Até hoje não entendo esse medo da sociedade, dos militares...

talvez fossem as idéias, o manifesto dos professores em defesa da

escola pública...esse manifesto foi muito divulgado e talvez tenha

chamado a atenção.

Não sei, pode ser que alguém da elite ou professores

descontentes possam ter procurado alguém, mas não sei, houve até

Page 199: Maria a Blaz Vasques Amorim

199 

 

uma disputa entre um professor que depois veio a ser nosso diretor, o

Antonio Bento Coelho, ele não era professor na Faculdade na época,

mas pegou um gancho num artigo do Casemiro e começou um debate,

ou melhor, uma briga.”(Profa. Nilce Lodi)

Já o Prof. Orestes Nigro tem uma explicação bastante objetiva para o

acontecimento do dia 1º. De Abril de 1964:

“Penso que as mais prováveis causas de nós termos sido as

primeiras vitimas foram que Rio Preto era na época um baluarte da

direita reacionária brasileira, tanto assim que ganhara o apelido de

Dallas paulista, lembre-se do assassinato de Kennedy. Era também

uma cidade geograficamente estratégica para mais fácil acesso às

fronteiras de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, como foram os

militares que preparam o Golpe de 64.... para completar Rio Preto

tinha na época as autoridades mais reacionárias do Brasil, prefeito Loft

Bassit, juiz da comarca José de Castro Duarte, e um delegado regional

de polícia ambicioso demais em termos de carreira, Tácito Pinheiro

Machado, que deitou e rolou durante a primeira fase repressora e

como prêmio tornou-se Delegado Geral de Policia, segundo cargo mais

importante na hierarquia da Secretaria de Segurança Pública. Enquanto

nas outras cidades da região as autoridades discutiam para depois

prender, Tácito primeiro prendia, para depois discutir. Por isto logo no

dia 1º de abril de 64, a cadeia de Rio Preto estava cheia de presos

políticos.”

A partir das narrativas percebemos como se formaram dois grupos

antagônicos na faculdade, aqueles da cidade que se julgavam habilitados para

compor o corpo docente da faculdade, que haviam nascido em Rio Preto, uma cidade

pioneira até na construção de uma faculdade e o outro, professores universitários,

segundo a visão da elite, tão contrários ao que eles esperavam de catedráticos e

mestres. As ideologias de cada um deles e como suas memórias foram construindo

suas identidades. Todos os professores fizeram questão de dizer que eram formados

pela USP, que depois, quando foram afastados e presos a qualidade do ensino caiu.

Page 200: Maria a Blaz Vasques Amorim

200 

 

Os alunos entrevistados apresentaram o mesmo argumento. Para a maioria desse

grupo de pessoas que entrevistei, o que existe é a FAFI e não a UNESP.

Na fala dos colaboradores ditos revolucionários está sempre presente a

frustração e o trauma de ver um projeto educacional tão bom ser desfeito . Muitos

choraram... mesmo após mais de 40 anos.

Page 201: Maria a Blaz Vasques Amorim

201 

 

PARTE VI

Venha ver, desta república

Crianças na cadeia pública

Em farrapos e a cor faminta

Venha, e creia que eu não minta,

Ver, desta geringonça

Famílias buscar abrigo

Atrás do “Mário Alves Mendonça”

Isto mesmo, atrás do campo do América.

(Desova Poética/Orestes Nigro)

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202 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início dos anos 1960 no acirramento das lutas políticas e da mobilização

nacional, houve a articulação de vários movimentos sociais que se envolveram em

diversas campanhas de caráter político e social. Havia reivindicações, no contexto

educacional brasileiro, de uma reforma universitária, uma vez que para docentes e

discentes das universidades brasileiras, esta refletia os problemas sociais da realidade

nacional. Em São José do Rio Preto havia uma Faculdade criada em 1955 que

congregava naquele momento diversosgrupos de movimentos sociais .

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto surgiu em

decorrência da expectativa que havia nos anos 50 em torno da possibilidade de

expansão do ensino superior no interior do Estado. No caso de Rio Preto, a

comunidade local desenvolveu ampla campanha, apoiada pela imprensa, em torno

da criação de uma universidade. Esses esforços foram contemplados a 25 de maio de

1955 com a Lei Municipal que criou uma Universidade para Rio Preto tendo como

sua primeira unidade universitária uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Esse ato, emanado do poder público municipal, contou com a concordância das

autoridades educacionais do Estado de São Paulo que prestigiaram, com sua

presença, a posse solene do Conselho Geral e da Diretoria Executiva da Universidade

ocorrido a 20 de agosto de 1955.

Essa faculdade,assim como outras do interior, as chamadas isoladas, pela

própria formação e por uma qualificação precisa adotadas, foram marcadas por uma

identidade entre a docência e a pesquisa na compreensão da necessidade da busca de

aprimoramento acadêmico. Associada a essa característica, essas escolas estiveram

fundamentadas no tripé que identifica a instituição acadêmica - a docência, a

pesquisa e a extensão de serviços à comunidade. Essas instituições, que foram

pioneiras na implantação do ensino superior público de qualidade no interior do

Estado de São Paulo, ficaram, desde sua criação, sob a administração da Secretaria de

Educação do Estado de São Paulo.

Page 203: Maria a Blaz Vasques Amorim

203 

 

Desde sua criação essas faculdades eram tidas como instrumentos de

preparação de quadros para exercer os papéis e funções necessárias ao

desenvolvimento e assegurar a ideologia dominante. Segundo Maria de Lurdes

Fávero, os grupos dirigentes do país têm, nesse momento, a convicção de que escola

(universidade) é um veículo privilegiado para o inculcamento e a preservação de sua

ideologia.

A universidade foi concebida para veicular a ideologia dominante, quando as

idéias progressistas tomam forma ou ameaçam romper este canal, para garantir o

controle, entra em ação o autoritarismo. Por isso, diz Antonio Muniz de Rezende,

“sabemos todos que na história da universidade brasileira houve sempre uma

tendência nítida ao autoritarismo centralizador” (1987, p. 10), quer seja oriunda de

seu interior ou do exterior.

Em Rio Preto, porém, o grupo de professores contratados para lecionar nessa

instituição, não só trazia o desejo de mudar a sociedade, como de transformar a

educação. Embora muitos desses professores declarassem não pertencer a nenhuma

ideologia, seja de esquerda ou direita, entre eles, com certeza havia o desejo de uma

revolução. A carta abaixo, enviada a Profa. Maria Edith Gamborgini por seu colega

Jamil Almansur Hadad, da China, demonstra como a educação era pensada então:

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204 

 

Page 205: Maria a Blaz Vasques Amorim

205 

 

Pensava-se em erradicar definitivamente o analfabetismo através de um

programa nacional, levando-se em conta as diferenças sociais, econômicas e culturais

de cada região. Em Rio Preto professores e alunos organizavam-se para alfabetizar

adultos, conscientizar trabalhadores através do teatro e das artes como um todo.

Havia uma nova proposta para a universidade, a esperança de justiça social e cultura

era o que movia tais indivíduos. Era a revolução pela educação. Em nenhum

momento levou-se em questão que as transformações propostas por eles poderiam

não agradar a elite local.

O período anterior, de 1946 ao princípio do ano de 1964, talvez tenha sido o

mais fértil da história da educação brasileira. Neste período atuaram educadores que

deixaram seus nomes na história da educação por suas realizações. Professores como

Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Carneiro Leão, Armando

Hildebrand, Pachoal Leme, Paulo Freire, Lauro de Oliveira Lima, Durmeval

Trigueiro, entre outros. Os que estavam em Rio Preto não foram menos importantes

nem menos capazes. Mauricio Traugtenberg, Orestes Nigro, Hélio Leite de Barros,

Anoar Aiex, Orestes Nigro, Sara Rottenberg, entre outros estavam preparados para

formar seres humanos esclarecidos, justos de conscientes de seu papel social.

Havia uma mobilização nacionalista no interior daquela Faculdade e a cultura

era encarada como um instrumento de transformação social e andou junto com a

política durante as décadas de 1950 e até o ano de 1964. A idéia da educação pela

cultura e a transformação que isso traria foi tão importante que em 1963, no I

Encontro de Alfabetização no Recife, compareceram 77 grupos de movimentos

sociais.(PAES. 1997)

A ditadura militar atingiu diretamente as universidades, impondo uma severa

intervenção e repressão. Muitos intelectuais foram perseguidos, exonerados,

aposentados compulsoriamente e exilados. Dentre as universidades que foram

atingidas mais diretamente pelo regime militar encontram-se a USP, UNICAMP,

UNIESP, FGV, UFMG e a FAFI. Na FAFI, por exemplo, funcionários foram

demitidos, diretores das unidades foram exonerados e nomeados interventores. Na

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206 

 

verdade a FAFI foi a primeira instituição a sofrer intervenção, no dia 1º. De abril de

1964.

Percebe-se, nas narrativas, a importância estratégica de São José do Rio Preto.

A cidade se localiza nas fronteiras entre os Estados de São Paulo, Minas Gerais e

Mato Grosso.

Outrossim, a sociedade riopretense, composta por uma elite que possuía em

seu bojo a maioria dos grandes cafeicultores da região, sentia-se incomodada com a

“modernidade” trazida pelos professores de São Paulo e pelas iniciativas de

alfabetização e conscientização do povo proposta por eles.

A intervenção se deu na faculdade porque ela possuía, nos cursos de Letras,

Pedagogia e Filosofia, um corpo docente profundamente ligado aos problemas

sociais da região, aí se incluindo a questão dos camponeses e operários. Esses

professores em conjunto com os alunos implantaram na Faculdade, além de grupo de

teatro, MPC, Centro Acadêmico, todos muito atuantes, um tipo de ensino muito

diferente do tradicional .

A Faculdade foi fundada em São José do Rio Preto por uma elite que queria

ocupar cargos na mesma e esse desejo não foi respeitado pelo governador Jânio

Quadros, que por ocasião da estadualização da faculdade, exigiu um corpo docente

que houvesse sido formado pela USP.

O ensino na Faculdade de São José do Rio Preto era inédito, lá os alunos, além

de aprender as disciplinas inerentes à cada curso, também se envolveram nos

problemas sociais, assim como os professores. A maioria deles era de esquerda e

conscientizada dos problemas que assolavam o país. Apoiavam claramente o

governo do Presidente João Goulart. Poderíamos afirmar que um aluno formado na

Fafi sabia “pensar”. A faculdade de São José do Rio Preto vinha sendo vista como

um modelo a ser seguido pela educação no Brasil e isso fez com que os militares, no

primeiro momento após o Golpe, interviessem na Faculdade, de maneira a acabar

com esse tipo de educação , que era contestadora, para implantar seu próprio sistema

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207 

 

de ensino, que não deveria formar pessoas tão esclarecidas que pudessem de alguma

maneira enfrentá-los.

Os professores da cidade, aqueles que pretendiam um cargo na FAFI, faziam

parte da elite e achavam que a faculdade deveria ser para eles, auxiliaram os

militares, entregando colegas e alunos, pois assim poderiam ficar com os cargos que

almejavam.

Os professores e alunos que foram presos na intervenção ficaram , na época,

com sentimentos de incredulidade, impotência e injustiça. Hoje, esses sentimentos

permanecem, acrescidos da tristeza por saberem que o tipo de educação que

propunham poderia ter resolvido inúmeros problemas sociais com os quais o Brasil

se depara hoje e ao perceber a educação brasileira classificada entre as piores do

mundo. Eles têm certeza da excelência do projeto educacional que pretendiam e

começaram a desenvolver desde 1957.

Com o Golpe Militar de 1964 as idéias desses profissionais foram eliminadas.

Assim se fez silenciar o ideal de expressão artística como denunciadora e

transformadora das injustiças sociais.

Durante a intervenção, foram presos os alunos: Pedro Bonilha; Edson Guiducci;

Edson Raposeiro; Grigor Vartanian; Murilo Farinazzo; Ari Neves; Rui Quirino

Guimarães; Nilo Sérgio Scrochio; Vladimir Moscheta; Mara Jorge Ramos; Eudete

Fochi e Maria de Lourdes Cápua; Aparecida Barbo Soler; Lederci Gigante, João Paulo

de O. Neto.

Os seguintes professores foram demitidos sumariamente: Mauricio

Tragtenberg; Wilson Cantoni; João Jorge da Cunha; José de Arruda Penteado; Sara

Rottemberg; Orestes Nigro; Norman Maurice Potter; Joacir Badaró; Newton Ramos

de Oliveira; Maria Edith do Amaral Garboginni; Franz Wilhein Heimer; Flávio

Vespasiano Di Giorgi; Casemiro dos Reis Filho; Hélio Leite de Barros; Jacb

Lebenzteyn; Mary Amazonas Leite de Barros; Jorge de Senna.

Page 208: Maria a Blaz Vasques Amorim

208 

 

Foram indiciados: Maria de Lourdes Heimer; Prof. Franz Wilhein Heimer;

Lederci Gigante; Prof. Flávio Vespasiano Di Giorgi, Profa.Maria Edith do Amaral

Garboggini; Prof. Orestes Nigro; Prof. Hélio Leite de Barros; Profa. Mary Amazonas

Leite de Barros; Prof. Newton Ramos de Oliveira; Prof. João Jorge da Cunha.

Foram denunciados: Prof. Franz Wilhein Heimer; Maria de Lourdes Heimer,

esposa do Prof. Heimer; Lederci Gigante, aluna; Prof. Flávio Vespasiani Di Giorgi;

Prof. Orestes Nigro; Prof. Hélio Leite de Barros; Mary Amazonas Leite de Barros,

Prof. Newton Ramos de Oliveira e Wilson Cantoni.

Após a intervenção, a doutrina da segurança nacional se instalou na

Faculdade de Rio Preto. Listas de Professores foram fornecidas às autoridades

policiais, professores simpatizantes do Golpe foram contratados para substituir os

que tinham sido cassados. Era o início do caminho para a transformação da FAFI em

UNESP.

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209 

 

FONTES ESCRITAS

Processo da Justiça Militar do 1º Distrito Naval da 4ª Zona Aérea contra o acusado

Franz Wilhein Heimer e outros contendo autos de apreensão, depoimentos, fichas

policiais, denúncias oferecidas pelo ministério público, depoimentos de acusação,

atas de fundação do GRUTA e do MPC , documentação que comprova a criação de

um Sindicato no Nordeste financiado pelos alemães, cartas solicitando espaços em

fábricas para apresentação de peças de teatro, listas de funcionários que trabalhavam

na Faculdade Isolada em 1964, cartas convocando o povo para a luta contra a

opressão, enfim toda documentação do processo acima citado.

Correspondência dos professores com amigos , colegas e autoridades.

Planos de aula, apostilas, material de alfabetização de adulto baseado no método

Paulo Freire adaptado para os camponeses da região.

Artigos de jornais da época, todos da região de São José do Rio Preto.

Peças de teatro

Letras de música - paródias

Fotografias.

FONTES ORAIS

Entrevistas com professores, alunos, funcionários e outros.

Page 210: Maria a Blaz Vasques Amorim

210 

 

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ANEXOS

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ANEXO I

As fotografias aqui inseridas não são meramente ilustrativas, porém, não pretendo

realizar um estudo iconográfico sobre as mesmas. Minha intenção é que possam

estabelecer uma aproximação maior entre os entrevistados e os leitores desse

trabalho. Foram cedidas pela Unesp de São José do Rio Preto e também se

encontram no site da Instituição.

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ANEXO 2

Os artigos a seguir foram publicados pela imprensa riopretense por ocasião

da fundação da Faculdade.

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ANEXO 3

Os artigos a seguir foram publicados nos jornais riopretenses. Trata-se da

altercação ocorrida entre professores da USP e da cidade sobre a Fafi. A partir do

momento em que essas discussões tornaram-se públicas a ruptura aconteceu de

maneira irreversível.

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ANEXO 4

A seguir estão as capas da sindicância, do processo crime e do processo

militar e o relatório de indiciamento e a denuncia do promotor público militar.

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