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MARIA OU A MENINA ROUBADA. Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa. 1ª. edição. In: Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro, 10/09/1852 a 18/02/1853.

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MARIA

OU

A MENINA ROUBADA.

Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa.

1ª. edição.

In: Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades.

Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro,

10/09/1852 a 18/02/1853.

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 295, 10/09/1852.

MARIA

OU

A MENINA ROUBADA1.

I

O ROUBO

Era a ultima hora do dia. O sol enfiando seus raios para outro horizonte, deixava após de si a

hora da saudade e da melancholia, isto é, a hora do crepúsculo, em que igual porção de luz, e igual

porção de sombras, discretamente misturadas formam esse suave composto, equivoco entre a noite e

o dia, doce mistura em que a luz se perdendo nas sombras e as sombras na luz, povoa o espaço de

uma agradável dúvida, de claridade e de trevas, de que tão voluptuosamente resulta essa mimosa hora

do dia tão cheia de saudades nos arcanos do amor, e tão cheia de melancholias nos mysterios do

coração.

Era pois quasi noite.

O passaro cantava a ultima parte de seu hymno quotidiano; porque todos os dias o passaro

entôa um hymno de amor, cuja primeira parte lhe escuta a aurora, e a ultima a primeira hora da noite;

e esse hymno é uma acção de graças, que todos os dias rende ao Creador: mas o hymno da creação,

que os passaros nunca mais esqueceram desde o primeiro instante em que apenas implumados o

modularam no Eden, não era a unica oblação, que, nessa hora de amor, erguia-se da terra até o

throno de Deos; não, que esses hymnos de amor, e de agradecimentos subiam involutos em

imperceptíveis nuvens de puros e suaves aromas, com que a flor de agradecida e de amante ia

perfumar o escabelo do Senhor.

A brisa, para não perturbar nem uma unica nota deste hymno tão suave, para não desviar

nem uma molecula deste perfume tão puro; respeitosa pousava suas azas azues sobre a gramma dos

valles, que parecia reverdecer ao seu toque regenerador. Era a primeira hora da noite.

1 O início da publicação do romance foi acompanhado da seguinte nota: “Começamos hoje a publicação do romance original, cujo titulo abaixo se lê, trabalho de uma penna já do publico bastante conhecida. Nosso empenho, d’hoje ávante, será de animar o talento nacional, offerecendo vantagens aos que se dedicarem as bellas letras, e mostrarem-se dignos dos louvores do publico e dos sacrificios que nos fôr possivel fazer (ainda que nos privemos de muito do que nos é necessario) em proveito de quem melhor os merecer.” In: Marmota Fluminense, n. 295 (10/09/1852). Obs.: Maria ou A Menina Roubada, inicialmente, foi publicado sem o nome do autor, que foi revelado no exemplar n. 297 (17/09/1852).

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Ao longe gemia melancholico o bronze sagrado, cujo som monotono perdia-se gemebundo

nas solidões do espaço. Ao longe, leitor, porque o narrador vos convida a uma praia, não longe do

Rio de Janeiro; e esse som deslizado por sobre a face lisa e serena dos mares vinha perder a sua

derradeira nota de vida nos ouvidos dos viandantes, que por ahi passavam, como um suspiro

saudoso. Era a hora da oração: soavam Trindades.

Era cedo; mas, ainda assim, a Praia-Pequena estava deserta como um paiz deshabitado. Com

effeito, de certa hora por diante ninguem por ali se atrevia a transitar; tal era o terror que naquelles

contornos espalhavam alguns desertores do exercito e da armada.

Ou de audaz se atrevendo a affrontar o perigo, ou ignorando as sanguinolentas gentilezas dos

salteadores diabolicos, montado em um possante macho, trazendo sobre a garupa uma menina, que

dirieis um anjo de belleza, por essa praia viajava ao cahir da noite um elegante mancebo.

A pressa com que o diligente animal escoava seus pés sobre a larga estrada, faria suppôr que

o mancebo temia algum desarranjo, por ali passando ao cahir da noite; ou que alguma pressa o urgia

a concluir a sua viagem. Elle buscava a cidade.

Tudo era silencio: o cavalleiro parecia absorvido em alguma idéa, que o occupava, ou em

alguma melancholia, que pesava sobre sua alma. Tambem sua innocente companheira nem um

monosyllabo articulava.

De repente, o écho de um tiro interrompe este silencio de morte. O cavalleiro, murmurando

um ai, tomba do animal ao chão, aonde fica estendido, para, elle mesmo, nunca mais levantar-se. A

menina, lançando um grito indefinivel, arrastada pelo cavalleiro, cahe com elle.

Algum crime se havia premeditado, e punha-se em execução.

II.

A Feiticeira.

Um pouco além do Engenho-Novo, sitio pouco apartado da cidade do Rio de janeiro, no

meio de uma cerca de espinhos, já velha, mal tratada, e cujos ramos dir-se-ia que uma unica vêz

foram dobrados, abria-se uma tosca tranqueira, que fechava mata-pastos, dormideiras, arrebenta-

cavallos, &c.; mas não obstante o desleixo deste pequeno campo, notava-se da tranqueira para o

centro, bordando uma pequena collina, um mal aventado caminho, tão coberto de capins e grammas,

tão obstruido de ramos, que ninguem acreditaria que fosse elle frequentado.

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Nesse lugar uma serra distava pouco da estrada.

Não obstante o desmazelo deste campo, e o apparente abandono de seu caminho, o narrador

convida o leitor para entrar á dita tranqueira, e trilhar o caminho que borda a pequena collina.

Cumpre porém desde já sabermos que esse pequeno monte, que tem ares de collina, nada mais, e

nada menos é que uma ponta de serra, que partindo della, e para elle voltando, formava um como

semi-circulo, abraçando em seu centro um valle circular, tão pequeno, que mais parecia uma cova

aberta pela mão do homem nesse lugar da serra; mas era, com effeito, um valle, cujo diametro

poderia ser de cem passos pouco mais ou menos. Entre a serra, e a ponta do semi-circulo, destacado

della, havia uma abertura, cujas parêdes, si fossem alcantiladas, mal dariam passagem a um cavalleiro:

esta abertura communicava este diminuto valle com o valle por onde serpeava a estrada do Engenho

Novo.

No meio deste pequenino valle deparava logo, quem o fitasse, com um cardume de arvores,

que formavam uma selvasinha não pouco basta: era depois que se penetrava. [palavra ilegível] selva,

que assomava uma pequena choupana, por demais acaçapada e occulta pela turma das arvores que a

rodeavam. Entremos ahi.

Esta pequena, e immunda choupana não tinha senão dous repartimentos, um quarto de

dormir e uma sala, que ao mesmo tempo servia de cosinha. Toda a mobilia consistia em uma velha

mesa, um estrado carunchoso, um mocho, uma caixa e um pote; no quarto havia um catre, e debaixo

delle tantas futilidades, tantas extravagancias e cousas tão caprichosas, que fariam rir a um

philosopho, e horrorisar a um supersticioso. Uma amostra desta ridicula fazenda.

Havia um cesto cheio de raizes e ramos seccos; havia outro cheio de terra, que, não só pelo

cheiro, mas tambem por alguns pedaços de ossos, parecia terra cavada em algum cemiterio; n’outro

cesto estavam alguns ossos, humanos, entre os quaes sobressahiam tres caveiras; uma trança de

cabellos, ainda em bom estado, uma mão humana completamente mirrada, e tantas outras cousas

iguaes, que ennumeral-as seria fastidioso, e quasi infinito.

A unica habitadora desta asquerosa e medonha habitação, era uma negra velha, alta, e magra

como uma palmeira; seus cabellos já não pouco brancos, suas faces em demasia rugosas e cahidas,

seus olhos pequenos, fundos, e ensanguentados, suas longas orelhas repuxadas, seu aspecto

repugnante, tudo emfim, tudo dava a esta creatura um semblante assustador, terrivel, e diabolico.

As oito horas o tropel de um cavallo quebrou o silencio que reinava em torno desta habitação

medonha. Quem quer que era apeou-se á porta e bateu discretamente. A furia (pois outro nome mal

póde assentar em um tão feio demonio), a furia abriu a porta. Um homem, não feio, não

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desengraçado, soffrivelmente vestido, que parecia ter os seus trinta e tantos annos, entrou, trazendo

pela mão uma menina, que chorava, e tanta quanta seu estado e sua idade lhe permitiam, fazia uma

fraca resistencia. A menina, levada aos puxões pelo seu conductor, entrou, e encontrando a furia,

soltou um grito, tapou o rosto com a mão, que tinha livre, e quiz fugir... quiz, mas não pôde, que o

cavalleiro a tinha presa pela outra mão. A furia vendo o terror da menina, desprendeu um sorriso

infernal, em que alvos e bellos dentes contrastando com tanta fealdade, e horror, a tornaram mais

hedionda e medonha. O cavalleiro de um modo um tanto rude fallou-lhe assim:

- O que era então preciso?

- Uma menina de menos de sete annos (dice a furia), e que se chame Maria.

- Pois aqui a tem. Póde ser hoje?

- Não. Hoje é Quinta-feira.

- E então quando?

- Só ao depois d’amanhã.

- Pois bem... Ate Sabbado, dice o cavalleiro sahindo.

- Até Sabbado, dice a furia contemplando a menina.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 296, 14/09/1852.

ROMANCE BRASILEIRO.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 295).

III.

O soccorro a tempo.

O narrador, no Capitulo I, dice que o viandante, que pela Praia-Pequena passava, ferido de

um tiro, murmurando um ai, tombára do animal ao chão, aonde ficára estendido, para elle mesmo,

nuca mais levantar-se. E é verdade; porque esse corpo que assim cahira moribundo, em breve se

tornaria cadaver, si um prompto soccorro não viesse estancar-lhe a vida, que de mistura com seu

sangue foge por entre os labios de uma larga ferida que sobre o hombro esquerdo lhe havia feito o

chumbo, que sobre elle, d’arma matadora, havia cuspido a morte entre as chammas do inferno!

Com effeito, durante um quarto d’hora esse corpo ferido jazeu sobre a fria terra; e durante

um quarto d’hora esse corpo ali se esvaia!

Era no mez de Dezembro; os relogios deviam marcar seis horas e meia, pouco mais ou

menos, quando por aquelle lugar acertou de passar uma turma de cavalleiros; no lugar em que jazia o

corpo do moribundo os cavallos refusam, e por mais que os habeis cavalleiros os esporeassem, e os

impellissem, não houve fazel-os caminhar, e nem romper o passo, que repugnavam. Então, d’entre

um curto vassoural parte um gemido, em que grandes padecimentos parece que se revelavam. Os

cavalleiros tratam de socegar os cavallos, e um delles diz:

- Escutemos, escutemos...

- Ouvi um gemido (diz um).

- E tambem eu – (dice outro cavalleiro)...

No mesmo instante ouvem um fraco rugir dos pequenos ramos das vassouras, e algumas

leves pancadas, como batidas na terra. Por sem duvida era alguem que por ali se debatia, victima de

alguma grande dôr. Os cavalleiros não ficaram por muito tempo duvidosos acerca do que seria;

porque uma voz fraca e lamentosa, certificou-lhes que alguem soffria. Elles ouviram pois isto:

- Soccorro... soccorro pelo amor de Deos!...

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Immediatamente tres dos cavalleiros põem-se pé em terra, e lançando as redeas de seus

cavallos aos companheiros, para que os contivessem, encaminharam-se direito ao ponto d’aonde a

voz lhes pareceu ter partido; ahi encontraram um homem.

- Que é isto? (dice um dos cavalleiros).

- Soccorram-me em nome de Deos... Assassinaram-me...

- Quem?

- Ignoro... Talvez algum salteador... ou... Meu Deos...

- Aonde está o senhor ferido?

- Sinto grandes dores sobre o hombro direito.

- Bem. Vamos ver se o recolhemos em alguma parte, para ahi vermos sua ferida, e tratal-a. Eu

sou medico. –

Dito isto, pozeram o ferido em um cavallo, e o conduziram.

Á pouca distancia havia uma casa de negocio, aonde os cavalleiros recolheram o ferido. O

medico examinou o seu ferimento, e reconheceu que não era mortal, e que o ferido em pouco tempo

restabelecer-se-ia. Sem mais demora a ferida foi pensada convenientemente, e o enfermo mostrou

algum allivio. Depois de tudo isto feito, dice o medico:

- Convem que por ora não falle. O seu estado reclama quietação e socego. Amanhã nos

veremos. Nós pernoitamos tambem nesta estalagem, e amanhã veremos como amanhece. A minha

cama fica aqui perto da sua: si de alguma cousa precisar de noite; chame-me. Até amanhã.

- Até amanhã (dice o doente).

IV.

Quem era o assassino?

O Snr. Estevão era um mocetão, alto, gordo, claro, corado, de olhos azues, cabello louro,

faces rechonchudas e vermelhas, testa pequena, olhos grandes, e á flor do rosto, maçãs

proeminentes, labios finos e arrebitados, fronte alegre, mas que nada inculcava. O narrador não sabe

si o Snr. Estevão era, ou não estupido; mas póde assegurar, sem medo de erro, e exageração, que o

sr. Estevão era ignorante como um africano, credulo, como menino; mas voluptuoso como um

asiatico! Por felicidade não era elle tão rico que podesse satisfazer todos os seus desejos; mas tinha

patacas.

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– Para completar o retrato moral deste personagem, releve o leitor que lhe digamos, que o

Snr. Estevão era usurario, como um somitico; e somitico, como um usurario! capaz de praticar

vilanias por um vintem, não duvidava, todavia, botar fóra rios de dinheiro por uma mulher, de quem

gostasse, porque um ente dessa natureza não ama, mas profana o amor; pois, que não considera em

uma mulher senão, um ser feito para os gozos e caprichos do homem, rebaixando dest’arte o ente

mais bello da creação ao aviltante gráo de uma cousa sem pensamento, sem acção e sem vontade!

O narrador propondo-se a esta pequenina historia, propoz-se egualmente a narrar os factos

sem demorar-se na moralidade delles; salvo quando for de absoluta necessidade. Seguindo, pois, este

proposito, cumpre declarar que o Snr. Estevão só tinha energia para ajuntar dinheiro, fosse como

fosse, e para desperdiçal-o com as mulheres, com as quaes era teimoso, era tenaz, como aquelle

Leonardo, do qual falava Camões, fossem quaes fossem as derrotas e despresos, que soffresse. E

com efeito, o Snr. Estevão tinha ouvido que a primeira qualidade para um namorador era o ser

teimoso, o voltar sempre á carga; não desconcertar-se jamais; emfim, fazer o timbre de sem-

vergonha, professar o descaramento, e não reputar senão como galantes entretenimentos o que não

era menos do que uma completa derrota. Dous ou tres exitos felizes tinham confirmado o Snr.

Estevão nesta opinião. Ora aqui está para que o Snr. Estevão tinha energia; quanto aos mais podia

ser persuadido, como uma mulher sem luzes, e governado, como uma criança. Digamos tudo de uma

vez: o Snr. Estevão era, como muita gente, e gente de primeira plana.

Por este tempo mudou-se para Irajá (aonde então tinha uma casa de negocio o Snr.

Estevão), uma família composta do Snr. Bento, e a Snra. Thereza: elles não tinham filhos; seus

famulos eram uns quatro escravos. A Snra. Thereza não era casada com o Snr. Bento; mas

governava-lhe a casa. Esta senhora, sem todavia ser uma belleza, era uma formusura completa: era

baixa, e um pouco gorda; tinha bellos e longos cabellos castanhos, grandes e brilhantes olhos pardos,

não muito clara, um pouco pallida, mas de physionomia alegre e socegada; possuía, por cima de tudo

isto, uma pequena e graciosa boca, e alvos e magníficos dentes. Esta senhora tinha sido casada desde

os seus dezoito annos até aos vinte e dous; nessa idade veiu para companhia do Snr. Bento (que era

um bom homem), cuja casa governava ha pouco mais de um anno: a Snra. Thereza, pois, conta

pouco mais de vinte e quatro annos; bem empregados em uma moça tão engraçada e bonita.

Logo que esta senhora chegou ao lugar, os leões daquelles contornos apresentaram-se á

porfia para lhe fazerem a côrte. Uns lhe offereceram seus serviços, outros protecção; este, seu

dinheiro; aquelle tudo de que podia dispôr, &c. Não faltaram declarações mais ou menos estupidas,

mais ou menos toscas; mas sempre em regra; emfim, a Snra. Thereza teve cultos, e gozou

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adorações... mas, moça fina, dotada de bastante comprehensão, tinha tanto juizo que podia bem

conhecer e avaliar a realidade de uma posição já ganha, e a idealidade de uma posição por vir, embora

lisongeada por mui bonitas promessas: assim, esta moça discreta quebrou nas ventas de todos os seus

matutos pretendentes quanta taboa teve, e lhe aprouve quebrar; assim, todos desmontados de sua

presumpção, e batidos em suas pretensões, acceitaram a derrota, confessaram-se vencidos,

abandonaram o campo, e deixaram a Snra. Thereza; os despeitados, como a uma mulher feia e

desenxabida, ou ainda fria, e sem interesse; algum melhor intencionado, como a uma senhora

exemplar; algum cynico, como a uma mulher que muito se temia do seu homem. Como quer que

fosse, a moça ficou bem, e sem sarnas para se coçar, que não é lá mui agradável cousa.

Ora, digamos de passagem, si todas as moças assim procedessem, ellas fariam muito bem e

seriam bem felizes.

Todavia, não obstante o que deixamos dito, devemos aqui acrescentar que um dos

adoradores desta senhora não acceitou a derrota; cada vez mais firme, mais pertinaz em sua louca

adoração, bebia os ares pela Snra. Thereza, até por ella desadorar!

Este mortal cabeçudo era o Snr. Estevão, personagem que ha pouco o narrador teve a

subida honra de apresentar aos leitores.

Acabemos este capitulo declarando, que o cavaleiro, que assassinou o viandante da Praia-

Pequena, que roubou a menina, e que a entregou á fúria do Engenho-Novo, era o Snr. Estevão!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 297, 17/09/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 296).

V.

O ferido.

Vimos que um feliz socorro, a proposito vindo, e talvez pelo céo enviado, acertou de passar

pela Praia-Pequena, quando ali jazia ferido um moribundo, e quasi cadaver: si o leitor se não

esqueceu do que nesse capitulo narrámos, sem duvida estará esperando pela manhã da Sexta-feira

para saber como passou a noite o ferido, e como amanheceu.

De effeito, o ferido passou a noute bem, quanto ao seu corpo; porém, mal, e muito mal

quanto ao seu espirito: seus olhos lagrimejaram toda noute; os échos da solidão das nouturnas

sombras repetiram os suspiros de suas saudades, os gemidos de suas dores, e os ais de seus

padecimentos!

Os dourados raios de um bello sol, que conduzia um magnifico dia de primavera,

emphiltrando-se pelas aberturas das telhas de uma casa sem forro, espargiram no quarto do enfermo

uma luz dubia, equivoca, mas melancholica, e talvez propicia aos grandes soffrimentos de uma alma

sensível, cujos seios haviam dolorosa e horrivelmente dilacerado as unhas de ferro das bronzeas

mãos da desgraça! Mas essa dor em nada se minorava, apezar dessa luz melancholica, porque era uma

dor suprema, uma dor santa, que se não aliviava com lagrimas, que se não consolava com suspiros,

que se não suavisava com gemidos, e que se não abrandava com ais! Tais são as grandes dores para

as quaes não tem a sociedade uma só dose de consolação, não obstante os innumeros milhares de

suas multiformes drogas; porque as palavras de banalidade, que, a titulo de consolação, profere o

lisongeiro, as exasperam; as palavras da verdadeira amizade as tornam mais profundas, e as fazem

mais solemnes; e então a verdadeira amisade cala-se diante dessas dores, o silencio e o respeito são as

unicas consolações que lhes administra, esperando que o amigo que soffre vá pouco a pouco

colhendo consolação e remedio nas pisadas, que o tempo vae vagarosamente imprimindo na

incommensuravel estrada da eternidade!

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Assim era a dor que mirrava o coração do enfermo da Praia-Pequena!

Tinha amanhecido, e todos os viandantes, que pernoutaram na estalagem d’esse lugar,

passaram ao quarto do enfermo: neste ensejo o medico tomando a palavra dice:

- Então, meu caro, porque chorou e gemeu toda noute? vim duas vezes ao seu quarto, dice-

me que nada soffria, e não obstante, continuou a gemer...

- Ah ! não era de minha ferida que eu gemia (dice o enfermo) porque a ferida do meu

hombro é talvez pequena, e não mortal... A grande ferida, Snr. doutor, está aqui! (pondo a mão sobre

o coração)... aqui está a morte... a morte !...

- Roubaram-lhe talvez o que trazia; não?

- Tudo o que eu tinha de mais precioso sobre a terra!..

- Dinheiro?..

- Oh! não. Roubassem-me dinheiro, fazendas, tudo... mas, ai de mim!..

- O que lhe roubaram então?

- Minha filha... (Um soluço, sahido do coração, firmou a ultima syllaba desta phrase tão

dolorosa, e tão cheia de amor)!

- Sua filha!... e que idade tem ella ?

- Ainda não tem sete annos!...

- Oh! uma menina de sete annos ! é horrível !... E d’aonde vinha o senhor?

- De um sitio um pouco alem da Praia Pequena...

“Eu fui talvez (continuou o enfermo, depois de breve pausa) o mais feliz de todos os

homens: não rico, tendo sufficientes meios para viver: um anjo, talvez baixado dos céos á terra, anjo

no rosto, anjo no coração, foi por Deos destinado para abrilhantar meus dias, para aditar minha vida,

e para ensinar-me que há tambem sobre a terra completa felicidade, quando a sufficientes meios liga-

se a santa virtude e a pura amizade! Esta mulher, ou antes este anjo de virtudes e de amor, que por

mão de seus paes recebi diante de Deos, foi, durante a sua vida, a minha felicidade e alegria, a minha

consolação e esperança, meu anjo tutelar e a providencia de minha casa!.. Meu Deos! obrigado meu

Deos! Fui tão feliz, tão feliz, que até parece-me um attentado contra a vossa misericordia o lembrar-

me neste momento de tanta felicidade! Deos não me deu mais do que uma filha; copia de sua mãe,

copia de meu amor, eu amava nella as graças de minha esposa, e minha esposa amava nella os

ardores de meu coração!

Deos quis provar-me; mas eu não era assás firme para supportar uma prova divina, porque as

provas divinas aniquilam os corações fracos, como a colera celeste os corações impios.

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Deos baixou sobre minha mulher seus olhos, achou-a digna de sua gloria, e abriu para ella a

morada dos justos; assim, aquella que Deos achou digna de ser companheira dos anjos, desdenhando

os espinhos da terra, foi coroar-se das flores do empyreo! A prova era ardua, e meu coração

succumbiu debaixo da prova! Vi pois descer minha mulher ao tumulo, e a campa fechar-se sobre a

minha metade, sobre a essencia da minha vida, porque fechava-se sobre a minha esperança! Chorei,

como Orpheu chorou a sua cara Eurydice! Chorei quantas lagrimas tinha no meu coração, e meu

coração mirrou-se de tanto chorar! e quando não pude mais carpil-a, cahi n’uma profunda

melancholia, n’uma dolorosa tristeza, como aquelle que tem perdido a esperança, e que não póde

mais chorar!... –”

Ao dizer estas palavras, o desgraçado mancebo desatou de novo o seu pranto, que impetuoso

jorrava sobre suas faces. Depois de assim desafogar um pouco as suas penas, continuou :

- Mas agora eu choro! Que santa consolação não trazem as lagrimas! Como é suave o chorar

no meio de uma grande dôr!... Obrigado, obrigado, meu Deos!

“Como a minha metade já não vivia, a outra metade durava apenas, e como durava apenas,

durando sem esperança, esta duração era dolorosa! A meus olhos a natureza se havia revestido do

crepe da morte; o mundo inteiro arrastava diante de mim um carcere sem luz, entre cujas paredes

sombrias eu me definhava rapidamente, e, não obstante esta rapideza, tardio me parecia o momento

em que, para todo o sempre deixando cahir despedaçada sobre a terra esta fragil vasilha de

desprezivel pó, fosse minha alma, na morada dos anjos, juntar-se à aquella, que lhe fôra no mundo

seu bem, seu guia, seu anjo guardador!” –

Neste lugar, dice-lhe o medico:

- Meu amigo, o senhor tem-se fatigado bastante! Convém que descance um pouco: por ora

não consinto que falle; logo mais continuará a sua narração.

- Obedeço, senhor.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 298, 21/09/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 297).

VI.

O Snr. Estevão.

Emquanto o enfermo, para obedecer ao seu medico, devia estar calado por algum tempo,

nós, illustres leitores, para fazermos alguma cousa, voltemos ao Snr. Estevão.

Sabem já os leitores que o Snr. Estevão, perdido de amores pela Snra. Thereza, anda como a

cobra que perdeu a peçonha. O Snr. Estevão, moço bem apessoado, gozando de muito conceito, de

boas amizades, apatacado, senhor de braço e cutello nos seus domínios, como são todos os ricassos

destes lugarejos; não podia soffrer, não podia acommodar-se com a idéia da resistencia da Snra.

Thereza; elle, que na sua vida de emprehendedor conta tantas e tão gloriosas aventuras; como soffrer

que uma mulherinha lhe resista? como soffrer que o despreze? Ou por fás, ou por nefas, hade ser

sua. Ora vamos a ver.

O Snr. Estevão, logo que viu a Snra. Thereza, dice lá com seus botões (é de suppor): “Que

moça! Que peixão! E’uma gloriosa conquista! Mãos á obra.” Foi dito e feito. Logo que teve occasião

azada, e viu-se com a moça, apresentou-lhe os seus respeitos, offereceu-lhe os seus obsequios, e

dedicou-lhe os seus serviços. Cumpre confessar que neste primeiro tiroteio foi muito em regra, e

mostrava alguma pericia; mas o inimigo nem se incomodou! O Snr. Estevão tambem não perdeu

tempo; assestou as suas baterias, e fel-as jogar: assim fez uma declaração positiva, consagrou o seu

amor, e protestou pela sua constancia; mas o inimigo recebeu as balas destas pesadas baterias sem

nem sequer desalojar-se de suas vantajosas posições de desprezo. O homem, já exasperado,

acommetteu com arma branca: depôz aos pés da bella os seus thesouros, rogou, e ameaçou; mas

qual!... as suas armas embotavam-se na couraça do desprezo, que lhes oppunha a moça, e nem leve

mossa! Emfim, o bravo poz em campo tudo, tudo quanto lhe era possivel.

Alguns dos meus leitores sabem, e sabem perfeitamente bem, quaes as armas de que em taes

occasiões servem-se esses valentes guerreiros: quanto a mim, dispensem-me de as ennumerar, pois

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que as não conheço: nunca amei, nunca fui emprehendedor, e por isso ignoro os nomes technicos da

ferramenta do officio; mas sejam quaes forem, o que é certo é que o Snr. Estevão, bem ou mal, de

todas usou; mas sem o menor resultado. O negocio tornou-se de capricho em um e em outro; tanto

peior para elle! e como o negocio se tornou de capricho, jurou o Snr. Estevão que havia de quebrar a

aza da Snra. Thereza. Á custa pois de enculcas e pesquizas, soube elle que havia lá para as partes do

Engenho-Novo uma preta feiticeira, que, mediante algumas patacas, sabia fazer amor no peito de

quem o não tinha! Ora, si a cousa fosse verdade, valia bem a pena. Incontinente dirigiu-se o nosso

homem á casa da bruxa, que depois que o ouviu, tendo recebido logo de antemão algumas patacas,

começou de pôr em pratica os seus sortilegios. Apezar porém de todas as conjurações, e feitiçarias,

não pode o diabo persuadir á Snra. Thereza que gostasse do Snr. Estevão! O Snr. Estevão porém,

que acreditava e mui firmemente nos encantamentos, não se podia persuadir que o coração da moça

resistisse ao diabo, e attribuia o máo exito á falta de habilidade de feiticeira, e como assim pensasse,

teve a franqueza de lh’o dizer:

- Não, meu senhor, (respondeu-lhe a brucha) a razão não é porque eu não saiba do meu

officio, porque o sei muito bem. A razão é outra...

- E qual é (perguntou o sr. Estevão)?

- E’ porque ella nasceu em Sexta-feira da Paixão...

- Oh! como trinta mil diabos! Que me diz?

- E’ o que lhe digo.

- Então está tudo perdido.

- Quem sabe?

- Mas o que diz você?

- Que há ainda um remedio.

- E qual é?

- E’ muito difficultoso.

- Não o poderei eu obter?

- Talvez... mas olhe que lhe hade custar muito...

- Custe o que custar. Estou resolvido a tudo. Qual é o remédio?

- E’ preciso um crime...

- Commeterei um crime.

- E, si for preciso uma morte?...

- Farei uma morte.

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- Mas, si for eu que a fizer?...

- Seja: é o mesmo.

- Mas porque preço farei eu essa morte?

- Seja qual for o preço.

- Dá vosmecê cinco doblas?

- Cinco, dez, mais... O que é preciso?

- Uma menina que se chame Maria...

- Uma menina, que se chame Maria!...

- Sim; e que não tenha sete annos...

- E que não tenha sete annos!... (repetiu o Snr. Estevão, accentuando cada uma de suas

palavras, e pensando). Uma menina, que se chame Maria, e que não tenha sete annos... Pois bem,

(dice elle com resolução), a menina virá. Quando a quer?

- Quando vosmecê quizer. A obra será feita em um Sabbado, quasi á meia-noute; mas, antes,

eu terei recebido as cinco doblas.

- Pois muito bem, tia Laura, a menina virá, e o dinheiro. -

O sr. Estevão dice, e sahiu.

Agora o leitor sabe a causa que deu motivo ao assassinato do pae, e ao roubo da filha.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 299, 24/09/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 298).

VI.

Fim da narração do ferido.

Algum tempo depois o medico e seus companheiros de viagem voltaram ao quarto do ferido

para ouvirem o fim de sua historia; o mancebo continuou assim:

- Eu queria morrer, porque não podia viver sem aquella que tão ternamente me havia amado,

e a quem amei com um culto, pois que adorei-a! Eu não podia ser mais feliz, porque eu não podia

mais amar! A única felicidade, que ha sobre a terra, é amar, e ser amado! Todos os outros gozos, sem

estes, são frios, tristes, monótonos, desenxabidos, e cheios de aborrecimentos! Toda a continuidade

nos enjoa, excepto a da mulher que amamos, porque o amor, sempre providente, sempre artificioso,

nos finge cada dia novos encantos, novas bellezas e carinhos novos naquella por quem acreditamos

que palpita o nosso coração e pensa nossa alma. Eu tinha amado, como Deos ensinára ao primeiro

homem a amar a primeira mulher, e assim só se ama sobre a terra uma única vez! E pois, não

podendo mais amar, queria morrer; mas tão desgraçado é o homem que nem lhe é licito morrer

quando mais o quer, e melhor o julga! Um amigo apresenta-se diante de mim, e com a voz austera, e

linguagem energica, reprehende a minha fraqueza; e como assim me tivesse reprehendido, toma

minha filha em braços, e diz-me: - Vês esta menina? pois si ella conhecesse o mundo, e pesasse os

quilates dos teus deveres para com ella, e dos seus direitos para comtigo, ella te diria : “Meu pae,

minha mãe hoje descança no seio de Deos; e de lá, aonde vive feliz, ella continuadamente véla sobre

nós; mas, seja assim ou não, o que nos cumpre é orar por ella; nem outras relações são possíveis

entre os espíritos, que ainda peregrinam na terra, e aquelles que vivem onde Deos só sabe; não

obstante porém, si minha mãe do seio de Deos véla por mim, é mister que alguem sobre a terra véle

tambem por mim ao depois de Deos! e, si vós me faltaes, meu pae, quem se encarregará deste doce

encargo ? quem prehencherá esta santa missão ? Mentiu aquelle que disse: - “Triste de quem morre, que

quem fica sempre passa!” - E um passar afflictivo, attribulado, e doloroso equivale por ventura a paz do

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tumulo? Sabeis vós a que fica sujeita uma orphã pobre, ou ainda rica, dependente de caprichos de

tutores? Ah, senhor! um tutor não é pae. Não é o protector nato da pobre orphã, não é o seu

defensor natural, é quasi sempre o seu espoliador, graças á sociedade desmantelada em que vivemos,

á sociedade em que as leis são o brinco dos potentados, em que os ladrões, e seus filhos, gozam

impunemente os fructos de suas rapinas, e desfructam as graças, e os respeitos della! O que esperam,

pois, estas filhas sem paes é o desmazelo, o abandono, as immoralidades de uma educação

descuidada, e por fim a prostituição, os vicios, e os crimes! E a sociedade?... a sociedade não

amaldiçôa um tutor ladrão, um seductor descarado, o fere, com o anathema do desprezo e do

escarneo a miseranda victima destes malvados sem coração!...

Vivei, pois, meu pae; e sinão podeis viver para os prazeres do mundo, vivei para o amparo, e

para o bem de vossa filha! vivei; que, si ella for boa, e virtuosa pelos vossos conselhos e diligencias,

maiores serviços vos serão contados diante de Deos, e mais subido será o vosso galardão: si o não

for, não vos restarão remorsos; porque o vosso dever está feito. Vivei, pois, meu pae, vivei para a

vossa filha. -” Isto vos diria vossa filha; (continuou o meu amigo) agora vos digo eu ainda: - Queres

morrer? o que vos vae nisso? não sabeis vós que a humanidade é um grande livro, em que cada um

homem, com tinta composta de suores, de lagrimas, e sangue, escreve uma pagina, que é a historia de

sua vida? E o que representa essa pagina? Os trabalhos e desgostos do mundo; as injustiças, e

parcialidades dos homens; as dores, e as penas da humanidade; e os padecimentos, e as miserias da

vida! Os prazeres, si ahi os há, são representados por tres ou quatro palavras, em dous ou tres

parenthesis! Feliz daquelle que no grande livro da humanidade, pelas sublimes virtudes, pela

paciencia nos trabalhos, pela coragem nos desgostos, e pelas victorias das tentações, ali deixa seu

nome immortal, não obstante a voracidade do tempo, não obstante o esquecimento dos homens!

Vivei, pois, meu amigo; vossa filha o pede, vossa filha exige.” -

Basta... Eu viverei para minha filha. (tornei eu) Resignei-me, pois; mas ah! não era possivel

que eu continuasse a viver desgraçado aonde outr’ora feliz havia colhido todos os doces fructos do

santo hymeneo, perfumados pelas alegres flores do virtuoso amor! Aquelles ares embalsamados

ainda por aquella que havia tão docemente perfumado a minha existencia... suffocavam-me! Aquellas

flores, que ella com tanto gosto havia cultivado, e plantado, transformadas em espinhos,

despedaçavam meu coração! Aquella casa, de que ela fôra a única soberana, como o fôra de minha

alma, estava mudada em um tumulo, aonde continuamente coberto de pesado lucto gemia sem

cessar um spectro durante os dias e ululava durante as noutes! Tudo, tudo o que lhe havia servido era

para mim um tormento, um supplicio insupportavel, um aguilhão de saudade, que pungia, que

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rasgava, que fazia cada vez mais sangrar a ferida, que em meu peito havia, para sempre deixado a sua

dolorosa perda! Oh! eu não poderia existir assim!

Então, querendo separar de meus olhos tudo quanto atormentava minha alma, vendi quanto

possuia, e a minha situação, pouco alem da Praia-Pequena, resolvido a ir morar na cidade. Neste

proposito, aluguei uma casa na cidade, e dispul-a para receber-me, e a minha filha; isto feito, e tudo

prompto, em uma tarde, ao cahir da noute, vesti minha filha, e banhado em lagrimas despedi-me

daquelle lugar, em que tão feliz havia sido, e tão desgraçado era.

Mergulhado no abysmo de minhas penas, pensando nos meus antigos prazeres, e scismando

sobre as minhas presentes dores, tomei minha filha sobre a garupa do cavallo, e comecei a viajar para

a cidade. A minha dor impunha-me um doloroso silencio; era só para não entristecer a minha

innocente filha, que, uma vez por outra, trocava com ella um ligeiro monosyllabo. Absorvido pois

em minhas desgraças, viajando com a cabeça cahida sobre o peito, não dei fé de um cavalleiro que,

ou me esperava a pé firme, ou caminhava do lado opposto ao em que eu caminhava: nada sei sinão

que ouvi o som de um tiro; meu cavallo espantou-se, e saltando para um lado, em dois rapidos

corcóvos lançou-me fora da sella, e á minha filha; atordoado da quéda, não senti logo a minha ferida;

mas porque estava assim atordoado, não me pude levantar: em vão tentei-o, mas não pude. Então,

bem distintamente vi o cavalleiro apear-se, tomar minha filha, que ora se levantava, montar com ella,

e desapparecer; não obstante meus gritos, e os gritos della, que me chamava em seu socorro !... A luz

fugiu de meus olhos; dice apenas: “Minha filha!...” e um turpor gelou a todos os meus membros.

Assim estive até alguns momentos antes da chegada dos senhores, que voltando a mim, mas fraco, e

abatido. Reconheci que estava ferido.

- Então sua filha tem menos de sete anos? (perguntou o medico).

- Sim, Snr. Doctor.

- Como chama-se?

- Maria.

- Será bom que nos faça a descripção della: talvez que possamos ainda encontrar.

- Um pae, Snr. Doctor não é o mais imparcial retratista de seus filhos.

- Não importa.

- Ella tem cabellos castanhos, ou quasi negros; olhos tambem negros, e não pequenos; tem o

rosto alvo, e um tanto pallido, como o marfim sahido das mãos do obreiro; testa espaçosa, nariz fino,

bocca pequena, e não descorada; tem alvos dentes; quando ri-se, seu riso imprime em suas faces duas

covinhas, sua barba tambem reparte-se; emfim, é magrinha...

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- O nome todo della?

- Maria Augusta dos Anjos.

- E o seu?

- Augusto dos Anjos... Servo do senhor.

- Obrigado, obrigado. E não tem algum signal mais particular por onde se possa conhecer

sem difficuldade?

O Snr. Augusto, depois de uma breve reflexão, dice:

- Tem; mas esse signal com difficuldade se lhe póde ver.

- Mas qual é?

- E’ bem no alto da cabeça um molho de cabellos quasi de cor de fogo; mas comquanto esse

signal a poderia dar a conhecer, é comtudo quasi impossivel, visto que houve sempre o cuidado de

cortar tão rente esse molho de cabellos, que não poderão apparecer no meio dos outros.

- Não importa: sempre é um signal bem distincto.

- Fique certo (dice o dono da casa) que faremos tudo para descobrir sua filha, viva ou morta.

- Deus há de permitir que viva (dice um dos viajantes).

- Oh! (exclamou o Snr. Augusto) Dê o céo que um bom anjo acolha estas palavras de

consolação!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 300, 28/09/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 299).

VII.

José Pachola.

Entre as pessoas que ouviram o sr. Augusto, havia um creoulo, escravo, de nome José: era

um creoulo moço, divertido, amigo de dizer ditos, xistes, rifões, &c.; além disto, tocava viola, cantava

nos fados, e dansava: todas essas cousas reunidas fizeram com que todos os que conheciam o José

lhe chamassem José Pachola. E’ preciso porém notar que o epitheto de Pachola, dado ao creoulo

José, não era empregado em sua significação genuina, nem ainda em uma significação mais lata que

lhe quizesse dar, sem todavia perder de vista a significação genuina; mas era dado em uma

significação abusiva, absolutamente remota da significação natural, pois que nada quadrava menos á

pessoa do José que a antonomasia de Pachola, visto que elle era muito diligente, qualidade que

sobresahia ainda mais no seu caracter discreto, e honrado; mas ha, não pouco tempo, que o vulgo

abusa deste termo, deslocando-lhe, por assim dizer, da verdadeira significação, e dando-lhe outra

muito extranha á sua natureza. Ora, visto que José é tido e havido por todos por José Pachola,

appellido com que elle se não offende, o narrador, nenhum incoveniente acha em assim tambem

chamal-o.

Dice o narrador no principio deste capitulo que, entre as pessoas que ouviram o Snr.

Augusto, era uma o José Pachola. Este tendo ouvido a historia contada pelo ferido, sahiu, e tomando

á parte o dono da casa, dice-lhe:

- Eu sei aonde está a filha deste homem...

- Ora, tu sabes de tudo (dice-lhe o dono da casa). Então aonde está?

- Aonde está não lhe digo eu.

- E porque?

- Porque este homem creio que não é pobre; e trazendo-lhe eu a filha, póde ser que me dê

alguma cousa.

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- D’isso não tenhas duvida. Ainda te digo mais: póde até forrar-te; fica certo disso...

- Ora, isso é cassoada, Snr. Mathias...

- Não; estou te falando muito serio.

- Então quem é este senhor?

- Pois não ouviste contar a sua historia?

- Sim; mas elle não dice quem era.

- Ah! é verdade. Pois este moço é um moço arranjado, e, si lhe descobres a filha, elle póde-te

fazer feliz.

- Pois, senhor, vou procurar a menina.

- Mas aonde está ella?

- Ora... Emfim, eu fio-me no senhor...

- Essa é boa... Fala sem susto.

- Não o diga a pessoa alguma, Snr. Mathias...

- Que empenho há nisso para mim?

- Pois está em casa da tia Laura...

- Que tia Laura?

- Uma feiticeira...

- Credo! Santo nome de Jesus! Verbum caro factum est!

- Pois, sim, senhor, está lá.

- E como sabes?

- Porque vi um cavalleiro ir para lá com uma menina na garupa, e voltar sem ella...

- Mas podia ser outra menina?...

- Qual?

- Mas não conheceste o cavalleiro?

- Como? si era de noute!

- Então como sabes que era uma menina?

- Porque o cavalleiro passou pela estrada rente comigo, e pelo vulto da pessoa que ia na

garupa, me pareceu uma menina; e, demais, eu juraria que ella ia chorando.

- E o cavalleiro não te viu?

- Não, senhor, porque eu estava de roupa preta, e atraz de uma arvore: d’ahi vi-o caminhar

para a casa da feiticeira, e pouco depois voltou sem a pessoa que levava na garupa.

- Mas então comvem que indagues isso.

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- Sem duvida alguma,

- E porque não vás já?

- Não posso: só domingo de madrugada.

- Pois então mãos á obra.

- E vmc, tome a rua e o n. da casa do Sr. Augusto.

- Fica por minha conta.

- Mas, si eu antes de domingo descobrir alguma cousa, cá estou.

- José Pachola, eu fico te esperando.

- Snr. Mathias, até domingo, o mais tardar.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 301, 01/10/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 300).

VIII.

A noute de sabbado.

Era em a noute de sabbado, que deveria ter lugar o encantamento de Laura em favor do Snr.

Estevão: e elle, o amante pertinaz, e caprichoso da Snra. Thereza, devia assistir a essa grande

patifaria, que ia ter lugar.

Nesse dia, para o lado do oeste o céo cobriu-se de uma muralha de nuvens, em cujo centro o

gênio da tormenta, com mãos de fogo, parecia fabricar os horrores de medonha trovoada. Firmando

sua grossa base muito além do horizonte apparente, a nuvem elevava suas cumiadas até o cume dos

céos; seus lados estendiam-se amplamente ameaçando o sul, e ameaçando o norte. Uma crespa

fimbria de um alvo reluzente, como a prata ferida pelo sol, orlava os lados, e o cimo desta montanha

aeria, em cujo bojo occultava a natureza um tanto de seus horrores: no centro, onde elles mais

gravitavam, e a seu pezar talvez se continham, porque a hora não era ainda chegada, nem uma cor da

vida, deslisada por um só raio da luz, ostentava as suas bellezas: a morte ali se embalava inquieta,

rebuçada nas cores do tumulo. Os ventos tinham encolhido suas azas, e mudos e quietos

espectadores, equilibrados nos ares, esperavam, como assustados, a hora tremenda do

desmantelamento horrivel! Das seis horas por diante alguns longinquos e roucos trovões começaram

a abalar os ares; pelas dez horas da noute a tempestade proclamou-se a despota dos elementos, e

perturbou-os a seu capricho! Uma nova ordem principiou a reinar na natureza!

Os ventos da tempestade abriram suas funestas azas, e batendo com ellas d’encontro ás

nuvens, as fizeram no espaço abalroar com estampido horroroso. Ao golpe do trovão a terra

estremeceu de pávida! O som retumbou nas abobadas dos céos, os abysmos repercutiram seus

écchos! As nuvens continuaram a quebrar-se com ribombo medonho, e de seu despedaçado bojo

jorravam espadanas de fogo, que ou se despedaçavam nos ares contra as azas dos ventos, ou vinham

se quebrar na terra entre seus mesmos estragos! Debalde ao redemoinhar dos furacões contrariavam

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as florestas com velhos troncos de seculares arvores; debalde, que suas galas de primavera lhe

arrebatavam, como bellos trophéos, os despotas dos ares! As aguas dos céus, ou nessa mesma fórma,

ou transformadas em pedras, açoutavam, com amiudado bater, a superficie da terra!

Um dia, quando os astros saudosos de uma bella e longa existencia de tantos milhões de dias,

empallidecerem no espaço, e forem aniquilados pela chamma primitiva, que os deve consumir para

entrarem, talvez para sempre, no abysmo do não ser; a natureza entoará um hymno de morte, e esse

hymno serão os gemidos dos elementos agonisantes; porque pela ultima vez então as nuvens,

gemendo, rolarão no espaço; pela ultima vez os mares gemerão irados sobre as praias; pela ultima vez

os trovões gemendo, despedaçarão as nuvens; pela ultima vez os raios, gemendo, chamuscarão os

atmos! A natureza, pois, uma vez por outra, ensaia alguma strophe, ou alguma nota de seu grande

hymno final, cantico funebre que deve entoar quando o Eterno, á face dos anjos, e dos justos,

pronunciar para a creação a phrase tremenda, já pronunciada no cimo do Calvario: Consummatum est!

E pois, nesta noite temerosa tinha logar um de seus pavorosos ensaios!

Maria, a interessante Maria, esse anjo de innocencia, roubada a seu pae, estendida sobre o

catre da velha Laura, dormia tranquilla o somno da inocencia. As rajadas impetuosas dos desabridos

ventos, o celebre estampido de horrificos trovões, o susurrar da chuva, que a cantaros se deixava

cahir, a bulha da saraiva, que destruia os campos, não perturbaram seu socegado somno que só póde

gozar a verdadeira innocencia!

Assentada defronte da candida menina, Laura, a feia, a feiticeira Laura, com os olhos que

talvez revelavam inveja, contemplava este somno delicioso, somno que ella não podia gozar, e que

jamais gozaria. Talvez que tranquillo, como Maria, seu anjo aos pés de sua cama a contemplasse com

ineffavel prazer, tendo diante de si uma creatura tão pura como elle mesmo, e quem sabe si mais

innocente! E o anjo de Laura? Deixemol-a; póde bem ser que um dia as suas culpas lhe sejam

perdoadas.

Pouco depois das onze horas, apezar da tormenta, rompendo seu manto de trevas, d’agua, de

fogo, e de horrores, vencendo seus obstaculos, um cavalleiro, com a mesma discripção de outra

noute, bateu á porta de Laura; a feiticeira ergue-se e sahindo do quarto encaminhou-se para a sala; ahi

parou, e com os braços cruzados olhou para o tecto da casa. O cavalleiro repetiu as pancadas, mas

com menos discrição. Laura tossiu, sem tirar os olhos do tecto, onde havia-os fictado: apenas porém,

a feiticeira tossiu, o tecto extremeceu! Laura sorriu-se, e tranquilla foi abrir a porta ao cavalleiro, que

com tanto afan, em noute tão tormentosa, com tanto empenho a buscava. O cavalleiro apeou-se, e

ao cruzar o limiar da brucha, dice-lhe ela:

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- Pensei que não viesse, Snr. Estevão...

- Porque?

- Por causa da tormenta.

- Maior é a tormenta do meu coração, e eu a supporto.

- Muito bem; muito bem.

- Mas, tia Laura, sahia da porta, que quero entrar...

- Não é possível, Snr. Estevão; não pódes por ora.

- Mas porque?

- Porque será contra o senhor mesmo.

- Então ficarei aqui toda a noite, e com este tempo?!

- Não; mas vossemecê ou volta d’ahi mesmo, ou entra.

- E o que é preciso então fazer?

- Eu lhe digo: Pedi-lhe uma menina de menos de sete annos, e que se chamasse Maria...

- E não está ahi?

- Mas não lhe disse para que era essa menina...

- Seja para o que for.

- Ainda para matar?

- Pois é preciso tanto?

- Foi para o que a pedi. Ha de ser degolada, o sangue aparado, e de seu sangue, e suas

entranhas farei o encantamento que o deve fazer feliz junto da Snra. Thereza... Que diz?

- Que morra...

- O senhor ha de assistir e ajudar a degolal-a?

- Assisto, e ajudo: - morra.

- Entre, pois. -

O Snr. Estevão deu um passo para dentro; mas, apenas descobriu a sala, recuou horrorisado,

exclamando:

- Oh!...

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 302, 05/10/1852.

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Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 301).

IX.

Maria e a feiticeira.

O leitor lembrar-se-há que, quando sr. Estevão entregou Maria á preta Laura, só lhe dice: -

Ahi a tem, - e retirou-se.

A feiticeira na posse da innocente menina, tendo notado o seu terror, tratou de dissipar-lh’o,

e cumpre confessar que Laura tão bem se houve neste papel, que chegou a destruir quase todos os

temores de Maria, e até a inspirar-lhe alguma confiança. Não admira; as crianças temem com

facilidade, e com facilidade confiam, Maria, depois já meio tranquillisada, dice á feiticeira:

- Mas porque este homem matou meu papae, e me trouxe para aqui?

- Como! (perguntou a preta meio assustada) pois o Snr. Estevão matou seu pae?

- Sim; matou.

- Aonde?

- Na Praia-Pequena.

- Mas como foi isso? –

Maria narrou fielmente, e como melhor pôde, a historia do assassinato de seu pae. Laura,

tendo isso ouvido, ficou séria, e pensativa; e depois perguntou:

- Mas, menina, você sabe se seu pae morreu do tiro?

- Papae cahiu (dice Maria): depois de estar no chão ainda fallou, e gritou; mas não se levantou

mais.

- Está bom, minha filha, não tenha medo, que nada lhe hade acontecer de mal; você tem

algum parente?

- Eu não sei...

- E, si tiver, quer que a leve para casa delle?

- Sim, quero.

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- Pois deixe, que hade ir.

- Quando?

- Domingo, de madrugada, hade vir aqui um rapaz, e esse rapaz hade leval-a; descanse; não

tenha medo.

- Mas, para que este homem me trouxe para aqui?

- Eu não sei (dice Laura, depois de muito pensar, e de alguma hesitação); elle me pediu que

lhe guardasse aqui por alguns dias; mas, seja qual fôr a sua intenção, fique socegada.

Laura deu que ceiar a Maria, arranjou-lhe a cama, lavou-a, e a fez deitar.

Durante o tempo da enfermidade da mulher de Augusto, mãe de Maria, Augusto, que, além

de outras virtudes, era um verdadeiro christão, recolhia-se ás vezes ao seu oratorio, aonde passava

algum tempo orando, e pedindo a Deos a vida e a saude de sua mulher; a primeira vez que Maria

sorprendeu seu pae de joelhos, e resando, perguntou-lhe:

- Papae, o que está fazendo ahi?

- Estou pedindo a Mamãe do céo que peça a Papae do céo por tua mãe, minha filha

(respondeu Augusto).

- Eu tambem quero pedir, papae.

- Sim, minha filha.

Augusto dice: e fez sua filha pôr as mãos; depois ensinou-lhe estas palavras: “Mamãe do céo,

pedi a Papae do céo por minha mamãe.”

Além disto, Maria fazia mal o Signal da Cruz, e repetia algumas palavras vagas do Bemdito, e

do Padre-Nosso. Verdadeiramente falando, Maria ainda não sabia resar.

Maria decorou as palavras que seu pae lhe ensinou, de maneira que, sempre que entrava o

oratorio, e via o pae de joelhos, ajoelhava-se tambem, e repetia as palavras que o pae lhe havia

ensinado.

Um dia Maria perguntou a seu pae porque se pedia á Mamãe do céo.

- Para Mamãe do céo pedir a Papae do céo (dice o pae).

- E Mamãe do céo é a mulher de Papae do céo?

- Não, é a Mãe d’Elle.

- E Papae do céo faz o que Mamãe do céo pede?

- Faz; mas Mamãe do céo não pede tudo o que nós lhe pedimos.

- Porque?

- Porque as vezes nós pedimos o que não é bom.

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- E quando é bom, Mamãe do céo pede?

- Sim, pede.

- E Papae do céo faz?

- Faz.

- E quem é Papae do céo?

- E’ Deos, é nosso Senhor, nosso Pae, que nos creou, que nos governa, que póde tudo, e nos

dá tudo.

- Então Elle é que nos dá de comer?

- E’.

- Elle é que dá dinheiro para as meninas comprarem bonecas?

- E’.

- E Elle é quem dá a chuva?

- E’, sim.

- E a chuva, o vento, a trovoada, tudo, tudo, é Elle que dá?

- Tudo, minha filha.

Maria fez mais algumas destas innocentes e pueris perguntas, ás quaes o seu pae respondeu.

O narrador deu conta destas puerilidades, para que o leitor não estranhe o que vae ver.

Logo que Maria deitou-se, Laura sahiu do quarto. Maria, estando só, levantou-se e ajoelhando

sobre a cama, poz as mãos, e orou assim :

- Mamãe do céo, pedi a Papae do céo por mim.

Maria tinha visto seu pae rezar quando se levantava da cama pela manhã, e quando se deitava

á noute: assim, indo ella deitar-se resou a única oração que sabia. E para que mais? A sua idade, e o

seu estado eram uma verdadeira e tocante súpplica.

Maria esteve pois em companhia da feiticeira desde que lhe foi entregue, até os

acontecimentos, que vamos referir, sem a menor contrariedade, afóra o não poder sahir do quarto.

De noute, e de manhã, ao deitar-se, e ao erguer-se, a coitadinha fazia sempre a sua supplica á Santa

Virgem, dizendo: - Mamãe do céo, pedi a Papae do céo por mim!

No outro dia, isto é, na manhã seguinte á noute do assassino de seu pae, e seu rapto, Maria

perguntou á feiticeira:

- Chama-se Estevão, não é, tia Laura?

- Quem, menina?

- O homem, que matou papae, e me furtou delle?

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- Sim, chama-se: porque?

- Para não me esquecer. Elle tem uma filha?

- Eu não sei.

- Elle é muito máo! Tambem hão de matar a elle, e furtar a filha delle. Aonde é que elle mora?

- E’ lá para a banda de Irajá.

D’ali por diante, uma vez por outra, Maria dizia comsigo mesma: - Chama-se Estevão: mora

lá para a banda de Irajá!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 303, 08/10/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 302).

X.

Os mysterios da feiticeira.

Dice o narrador no capitulo VIII que o Snr. Estevão vendo o apparato da sala, recuára

horrorisado, exclamando – Oh!...

Eis o que viu o nosso homem.

Á um dos lados da casa havia mesa coberta de negro, a qual servia de altar, cujo idolo

estava pintado em um painel, encostado a uma parede: este painel, que chegava da mesa até o tecto,

era uma tosca pintura feita com grosseiras tintas, representando um demonio. Cumpre confessar que

esta pintura era medonha para um supersticioso, e ridicula para quem o não fosse. O fundo deste

painel feria a vista com um encarnado vivo, ou antes por purpureo, e a figura, que representava o

demonio, era negra: isto é, um homem de rosto branco, mas todo vestido de preto: sobre a cabeça

avultavam-lhe duas grandes pontas, como as dos cabritos; do extremo inferior da columna dorsal

partia-lhe uma enorme cauda: em todas suas feições e membros era tão desproporcional, tão feio, e

tão horrendo, que delle se podia bem dizer: “Feio, como um diabo!” A’ vista desta pintura, cabia

bem o nosso antigo rifão: “O diabo não é tão feio como se pinta.” Sobre a mesa havia tres caveiras

humanas, cuja alvura sobresahia perfeitamente sobre o negro de que a mesa estava forrada. As

paredes da choupana de Laura eram de paus-a-pique, barreados de um barro bastante escuro, e como

não eram rebocadas, estavam quasi negras. O tecto era de caibros finos horisontamente estendidos

entre as quatros paredes, que formavam esta pequena sala; estes caibros estavam tambem

ennegrecidos pela continua fumaça. Assim, bem se podia dizer, tecto, paredes, e pavimento desta

hedionda sala, estavam cobertos de negro! Deste tecto, atados em alguns fios, pendiam, muito perto

uns dos outros alguns, ossos humanos, que por estarem tambem bastante claros, alvejavam sobre o

fundo negro do tecto de onde pendiam. Junto á mesa, que servia de altar, estava um banco de cinco

palmos talvez de cumprimento, e palmo e meio de largura; sobre elle havia um grande alguidar de

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louça da Bahia, e sobre o alguidar, deitado de uma á outra borda, um grande facão, cujo gume

reluzia, parecendo bastante afiado! Este banco tambem estava coberto de preto. Defronte do altar, e

bem no meio da sala, conservava uma fraca chamma de uma pequena fogueira, entretida apenas por

alguns ramos seccos que ardiam com alguma difficuldade. Esta dubia luz, que mal esclarecia a estas

escuras paredes, a estes esbranquecidos ossos, e ao encarnado deste painel assustador, dava a este

logar um aspecto funebre, medonho, e terrivel! Funebre, como o de uma camara mortuaria!

medonho, como o de um solitario templo, alta noute apenas allumiado pela tibia luz de uma única

alampada! terrivel, como o de uma gruta de feiticeiros, em noute de um dia, a elles propicio, reunidos

para a feitura de algum maravilhoso amuleto, ou de algum extraordinario malefício! Assim a sala da

choupana da preta Laura estava funebre, medonha, e terrivel.

A este aspecto, o Snr. Estevão recuou como assombrado. A feiticeira, vendo o seu pavor,

dice-lhe:

- Entre, Snr. Estevão.

O homem, que era supersticioso, como si fosse um grande homem, e que temia cousas

sobrenaturaes, como todos os ignorantes e a mór parte dos malvados, hesitava em entrar. Laura, com

um sorriso sarcástico, tornou a dizer-lhe:

- Si não quer entrar, ninguem lhe obriga...

- Como é isto medonho! -

Elle rosnou estas palavras, e entrou, não sem algum receio. Entrado, ficou junto á porta,

com uma mão sobre a chave, e a outra sustentando o chapéo, o guarda-chuva e um chicotinho de

cavallo, e numa postura equivoca, e com ares de desconfiado. A feiticeira parou junto da fogueira,

cruzou os braços, e murmurou palavras inintelligiveis; depois saltou tres vezes sobre a fogueira,

lançando sempre o pé esquerdo primeiro: feito isto, fitou o painel, e passado dous ou tres minutos de

contemplação, soltou tres gritos, ou antes urros, que fizeram arripiar os cabellos ao Snr. Estevão, e

percorrer-lhe o corpo um calafrio mortal. Então a brucha tirou do seio um papel embrulhado, e

abrindo-o, tomou entre as pontas dos dedos uns pós que lançou ao fogo; uma pequena explosão foi

immediata, uma chamma anilada ondulou sobre as brasas, e estantaneamente extinguiu-se. A sala

ficou quasi abysmada em sombras! Laura foi ao quarto, e voltou trazendo em seus braços a

innocente Maria, que estava profundamente adormecida; ella a depôz sobre o banco; a pequena não

se acordou: ahi colocada, Laura começou a exercitar seus membros em uma dansa burlesca que faria

estalar de riso o mais caprichoso misanthropo, de tão ridicula que era! Esta dansa, executada em

redor do banco, em que estava a menina, era acompanhada dos mais extravagantes admães, e

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ridiculos esgares. Entretanto, o Snr. Estevão estava serio e grave como a estatua do Silencio! Para elle

o negocio era serio, como um negocio de que dependia o seu socego; era grave, como um negocio

que lhe causava pavor ou ainda medo!

A preta suou, e suou em demasia: assim suada, parou de sua fatigosa dansa, e passando por

sua testa, coberta de bagas de suor, um dedo estendido, com elle colheu uma porção destas bagas, e

as lançou sobre Maria: tendo-lhe lançado este magico philtro, com tanto trabalho obtido, chegou-se

para ella, e approximou um ouvido á boca innocente; assim curvada, a feiticeira esteve por algum

tempo interrogando, e respondendo; bem que Maria continuando sempre a dormir nada dicesse,

nem talvez ouvisse.

Findo este trabalho, Laura entrou para o quarto dizendo para o Snr. Estevão que a esperasse

um pouco. O narrador julga desnecessario dizer que, durante toda esta scena, chovia a potes,

trovejava a causar pavor, e relampejava horrivelmente, porque o leitor sabe que foi debaixo de uma

tormenta medonha que o Snr. Estevão chegou á casa de Laura.

Laura não se demorou no quarto; tardou tanto quanto era mister para mudar de fato e

arrebicar-se: assim, sahiu ela do quarto com a cara pintada, e horrivelmente feia a causar medo!

Outra vez, na sala, dice-lhe o nosso homem, com voz desconcertada, a qual elle trabalhava

por tornar firme :

- Então, tia Laura, quando se acaba isto?

Laura, sem dar-lhe resposta, fingindo até não o ter ouvido, lançou sobre as brasas da fogueira

uns pós que, abrasados, lançaram ao ar uma columna de fumo, que exhalou um cheiro nauseante: ella

perfumou-se neste displicente cheiro: depois, tomou o alguidar, e o pôs em baixo do banco,

correspondendo ao pescoço de Maria, e sem mais ceremonia lançou mão do afiado facão, procurou

uma attitude conveniente, e ergueu o ferro sobre o pescoço da innocente!...

Apenas a feiticeira ergueu o braço sobre a victima, sôa dentro da cabana um profundo

gemido! um tremor geral agita o painel, que representava o demonio! Um estrondo, como de um pau

que se quebra, atrôa quasi nos ouvidos do Snr. Estevão! O tecto da choupana treme, e ameaça

desabar! Os ossos pendentes delle agitam-se com violencia, e entrechocando-se (∗), produzem uma

bulha sinistra! De repente uma chuva de arêa cae sobre a fogueira e extingue-a completamente! Uma

voz medonha, cavernosa e terrivel brada desta sorte:

- Suspende o braço... Filha, não firas essa menina!!!...

Nota do autor: (*) É necessario este gallicismo. Não conheço termo portuguez que possa exprimir esta idéa.

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A esse tempo já o Snr. Estevão tinha aberto a porta, e procurava fugir; ao vencer o portal, um

impetuoso relampago deslisa-se por entre as arvores, e arroja um resto de sua luz sulphurea, á sala da

cabana, fazendo negrejar mais o altar e braquejar os ossos! Um pavoroso trovão rola no espaço!

O cavallo do Snr. Estevão, espantado do lampejo, arrebenta as redeas, e deita a correr; o

dono, fascinado, timido e assombrado, foge tambem exclamando :

- Basta... Basta... Misericordia... Misericordia!!!...

Ao mesmo tempo uma gargalhada de mofa, mas verdadeiramente temerosa, parte da

choupana, e junta seu eccho espantoso ao eccho medonho da tempestade!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 304, 12/10/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 303).

XI.

José Pachola, e Pedro Mandigueiro.

Pedro Mandigueiro, preto de nação (assim chamamos os pretos africanos), que teria os seus

quarenta e tantos annos, era alto, bonito e bem feito, falava o portuguez como si fosse um creoulo,

este preto era corajoso, e passava por valente, como as armas. Quasi todos o temiam, porque era

corrente que lhe não entrava ferro nem chumbo, era tido e havido por feiticeiro, discipulo de Laura:

acreditavam ainda que elles isto é, Laura e Pedro, tinham relações mais íntimas. Como fosse, Pedro

Mandigueiro, que era fôrro, ia muitas vezes á casa da feiticeira, e lá se demorava bastante tempo.

José Pachola não havia sido muito sincero com o Snr. Mathias, o estalajadeiro da Praia-

Pequena, porque ele sabia muito mais do que o havia dito a este. Com effeito, José Pachola estava

junto á tranqueira do caminho da choupana de Laura, quando por elle, a tod’abrida, passou um

cavalleiro levando de garupa uma menina. Este cavalleiro abriu uma tranqueira e caminhou para a

casa de Laura, d’aonde voltou pouco depois sem a menina. José Pachola não o conheceu, é verdade;

mas, admirado de ficar em casa da feiticeira uma menina para lá caminhou, e espreitando e ouvindo

de fóra, viu a menina e ouviu o que ella disse na conversa com Laura: assim, José Pachola soube

quanto era bastante, isto é, quem era a menina, quem o seu roubador, o crime commettido, e que a

menina seria levada a seu pae, ou a seus parentes, no Domingo de madrugada. Sciente disto, sahe,

chega ao campo da casa de sua senhora, toma um cavallo, põe-lhe um barbicacho de embiras de

bananeiras, monta em pello, e vae a todo galope á Praia-Pequena, que não era longe. Foi ali aonde o

encontramos pela primeira vez.

José Pachola podia logo dizer a Augusto o lugar aonde estava sua filha; mas entendeu que

levando-a elle, toda gloria era sua, e por conseguinte maiores, e melhores alviçadas lhe caberiam,

dinheiro para sua liberdade talvez. Sua tenção era, como, e quando podesse roubar a pequena, e

laval-a a seu pae; e quando de todo não podesse subtrahir à feiticeira, elle a roubaria ao portador que

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tinha de a levar Domingo pela manhã, segundo ouvira a feiticeira dizer á mesma Maria, como o leitor

se lembrará. A cousa não era sem risco; mas, veremos como se sahe della o tal José Pachola.

O leitor prevê que lhe foi impossível roubar a menina, porque Laura nunca deixava seu lado,

e ella não sahia jamais da cabana. José Pachola, sem ser visto, lá estava todas as noutes, lá rondava

sempre em torno da choupana, e nada perdia do que lá se praticava. José Pachola andava sempre

prompto para o que desse, e viesse.

Domingo pela manhã, José Pachola, trepado numa alta arvore, d’aonde devaçava a choupana

da feiticeira, espreitava o que tivesse de acontecer. Com effeito, Maria saiu acompanhada de um

sugeito: este, em vez de tomar pela picada trivial, que pelo meio do campo, de que já fallámos, ia dar

na estrada, tomou por outra picada, só conhecida de poucas pessoas do lugar. Esta picada ia pelo

meio do mato virgem até á estrada geral. O Pachola viu isto, e colheu o intento de conductor de

Maria, e, conhecendo a picada por onde elle se dirigia; desceu apressadamente, e correndo por dentro

do mato, foi esperar o dito conductor em um ponto onde devia por força passar. O Pachola, com

um pequeno bordão na mão direita, e uma boa faca na esquerda, poz-se a esperar.

Apenas o condutor de Maria chegou ao ponto em que estava José, este saiu do mato, e com

atrevido denodo dice:

- Oh! sô Pedro Mandigueiro, dê-me essa menina.

- Estás bêbado, José Pachola? (perguntou o Pedro Mandigueiro.)

- Dê-me a menina; já lhe dice.

- Negro, sae do caminho, que quero passar, dice o Mandigueiro firmando-se no seu bordao, e

desembainhando uma comprida faca.

- Eu tenho visto muito páo, e muita faca, e ainda me não metteram medo. Faca por faca, fio-

me mais na minha; páo por páo, tambem tenho este Tingassuiba... (isto dice o Pachola mostrando o

bordão).

- Rapaz, vae-te embora... Tu estás procurando sarnas para te coçar, heim?

- Então, sô feiticeiro, não quer dar menina?

- Não; sahe do caminho.

- Pois chegou a occasião de experimentar si ponta de faca entra nessa barriga! Olha, estás

vendo? (dizia o Pachola, meneando a sua faca) hei de te enterrar até onde custou dinheiro.

- Então estás com vontade de morrer?

- Oh tolo! (dice o José, soltando uma risada de mofa)... tu és capaz?

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- Pois bem: não te matarei, porque quero comprar-te á tua senhora para te metter o

bacalháo...

- Sim?!... pois livra-te, feiticeiro.

José Pachola assim dizendo, acommetteu ao seu adversario. Os dous atacaram-se, como dous

touros furiosos!

Maria, que muda havia escutado a disputa dos dous, vendo-os se accommetterem com tanto

furor, assustada, e dando um grito de pavor, correu pelo matto a dentro, aonde desappareceu!

Qualquer dos dous a quereria seguir; mas seguil-a era apresentar o costado ao ferro do

inimigo: assim, á seu pezar, cada um delles viu-se obrigado a sustentar um combate, do qual nenhum

proveito tirava, pois que todo o proveito do negocio lá se ia com a menina, que, timida e medrosa, se

embrenhava nos matos!

O Mandigueiro, que era mestre no jogo da faca, tendo esta na mão direita, e o bordão na

esquerda, batia-se como um leão; mas o Pachola, que tambem era mestre no mesmo jogo, levava-lhe

a melhor, porque era ambi-dextro: assim, com a faca na mão esquerda, e o bordão na direita, não só

accommetia, como não deixava o Mandigueiro approximar-se: póde, pois, dizer-se, que este servia-se

de uma só arma, emquanto o seu adversario servia-se de duas!

No fim de meia hora de um porfioso, e renhido combate, Pedro, furioso, e desejando

terminal-o, atirou ao seu contrario uma temivel facada; mas o dextro José, furtando o corpo á ponta

do ferro, descarregou com o seu bordão, uma forte pancada na mão do aggressor, fazendo-lhe

dest’arte saltar a faca fóra da mão. O Mandigueiro, assim desarmado, appelou para suas boas pernas,

que eram optimas, e deu ás trancas.

- E’ agora! Espera, que eu te ensino, patife (dizia o José Pachola, correndo no encalço do

fugitivo). Não me queres comprar para metter-me o bacalháo? Não corras... vem cá...

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 305, 15/10/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 304).

XII.

Maria ao desamparo.

Timida, cheia de pavor, e sem tino, Maria, ao ver os dous terriveis campões

desembainharem suas facas, dando talvez aos motivos da briga uma interpretação mui diversa da

verdadeira, levada pelo instincto da conservação de si mesma, não fez mais do que fugir de ambos; e

como fugisse sem accordo, em vez de seguir o trilho aberto por dentro do matto, ou para diante ou

para traz, isto é, ou para sahir á estrada real, ou para voltar para casa de Laura, estranhou-se pelo

matto a dentro, fugindo ao trilho, e aos dois tigres, que desapiedadamente, com tanto furor se

abatiam!

Assustada do que tinha visto, Maria, correu pelo matto emquanto teve forças para o fazer:

assim, em quanto teve folego, e suas debeis pernas a sustentaram, a pobresinha correu, até que,

exhausta de forças e sem folego, cahiu de cançada; e não se julgando assás segura no lugar em que

havia cahido, como pôde, se foi arrastando até esconder-se entre as folhas de algumas pequenas

arvores: ahi se deixou ficar. Passado algum tempo, talvez duas horas, Maria ouviu ao longe alguns

gritos; ela pensou que ouvia pronunciar seu nome nestes gritos longinquos; mas, cortada de medo,

não quiz responder, e quando o quizesse, impossivel lhe fôra; por isso que não tinha forças para dar

signaes de si. Assim, assentada entre as arvores em que se havia escondido, se conservou longo

tempo, reprimindo até a respiração; tanto era o seu pavor!

A fome veiu por sua vez ensinar a Maria que para conservar os dias não era bastante fugir a

um perigo, era tambem preciso sustentar o corpo com o alimento necessario; em consequencia,

Maria foi constrangida a deixar seu enconderijo: ella, pois, ergueu-se, e, achando-se no meio do mato,

teve medo. Maria, buscando uma sahida, começou a andar; depois de ter andado quasi meia hora;

aqui, rasgando seu vestido nos espinhos; ali, estrepando seus mimosos pésinhos; agora, arranhando-

se nos ramos; logo, espinhando-se, achou-se no mesmo lugar d’aonde tinha sahido; era o lugar em

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que ella se havia escondido, quando, levada pelo medo, fugira aos dous pretos que no trilho

ousadamente se ficaram batendo. Maria conheceu este lugar, porque viu as folhas amassadas, e

alguns raminhos ainda dobrados: foi quando ella comprehendeu que estava perdida; ella chorou

então: tinha fome, tinha sêde, e tinha medo. Depois de estar algum tempo parada, sem tomar

resolução alguma, a pobresinha começou a gritar com todas as suas forças. Seus debeis gritos iam-se

fracamente perder nas verdes abobadas dos silenciosos bosques, que com piedosa sombra defendiam

a infeliz contra os ardentes raios de um sol abrazador! e os echos da solidão, doidos de sua desgraça,

para não enganal-a, nem repetiram seus gritos! Afora o chilrar com que as impertinentes cigarras

importunam as selvas, tudo em torno della, tudo era silencio! tudo, porque era a hora em que com

luz de fogo o sol ferve e chammeja no alto dos céos; e nessa hora tambem seus cantos, e nos mais

frondosos ramos das mais copadas arvores buscam um abrigo contra o suão estival em que faz arder

nosso clima tropical Amalthéa! Maria, vendo que nada respondia a seus gritos, caiu de joelhos, poz

suas innocentes mãosinhas, e erguendo-as ao céu, fez sua supplica:- Mamãe do céo, pedi a Papae do

céo por mim... Sim... Mamãe do céo?...

Desta vez Maria accrescentou á sua supplica esta interrogativa... Quem sabe? Quando

somos pequenos, quando estamos na idade innocente, se-nos diz que os anjos do céu velam

brincando em torno do nosso berço, fazendo-nos sonhar sonhos dos céos! Diz-se-nos que os anjos

brincam comnosco, porque são innocentes como nós! Diz-se-nos que elles nos entretem, nos

acompanham, nos defendem, nos ampararam em nossas quédas, e andam sempre em nossa

companhia: será isto verdade? Seja, ou não, os meninos tem suas lendas; elles gostam de as repetir;

quando, reunidos, contam uns aos outros suas histórias infantis, principiando sempre pela fórmula

pueril, mas engraçada, de - Foi um dia. - Os meninos, pois, sabem historias de meninos perdidos

n’um matto muito grande... e muito escuro!!... porque uma feiticeira os desviára de casa; mas, depois

vem uma pombinha e os guia para casa. Ora, nestas lendas infantis as pombinhas são anjos assim

disfarçados. Quando os meninos sabem estas historiasinhas, confiam muito na invenção dos anjos.

Maria fez sua supplica, e depois a interrogativa: ella juraria, si então soubesse jurar, que uma

voz doce e affagadora lhe dicera: “Sim...” Ella ergue-se apressada, e á bulha que faz nos ramos, voam

duas mimosas Juritys!... Agora lembra-se das historias que sua mãe lhe contava, dos anjos disfarçados

em pombinhas, protegendo os meninos; então ella acredita que a sua Mamãe do céu a tinha ouvido, e

que as duas Juritys, que de junto della voaram, eram dous anjos!

Nada se perde, antes se ganha em fazer os meninos piedosos! é bom falar-lhes em Deos

sob o terno nome de Papae do céo. Os meninos até por instincto amam a este terno nome!

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Maria ergueu-se e seguiu as juritys, que diante della voavam. A alguma distancia, as

amorosas avesinhas poisaram em um alto ramo; Maria seguiu-as até lá. De novo ergueram seu vôo, e

foram assentar-se n’outra arvore muito distante da primeira; a menina, sem desanimar, seguiu-as. Isto

repetiu-se mais vezes até que a pobresinha descobriu uma aberta em que o sol derramava uma

enchente de luz: para essa aberta voaram os dous passarinhos, para essa aberta, seguindo-os,

encaminhou-se tambem a menina. Nessa aberta começava uma capoeira, rareada por grandes

espaços sem arvores, havendo, todavia, lugares em que era densa, e composta de grossas arvores,

formando o que chamam os lavradores – capoeira de machado. - Eram mais de tres horas da tarde

quando Maria entrou nessa capoeira: ella exultou vendo-se livre do mato virgem. Então começou a

percorrer a capoeira, sem se entranhar aonde ella era densa: depois de alguns gyros, procurando

alguma fructa e alguma fonte, deparou com um lugar aonde crescia e verdejava uma viçosa e bella

grama; depois, viu um vasto goiabal aonde havia algumas, e não poucas, bellas goiabas. Maria comeu

algumas, mas apertou-lhe a sêde. Sem desanimar continuou a revistar todos os logares aonde seu

instincto a levava em busca de agua. Não longe della, sahindo do mais cerrado da capoeira,

deslisando seu vôo á flôr da grama, e enchendo os ares com seus discordes gritos, duas Irerés

passaram por junto della. Maria correu ao ponto d’aonde as aves tinham voado, e logo no principio

do cerrado encontrou um pequeno lago de uma agua um tanto lutulenta, mas todavia potavel, em

falta de outra melhor. A filhinha de Augusto ajoelhou-se á beira do lago, e curvando-se sobre elle, fez

do concavo de suas mãosinhas reunidas uma vasilha, e bebeu dest’agua até saciar sua sêde!

A menina roubada, e perdida no mato, tem diante de si uma fonte, a seu lado um goiabal

com fructos... de fome e de sede ella não perecerá talvez! Deos a preserve de outros perigos; sua

Mamãe do Céo vele por ella.

(Continúa).

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ROMANCE BRASILEIRO

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Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 305).

XIII.

José Pachola, e a feiticeira.

Maria não se tinha enganado quando, escondida, suppoz gritos, e nesses gritos o seu nome.

José Pachola, não podendo alcançar o seu adversario, voltou ao ponto em que havia lutado

com elle, e dahi seguio o caminho, que a menina tomára, partindo em sua procura. Grande foi o

empenho que pôz em achal-a; grande foi o interesse com que a procurou; mas tudo foi debalde. Na

sua diligencia chamou, gritou; mas seus échos, sem o menor effeito, perderam-se nas solidões dos

desertos. Desenganado de que não achava a pequena, sahiu do mato, e dirigiu-se para a casa de

Laura; ahi chegado, dice-lhe:

- O’ tia Laura, que diabo de historia é esta?

- Que historia, meu filho? (perguntou Laura).

- De uma menina, que furtaram, e que esteve na sua casa?

- Isso, rapaz, foi uma brincadeira.

- Brincadeira! como?

- Eu vos conto. Assentai-vos.

José Pachola assentou-se. A feiticeira proseguiu:

- Conheceis um Estevão, que mora lá para o Irajá?

- Conheço muito.

- Pois metteu-se na cabeça desse pateta que havia mandinga, ou feitiço, para apanhar

moças...

- E não ha?

- Ha; e até são dous feitiços...

- E quaes são?

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- Amor, ou dinheiro. Quando uma moça ama a um homem, elle póde apanhal-a com amor;

o outro meio é apanhal-a com presentes, si ella é interesseira.

“O tal Estevão rompia seus sapatos por uma tal Thereza, que eu não conheço, e ela

nenhum caso fazia delle.

“Pedro Mandingueiro, que, como todos sabem, é muito esperto, persuadiu ao homem que

eu era capaz de fazer um feitiço para que a moça lhe quizesse bem. O homem acreditou; e vae senão

quando entra-me Pedro com o tal Estevão, que sem mais nem mais contou-me toda a sua vida. Ora,

é preciso declarar que é a primeira condição que eu imponho a quem me procura, e em consequencia

desta condição foi que elle me contou toda a sua vida... Vamos adiante (dizia Laura sacudindo a

cabeça); vamos adiante... Têm morrido enforcados muitos, e muitos estão no dique com menos

culpas! Já vêdes, meu filho, que o homem é tolo, e eu não fiz mais do que comer-lhe alguns vintens.

“Assim eu ia comendo alguma cousa do sugeito, quando Pedro me dice: - Tia Laura, você

hade dizer ao Estevão que a moça é invencivel, porque nasceu em uma Sexta-feira da Paixão, e que

para elle obtel-a é preciso que você cometta um crime. Elle ha de querer saber qual é o crime, e você

lhe hade dizer que é matar uma menina que se chame Maria, de menos de sete annos, para, com seu

sangue e suas entranhas fazer um certo feitiço... Si elle não arranjar a menina, ficamos nós livres desta

sarna... - E, si elle arranjar ? (perguntei eu). - Si elle arranjar, arranjaremos nós aqui um divertimento

com elle, e de tal modo, que não voltará mais cá. - Mas para que tudo isto? (perguntei eu). - Eu lhe

digo (respondeu-me Pedro): eu preciso muito de duas doblas e meia, e por isso você hade pedir ao

homem cinco doblas: este dinheiro hade ser adiantado, e nós o dividiremos. Logo que você falar-lhe

na menina, elle lhe dirá sim ou não: em todo o caso, sahindo d’aqui vae me dizer tudo; si dicer lhe que

não, eu o influirei, e então inculco-lhe uma menina; si dicer que sim, melhor.

“Eu conheço uma menina chamada Maria, que não tem sete annos; o pae é rico, que é o

que nos serve. Eu farei a cousa de modo que o homem sáhia d’aqui tão assustado, que cá não volte

mais; no outro dia levo a menina para a casa de seu pae, que me dará uma boa molhadura, que

tambem dividiremos... heim?” Eu dice que sim. Veiu cá o Estevão, dice a cousa; e elle, prompto.

Para encurtar-lhe razões, trouxe a menina. No sabbado de noute Pedro arranjou a casa para uma

grande feitiçaria. Aqui pôz uma mesa coberta de preto; nesta parede pregou uma pintura de um

diabo muito feio, com que engano os tolos; neste lugar estava uma fogueirinha, e naquelle um banco

coberto tambem de preto, tendo em cima um aguildar, e um facão muito amolado e muito claro.

Pedro tinha me arranjado umas caveiras e uns ossos. As caveiras pozemos em cima da mesa, e os

ossos ficaram pendurados naquelles páos e amarrados n’uns fios. Por fellicidade chovia muito,

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roncava trovoada, e fuzilava. Quando a menina quiz dormir, eu dei-lhe uma chicara de café com

remédio para ella dormir. Pedro poz um sacco de arêa ali em cima, e foi pôr-se lá. Quando o homem

chegou ficou com medo só do que viu. Com effeito entrou; deu-me as cinco doblas, e eu comecei a

fazer quanta bobage me deu na cabeça. Pedro, lá de cima, ás vezes fazia tremer a pintura, ás vezes

embalaçava os páos, fazia os ossos baterem uns nos outros. Por ultimo eu trouxe a menina, e pul-a

em cima do barco; peguei no facão, e fingi que ia-lhe cortar a cabeça. Quando levantei o braço,

Pedro, fingindo uma voz muito feia, falou lá de cima, e ordenou-me que não matasse a menina. No

mesmo tempo fez tremer a pintura, baterem os ossos, e entornando a arêa, fez cair uma chuva de

arêa por toda a parte, com que se apagou a fogueira. Por acaso neste instante brilhou um grande

fuzil, e deu um grande ronco de trovoada. O Estevão, meu filho, sahiu por aqui, como um doudo,

gritando – Misericordia! – e eu, e Pedro, nos riamos como dous loucos!

Ora aqui está como foi o negócio. Já vêdes que ninguem offendeu a menina, nem

levemente. Eu levei-a depois para cama; hoje acordou-se boa e sã, e Pedro foi de manhã muito cedo

leval-a para casa de seu pae.”

- Está bom, tia Laura. Adeos.

- Adeos, meu filho.

José Pachola não desesperando de ainda encontrar Maria, segunda vez embrenhou-se pelo

mato com o fim de descobril-a.

A feiticeira tinha contado a historia com tanta ingenuidade que o Pachola acreditou-a; e

inconsequencia comprehendeu que Pedro ia com effeito levar a menina a seu pae, em poder do qual

ella a estas horas estaria, a não ser sua imprudencia havida com o Mandingueiro. Este pensamento

entristeceu a José Pachola, e lhe causou remorsos, e era por isso que elle redobrava as diligencias em

achar Maria.

O narrador julgou necessario este tosco intretenimento entre o Pachola e a feiticeira, para que

o leitor não só conheça os motivos que influiram no roubo de Maria, como as velhacadas dos

encantamentos e feitiçarias de Laura.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 307, 22/10/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

____

MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 306).

XIV.

Maria perdida no mato.

Maria tinha descoberto fructos, e água: pois bem; ella não morrerá de fome e nem de sêde:

tem comida e tem agua; porém tudo o mais lhe falta... Pobre Maria!

No meio de um deserto, entregue á si mesma, não vendo debaixo de seus pés senão uma

terra coberta de hervas, grammas e capins; em torno de si senão arvores, mais ou menos grandes,

mais ou menos antigas, e mais ou menos verdes; ácima de sua cabeça um céo, que acabava de arder,

mais ainda tepido, ainda fumegante; Maria se considerava talvez desamparada dos homens; mas não

de sua Mamãe do Céo, que ella sempre chamava em seu socorro!

Sobre a sua cabeça, pelos ramos das arvores, brincando, e adejando em cardumes,

começavam os alegres passaros o seu melancholico hymno da reação, que uma vez aprenderam no

Eden, apenas credos, e de que nunca mais se esqueceram, nem esquecer-se-hão até a consummação

dos seculos. Ainda prismando cambiantes côres através da tibia luz de um morno raio de expirante

sol, que languido se debruçando por sobre os fios das serras vinha com voluptuosa melancholia

estampar nos valles o derradeiro beijo, beijo de adeus da luz d’esse dia: enamorados insectos em

derredor de amorosas florinhas agitavam suas leves azas, quasi tão bonitas como essas mesmas

florinhas! Maria viu esses passaros e esses insectos, escutou seus cantares, e o susurrar de suas azas, e

prestou-lhes attenção... Si não fossem, elles, que em torno della cantavam, ou desprendiam seus

vôos; a pobresinha se consideraria talvez só no meio do universo! Esquecida, por um momento, de

sua critica posição, Maria, ferida pelas brilhantes côres de uma lépida borboleta, que negaceira

descrevendo nos ares boliçosas ondulações, tocou-lhe quasi com a ponta de uma aza o rosto de

marfim, como uma linda pombinha correndo pelo prado, assim lançou-se atraz do lindo, fugitivo

insecto, desejosa de o colher ás mãos. A pequenina seguiu por algum tempo, rindo, e saltando o gyro

incerto do travesso volatil, que após de negacear no valle, volteando de uma para outra parte, n’um

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impeto mais veloz entranhou-se na mata, aonde desappareceu! Maria bateu levianamente as suas

mãosinhas, e com infantil pezar exclamou:- “Ora está!... lá se foi embora!...”

Feliz idade, para ti não ha passados, nem futuros, porque não tens arrependimentos nem

desejos, pezares, nem receios, remorsos, nem temores, saudades, nem esperanças! O teu presente,

quasi sem sustos, sem medos, e receios; e todo brincos, todo prazeres, e alegrias; é talvez a realidade

do pensamento de Deos quando te creou! Idade feliz, tu és o perfume da vida, porque és a flôr da

innocencia bafejada por Deos! Deos te ama, porque és cópia do ideal da creação do homem! A cor

de innocencia que imprimiu no primeiro casal, progenitor do genero humano, brilha ainda com todo

o esplendor da Divindade sobre tuas feições angelicas! Os anjos do Senhor te amam, porque te

pareces com elles; os anjos do Senhor velam por ti, porque és o anjo da terra, pelo qual descem á ella

as bençãos do Creador! Idade feliz, si tu não fosses, aonde a innocencia entre os homens? Tu és o

mais puro, o mais digno altar em que a humanidade offerece ao Eterno as suas innocentes oblações,

e estas oblações são teus pensamentos do céo, são teus sorrisos de anjo! E por isso o Filho do

Eterno, quando peregrinava entre os homens, dice um dia aos homens que o seguiam:- “Deixae que os

meninos se approximem de mim!” -

Mas essa alegria de pobre innocentinha bem depressa se devia esvaecer, porque a noute se

approximava. Os homens temem as trevas, quanto mais as crianças!... as crianças, pois, as temem...

Talvez este temor seja o unico da infancia: como fôr, elle dura tão sómente o quanto duram as

trevas.

Maria estava com a cabeça descoberta, porque na sua carreira perdêra o seu chapellinho; seu

pequeno chale tambem tinha ficado nos ramos das arvores; assim estava sem chapéo, sem chale, e

com o vestido todo rasgado.

Com effeito, do céo oriental começava a noute de puxar as ruivas franjas de seu negro véo: e

pouco depois a noute tranquilla, melancholica e silenciosa; tranquila, como a mãe do repouso;

melancholica, como a mãe da saudade; e silenciosa, como a mãe do amor; estrellou os céos, tingiu os

ares de negro, e envolveu a terra. Maria teve medo, e quasi maquinalmente cahiu de joelhos, e fez a

sua supplica. Depois ao resto de duvidosa claridade que ainda do crepusculo restava, colheu algumas

macias folhas, e pequenos ramos, e com elle arranjou uma cama debaixo de uma arvore, cuja copa

era mais vasta e frondosa do que todas as outras. Felizmente a estação calorosa permitia que a pobre

pequenina não tiritasse de frio. Maria ajoelhou-se sobre a sua cama de verduras, e pondo as mãos,

orou: - “Mamãe do Céo, pedi a Papae do Céo por mim!”

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XV.

Augusto.

José Pachola, certo de que não achava Maria dirigiu-se para a estalagem da Praia-Pequena. O

Snr. Mathias, o dono da casa, logo que viu o Pachola dice-lhe:

- Então, José Pachola, descobriste alguma cousa?

- Qual... não, senhor (respondeu o Pachola).

- E a menina que foi para casa da feiticeira?

- Enganei-me. O cavalleiro não foi para casa da tia Laura, foi para outra; e não era uma

menina, era uma moça já feita.

- Ora que pena! Perdeste a tua felicidade!

- Assim é... mas que remedio!

José Pachola, que attribuia á sua imprudencia a desgraça de Augusto haver perdido a sua

filha, quiz deste modo desviar o justo odio que por sem duvida lhe votaria Augusto, si de tal historia

ficasse inteirado. Não obstante o que o narrador acaba de dizer, José Pachola, animado sempre de

uma lisonjeira esperança, uma vez por outra, quando as obrigações do seu captiveiro lhe permitiram,

entrava no matto e o percorria, sempre com o mesmo ardor, com a mesma diligencia, e com a

mesma boa vontade, com o fim de, morta ou viva, descobrir a infeliz menina, cujo extravio elle

mesmo havia causado; mas, suas diligencias, bem que por muitos dias repetidas, nem por isso

tiveram bom exito.

Augusto, cujo estado de saude, em consequencia de sua ferida, não era muito bom, fez por

sua filha o quanto em taes circumstancias lhe cabia; assim, elle socorreu-se das autoridades, que de

boamente se lhe prestaram; pediu, rogou a quantas pessoas via; prometteu tudo quanto tinha e

quanto não tinha; mas, nem suas lagrimas, seus pedidos, seus rogos, suas promessas, nada, emfim,

nada fez com que o angustiado pae tivesse de sua querida filha a menor notícia! Pobre pae!

Logo que Augusto esteve em estado de montar, saiu elle mesmo a procurar a menina.

Augusto acreditava que seu paterno coração o levaria para o ponto em que se achava o melindroso

pedaço delle, e que com tanta dor lhe faltava! elle supunha que o coração de sua filha, que era um

pedaço de seu coração, por uma attração divina, voaria a ligar-se ao terno pedaço de que o havia

separado uma barbara, uma perfida mão!

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Firme nesta doce esperança, o desgraçado pae partiu em busca de sua filha: foi ao lugar em

que cahiu ferido, e d’ahi deu começo as suas pesquizas. Ahi notou o lugar em que Maria tinha

cahido, os signaes que ella imprimira no solo querendo escapar-se ao roubador; o ponto em que elle

mesmo, cahido, se debatera debalde; e, ultimamente, os rastos deixados pelo roubador, quando,

senhor de sua presa, tomara a sua carreira. Augusto seguiu esses rastos, suspirando dolorosamente e

enxugando as lagrimas que borbulhavam de seus olhos; mas, bem depressa esses rastos tão caros, e

tão detestados desappareceram sobre um terreno mais solido.

O desventurado pae não teve mais o fio que o guiava! Os rastos desappareceram; mas que

importa? Não é elle pae? Pois bem: a esperança nunca abandona, em taes circumstancias, o coração

de um pae!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 308, 26/10/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 307).

XVI.

Maria.

Voltemos á nossa pobre Maria. Ella é tão criancinha!... Bem vêdes; não tem ainda sete

annos!... Como pois deixal-a entregue a si mesma? como desamparal-a, no meio de um deserto, sem

ter quem vele por seus dias? Oh! isto é duro, muito duro! não; ella o não merece...

Pensae. Figurae-vos num bosque, ou numa capoeira de machado, mais ou menos espessa;

mais ou menos rareada; composta de arvores mais ou menos grossas, mais ou menos altas, e mais ou

menos copadas. Figurae que nesse deserto vai pouco a pouco emmudecendo a natureza quasi toda.

Entre a ramagem vae pouco a pouco se adormecendo a brisa; entre as dobras do manto da noute vae

gradualmente calando-se o canto das aves; e ao passo que a brisa adormece e cala-se o hymno do

côro alado, a noute vae tachonando o céo de brilhantes luzes, e tapizando a terra de pesadas

sombras. Pouco depois tudo é noute, tudo é quasi silencio! Agora a desharmonia infernal, que

perturba a solidão, é assustadora, é medonha, é tremenda! E’ o rebater das itanhas, o berrar dos

sapos, o coaxar das rãs, e o chilrar das cigarras. Ao longe ouve-se um tremulo sibilar, indicifravel para

quem nunca o ouvira; mas que ouvido pela gente do campo lhe faz dizer que é uma serpente, que

passa, ou que sae de sua tóca. Além, poisado n’uma arvore secca, aonde arma sua perfidas ciladas aos

descuidados insectos; entôa seu monotono canto o melancholico urutáo. Aqui, solta seu funereo

grito a detestavel coruja; ali, rompe os ares com seus estridentes guinchos a nouturna canna-freixa ! E

tudo isto é terrível, pavoroso, e medonho; porque tudo isto é monótono, melancholico, e funebre; e

o que é monotono, melancholico, e funebre, é triste, aborrecido e detestavel.

Agora, no meio desta solidão, envolvida por estas trevas, que as folhagens das arvores mais

carregavam ainda, rodeada desta abominavel companhia; só como o cordeirinho desviado da grei, e

transviado pelos bosques; só, como a ave passageira á qual a barbara mão do caçador cruento

roubara a companheira, e que solitaria atravessa os ares; só como n’amplidão dos mares um único

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navio rodeado de mares e de céos; figurae a pobre Maria, e dizei si devemos, ou não ir em seu

soccorro? Vós o approvaes; pois bem: vamos.

Maria deitou-se sobre a sua cama de verduras: seu anjo assentou-se perto della, e começou a

velar por sua conservação. Sua Mamãe do Céo enviou-lhe o anjo do somno; pouco depois a

pequenina dormia somno solto, e assim dormiu até o romper do dia.

Oito dias correram tranquillos; oito noites correram serenas. Nestes oito dias Maria teve o

seu sustento certo, teve a agua da mesma fonte, e a cama no mesmo lugar. A coitadinha sabia que

não longe deveria haver uma estrada, ou ao menos a picada d’aonde ella correra; queria procurar pois

alguma sahida; mas temia perder o seu sustento, e a sua agua. Assim, durante oito dias, não perdeu

de vista as suas goiabeiras, nem a sua fonte. Durante estes oito dias, apezar da estação, não houve

trovoadas; em a tarde do nono dia, porém, o calor foi excessivo: nuvens de trovoadas amontoaram-

se nos céos, e a borrasca predispoz-se para uma lucta tremenda; e, com effeito, longinquos, mas

grossos trovões começaram de rolar no espaço; pouco a pouco approximaram-se precedidos pela

importuna luz de repetidos relampagos. A chuva principiou de cahir.

Maria, quando os trovões se foram tornando amiudados, e mais fortes, teve medo, ajoelhou-

se, poz as mãos e fez a sua supplica: nesse transe a triste chorou, porque tinha medo. Emquanto as

gottas de chuva não poderam philtral-se por entre a ramagem da arvore, a cuja sombra se havia ella

acolhido; ali esteve, mas esse abrigo foi, por assim dizer, momentaneo; porque depois as copas das

arvores gotejavam cantaros d’agua. A pobresinha, não tendo abrigo que escolher, não quis

desamparar o tronco dessa arvore, que por oito noutes tão hospitaleira lhe havia sido; e demais, esses

longos ramos, essa espessa folhagem, roubavam á sua vista uma parte da brilhante intensidade da luz

dos lampejos, que tão assiduamente nos ares se cruzavam.

Maria, ora assentada, ora de joelhos, com as mãosinhas postas rezou mais de cem vezes a sua

supplica, única oração que sabia, dizendo com devoção de criança: - Mamãe do Céo, pedi a Papae do

Céo por mim!

Quasi sempre com os olhos fechados, tampando os ouvidos para não ouvir o estrondo dos

trovões; a pobresinha teritava de frio, apezar da estação, porque seus vestidos não tinham um só fio

enxuto!

Durante os primeiros dias da viuvez do Augusto, este terno e saudoso marido, no excesso da

sua dôr, exclamava: “Ah! minha Leopoldina !... Ella não virá mais!...” Maria nesta occasião lembrou-

se de sua mãe e dice :

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- Mamãe!... mas mamãe não vem mais!... Eu tenho tanto frio!... tenho tanto medo!... Papae

não vem me buscar!... mas papae tambem não vem mais!

Então Maria chorou lagrimas de medo, e quem sabe si tambem de saudades! Depois

ajoelhou, e pondo as maosinhas, dice em voz mais alta e quasi no tom de uma exclamação:

- Mamãe do Céo... pedi a Papae do Céo por mim!...

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 309, 29/10/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 308).

XVII.

A dôr de Augusto.

Figurae uma avesinha gemendo saudosa sobre o triste ramo, em que até ali existira seu ninho,

aonde com tanto amor alimentára seus filhos ainda implumes pequeninos... Um travesso menino

roubou-lhe o ninho e os filhos... pois nesse ramo aonde esteve seu ninho, figurae a avesinha

gemendo saudosa por esses filhos, que nunca mais hade ver!.. Figurae uma arvore arrancada pelo

vento da tempestade, estendida sobre a terra, e pouco a pouco murchando seus tristes, mas ainda

viçosos ramos! Figurae um navio desmastreado, e sem leme, proximo a naufragar no meio do

oceano! Figurae, sem uma só estrella, um céo fechado, de uma medonha noute de procella! Figurae

um moribundo no leito de dôr, sentindo pouco a pouco morrer em seu coração o derradeiro raio de

luz da esperança!.. Figurae, emfim, uma cidade deserta, porque a mão do anjo de Deos soprou sobre

seus habitantes o flagello da terrivel peste, flagello com que o Senhor ás vezes castiga os peccados da

terra!.. E, si podeis ainda figurar alguma cousa de mais triste, figurae, figurae; porque era assim que

estava o coração de Augusto, quando reconheceu a difficuldade, ou talvez impossibilidade, de achar

sua filha!

Augusto, no excesso de sua extrema dôr, percorreu quantas estradas viu; visitou quantos

trilhos, quantas picadas, e quantos arrastões (∗) encontrou; entrou em todas as casas; perguntou a

quantas pessoas encontrava, e ninguem, ninguem lhe dava noticia de sua filha!..

“Maria é bella como os anjos, como os anjos é innocente, e como os anjos pura! Viste-a,

passageiro? Ouviste acaso no bosque algum gemido saudoso? talvez, e pensaveis que era a rolinha,

que lá gemia a sua viuvez saudosa... talvez que seja Maria, que geme em seu desamparo! Talvez... a

rôla não sabe, não póde até gemer com mais ternura do que ella! Viste, por ventura, se escoar na

selva, brincando por entre as flores, uma fórma, branca, como a aza de um anjo; etherea, como os Nota do autor: (*) Picadas por onde se arrastam madeiras, por meio de zorras tiradas por bois.

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espiritos do céo; e bella, como a visão do bemaventurado? viste, passageiro? talvez! e acreditaveis que

era o anjo das florestas, que animava as flores, e fazia reverdecer os campos!.. quem sabe si era

Maria!.. o anjo das florestas não é mais bello do que ella!”

Bem póde ser que assim questionasse Augusto a todos os passageiros... mas os passageiros

não tinham visto Maria!

Astros, que passaes por sobre nossas cabeças, não sois vós os olhos do universo? acaso

ignoraes as virtudes da terra, e os crimes dos homens? Astros, vós sabeis tudo: pois bem; vós

devereis ter visto Maria... Talvez que os lamentos e as queixas da pobre pequenina, chegassem até o

vosso seio! Talvez que neste momento algum de vós derrame sobre seu bello rosto pallido um

benefico raio de amor, e de consolação! Astro propicio, que assim fortaleces, e consolas o tenro

coração da pobre desamparadasinha, vem com esse raio esclarecer a fronte de seu pae, e d’ahi passa

ao seu coração. O coração de um pae adevinha; porque o coração de um pae tem o instincto do

amor! Elle adevinhará que esse teu raio luziu sobre o rosto de sua filha, e guiado por essa claridade

irá procurar sua filha, e achal-a até no fim do mundo, si o mundo tivesse fim! Mas ah! tu és surdo,

porque não pódes comprehender os estremecimentos deste amor, nem a sublimidade desta dôr! Os

homens mesmos nem todos os comprehendem; só os corações dos paes, só os corações puros o

podem!

Sol!, ó sol, tu, que esclareces a tantos e tão diversos mundos; tu, que sabes de todos os seus

mysterios; tu, que n’um perenne gyro passas, diffundido o dia, por sobre a cabeça dos homens; tu,

que a teu ethereo clarão, lês sobre a terra os crimes, que uma mão facinora estampou sobre a sua

face, sempre tão nodoada delles; tu, para o qual não ha segredos; tu, que sabes quanto os homens;

faze; ó sol, viste a filhinha de Augusto? Talvez que neste momento teus raios abrasadores cahiam em

turbilhões sobre essa frontesinha, tão digna de teus beneficios... Pois bem: pódes tu, ó sol, por meio

de um de teus raios, revelar ao saudoso pae o asylo da perdida filha? Mas ah! tu o não pódes! Pódes

tu sentir ao menos a dor desse coração de pae tão intimamente ferido? Nem isso, porque tu não

sabes sentir, e quando o soubesseis, não saberieis sentir esta dor; porque tu não és pae!

Astro de amor, das saudades, e das sensações, ó lua, quantas vezes Maria brincando á tua

melancholica claridade, vendo as nuvens que impellidas pelo vento, em mil fugitivas e fantasticas

formas escorregavam por sobre a tua face de prata; quantas vezes teria ella dito á sua mãe: “Olha,

mamãe, a lua como corre!” E tu, ó lua, não gostavas, não te sorrias á esta tão bella ignorancia

infantil? Astro de amor, das recordações, e das tristezas, os meninos te amam, porque tens a sua

placidez, e sua belleza... sê grata; compadece-te da pobresinha... e... mas ah! tu nada pódes, porque tu

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és para os corações o astro do passado! Á tua vista elles não pensam no futuro, e esquecem-se do

presente!

Leitor, Augusto não encontrou nem vestigios de sua filha, e com o coração despedaçado, e a

alma transida, abandonou suas pesquizas.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 310, 02/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 309).

XVIII.

Maria sahe do mato.

Até depois da meia noute a tormenta mugiu no espaço, e bateu o bojo da terra com suas azas

de fogo. Da meia noute por diante começou de declinar. Ás duas horas tinha escampado; ás duas

horas um doce vento adejou pela face da terra, ergueu-se aos ares, e varreu a face do céo: o céo

sacudiu as nuvens chuvosas que lhe toldavam a fronte, vestiu de novo seu puro e solemne azul, e

apromptou-se para esperar a aurora. As quatro horas o céo era puro, o ar sereno, e a terra tranquilla.

Os gallos calaram seu crebro rebate dado á natureza adormecida: os passaros levantaram seu hymno

de acção de graças: os zephyros susurrando nos valles despertaram as flores adormecidas debaixo das

perolas com que a aurora havia ha pouco aljofrado seus bellos e redolentes seios: e ellas ergueram

aos céos o derradeiro perfume da noute: a aurora semeou de rosas a estrada do sol, e o sol esmaltou

de ouro as rosas d’aurora. O dia amanheceu bello! Bem dice o epico portuguez:

Depois de procellosa tempestade,

Nocturna sombra, e sibilante vento,

Traz a manhã serena claridade,

Esperança de porto, e salvamento:

Aparta o sol a negra escuridade,

Removendo o temor ao pensamento.

Amanheceu, pois; tudo acordou-se, afora Maria, que não tinha dormido. Apenas o sol

estendeu sobre o valle uma ponta da grande cortina de luz, que elle costuma a destender sobre a face

da terra, Maria correu a aproveital-a. Assim, tirou seus vestidos molhados, torceu-os, e depois os

estendeu ao sol. Ella assentou-se tambem aos raios deste benefico astro, para reanimar seus

membros, quasi enregelados da chuva, que com tanta abundancia sobre elles havia cahido quasi uma

noute inteira.

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O sol do nosso estio queima como o fogo: pouco foi bastante; Maria sentiu calor, e abrigou-

se á sombra de uma magnifica arvore. Seus vestidos tambem não levaram muito tempo para ficarem

enxutos. A pequenina os tomou, e vestiu-os.

O leitor comprehenderá bem que Maria deve estar desagradavel, porque está desgrenhada,

suja, e rota; mas seu rosto é sempre bello, sempre puro, e sempre angelico, mesmo como o rosto de

um anjo; é quasi sempre assim o rosto da innocencia!

Pela volta das oito horas da manhã Maria ouviu ao longe berrar gado; ella presta attenção, e

vendo que se não engana, ergue-se precipitadamente, e encaminha-se para aonde ouve o berrar do

gado. O écho conductor não emmudeceu. Maria não se importou mais nem com goiabas, nem com

fonte; seguiu, e seguiu sem parar para o lado d’aonde lhe soavam os berros, que, segundo ella, a

deviam tirar do mato. Os berros foram-se approximando, até que a pequena sahiu a um pequeno

campo aonde pastavam algumas vaccas. Ella estava a beira da estrada; mas não o sabia. Correndo

então com os olhos o pequeno campo, pareceu-lhe ver, não longe, um caminho. Com effeito, era um

caminho de gado. Maria enfiou-se por elle, e não sem admiração sua, um momento depois estava na

estrada: mas a pobresinha não pôde entregar-se a todo o excesso de sua admiração, porque, no

instante que sahiu á estrada, alguns mineiros conduzindo uma tropa acertaram de por ali passar.

Maria encara-os com certo receio misturado de confiança. Um delles suspendendo o seu burro, e

depois de ter admirado a belleza do seu rosto, suppondo talvez que era alguma mendiga, dice:

- Coitadinha!... Como é bonita!...

Maria sorriu-se, e o mineiro proseguiu assim:

- Minha filha, você anda pedindo esmolas?

- Não, senhor (respondeu a menina).

- Então que faz aqui na estrada?

- Eu estou perdida...

- Perdida! Como perdida?

- Mataram meu pae, e fiquei perdida...

- Mataram seu pae! Quando?

- No outro dia... já ha muito tempo.

- Aonde mataram seu pae, minha filha?

- Lá adiante... perto do mar...

- Mas, como foi isso?

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- Meu pae ia para cidade, e eu ia com elle de garupa, e vae um homem, que vinha n’um

cavallo, deu um tiro em papae, e vae papae cahiu do cavallo e morreu...

- E você aonde ficou?

- O homem, que matou papae me levou, e me deixou em casa de uma preta. Depois, um

preto vinha comigo; vae, sahiu outro preto do mato, e dice: “Dê cá essa menina.” O preto que ia

comigo não quiz, e vae cada um com uma faca muito grande, começaram a brigar; foi eu fiquei com

medo, e corri para o mato...

- E quantos dias esteve no mato, minha filha?

- Foi já um bando de tempo, sim, senhor...

Um mineiro, chegando-se ao ouvido do que fallava, dice-lhe, de modo que Maria não

ouvisse:

- Parece-me douda esta menina...

- Não... Ao contrario: suas respostas são rectas; e seus vestidos, bem que sujos e rotos,

mostram que ella não é pobre.

Depois, dirigindo-se a Maria, continuou:

- Minha filha, e você comia no mato?

- Eu comia goiabas.

- E como sahiu do mato?

- Eu ouvi os bois estarem berrando, e vai, fui direitinho para o lugar aonde os bois estavam

berrando: depois, achei um caminho, vim, vim, e cheguei aqui.

- Você tem mãe?

- Mamãe já morreu.

- Como se chamava seu pae?

- Se chamava Augusto.

- E você não tem mais parentes?

- Eu não sei...

- E você agora para aonde vai?

- Eu não sei.

- É pena, e até um grande mal o deixarmos esta menina aqui exposta a todas as desgraças...

que diz (perguntou o mineiro, que fallava a seu companheiro)?

- É verdade.

- Levemol-a?

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- Não nos custa nada.

- Minha filha, você quer ir comigo (perguntou elle á Maria)?

- Para onde é?

- Para minha casa... Quer?

- Quero, sim, senhor.

O mineiro tomou a pequena de garupa, e todos proseguiram a sua viagem.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 311, 05/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 310).

XIX.

A promessa.

Á oeste talvez da vasta bahia de Nitheroy, (bahia do Rio de Janeiro) não muito distante de

suas aguas, avulta uma enorme massa de granito. A Natureza elevou essa massa em fórma de uma

pyramide conica, para mostrar que os monumentos de pedra elevados pela mão do homem nada

mais são que miseraveis copias de seus prodigios, sempre grandiosos, sempre sublimes, e sempre

monolithos; em quanto os dos homens, sempre amesquinhados, sempre ridiculos, são sempre o

resultado de varias peças em composição.

O narrador não sabe dizer a que altura do nivel do mar eleva-se essa massa conica; mas, basta

que diga que, sem ser prodigiosa, agiganta-se essa pyramide a ponto que seu topo póde de muito

longe ser em distinctivamente visto. Este rochedo dista duas leguas da matriz da freguezia de Irajá.

Ha mais de um seculo (porque já em 1734 estava edificada) existe no alto dessa rocha uma

capella dedicada á Santa Virgem sob a invocação de N. S. da Penha. Balthazar de Abreu Cardoso a

edificou.

A arte, combinando seus meios, ali fez prodigios de esforços. Na rocha viva o picão do

canteiro aprofundou alicerces, e a colher do pedreiro ergueu paredes. Cortando por sobre o cume

um plano horizontal na rigideza do granito; o escopro alisando as escobrosidades d’esse solo

irregular, transformou-o em um pavimento, igual desempenado pela regra e pelo nivel do obreiro.

Por um declive, unico ponto accessivel do alpestre rochedo, o artista rasgou fundos vincos,

esquadrou regulares degráos, e por meio delles ligou dest’arte a fralda do penhasco á suas cumiadas,

em cujo plano brilhante, como uma corôa de rei, magestoso avultava o magnifico templo dedicado á

Virgem, meditada na Mente Eterna ainda antes da creação!

O narrador julga-se dispensado de contar a poetica lenda de N. S. da Penha de França, tão

sabida é ella! E qual mãe ignorará essa lenda, piedoso mitho do amor maternal: mitho em que se

interessam todos os corações das mães? Esse mitho, e a natural devoção do povo fluminense á Santa

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Virgem, bem depressa tornaram tão extensa e tão celebre a devoção da Virgem da Penha, que pouco

tempo depois seu templo tornou-se o centro de devotas romarias, ao passo que seu altar gemia ao

peso das mais piedosas offerendas!

Agora que tem o narrador dado um grosseiro esboço deste magnifico templo, sigamos nossa

historia.

Um dia, pouco antes de tocar o sol ao nosso meridiano, um mancebo de elegante figura, de

bellos cabellos negros, tez alva, e um tanto pallida, bellos olhos negros, mas um tanto amortecidos,

como desbotados por alguma idéa de dôr, ou melancholia interna, pequena e agradavel bocca,

brancos e pequenos dentes, decentemente trajado, de agradaveis, mas melancholicas maneiras:

chegou junto a escadaria do penhasco, e fitando o templo, suspirou. Depois, com ar um tanto

tranquillo, mas com a cabeça baixa, contou debaixo de seus pés mais de trezentos degráos, e

chegando ao adro do templo, sem voltar-se para contemplar o poetico e magnifico panorama, que se

desdobrava a seus pés; como um anjo, que sobre uma nuvem, que passa, desdenha olhar para o

nosso pequeno globo; entrou o templo, e ajoelhou-se sobre o granito, que compõe seu pavimento

monolitho. Elle vae orar: nós o conheceremos pelas suas preces. Ouçamol-o:

- “Oh minha Mãe! eis prostrado á vossos pés o mais desgraçado de vossos filhos, e que já foi

o mais feliz! Eu não venho pedir-vos venturas; não é o desejo de ser ainda feliz, como n’outro tempo

o fui, que me arrasta ao vosso templo, para devoto curvar-me diante de vossas piedosas aras! é mais

com effeito o que venho pedir-vos, oh minha Mãe. Vós me guiastes des do berço; porque, educado

no culto de vosso bemdito Filho, enamorou-me, seduziu-me, e prendeu-me a vossa tão doce

devoção! Minha alma se achava deliciosamente feliz, quando minha lingua, com a mais terna e a mais

sublime devoção, pronunciava o vosso santo nome, e meus labios modulavam os angelicos hymnos,

que a mais fervorosa dedicação havia composto aos vossos celestiaes louvores! Á sombra de vosso

puro nome eu amava o cultivar as virtudes christãs e praticar os tão santos, tão suaves, e tão sublimes

preceitos, tão caridosamente ensinados pelo melhor de todos os homens, pelo vosso Filho Deos!

Tudo por vós eu fazia, oh minha Mãe! porque tudo quanto por vós fazia me era tão doce como a

vossa dulcissima piedade! E vós, que nunca ficaes devendo: vós, que pagaes com tanta magnificencia

o que recebeis tão parcamente: vós, oh minha Mãe! pagastes de mais a minha ardente devoção pelo

vosso precioso culto! Vós transformastes um anjo em uma mulher e m’a destes por esposa! E para

coroardes minha ventura vós permittistes que eu fosse pae! Esposo aos vinte e dous annos... oh!

como fui ditoso! pae aos vinte e tres, fui o mais feliz de todos os homens! Viuvo quasi aos trinta,

pranteei, como aquelle, que perde tudo quanto sobre a terra possue... mas... bemdito seja o nome de

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vosso Filho! cumpra-se a Sua vontade!.. mas, minha filha... perdel-a!... não, não posso tanto, oh

minha Mãe!..

“Junto á pia baptismal, com que jubilo, com que felicidade invoquei a vossa Protecção para

minha innocente filhinha! Vós fostes sua Protectora des da pia tomada, isto é, sua Madrinha: porque

a vossa valiosa Protecção vale mais, muito mais que todos os empenhos da terra, oh minha Mãe! E

para que nada faltasse á minha fervorosa devoção, foi em honra de vosso augusto nome que ella se

chamou Maria! E essa Maria aonde existe hoje? Vós o sabeis, oh minha Mãe!

“Eu não venho pedir-vos consolação na minha viuvez: não venho pedir-vos as minhas

antigas alegrias: nada disto, nada disto appeteço! Minha filha... eis unicamente o que vos venho

rogar!... Bem vêdes, oh minha Mãe... bem vêdes que nada mais sobre a terra possuo! Si a perco, que

me restará? Quem me consolará nos taciturnos dias de minha pobre velhice? Quem, no leito da

enfermidade, velará por meus dias? Quem me tornará supportavel a hora do passamento? Quem

sobre o meu desconhecido tumulo derramará uma lagrima de dôr, uma lagrima de saudade... uma

lagrima só?! E que será feito della, tão pequenina, tão innocente, sem seus paes, sem quem della se

dá, sem quem a ampare e defenda? Talvez a miseria, a prostituição... oh minha Mãe... não permittaes.

Oh! si uma tal desgraça lhe está reservada... antes a morte, mil vezes antes! Antes a morte, mil vezes

antes, que peccar tão feia, e tão vergonhosamente contra os preceitos de vosso justo Filho... Mas

faça-se a sua vontade, porque Elle é justo.”-

O devoto, que assim tão fervorosamente orava, parou neste lugar, suffocado em um amargo

pranto. Pouco depois, tendo enxugado suas lagrimas, prosseguiu assim:

- “Oh minha Mãe! perdoae ao vosso filho, si no grande excesso de sua justa dôr suas

indiscretas palavras offenderam a vossa piedade... mas, eu sou pae, bem sabeis, oh minha Mãe!

“Nunca a vossos pés correram lagrimas justas, sem que vós as enxugasseis; nunca a vossos

ouvidos soaram razoaveis preces, sem que vós as escutasseis! Vós sois a Mãe dos orphãos, o amparo

dos desvalidos, o soccorro dos pobres, a esperança dos desgraçados, a consolação dos afflictos, o

refugio, emfim, de todos aquelles que confiam na vossa piedade! Restituí, pois, oh minha Mãe!

restitui ao desgraçado pae a desvalida filha!

“Hoje vós sois seu Pae, porque ella é orphã; vós sois a minha esperança, porque sou

desgraçado! e sempre o fostes, oh minha Mãe! Confiado na vossa piedade, ouso tudo esperar do

vosso poderoso Patrocinio!

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“Fazei, pois, oh minha Mãe! vós o podeis; fazei, pois, que a minha filhinha volte aos meus

saudosos braços, tão innocente, tão casta, e tão pura, que seja digna das vossas graças, e do vosso

amor!...

“E eu, agradecido aos vossos novos favores, não cobrirei vossas aras de immensos e

sumptuosos dons, não ornarei vossos altares de preciosos festões e pomposas grinaldas de

aromaticas flores... mas, fugindo para sempre ao mundo, ligado, em quanto viver as aras de vosso

Filho, incensarei de continuo os venerandos altares, aonde magestosamente avultam as vossas

piedosas imagens!” –

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 312, 09/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 311).

XX.

Uma vingança.

Pouco depois do roubo de Maria, algumas cousinhas aconteceram, das quaes o narrador

julga-se obrigado a dar estreitas contas.

Á primeira vista estas cousinhas parecem desnecessarias; mas quando chegarmos ao fim de

nossa historia, verá o leitor que ellas são de alguma maneira necessarias. Isto posto, sigamos com a

nossa narração.

Pedro Mandigueiro, batido por José Pachola, e vendo seu plano malogrado por causa delle,

jurou aos manes de seus paes tomar do Pachola a mais terrivel e exemplar vingança; e querendo

interessar nella o Snr. Estevão, como uma parte igualmente offendida; foi ter com o homem. O Snr.

Estevão apenas o viu, dice:

- Então, mestre Pedro, já sabe do que ha?

- Já, sim senhor (respondeu-lhe Pedro Mandigueiro); meu senhor é que não sabe do que ha.

- Então o que ha?

- É que tudo perdeu-se por causa de José Pachola. Meu senhor conhece-o?

- Sim: creio que o conheço; mas que fez elle?

- Eu lhe conto. José Pachola é um feiticeiro muito habilidoso, e da força da tia Laura. Outra

pessoa, que tambem tem muita paixão pela Snra. D. Thereza, foi ter com Pachola, e Pachola, por

mais que fez, não pôde entrar com a moça, pelo motivo, que tia Laura lhe dice; mas elle conheceu

tambem que o unico remedio era o sangue, e as entranhas de uma menina chamada Maria, e que não

tivesse ainda sete annos. É preciso que eu explique a meu senhor uma cousa, e é que quando se faz

feitiços para obter uma moça, é preciso que ella não o saiba, que, em sabendo, está tudo perdido... a

moça fica tendo a pessoa que a ama um odio de morte. José Pachola, como pelos seus feitiços não

pôde obter a moça para o seu freguez; para não ficar desacreditado, tambem não quiz que tia Laura

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vencesse. Assim, por meio de uma preta da casa do Snr. Bento, fez que ella soubesse de tudo; e esta

mesma preta arranjou-lhe um pouco de cabellos da Snra. Thereza, um sapato, e outras cousas, e

emquanto tia Laura fazia o feitiço em seu favor, elle fazia contra. É por isso que appareceu o Diabo

dizendo a tia Laura que não matasse a menina; mas isto tinha ainda remedio, e tres, ou nove dias

depois, podia se abrandar o diabo, matava-se a menina, e a cousa era segura: mas José Pachola, que

sabia disto, que fez? roubou a menina!

- Roubou a menina!?

- Sim, senhor, roubou-a.

- Quando?

- No Domingo de manhã.

- Mas como?

- Eu lhe conto. –

Com effeito, Pedro Mandigueiro contou o que se havia passado entre ele e José Pachola,

torcendo todavia a verdade em favor do seu improviso actual. Mudou tambem a scena do combate

havido entre elle, e Pachola, dizendo que Pachola entrara por casa de Laura para roubar a menina,

que medrosa desta scena, fugira.

Todo o homem covarde e malvado é vingativo. O Snr. Estevão, ouvindo isto, tornou-se

furioso, e fitando em Pedro olhos scintilantes de colera, dice:

- Mestre Pedro, tudo isto que você dice é verdade?

- Oh meu senhor! Pedro nunca mentiu! O seu escravo Bonifacio é muito amigo de Pachola:

mande-o vosmecê que elle pergunte a Pachola, si no Domingo de manhã elle não teve uma briga

comigo por causa de uma menina que fugiu para o mato. Basta que pergunte só isto.

- Está bom, mestre Pedro: eu darei uma lição no tal Pachola!

Apenas Pedro sahiu, o Snr. Estevão chamou o Bonifacio. Era este Bonifacio um preto velho,

de nação Monjolo, e de um caracter secco, taciturno, e sombrio. Fallava só quando com elle fallavam,

quando não, estava calado. Logo que Bonifacio entrou, perguntou-lhe o Snr. Estevão:

- Conheces um preto de nome José Pachola?

- Conheço, sim, senhor.

- Sabes si elle é amigo do Pedro Mandigueiro?

- Não é, não, senhor.

- Elles brigaram alguma vez?

- Brigaram, sim senhor.

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- Quando?

- Domingo.

- Porque brigaram?

- Por causa de uma menina.

- Quem tinha a menina?

- Mandigueiro.

- E que fez José Pachola?

- Quiz furtal-a.

- E é por isso que brigaram?

- Sim, senhor.

- Está bom: vae-te embora.

Na tarde do mesmo dia, um caixeiro do Snr. Estevão contava, sobre uma mesa, na casa da

senhora de José Pachola, um conto de réis para o comprar. A senhora respondeu tão sómente que o

José era sua cria, e que por isso, e por suas qualidades, não havia dinheiro que o pagasse.

Desenganado o Snr. Estevão que não podia ser senhor do Pachola, concertou outro plano de

vingança. Começou de espalhar, que o Pachola era um ladrão, que dava em todas as roças e poleiros,

e que tambem furtava cavallos. Não só elle, como seus caixeiros, como Pedro Mandingueiro

espalhavam por toda a parte deste labéo. José Pachola, com effeito, com licença de suas senhora,

vendia e comprava aves, ovos, e tambem algum cavallo que comprava magro, engordava, e depois

vendia.

Um mez depois, o Snr. Estevão chamou um seu escravo, que era ladrão como rato, esperto

como um caixeiro de taberna, e tratante como um cigano, e tomando um seu pequira, e muito

ordinario, tendo sabido que este seu escravo se dava com o Pachola, lhe dice:

- Toma este pequira, e vende-o ao Pachola. Has de pedir vinte mil réis. Si elle não quizer dar

esse dinheiro, diz-lhe que elle o venda a quem quizer, e te dê os vinte mil réis. Si tu fôres preso, por

dizerem que o cavallo é furtado, confessa a verdade; dize que me furtaste...

- Eh! meu senhor! e depois?

- Não tenhas medo que nada te acontece... mas olha, que si diceres que eu é que te dei o

pequira para venderes, mato-te... toma sentido!

O escravo do Snr. Estevão desempenhou perfeitamente a sua commissão. Pachola ignorava

que o Snr. Estevão o tinha querido comprar, que, si o soubesse, attenta a sua viveza, talvez não

cahisse. O cavallo valia muito mais que vinte mil réis; mas, José Pachola prevendo que podia vender

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o pequira por trinta, ou vinte e cinco mil réis, e ganhar os seus cinco ou dez mil réis, offereceu-se

para o vender, e esta offerta foi acceita. O vendedor, segundo as instrucções de seu senhor,

perguntou quando, e aonde iria vender o cavallinho. José Pachola respondeu que na estalagem da

Venda-Grande, e no Domingo seguinte.

Todavia, no dia marcado apresentou-se o Pachola com o pequira para vender, e já o tinha

justo por trinta mil réis, quando appareceu o Snr. Estevão, que, pondo-lhe a mão á golla da jaqueta,

perguntou-lhe:

- Ó negro, d’aonde tiraste este cavallo?

- Meu senhor (tornou o Pachola), este cavallo deram-me para vender.

- Quem?

- Um seu escravo.

- Ó ladrão... pois os meus escravos vendem cavallos! Não é debalde que se diz que tú és um

grande ladrão!..

- Ladrão eu! eu ladrão!.. Meu senhor não sabe com quem falla.

- Fallo com tigo (sic), ladrão!

Ao mesmo tempo appareceu Pedro Mandigueiro com o escrivão do Juiz de Paz. O Snr.

Estevão, tendo dado, por sua conta, algumas bofetadas no Pachola, só o largou depois de bem

amarrado; e assim amarrado, como um porco, foi mettido em um tronco. O Snr. Estevão, seguido

do escrivão, foi para a casa do Juiz de Paz dar a sua queixa, e justificar a sua propriedade.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 313, 12/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

____

MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 312).

XXI.

Outra vingança.

Bem dizia uma matrona, que conhecemos, senhora bem respeitavel pelas suas qualidades.

Esta senhora costumava sempre dizer, que não acreditava em juras de amantes e jogadores. Pelo lado

dos amantes o Snr. Estevão nos prova a verdade do dito da tal matrona.

No capitulo decimo de nossa historia viu o leitor o Snr. Estevão sahir da casa de Laura

tremulo, medroso, e todo arripiado, gritando: - “Basta... Misericordia... misericordia!” – e quem

ouvisse isto, julgaria que o nosso homem ficaria d’ahi por diante detestando a Snra. Thereza, para

nunca mais querer saber della. Ora, dizei, não vos parece assim? mas, qual! Vejamos.

Dous ou tres dias antes da conversa que teve o Mandingueiro com o Snr. Estevão a respeito

do Pachola, acertou o Snr. Estevão de encontrar-se por acaso com a Snra. Thereza. Aquelles cabellos

negros prenderam ainda mais o amor do moço; aquelles olhos aonde brilhava o fogo de amor

inflammaram-lhe mais o coração apaixonado; aquelle rosto bello e voluptuoso, aquelle corpo

engraçado, emfim, aquelle todo, tão cheio de encantos, despertou um tropel de paixões no coração

do Snr. Estevão. O diabo do teimoso, que se não podia resolver a esquecer-se da Snra. Thereza, com

uns quebrados olhos, cheios de amor, dice-lhe:

- É possivel que uma mulher tão bella tenha um coração tão máo!

- O Snr. Estevão (tornou-lhe a caprichosa moça) é preciso que se desengane... Quando eu

não tiver pão aonde estou, prefiro recebel-o do homem mais ordinario do mundo... de um negro

até... a pedil-o de porta em porta, do que recebel-o de sua mão! –

Esta descommunal e audaciosa resposta foi seguida de um longo escarro, e de um rude virar

de costas.

De passagem: esta resposta não é lá muito para louvar-se. A melhor e mais eloquente

resposta que uma senhora grave deve dar a uma declaração, é o voltar costas ao atrevido, sem gestos,

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sem palavras, e sem rudeza: no caso de se tornar elle pertinaz e impertinente, como o Snr. Estevão, o

melhor meio é evital-o, e evital-o á todo o custo; mas nós desculpamos uma moça, que timbrava de

ser honesta (e o era), que aborrecia a um demonio, que a importunava sempre, accrescendo que sua

educação não era lá mito fina e muito cuidada.

O Snr. Estevão ouvindo esta terrivel resposta, fez: - An?!.. – e depois de a contemplar em

silencio por algum tempo, dice:

- Deixa-te estar, malcreada... marquinha de Judas do inferno, que tu me pagarás... Juro por

estas quatro barbas, que Deos me deu, que te hei quebrar a prôa...

Dias depois, um caixeiro do Snr. Estevão, rapagão dos seus vinte e quatro annos, e bonito,

achando melhor arrumação na cidade, deu parte ao patrão que se despedia.

- Quanto leva você? (perguntou-lhe o Snr. Estevão).

- Quanto levo, como? (perguntou tambem o caixeiro).

- Em dinheiro?

- Levarei o que tenho ganho, que vosmecê me deve, porque ainda não me pagou.

- Bem sei, filho; mas quanto?

- São quatrocentos e tantos mil réis.

- E não levas seiscentos e tantos, ou setecentos, porque não queres.

- Como?

- Eu te darei os duzentos, ou arredondarei os setecentos. Queres?

- Oh lá! si quero? O que é preciso fazer?

- Pouca cousa.

- Então vejamos.

- Hasde estar prompto para partir, apenas t’o diga. Em uma noute, que eu determinar,

tomarás duas pistolas carregadas, e as metterás nos bolsos. Irás comigo a uma casa, ahi entrarás por

uma janella, e depois de estares em uma alcova, te metterás debaixo de uma cama, ou atraz de uma

porta. Algum tempo depois o dono da casa, eu e outros iremos ao quarto, e ahi te encontrando,

faremos grande barulho; suppor-te-ão um ladrão: d’isso te offenderei eu, e tu dirás que não és ladrão,

que foste ali para fallares á tua namorada. Si te perguntarem que é essa namorada, dize que é a Snra.

D. Fulana...

- Mas quem é essa D. Fulana?

- Eu te direi depois. Findo isto, fugirás, abrindo caminho por entre nós com as taes pistolas,

ou uma faca. Tendo sahido da casa, esperar-me-ás no lugar que convencionarmos.

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- Mas si elles me forem ao vulto?

- Não vês que eu lá estou para o que der e vier?

- Ó meu amo... isso a modo que não me parece agradavel...

- Vae por minha conta e risco... Ao contrario não pago a tua soldada... Bem sabes que aqui

ninguem póde comigo...

- Está bom, senhor, irei; mas, alem da soldada.

- Devo-te quatrocentos e tantos mil réis, não?

- Sim, senhor.

- Pois arredondo-te os setecentos.

- Pois bem, senhor, está dito.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 314, 16/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 313).

O Snr. Estevão dava-se um pouco com o Snr. Bento, e em casa deste juntavam-se algumas

pessoas, em algumas noutes, a jogarem o Trinta e Um, o Bacáo, ou a Ronda. O Snr. Estevão

sabendo disto procurou ser introduzido nestas reuniões, e foi: cumpre, porém, declarar que a

admissão do Snr. Estevão nestas reuniões não foi por muito bom gosto dos parceiros, nem do Snr.

Bento (que ignorava as pretenções do Snr. Estevão a respeito da Snra. Thereza); pois que todos

sabiam que o homem não era lá muito boa peça... mas esta peste destas etiquetas, e formalidades, e

asneiras da sociedade, além de tomarem á gente um tempo bem mal perdido, estragam o brio, e

destróem uma boa parte dos bons sentimentos d’alma. Emfim, a civilidade fez aceitar o Snr. Estevão

entre os parceiros, apezar delles e do dono da casa. O homem não falhava uma só noute de reunião;

jogava um pouco mal, mas fórte, e até com generosidade. Era um parceirão!

Escusado é dizer que a Snra. Thereza não apparecia emquanto lá estava o nosso homem.

Poucos dias depois o Snr. Estevão tinha, com uma preta do Snr. Bento, o seguinte dialogo:

- Pois, Domingas, ella é tão má assim? (perguntou o Snr. Estevão).

- Eh! Seu Estevão!.. aquella mulher é muito má (respondeu a preta).

- Mas porque?

- Porque por qualquer cousa está batendo na gente.

- E tu, porque não te vês livre della?

- Como? Si eu fugir hão de me apanhar.

- Põe a sugeita na rua.

- Como, sô Estevão?

- Queres tu pol-a na rua?

- Quem me déra...

- Pois deixa o negocio por minha conta.

- Mas como é que vosmecê faz isso?

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- Escuta. O quarto della não tem uma janella para a rua?

- Tem.

- Pois amanhã de noute deixa a janella aberta, e deixa o mais. Domingas, muito segredo... e

depois conta comigo.

- Mas o que é que vosmecê quer fazer? –

O Snr. Estevão, pretextando que seu fim era unicamente salvar Domingas das garras da Snra.

Thereza, communicou-lhe o seu plano, que Domingas approvou sem a menor contrariedade.

Este dialogo era em um pequeno pasto, fechado por um bardo de espinhos, com uma

tranqueira que dava para a estrada. O pasto pertencia á casa do Snr. Estevão. Este, durante a sua

conversa, estava junto de uma pequena mouta. Domingas, tendo approvado o plano, retirou-se e

com alguma lentidão. Um instante depois, um vulto, todo de preto, surge de dentro da mouta, como

um phantasma da meia noute, e desapparece, como uma visão!

Do dialogo destes dous personagens o narrador só poz debaixo dos olhos do leitor o que diz

respeito a nossa historia. O leitor comprehendera bem que o tal dialogo já deveria vir mais detraz:

quanto porém o que a Domingas dice ácerca de ser a Snra. Thereza muito má; não era tão verdade

como ella o affirmava. Com effeito, a moça batia, não poucas vezes, na Domingas, porque esta preta,

além de ser o diabo em carne e osso, era por demais atrevida para a Snra. Thereza. Algumas

travessuras do Snr. Bento tinham dado anso aos desaforos da preta: por causa dessas travessuras a

preta não podia soffrer a Snra. Thereza, e eis o porque a moça batia-lhe.

No outro dia tudo correu como o Snr. Estevão havia disposto. Em uma hora convencionada,

e a um signal do patife, Domingas chamou seu senhor a parte, e soprou-lhe no ouvido que no quarto

da senhora estava um preto detraz da porta. O Snr. Bento crendo que fosse algum ladrão, dice aos

parceiros:

- Que engraçada cousa! Diz-me a preta que no meu quarto está um preto detraz da porta!..

- Algum miseravel ladrão (dice o Snr. Estevão).

- Sem duvida; mas peço a dous dos senhores para irem por fóra, e cortarem-lhe a passagem

pela janella, caso elle queira por ali evadir-se. Eu, e os mais senhores, vamos ao quarto. –

Todavia dous sahiram, e foram postar-se junto á janella, tendo cada um bom cacete. O Snr.

Bento, tomando uma luz e um cacete, seguido pelos demais senhores, dirigiu-se para o quarto.

Quando o Snr. Bento se achou frente á frente com um moço bonito, e bem vestido, recuou

um passo, dizendo:

- Não é um miseravel ladrão!... é mais alguma cousa...

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- Ladrão, não, senhor (dice o sugeito, que o leitor já sabem que é). É por uma fraqueza

humana que o senhor me acha em sua casa... por ladrão não.

- Então que veio fazer aqui? (perguntou o dono da casa, tremulo de raiva).

- Vim fallar com uma pessoa.

- Que pessoa?

- Que se lhe importa?

- Não está máo desembaraço! Pois, meu amigo, si quizer sahir são, e salvo, diga que pessoa

é.–

Nisto o Snr. Estevão, que tinha ficado na sala, adiantou-se para o quarto, dizendo:

- Eu conheço esta falla... –

Chegando-se e vendo o seu caixeiro, dice com assombro:

- Que fazes aqui?

- Conhece-o? (perguntou o Snr. Bento).

- Sim: é um meu caixeiro. –

O rapaz abaixou a cabeça a estas palavras. O Snr. Bento continuou:

- Pois, meu caro, si veiu aqui por causa de alguma pessoa, diga o nome dessa pessoa: quando

não, amarro-o como a um ladrão... Escolha.

- Falla, rapaz (dice o Snr. Estevão).

- Quem me mandou vir cá foi a senhora D. Thereza... –

A Snra. Thereza, que estava na sala, ouvindo isto, precipitou-se no quarto bradando:

- Mentiroso... Impostor...

- Impostora és tu, mulher falsa, mulher perfida...

Isto dizia o Snr. Bento, investindo, com os punhos fechados, e os dentes cerrados, contra a

pobre moça, quasi desmaiada por estas palavras. O caixeiro, aproveitando-se deste desturbio, fugiu.

O Snr. Estevão pondo-se entre o Snr. Bento, e a moça, que estava pasmada, interdita, e como louca,

dice:

- Oh Snr. Bento! é indigno de um homem de bem pôr as suas mãos sobre uma fraca mulher.

- Sim; tem razão, Snr. Estevão... Sáhia de minha casa... sáhia, para nunca mais pisar nella.

Assim dizia o Snr. Bento, puxando brutalmente a moça pelo braço até a porta da rua, apezar

destas palavras della:

- Pelo amor de Deos... ouça-me por um instante... –

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O infurecido ciumento, levando-a quasi de rastos até a porta da rua, ahi empurrou-a com

força. O corpo da desgraçada tombou sobre o chão, e elle, batendo a porta sobre os batentes,

trancou-a com desespero!

A Snra. Thereza ergueu-se. O Snr. Bento, e os outros ouviram estas palavras:

- Não me importa o enxotar-me de sua casa... Mas a mancha sobre a reputação... Meu

Deos!..-

Um soluço suffocou a voz da desgraçada.

O Snr. Estevão sahiu. O Snr. Bento, que em verdade era um bom homem, mas que tinha o

grande defeito de ser ciumento, fingindo-se muito senhor de si, o que era uma grande mentira,

convidou os companheiros para continuarem o jogo, o que effectivamente fizeram, para distrahirem

o Snr. Bento.

Alguns instantes depois os jogadores ouviram, não longe, estes gritos:

- Socorro!.. Aqui d’el-rei! Quem me soccorre?!

- É a voz della!!! (dice o Snr. Bento, erguendo-se).

- Soccorramol-a... soccorramol-a! –

A casa do Snr. Bento era pouco distante da estrada; e não contigua a casa alguma. Os gritos

tinham partido da estrada; para lá correram os que iam em soccorro de quem o pedia. Chegando á

estrada encaminharam-se para a cancella da casa mais visinha, talvez para ahi perguntarem, ou terem

alguma noticia. Não muito distante da dita cancella um tiro é ouvido por elles: si contra elles foi

disparado, um bom anjo desviou a bala, que não feriu a pessoa alguma. Alguns da companhia

suspendem-se assustados: o Snr. Bento, porém, sem outra arma que um páo, avança intrepidamente.

Os outros o imitam. Alguns gemidos abafados, como de pessoa que quer gritar e não póde, soam já

perto delles! Ao mesmo tempo ouvem o estalo de uma espoleta de arma fulminante. Dous vultos

fogem, e salvam se pelo mato a dentro. Elles chegam ao lugar d’aonde os dous vultos tem fugido, e

encontram no chão um corpo, que lança fracos e suffocados gemidos; levantam esse corpo do chão,

e veem que estava amarrado de pés e mãos, tendo na bocca um lenço servindo de mordaça... Era a

Snra. Thereza!!!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 315, 19/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 314).

XXII.

Supplicio de José Pachola.

O Snr. Estevão teve a summa habilidade de intentar e proseguir duas vinganças ao mesmo

tempo: uma, contra José Pachola, e outra, contra a Snra. Thereza. O leitor viu, que, apezar da

grosseria destas duas vinganças, ellas tiveram o effeito desejado pelo infame.

Ora, visto que o nosso homem occupava-se ao mesmo tempo de Pachola, e da Snra.

Thereza, bem é que o narrador leve estes dous acontecimentos a par e passo.

José Pachola ficou no tronco, e em seguro, todo o resto daquelle dia, que era um domingo, e

toda a noute: na segunda-feira, pela manhã, um meirinho do Juiz de Paz entrou no lugar aonde

estava elle preso, e lhe dice que o Juiz de Paz lhe mandava dar trezentos açoutes, cem em cada dia.

José Pachola, com uma paciencia verdadeiramente evangelica, com uma resignação sublime, apenas

respondeu: - Paciencia. –

Nessa mesma tarde Pedro Mandingueiro, com ar triumphante e insultador, entrou na prisão

de José, trazendo em uma mão um volumoso embrulho, e na outra tres bacalháos novos. Tendo

assim entrado, com uma pachorra, que era um doloroso insulto, pousou no chão o seu embrulho, e

os bacalháos, abriu a boca com aborrecimento, espreguiçou-se todo, e no meio deste bocejo fez: -

Ha... a... a... –

José Pachola levantou a cabeça, e com olhos tranquillos contemplou-o por algum tempo.

Pedro, sempre com a mesma pachorra, assentou-se no chão, tomou os tres bacalháos, e separou-os,

pondo todos tres equidistantes; feito isto, tomou o seu embrulho abriu-o, e tirou delle uma grande

porção de pimenta, limões, e um papel que continha sal. Depois, separou este sal em tres partes, e

poz cada uma junto de um dos bacalháos; fez o mesmo com as pimentas, e com os limões. Tendo,

pois, reunido cada um dos bacalháos a uma porção de sal, pimenta, e limões, começou a fallar com

sigo (sic) mesmo, dizendo:

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- Bem. Dezoito limões, estas pimentas, este sal, e este bacalháo, para a primeira surra, que é

amanhã. Estes outros dezoito limões, este sal, estas pimentas, e este bacalháo, para a segunda surra; e

estes outros dezoito limões, sal, pimentas e bacalháo para a terceira. Bem. Ora, pois, estes limões hão

de ser esprimidos n’uma panella, estas pimentas bem maxucadinhas, e este molhinho hade ser bem

temperado com sal. Lá perto do Páo já tem arêa. Põe-se a panella do molho (que hade temperar a

carne do Pachola), perto do Páo, e toca: de dez em dez açoutes molha-se o bacalháo n’arêa... Ora,

falta-me ver si estes bacalháos estão bons. –

Dizendo isto, o insultador começou a puchar pelos bacalháos, e a experimental-os, mirando

bem cada perna por sua vez.

Sendo José Pachola um preto de honra, cheio de estimulos, e de brio, tendo de mais a mais

orgulho de ser verdadeiro e leal, não tendo jámais em sua vida recebido um insulto, ou uma affronta;

bem póde o leitor ajuizar por quaes tormentos não passaria aquelle coração neste momento tão

pesado de affrontas, tão carregado de insultos!

Com effeito, Pedro Mandingueiro, sabendo que José Pachola era um preto de brio, e que não

soffria impunemente um desacato, havia calculado a dóse de suas affrontas; havia de tal sorte pesado

os quilates de seus insultos, de modo que levassem á aquelle coração o envenenado amargor de todos

os supplicios do inferno, para elle com a mais barbara, e diabolica pachorra, gozar com um prazer

desprezador e satanico, instante por instante, todos os effeitos deste supplicio de Tantalo! Era

preciso a coragem de Socrates para um homem de brio beber todo o calis de amarguras, e não

morrer depois de exhaurido!

Pedro, depois de experimentar as pernas dos bacalháos, fitou os olhos em José Pachola, que

mudo e quedo o tinha ouvido com admiravel sangue frio, e invejavel tranquillidade: e com insultante

piedade murmurou um ai, dizendo:

- Ai Jesus! José Pachola, meu filho, vós já sabeis o que ha?

- Não, mestre Pedro. Então o que ha?

- Pois vós não sabeis?

- Não, senhor...

- Ora vejam só! Pois, meu filho, vós não sabeis que ides ser surrado amanhã?

- Eu!?

- Sim... E de que vos admiraes?

- Mas, surrado pelo que?

- Pois vós não sabeis?

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- Eu, não!.. Mas o que é que eu fiz?

- Ora, agora estaes vos fazendo d’innocente! – Pois não vos lembraes daquelle cavallinho que

furtastes?

- Ah!.. não furtei: não, mestre Pedro...

- Eu cá, meu filho, si furtastes, ou não, não tenho nada com isso. O Snr. Juiz de Paz vos

manda dar trezentos açoutes em tres dias, cem em cada um... e me escolheu para vos surrar. O Snr.

Estevão mandou logo á cidade buscar estes bacalháos... Olhae, são novinhos em folha... Eu colhi

quantas pimentas e limões tinha na minha roça; comprei este sal, e amanhã... tende paciencia, meu

filho. Ora, o Juiz de Paz vos manda dar trezentos; mas, eu, como sou vosso amigo... vós bem

sabeis... tenho tenção de vos dar seiscentos, isto é, duzentos por cada vez. Tendes ouvido?

- Tenho, mestre Pedro, mas si o Snr. Juiz de Paz manda-me dar só trezentos açoutes, como é

que vosmecê hade dar seiscentos?

- Não, meu filho, lá por isso, não. Eu tenho ouvido dizer que nesta vossa terra, que vos vio

nascer, e aonde vós sois escravo, quem tem dinheiro faz o que quer: é por isso que vós levareis

seiscentos em vez de trezentos. Olhae, o official de Justiça que hade contar os açoutes já está com as

mãos untadas, e em vez de contar um por um, conta dous por um; quando elle dicer: “Cem... basta”

já vos estaes com duzentos, que no fim de tres dias fazem seiscentos, não é? Um dia duzentos, outro

dia duzentos, são quatrocentos; o outro dia duzentos, são seiscentos justinhos. A conta não mente...

Sabeis mais, meu filho: eu já tenho ensaiado. Pelas minhas contas, depois dos seiscentos, vós não

haveis de viver muitos dias!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 316, 23/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 315).

- Mestre Pedro, eu não posso ser castigado amanhã.

- Porque, meu filho?

- Porque estou doente.

- Doente de que?

- De rheumatismo. Tenho este joelho muito inchado, e tão cheio de dores, que não me posso

ter em pé, nem um instante.

- Não; lá por isso, não. Vós ireis carregado por dous negros, e depois nos lá no Páo vos

amarraremos.

- Está bom, mestre Pedro... talvez não seja assim... eu ainda tenho alguem por mim.

- Quem, meu filho? quem?

- Deos, Nossa Senhora, e a minha innocencia.

- A vossa innocencia, meu filho, fugiu no cavallinho do Snr. Estevão. Deos importa-se tanto

comvosco, como a primeira camisa que vestiu! Nossa Senhora nunca fez nada do que eu lhe pedi, e

por isso não creio nella... mas resae; vamos a ver si ella vem vos soltar desse tronco.

- Mas, mestre Pedro, vosmecê tem ido com bem bons augmentos!

- Então como?

- Principiou livre na sua terra, que lhe viu nascer; veiu escravo para a minha; de escravo

passou a ser forro; de forro a ladrão; de ladrão a feiticeiro; de feiticeiro a mentiroso, impostor e

embusteiro, a surrador; e pelas suas tenções de surrador á carrasco, ou assassino... Eu lhe dou meus

parabens. Deveras, mestre Pedro.

- Ah, negrinho!.. tu se has de ter humilhar, tu ainda grimpas comigo?! Deixa estar, que eu

amanhã te conversarei!

- Sim, senhor... agora, mestre Pedro, você é homem porque eu estou neste tronco...

- E delle para cova, meu filho. Até amanhã.

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José Pachola seguiu com a vista o seu insultante inimigo, e tendo-o visto sahir, pôz as mãos,

e exclamou:

- Meu Deos! só em Vós me fio, porque estou innocente! –

Pouco depois do cahir da noute um escravo do Juiz de Paz trouxe uma pequena porção de

carne secca assada, e um prato de pirão para José: este recebeu, e pediu ao portador para comprar-lhe

uma vela de sebo, o portador comprou-lh’a e a trouxe. José Pachola estando só, devorou a sua ceia.

Tinha este preto, com effeito, um joelho algum tanto inchado, e assim a perna. Logo que

amanheceu o dia, José Pachola começou a esfregar o sebo da vela na sua inchação. Pelas oito horas

da manhã José Pachola tinha gasto toda a sua vela nestas esfregações; mas elle esfregava, e limpava,

de modo que a perna ficasse lustrosa, e não apparecesse a menor particula de sebo.

Entre as nove, e dez horas da manhã entraram o carcereiro do preso, adiante, o Snr. Estevão,

com o ridiculo ar de um homem pequeno, que baixa e degradantemente se vinga, e á custa de

indignidades e vilezas triumpha em sua vingança! Depois delle, dous meirinhos do Juiz de Paz, cujas

caras, como quasi as de todos os meirinhos, revelavam a crapula, a devassidão, a mentira, a

libertinagem, todos os desaforos de uma vida desregrada e immoral, e a degradação a mais abjeta e

desprezivel do genero humano; trazendo sobre a fronte a condemnação proferida pelos homens, e a

reprovação firmada por Deos, e sobre os labios o sorriso de Satan sobre as dores dos réprobos!

Atraz, fechando este pequeno préstito, Pedro Mandingueiro com o mesmo apparato e orgulho da

vespera!

José Pachola, tendo a calça regaçada, ostentava a lustrosa inchação da perna, que elle

pertendia estar doente. Á entrada dos quatro, grandes eram os gemidos, que elle soltava.

- O que tens, negro? perguntou-lhe ativamente o bom do Snr. Estevão.

- Rheumatismo, meu senhor!.. Olhe, como tenho esta perna!

- Coitado!.. Sim... estou vendo... Está bem inchada!..

- Muito, meu senhor!.. Não posso com dores...

- Coitado!.. Ora, vejamos...

Dizendo isto, o Snr. Estevão firmou um pé sobre o joelho inchado do Pachola, levantou o

outro, como quem fazia um passo de dansa, firmado sempre no joelho de José Pachola... O Snr.

Estevão acompanhou esta horrivel acção com uma especie de modulação:

- La... ra... la... –

José Pachola estrocendo-se todo, lançou um doloroso grito:

- Ai Jesus, que morro!..

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Os dous meirinhos, e Pedro Mandingueiro, batendo palmas, soltaram uma gargalhada

infernal. Cumpre advertir que os meirinhos nem-uma indisposição tinham com o Pachola; mas esta

gente ri de tudo: ri quando vê rir, e ri ainda quando vê chorar. São os cynicos da sociedade moderna!

O Snr. Estevão, sahindo de cima do joelho do Pachola, dice:

- Então, negro, não te pódes levantar?

- Não posso, meu senhor, respondeu o Pachola.

- Pois vamos ver. Snr. Antonio João (continuou o nosso homem, voltando-se para um dos

meirinhos) abra o tronco.

O Snr. Antonio João, atirando para traz a ponta de sua espada, que, mettida n’uma velha e

suja bainha, pendia-lhe de um tosco cinturão de couro cru, ajoelhou-se, e abriu o tronco. –

Apenas José Pachola sentiu o pé solto, fez tres movimentos tão rapidos, que é impossivel

descrevel-os! O pensamento mal póde acompanhal-os! Foi o abater-se d’uma ave de rapina, o

empolgar a presa, e o elevar-se aos ares! José Pachola curvou-se, arrebatou a espada ao meirinho, e

saltou no meio da casa armado para accommetter, e defender-se!

Os quatro recuaram timidos e medrosos; mas, Mandingueiro, recobrando-se do primeiro

impeto, dice:

- Ah sô Chico Ignacio, de que diabo lhe serve essa espada, homem? –

Isto dizia para o outro meirinho, que se escoava por detraz dos tres; e como assim tivesse

fallado, quiz arrancar a espada ao Snr. Chico Ignacio, que procurando a porta, rosnava:

- Quem as armou, que as desarme! –

José Pachola, vendo o Mandingueiro querer armar-se, investiu com elle, e desandando-lhe

um golpe, fez voar-lhe ao ar uma orelha; a espada desceu-lhe ao braço, aonde abriu um tremendo

golpe. Pedro cahiu gritando:

- Acudam-me, que morro...

- Boa espada! dice o Pachola.

Os dous meirinhos, temendo algum engano, safaram-se. O Snr. Estevão fazia o mesmo,

quando o Pachola lhe dice:

- Eu não o quero matar agora, para que nos encontremos com mais vagar. –

José Pachola dice e sahiu.

(Continúa).

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ROMANCE BRASILEIRO

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Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 316).

XXIII.

Rehabilitação.

Lembrar-se-á o leitor que no fim do capitulo XXI dice o narrador que o Snr. Bento, e seus

companheiros, tirando o lenço, que servia de mordaça, e desatando a pessoa que pedira soccorro,

acharam-se cara á cara com a Snra. Thereza! Os espectadores desta scena, os quaes eram ao mesmo

tempo actores, não se espantaram, pois que o Snr. Bento havia dito que a voz era della.

A Snra. Thereza estava desmaiada, e o Snr. Bento e os seus amigos a tomaram em braços e

levaram-na para sua casa. Bem depressa a moça voltou á si, e seus olhos espantados, e seus gestos,

exprimiram assás a admiração que lhe causava o achar-se outra vez, e sem saber como, em casa de

Snr. Bento. A pobre moça tinha os cabellos espalhados, e em desordem sobre seus hombros; seus

olhos estavam espantados, e alguns arranhões de seu rosto, seus braços, e suas mãos demonstravam

que não foi sem resistencia que fôra amarrada, e que se lhe havia imposto a mordaça. Diante desta

imagem do soffrimento, e do insulto, o Snr. Bento envergonhou-se de sua colera, e com voz

compassiva, e affectuosa, perguntou-lhe:

- Que é isto, Snra. Thereza? –

A Snra. Thereza, encarando-o com um ar em que se revelava o resentimento e ao mesmo

tempo a compaixão, dice-lhe:

- Que lhe importa, senhor? Des de que fui tão vergonhosamente expellida de sua casa nada

mais ha de commum entre nós.

- Mas, á vista de uma accusação formal... de um homem introduzido em minha casa...

- Maldito seja quem o introduziu.

- Em todo o caso...

- Em todo o caso é que, victima da prepotencia de meus paes, fui levada quasi de rastos ao

altar para unir-me a um homem a quem não tinha amado, não amava, e nunca amei; porque o

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homem a quem havia amado, de dos meus quartoze (sic) annos, havia sido o senhor. Casada com um

homem, ao qual não amava, e ao qual tinha motivos de aborrecer; o homem a quem sempre eu havia

amado, o Snr. Bento, julgou achar-me fraca neste amor, e mais fraca no aborrecimento que eu votava

a meu marido; e não obstante amar o Snr. Bento, as caricias, offerecimentos, conselhos, pedidos,

rogos, tudo quanto o Snr. Bento empregou para seduzir-me, para desviar-me de minhas obrigações,

foram debalde! O aborrecimento ao meu marido, imposto pelo interesse, achou-me firme em meus

deveres, a paixão, e as suggestões do meu primeiro amante não me puderam abalar! Isto, senhor,

valia alguma cousa... Só ao depois de viuva é que, fiel á minha primeira affeição, lancei-me nos braços

do Snr. Bento, com a minha pequena fortuna, que bem me chegava. Não foi a necessidade que me

impelliu, foi o amor... e a mulher que não foi falsa a um marido não amado, sel-o-ia a um amante tão

querido, e tão desejado sempre?.. Snr. Bento, sou de mais nesta casa... Adeus!..

- Não... não... Ambos nós fomos victimas de uma grande perfidia, é preciso que nos

vinguemos.

- Pois vingue-se... Que tenho eu com isso?

- É preciso que a senhora me diga quanto sabe a respeito, para orientar-me.

- Um homem vil, que introduziu-se em sua casa, e em quem vosmecê acreditou, deve

merecer-lhe mais conceito do que eu: pergunte-lhe. –

Um respeitavel ancião, que ali tambem se achava, tomando a palavra, dice:

- Minha senhora, perdôe-me si me entrometto em um assumpto que me é estranho; mas a

minha idade dá-me esse direito. Perdôe-me a senhora: vejo bem que o Snr. Bento foi precipitado;

mas vejo tambem que fez o que faria qualquer homem de honra em tal posição. Um homem, bem

parecido, e decentemente trajado apparece em sua casa; este homem, diante de algumas pessoas,

declara que aqui veiu por sua causa: ainda que isto fosse verdade a senhora não confirmaria. O Snr.

Bento irrita-se, é natural... Agora, que o negocio toma outra face, a senhora D. Thereza deve declarar

o que houve antes do que agora aconteceu. Esta declaração serve tanto para orientar o Snr. Bento,

como para sua justificação. É pela sua honra, minha senhora, que assim deve proceder.

- Pois bem: si a minha honra o exige, direi alguma cousa. –

Com effeito, a moça contou aos circumstantes tudo quanto sabia acerca das diligencias, que o

Snr. Estevão por ella havia feito. O leitor sabe de tudo isto. A Snra. Thereza concluiu assim:

- Eis tudo quanto sei deste homem. Agora, como aqui entrou o seu caixeiro, por onde

entrou, e quem o introduziu, não sei...

- Sei eu... –

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A porta tinha ficado aberta, e ao mesmo tempo que soaram estas palavras, as pessoas que se

achavam em roda da Snra. Thereza viram no meio da sala um preto decente e respeitoso. O preto

continuou:

- Peço perdão a meus senhores de entrar sem pedir licença, e de vir metter-me nesta

conversa. Si meus senhores quizerem, direi tudo quanto sei a este respeito; mas olhem, meus

senhores, que eu sei tudo.

- Pois sim, rapaz (dice o Snr. Bento), dize o que sabes. –

Sem mais exordio, nem preambulo, nem ceremonia, começou o preto a contar todas as

patifarias do Snr. Estevão desde que viu a Snra. Thereza. Contou tudo ácerca das velhacadas de

Laura, e de Pedro Mandingueiro, do assassinato de Augusto, do roubo de Maria, &c. A narração do

preto era animada, viva, e cheia de enthusiasmo. O leitor adevinha que um tal preto, tão bem

enfronhado nesta horrivel meada, só podia ser José Pachola. Assim era; e elle fez a fiel narrativa de

todos os acontecimentos, até a sua prisão, sem omittir os insultos do Mandingueiro e do Sr. Estevão.

Então proseguiu dest’arte.

- A perna e joelho, que eu tinha inchados, não era de rheumatismo; mas eu pensei que

fingindo doente, a ponto de me não poder pôr em pé, elles me acreditariam, e, abrindo o tronco, me

mandriam erguer-me a ver si eu podia andar; e era o que eu queria; porque elles poderiam matar-me,

mas surrar-me, não... si eu estivesse culpado, sim; mas estando innocente... qual!.. Com effeito, o meu

fingido rheumatismo me deu a liberdade, e logo que escapei, fui á casa do Snr. Estevão, agarrei o

moleque, que me tinha dado o cavallo para vender, e obriguei-o a me confessar a verdade. O

moleque confessou-me que seu senhor é que lhe tinha dado o cavallo para me dar para eu vender!..

Vejam, meus senhores, quem é que se póde livrar de uma destas?! Desde então puz-me no socairo

do Snr. Estevão... Todas as noutes eu lhe rondava a casa, e sempre rente com elle, nunca o perdia de

vista... Mas meu senhor não tem uma escrava chamada Domingas? (perguntou José Pachola ao Snr.

Bento).

- Sim, tenho (respondeu este).

- Pois chame-a, meu senhor. –

O Snr. Bento fez chamar a Domingas; mas debalde, que a esperta não estava mais em casa.

- Não importa (dice o Snr. Bento). Ella apparecerá. Continúa a tua historia, meu filho...

- É que ella (dice o Pachola) é que introduziu aqui o caixeiro do Snr. Estevão...

- A Domingas?! (exclamaram a um tempo e Snr. Bento e a Snra. Thereza).

- Sim, minha senhora, a Domingas; e é porisso que ella fugiu.

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- Mas, como? –

José Pachola referiu miudamente tudo o mais que sabia sobre as entrevistas do Snr. Estevão,

e da Domingas, revelando tudo quanto nellas havia ouvido. O leitor póde bem figurar-se o pasmo,

que imprimiriam no auditorio as revelações do Pachola, revelações, que a fuga da Domingas tinha

tornado infalliveis.

O vulto vestido de preto, que surgira de uma mouta, como um phantasma da meia noute,

que desapparecera como uma visão, e que parece ter assistido áquella entrevista do Snr. Estevão, e

Domingas, que o narrador apresentou ao leitor, era José Pachola!

Não custou pouco aos amigos do Snr. Bento applacarem os resentimentos da Snra. Thereza.

No outro dia o Juiz de Paz recebeu uma denuncia dos crimes do Snr. Estevão. Elle sabia que

Augusto, que o não conhecia pessoalmente, seria capaz de perseguil-o até nos infernos, por causa do

roubo de sua filha; assim, nesse dia o Snr. Estevão anouteceu em Irajá, e amanheceu... Deos sabe

aonde.

José Pachola, criminoso, não só pela fuga das mãos dos meirinhos, e resistencia armada, mas

tambem pelo ferimento do Mandingueiro, esteve occulto algum tempo, até que sua senhora achou

occasião de o remetter para as bandas de Minas, para casa de um seu irmão, que fôra criado com o

José Pachola.

Laura foi tambem perseguida pela justiça, e para salvar-se, fugiu, e tal sumiço levou, que

nunca mais della se soube.

Pedro Mandingueiro morreu do ferimento, que lhe fez o Pachola, mez e meio depois desse

acontecimento.

Quinze dias depois do desapparecimento do Snr. Estevão, o Vigario de Irajá, na Igreja de N.

S. da Apresentação, abençoava um novo casal! Dest’arte o honrado Snr. Bento reparava a injuria feita

á constante e formosa Snra. D. Thereza!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 318, 30/11/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 317).

XXIV.

Nove annos depois.

Olhae para o mostrador de um relogio; contemplae com alguma attenção um pequeno

ponteiro a que chamamos – ponteiro dos segundos -, e admirae a rapideza com que esse ponteiro

salta da um a outro ponto sessenta vezes, e percorre um circulo, cuja medida circular fórma um

minuto, uma das grandes divisões arbitrarias em que o homem calculado quiz dividir o tempo. Pois

bem, sessenta vezes percorrido esse circulo, é uma hora; porque, uma vez percorrido elle, é um

minuto; vinte e quatro, porém, dessas nihilidades do tempo, ou moleculas (venia ao neologismo, ou

antes maneira menos vulgar de exprimir-me) constituem o que chamamos – um dia; trezentos e

sessenta e cinco destes, ou sessenta e seis, fazem um anno, os quaes em numero de cem completam

seculo! e este periodo, que nos parece tão grande, é menos, muito menos para o tempo, que uma

gotta d’agua para o oceano! Vós não acreditaes na rapideza do tempo, porque não calculares nella;

não importa; fictae os olhos sobre o mostrador de um relogio; contemplae a velocidade com que se

volve sobre seu eixo o ponteiro dos segundos, e meditando um pouco nessa velocidade, ver-vos-eis

obrigados a pasmar da carreira do tempo! e, si não, perguntae ao tempo o que fez dos mais bellos

dez, ou quinze annos de vossa existencia! O tempo não vos saberá dizer; appellae para vossas

lembranças; fatigae vossa memoria; chamae as vossas recordações, e procurae saber o que fizestes

dos ossos vinte aos trinta, ou ainda trinta e cinco annos!.. Era um bello dia, tinheis os vossos vinte

annos, e vos deitastes a dormir; dormistes, e doce foi o vosso somno! doce, como o ciciar d’aragem á

entrada de uma deliciosa noute! doce, como o som da frauta tangida na solidão de alta noute! doce,

como palavras de amor em mavioso coloquio proferidas, e esperançosamente escutadas! Dormistes,

e sonhastes! Em sonhos gozastes o perfume de escolhidas flores! os sons de agradavel melodia, os

extasis, de sentimental poesia, e os arroubos de apaixonados colloquios; porque vós sonhastes as

delicias d’amizade, e os encantos do amor! Era, pois, um bello dia, e dormistes, e sonhastes;

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dormistes um doce, mas ligeiro somno; sonhastes felizes, mas lubricos sonhos! E os somnos foram

dormidos e sonhados em um momento. Tinheis vinte annos quando assim começastes a dormir e a

sonhar! dormistes e sonhastes um instante... acordaste-vos... tinheis trinta, ou trinta e cinco annos!

Oh! eis um tempo que vós quererieis que nunca passasse, ou ao menos que passasse tão

vagaroso como um seculo! e entretanto, um seculo passa bem depressa! E assim se passaram dez ou

quinze annos, sem que vós o sentisseis, sem que vos apercebesseis de sua rapida passagem, tão

fugitiva como a passagem do aroma das flores; porque essa idade é o aroma da flor da existencia! E si

ainda o duvidaes, vêde: não foi hontem que Maria foi roubada a seu pae? assim o parece... e no

entanto, já lá vão nove annos bem contados, contados dia por dia!

O narrador sabe, e o sabe perfeitamente, que todos os corações sensiveis se tem interessado

por Maria. E como não? aos sete anos de sua idade, e já tão desgraçada, é quasi impossivel não reunir

em seu favor todas as sympathias dos bons corações. Vós vistes esta creatura desgraçada, joven

como a flor, innocente como a rôla, pura como o orvalho da manhã, formosa como um anjo, e bella

como um sorriso de Deos, ainda n’aurora de sua existencia já tão acabrunhada de tantos e tamanhos

trabalhos! Repassae pela imaginação todos os trabalhos soffridos por esta pobre creaturinha, des de

que viu seu pae assassinado, até ser levada por alguns mineiros; repassae-os, e dizei si Maria não tinha

sido assás desgraçada, e si não é bem digna de toda a compaixão! Pois bem: Maria merece até nossas

lagrimas; o que, não obstante, é preciso abandonal-a a seus destinos.

Tambem mostrámos por ella uma tão indisivel solicitude, porque sua idade, seu estado de

innocencia o exigiam; hoje Maria conta os seus dezeseis annos; e, portanto, bem é que tome conta de

si, e que por si mesma se dirija no caminho da vida. Assim, caros leitores, levae a bem, e permitti até

que o narrador deixe Maria, e que de outras cousas se occupe.

É verdade que vos julgaes com direito de perguntar-me: - Aonde esteve Maria nestes nove

annos? o que fez? como foi educada? como viveu, &c.? – mas tambem é verdade que o narrador não

o sabe, e assim, ainda que quizesse responder, o não poderia. Não nos desconsolemos: o tempo

aclarar-nos-á estes mysterios. O narrador pensa que elles não serão tão profundos, que não possam

ser perscrutados e conhecidos.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 319, 02/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 318).

Agora o narrador convida o leitor a entrar com elle em uma casa n’uma das ruas da Cidade-

Nova. Eu não indico a rua, nem o numero da casa, porque sendo este facto contemporaneo, temo

offender algum melindre, ou alguma destas irasciveis susceptibilidades.

Entremos, pois, esta casa, cujo arranjo manifesta que pobre não é quem a habita. Figurae que

estaes em uma magnifica sala, cujas paredes são asseadamente forradas de papel adamascado, de uma

bella cor de purpura, cujo fundo é elegantemente recamado de uma ramagem de outro

caprichosamente desenhada. Alguns quadros sumptuosamente moldurados de ouro, representando a

entrada de Cortês do Mexico, cujo desenho, e colorido, nada deixam que desejar; por entrançados

cordões de purpura, terminados por borlas de ouro, estavam pendentes do gessado tecto, que não

tinha de que envergonhar-se pela brancura do alabastro. Dous grandes espelhos, assim moldurados,

tambem assim pendiam. Uma elegante, e bem acabada mobilia da jacarandá, parecia ter naquelle

momento sahido das mãos do lustrador, de tão brilhante que então se ostentava! O pavimento,

forrado de fina esteira, tornava-se digno da purpura das paredes, da brancura do tecto, e do gosto da

mobilia. Sobre o marmore da mesa redonda, que no meio da sala avultava, em um magnifico

lampeão, entretida por azeite de oliveiras, ondulava magestosa uma grande chamma, cuja viva luz

cahindo em ondas sobre o pavimento, inundava todo o espaço da sala.

Um homem, ainda moço, que deveria ter sido formoso, e ate bello; de faces rugosas, pallido,

e quasi completamente coberto de cãas; de aberta e agradavel physionomia; mas que revelava que

grandes padecimentos a tinham prematuramente envelhecido; estava assentado junto á mesa

redonda, sobre cujo branco marmore descançavam seus cotovellos, tendo o rosto apoiado sobre o

concavo das duas mãos, em cujas palmas se reclinavam suas faces. Signaes de grandes soffrimentos

pareciam deslumbrar um pouco a luz de seus grandes olhos, que deveriam ter sido brilhantes, e

amorosos no tempo de suas felicidades e de seus amores; mas o sombrio da paciencia e da

resignação dava a seu rosto uma magestade quasi celeste. Diante desta imagem do soffrimento, e da

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resignação, estava aberto um livro, cuja fórma era um quarto grande, dividido em duas columnas. O

homem, com os olhos embebidos em seus caracteres, sem pestanejar, sem mover seus labios, parecia

absorto, ou em profundos pensamentos, ou nas idéas que lia sobre a pagina direita do livro, e

primeira columna. Pelos diversos e desiguaes comprimentos das linhas, que elle tinha diante de si,

podia dizer-se, sem mêdo de errar, que estas linhas eram versos. Em cima, como titulo distinctivo

desses versos, havia estas palavras em tres pequenas linhas:

GETHSEMANI

OU

LA MORT DE JULIA.

Gethsemani!.. Comprehendeis vós todas as relações desta palavra Gethsemani? Gethsemani!..

é um lugar aonde os anjos testemunharam sublimes padecimentos, augustas dores, e solemnes

angustias, porque eram os supremos soffrimentos de um Deos! Foi ali aonde Jesus, o filho de Maria,

Jesus, o filho de Deos, Jesus, o Salvador, na vespera de seu passamento, sentiu todos os tormentos

de sua paixão, e todas as amarguras de sua morte! Foi ali aonde o homem Deos coberto de sangue,

que transpiravam seus divinos póros, em fórma de bagas de suor, pedira a seu Eterno Pae que

removesse delle, si era possivel, o calis d’amargura! Foi ali aonde com peso de morte pesou em sua

divina cabeça o genero humano inteiro, porque elle sabia que a mór parte de seu sangue seria

desperdiçado! Sabia que tantas lições de amor, desinteresse e caridade; tanta e tão sublime abnegação,

tanta e tão suprema dedicação; tantos e tão solemnes exemplos de humildade, fraternidade e

clemencia, tudo para felicidade dos homens; tanto, e tão precioso sangue, que se ia derramar até a

ultima gotta; tudo seria olvidado, tudo perdido, e tudo desprezado, porque os homens, por excesso

de um diabolico orgulho, amariam a sua desgraça, para não serem agradecidos aos beneficios de seu

Salvador!

É pois o Gethsemani um lugar de angustias. Afora os malvados, afora os patifes, os demais

homens, tem na vida o seu Gethsemani; e mais, ou menos longo, mais de uma vez as almas boas

soffrem no seu Gethsemani. O homem que tinha diante de si esta poesia com este titulo, estava

tambem no seu, e por demais longo lhe era elle.

Enxugando uma vez por outra as lagrimas que vagarosas de seus olhos pendiam, o homem,

que se havia feito velho antes do tempo, pareceu ler as duas columnas cheias de versos, e voltou a

pagina. O interesse, e até a dedicação com que elle tinha os olhos presos nestas letras, faria acreditar

que estes versos eram um doloroso punhal, que rasgava seu peito, e fazia sangrar a sua dolorosa

chaga! Gosta disto o coração! Com effeito, quando uma dor destas dores immensas, uma dor

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augusta, uma dor santa, despedaça uma alma sensivel, essa alma assim atormentada, gosta de imagens

de lucto, que a atormentem, e que tornem mais vivos os seus padecimentos! Não é a horrivel idéa de

uma consolação nos males alheios, não: essa idéa seria a profanação de uma dor santa. É que uma

alma enferma conhece bem os medicamentos para sua enfermidade. Como aquelle que suffocado no

gêlo volta a vida por meio de fricções do mesmo gêlo; como aquelle que perdêra a razão no meio de

uma espantosa scena de desolação e de luto, para fazel-o recobrar a razão, fazem a sua vista

representar a mesma scena; assim, uma alma atormentada de uma extraordinaria dor gosta, e ama

luctosas imagens aonde apparecem os traços de seus padecimentos, para pouco a pouco se ir

curando de seus immensos males!

O homem, pois, que lia, tendo voltado a pagina, exclamou com uma voz triste, pesada, e

offegante:

- Sim... tambem eu não tinha senão ella!.. –

Depois de uma breve pausa, elle leu alto:

“Et je senis ainsi, dans une heure éternelle (1)

Passer des mers d’angoisse ete des siècles d’horreur,

Et la douleur combla la place où fut mon coeur,

Et je dis à mon Dieu: Mon Dieu! je n’avais qu’elle!

Tous mes amours s’etaient nouyés dans cet amour,

Elle avait ramplacé ceux que la mort retranche,

C’etait l’unique fruit demeuré sur la branche

Après les vents d’um mauvais jour!

C’etait le seul anneau de ma chaine brisée,

Le soul coin pur et bleu dans tout mon horizon!

Pour que son nom sonnat plus doux dans la maison,

D’un nom melodieux nous l’avions baptisée.

C’etat mon univers, mon mouvement, mon bruit,

Nota do autor: (1) Em uma hora eterna assim senti passar mares de angustias, e seculos de horror; e a dor encheu o lugar em que existiu meu coração, e dice á meu Deos: “Meu Deos! eu não tinha senão ella! Todos os meus amores se haviam mergulhado neste amor; os que a morte ceifa forma substituidos por ella; era o unico fructo ainda pendente sobre o ramo, depois dos ventos de um dia tempestuoso! De minha cadêa despedaçada era o unico annel; de todo o meu horizonte o unico ponto azul, e puro! Para que na familia seu nome soasse mais docemente, no baptismo, lhe haviamos posto um nome melodioso. Era o meu universo, meu movimento, meus sons, a voz, que me enfeitiçava em todos os lugares, o encanto, ou o cuidado de meus olhos, de minhas horas, e minha aurora, minha tarde, e minha noute. Lamartine.

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La voix qui m’enchantait dans toutes mes demeures,

Le charme ou le souci de mes yeux, de mes heures,

Mon matin, mon soir et ma nuit.”

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 320, 07/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 319).

O homem que havia envelhecido antes do tempo não pôde continuar, porque sua voz

perdeu-se entre dolorosos soluços: sua cabeça, pesada de sofrimentos, cahiu sobre a mesa, e seu

pranto continuou a correr.

XXV.

Os amigos da infancia.

O homem moço ainda nos annos, e velho já nos trabalhos, e que o leitor por sem dúvida terá

conhecido (e si não conhecem, não é culpa nossa), estava na postura em que o deixamos no capitulo

passado, havia cinco minutos, quando alguem com alguma indiscrição, ou talvez familiaridade, bateu

palmas no topo da escada. Um escravo acudiu a ver quem batia. O dono da casa levantou

languidamente sua pesada fronte, e ouviu esta pergunta:

- Não mora aqui o Snr. Augusto?

- Mora, sim senhor (respondeu o escravo).

- Está elle em casa?

- Esta, sim senhor.

- Pois dize-lhe que alguem o procura. –

O escravo veiu annunciar isto ao dono da casa, que em quanto se passava o pequeno dialogo

entre seu escravo, e quem o procurava, apenas murmurou duas vezes, e muito baixo:

- Eu conheço esta falla?.. Esta falla não me é estranha!..

O escravo participou a seu senhor que alguem o procurava, e o senhor dice-lhe que

mandasse entrar. Com effeito, um homem moço, bem parecido, de elegante figura, trazendo na mão

esquerda um chapéo como os que usam os nossos tropeiros de serra-ácima, calçado de grandes botas

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de montar, coberto com um largo ponche, e tendo pendente do braço direito um grande azorrague,

entrou a sala, e apenas viu o dono da casa, correu para elle com os braços abertos, exclamando:

- Augusto!!!

- Floriano!!! –

Assim exclamou tambem Augusto, e cahiram nos braços um do outro. Depois que estes

dous amigos, neste terno abraço deram toda a expansão ao jubilo de suas almas. Augusto

desprendendo-se dos braços, que o apertavam, recuou alguns passos, e fitando o amigo, dice:

- Mas tu de lucto! Que lucto é esse?

- Trago-o por minha madrinha...

- Que madrinha?

- Tua tia, a Snra. D. Candida...

- É morta minha tia?!

- Sim, é morta.

- É morta!.. Foi tão virtuosa... tão boa... O meu coração não tem uma lagrima para dar á sua

memoria.

- Sim, sempre foi boa; e nem nos cabe dizer outra cousa.

- Tu, meu amigo, a serviste sempre, e com dedicação.

- O que dei por bem empregado...

- Deixou-te ella alguma cousa?

- Eu nada ambicionava; porém ella deixou-me quanto podia.

- Dou-te os parabens.

- E eu tambem a ti.

- A mim?!.. E porque?

- Porque ficaste seu primeiro testamenteiro e universal herdeiro.

- Eu?!

- Sim; tu mesmo.

- E a ti? que te deixou ella?

- A sua terça, que em muito deve avultar; e recommenda no seu testamento que uma bella

situação com meia legua de testada, e uma de fundos, com vinte e tantos escravos que tem, e todos

os seus utensis, entrem na terça.

- Ella devia fazer-te seu universal herdeiro... nem era muito para quem tanto a serviu...

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- Ella fez o que era de seu dever; porque se chegou a possuir tamanha fortuna, a teu pae a

devia. Não fez mais que pagar no filho as virtudes do pae.

- E para que me serve essa fortuna?

- Para que?

- Ella de nada me serve. Quando eu tinha a minha querida filha, bem que não cobiçasse

amontoar thesouros, comtudo não desestimaria tel-os para que minha filha fosse feliz... mas hoje...

- Tens tu perdido todas as esperanças?

- Todas... oh! todas...

- Como?! Tu, que és tão bom, tão justo, tão virtuoso; tu, que tens tanta piedade, é possivel

que assim desconfies da misericordia divina?

- Não, meu amigo, não desconfio...

- E então?

- E que merecimentos tenho eu aos olhos de Deos, para que Deos opere um milagre em meu

favor?

- Um milagre!!!

- Sim... um milagre!

- Não, Augusto; tu pódes ainda haver tua filha por maneiras bem naturaes. Um milagre é um

transtorno na ordem natural, e a ordem providencial não a altera por tão pouco...

- Meu amigo, presentemente o haver eu minha filha, é um impossivel; e, si não é impossivel,

ao menos é muito, muito difficil, e ao vencimento desta difficuldade é que chamo milagres.

- Mas porque julgas tão difficil?

- Porque Maria, si vive, deve ter os seus dezeseis annos. Tu sabes que notaveis mudanças faz

nosso corpo e nosso espirito nesse tempo veloz que separa correndo os dias da infancia dos dias da

adolescencia! Minha filha já não póde ter seus engraçados cabellos castanhos; seus olhos já não

podem ter essa chamma de pureza, que tão docemente reflectiam nos dias de sua infancia; sua boca

já não póde adornar-se desse sorriso de innocencia, que a tornava tão pura nos seus primeiros annos;

seu corpo já não póde ter essa delicadeza, que só teem as moças debaixo do tecto paternal! Como,

pois, reconhecel-a? Quanto a mim, como me reconhecer ella? Tinha apenas sete annos. Sete annos!

E quando guarde em sua memoria, si lhe for fiel, as notas que em meu rosto conheceu no tempo de

sua infancia, essas notas fugiram com a minha alegria! Estou completamente mudado; sou outro,

bem o estás vendo! A dor embaciou meus olhos; com os desgostos empallideceram meu rosto! e no

meio desta dor, sepultado nestes desgostos, os meus cabellos se encaneceram, encovaram-se meus

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olhos, enrugaram-se minhas faces, e meu rosto se tornou cadaverico! Todo, eu não sou sinão um

cadaver ambulante! Quando minha pobre filha se encontrasse comigo, como poderia reconhecer-

me?...

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 321, 10/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR TEIXEIRA E SOUSA.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 320).

- Mas, Augusto, porque tanto desanimo? Aonde está a tua philosophia?

- Philosophia!.. palavra pomposa! É verdade... a cabeça a conhece e a comprehende, o

coração a desconhece e não a sente! Philosophia! é uma palavra intelligente para uma cabeça altiva, e

estupida para um coração sensivel! Philosophia! amoroso sonho do preso; que acorda no som de

seus ferros! mesquinha taboa do naufrago, que se afunda com elle! nuvem dourada d’aurora, que se

esvae no sopro da tempestade! rosa da manhã, que o sol do meio-dia murcha, e que o vento da tarde

derrota! phantasmagoria de um encantador ideal, desmentida por uma terrivel verdade! Philosophia!

impostura da cabeça, mentira do coração! impostura e mentira do orgulho humano, sempre

desmentidas pelas desgraças do homem, e pela fraqueza do coração! Mentira, e sempre mentira!

Póde-se ser philosopho, póde-se ser estoico, e até se póde ser um Zenon, quando o egoismo

tem petrificado o coração; quando as relações sociaes não são mais que meras cortezias, ou

formalidades humanas; quando se não ama; quando se não tem filhos, parentes, e amigos; por que

um tal coração não vive! A vida do coração é como a vida da sociedade; a vida do coração é o amor,

e este amor é nascido da fé; por ella cresce, por ella vigora, por ella floresce, e por ella fructifica!

porque a fé é a unica philosophia do amor, seu unico principio, unico meio, unico alvo de suas

acções sempre cheias de fé! Gostamos de amar aquelles em quem cremos, e de quem somos cridos;

gostamos de crer naquelles que amamos, e dos quaes somos amados! Esta crença gera em nós uma

fé, esta fé gera e mantem em nós um amor; este amor gera, mantem, e desenvolve a vida do coração

e a confiança d’alma! Desta arte, sem crença, sem fé, e sem amor, a vida do coração e a confiança

d’alma são impossiveis; por isso que esta vida, e esta confiança são os necessarios effeitos da crença,

da fé, e do amor! si a vida fosse o unico phenomeno de uma existencia, qualquer que fosse e como

fosse; os vegetaes viveriam, e viveriam talvez vida mais feliz que a nossa! A vida é a intelligencia

d’alma, a sensibilidade do coração, e a vontade de amigos; porque esta intelligencia entende esta

sensibilidade sente, e esta vontade quer; e quando esta intelligencia está morta para entender, esta

sensibilidade morta para sentir; a alma está perdida, porque não tem uma crença, que a salve; o

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coração está morto, porque não tem uma fé que o vivifique; e a vontade está sem acção, e suas tibias

resoluções não são mais do que simples velleidades; porque não ha um amor que a anime, que a

mova, e que a dirija!

Quando si tem um coração assim, quando o egoismo tem, por assim dizer, materialisado toda

a espiritualidade de nossa alma; póde-se ser philosopho; mas um ente destes póde ser philosopho,

póde ser estoico, póde ser tudo, tudo; mas homem... não; nunca... nunca; porque o homem foi feito

para sentir, crer, e amar; sentir por sua propria consciencia, crer, em consequencia do sentimento, e

amar em consequencia do sentimento e da fé! Assim sentir a si mesmo, crer em seu Creador, e amar

a seus semelhantes, são tres factos psycologicos que só podem ser destruidos por uma educação

libertina, e pelos attentados do egoismo. Quando finalmente o homem não sente, não crê, e não ama,

tem estupida, e miseravelmente falseado o grande plano da Divindade, que plasmou em nossa alma

esta trindade para que o homem jamais se isole da sociedade, para que, pelo sentimento, elle esteja

ligado ao mundo exterior, pela fé, ao seu Deos, e pelo amor, a Deos, e aos seus semelhantes.

- Augusto, eu não quero, nem posso, nem devo contrariar nem-um dos teus raciocinios; mas

julgo que és um pouco desanimado. Talvez que tua filha seja viva, e que viva bem feliz...

- Eis a minha dor.

- A tua dor?

- Sim.

- Qual é?

- É esse talvez!

- Comprehendo-te...

- Si minha filha tivesse morrido, eu teria chorado sobre o seu cadaver todas as lagrimas de

um pae, e sobre seu tumulo o resto das lagrimas, que a morte de minha esposa havia ainda deixado

em meu coração! Teria chorado, e chorado muito... mas depois consolar-me-ia. A lembrança de que

tinha eu um anjo no céo velando, e pedindo a Deos por mim, iria pouco a pouco minorando a minha

dor, e distrahindo a minha saudade... mas a incerteza de sua existencia, de seu estado, de suas dores, e

prazeres; de suas tristezas, e alegrias; de seus males, e seus bens; de suas desgraças, e felicidades... oh!

a dor desta incerteza só pode ser avaliada por aquelle que a sente! Esta incerteza é um estado dubio,

mas odioso entre a vida, e a morte! É uma esperança, que nos faz esgares, e nos negacêa com a

felicidade, e uma desesperação, que nos retem, e nos conduz para a desgraça! É um crepusculo

detestavel, em que se misturam as sombras do tumulo, e a luz dos céos! É uma duvida piedosa, e

impia, que nos faz confiar na Bondade infinita, e desconfiar de sua Providencia! É uma dor sem

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interrupção, e sem fim, e um prazer sem consolação e alegria! É uma desesperação sem limites, e

uma esperança phantastica. Finalmente, meu amigo, é um caminho que percorremos de continuo,

sem jámais chegarmos ao fim da viagem! É uma fome que nos devora, e que nunca podemos saciar!

É pois o rochedo de Sisypho, e o tonel das Danaides!

Quem sabe si minha pobre filha teria hoje tido um pão para comer! Quem sabe si, como uma

desprezivel criada, si abrigue ella hoje debaixo de um tecto desprezador, e orgulhoso! Quem sabe si,

victima de uma sociedade immoral e corrompida, cahisse nos torpes laços urdidos pelos impudicos

ardores de um seductor libertino; e que decahida no meio dessa sociedade pharisaica, sem leis, e sem

pudor, que não guia a mulher, que não a defende, que não a ampara, e que não a socorre; se veja hoje

desprezada, escarnecida, e infamada nessa sociedade, que victorêa a mentira, applaude o crime do

enganador, para com diabolico cynismo, com satanico desprezo cuspir esse mesmo crime á cara da

miseranda enganada!..

Meu amigo, tu és bom, tens raras e subidas virtudes; mas por grande que seja a bondade do

teu coração, tu não pódes comprehender a força suprema do amor paternal! não pódes

comprehender a sublimidade de suas delicadezas, nem a santidade de seus estremecimentos! Para

qualquer homem comprehender isto, não basta ser bom, é preciso ser pae.

Vê, meu Floriano, quaes não serão meus tormentos! Quando vejo alguma moça na idade dos

seus dezeseis annos, digo entre mim: “É a idade de minha filha... si ella vive, deve ser mais bella do

que esta moça!” Quando vejo alguma turma de moças, rindo e brincando, invejo a felicidade de seus

paes! Então indago de suas idades, busco saber si todas têem pae; porque digo entre mim: “Quem

sabe si alguma dellas será a minha pobre filha!” Em alguma destas moças, que tem os seus dezeseis

annos, busco encontrar os traços da minha Maria. Então, fallando comigo mesmo, digo: “Quem sabe

si ella não é tambem desta altura! Si não tem tambem assim os olhos! Si não são tambem assim as

suas bellas faces! Si não é assim esbelta, engraçada, e formosa...” Mas nada disto serve sinão para

tornar mais funda a minha ferida, e mais insupportavel a minha dor!..

E quem sabe si minha filha, á mingua e ao desamparo, morreria miseravelmente! Oh meu

Deos! meu Deos! –

As lagrimas de Augusto (que o leitor conheceu logo no principio deste capitulo) o

suffocaram a ponto que não o deixaram ir por diante.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 322, 14/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 321).

XXVI.

Novo theatro. – Novas scenas.

Os escriptores, ainda os mais feios, têem seus caprichos, como as moças bellas; e sinão, aqui

estou eu, que assim mesmo, como todos me vêem, e me conhecem, sou caprichoso como uma moça

bonita! Algumas tenho eu conhecido, bonitas como o anjo S. Miguel, ou outro qualquer anjo, e

caprichosas como Satan, ou outro qualquer demonio... Parece-me estar agora ouvindo alguma

bonitinha, e amavel leitora, dizer: “Ah, linguarudo!” Nesse caso, silencio; e não continúo o episódio

dos lindos e adoraveis caprichosinhos.

Com effeito, parece um capricho a velocidade com que um escriptor faz escoar-se o tempo

debaixo dos accelerados bicos de sua lubrica penna! mas não é; porque não é o escriptor que presta

ao tempo essas azas de fogo com que parece devorar o espaço; é o tempo que foge, e tão rapido

foge, que é mister ao escriptor voar após delle, não para alcançal-o (o que seria impossivel), mas para

contar-lhes as pegadas ligeiramente impressas sobre os eventos de que se compõe a historia da

humanidade!

Ha pouco o narrador fez deslisar-se, n’um momento, com um só rasgo de sua penna, uma

bagatela, é verdade, nove annos. O narrador fez o leitor dar um saltinho, e nesse saltinho transpoz

esses nove annos! Ora, pois, o narrador, com a boca doce do seu primeiro exito feliz, anima-se a

emprehender segundo. Si o leitor foi tão bom que, a convite do narrador, arriscou-se a um salto de

nove annos; porque não hade agora ainda saltar dous? Quem concede o muito, concede o pouco.

Isto posto, fiquemos na certeza de que ha dous annos que Augusto mudou-se para perto da villa da

Parahyba do Sul, aonde tomou conta da rica herança que lhe deixou sua boa e amavel tia. Santa

Mulher!

Então não resta dúvida de que ha onze annos que Maria foi roubada a seu pae: ora, tendo ella

sete annos quando isso lhe aconteceu, podemos asseverar (si é que neste mundo alguma cousa se

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póde asseverar) que Maria, si é viva, tem os seus dezoito annos, muito bem feitos, e muito bem

contados.

Agora o leitor sabe que a mór parte dos nossos principaes personagens têem desapparecido,

ao menos do primeiro plano, em que no começo de nossa historia os haviamos collocado. Augusto

mudou-se pra a Parahyba do Sul, Maria foi roubada a seu pae, e della não sabemos. O Snr. Estevão

desappareceu, José Pachola, o mesmo. Laura, da mesma sorte, Pedro Mandingueiro, morreu... Assim,

convém que procuremos gente nova com a qual nos haveremos até o fim de nossa historia; porque

gente nova é toda aquella com a qual vamos nos encontrar, visto serem novas todas as situações que

vão agora apparecer.

Supponde, caro leitor, que não longe da villa da Parahyba do Sul, á beira da estrada publica,

ha uma magnifica estalagem, bem surtida, bem arranjada, e decente. Os viandantes, que por ahi

passam, alli pernoutam. O dono desta casa, personagem affavel, e que põe grande empenho em ser

delicado, é, não obstante, antipathico como um usurario (que é gente que se conhece pela fachada).

O Snr. João Esteves (o dono da estalagem) é um senhor de quarenta e tantos annos, gordo como

eram os Franciscanos, aqui ha dez annos atraz; devoto como uma beata; mas... esperto como um

taberneiro!.. fino como um negociante de cavallos! O Snr. João Esteves ouvia missa todos os

domingos, dias-santos, quer de guarda, quer dispensados! jejuava todos os sabbados, e em todas as

vigilias do Senhor, da Senhora, e dos Santos! finalmente, o Snr. João Esteves tinha Horas Marianas, e

resava o Officio de Nossa Senhora! Apesar de tudo isto, havia muita gente má (porque em toda a

parte a ha) que não se fiava no homem, que o temia, que fugia de o ver, e que não queria com elle

negocio, fosse pelo que fosse. O Snr. João Esteves era tão grave, e tão amigo da honra que, quando

reprehendia seus caixeiros, dizia-lhes sempre: - “Sejam homens de honra; porque a honra é tudo! Sem honra

não se deve viver!” – Com estes dados sobre o Snr. João Esteves, sigamos a nossa historia.

Eram pouco mais de seis horas da tarde, de um estuoso dia de verão em que o sol queimava

com luz de fogo, quando um lindo, um bello, um encantador mancebo dirigia-se para a estalagem do

Snr. João Esteves. Este gracioso mancebo devia contar nem menos de dezeseis annos, nem mais de

vinte. Seus cabellos negros eram graciosamente ondulados e de um admiravel lustroso: seus olhos

tambem negros e bastante grandes, brilhavam com um reflexo de celeste innocencia, que só podem

ter olhos ainda não empanados pelas sombras das paixões, ainda não obscurecidos pela noute dos

vicios: seu rosto, não tão alvo, como o rosto dos filhos dos paizes frios, não tão moreno que

revelasse uma mescla de raça africana; tinha esse feiticeiro moreno, que sabios pintores tão

dextramente sabem espalhar nos engraçados rostos das lindas filhas da Judéa: não obstante; esse

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moreno todo natural, havia tambem nesse magico rosto um enamorado tostadinho, suavemente

impresso pelos mormaços tropicaes: atravez dessa encantadora cor brilhavam em suas lisas e macias

faces, com todo o seu esplendor, duas vivas rosas, que fariam inveja ás rosas, que de manhã tão

viçosas se ostentam em nossos cuidados jardins! Uma remota pallidez, apenas percebida por quem

com olho de artista estudasse este rosto maravilhoso, nelle se deparava timidamente, luctando com

este encantador moreno, e medrosamente se occultando entre o bello vermelho destas sublimes

rosas. Dous labios, que podiam sem medo pleitear ao carmim sua bella côr, formavam uma perfeita

boca, que bem podia honrar um prodigio d’arte das mãos milagrosas de Raphael ou de Canova! Di-

se-ia que a natureza talhára caprichosa o seu mais bem escolhido marfim para com elle formar seus

alvos, seus pequeninos, seus bem compassados dentes! O narrador graduou a idade deste menino

dos dezeseis aos vinte annos, porque, positivamente fallando, nem buço ainda tinha, bem que um

dourado pello apenas longemente lhe assombrasse o labio superior. A altura de seu corpo

correspondia a de um menino de doze, ou quatorze annos, quando muito: este corpo era fino,

delicado e esbelto: o olhar deste joven era sereno, seu rosto tranquillo, sua physionomia aberta, seu

modo altivo, suas maneiras nobres, e todo elle interessante: trazia um par de esporas de casquinha,

mas bem fornidas; calçava calças de panno azul-ferrote, mas alguma cousa grosso; collete de cacineta

branca, abotoado des de baixo até a golla; jaqueta do mesmo panno da calça, de golla em pé, como as

jaquetas que chamamos – jaquetas de policia -, trazia na cabeça um chapéo de pello côr de rato, já

usado; emfim, o facto deste mancebo revelava um pagem, e si o era, era um pagem bem perigoso...

porque era bonito, encantador, e bello como tudo o que se póde imaginar de mais bello, encantador

e bonito! Além de se não poder olhar para este lindo rosto sem sorpreza, interesse e amor, tres

cousas ainda roubavam a attenção, a saber: o cuidado, delicadeza, e esmero com que atára a sua

gravata, branca como o arminho; as pequenas e mimosas mãosinhas enfiadas n’um par de luvas de

algodão, e o magnifico alarzão claro, em que com tanta graça, agilidade e destreza montava! Com

effeito, era um cavallo digno de um heróe! Sendo alarzão claro, como dice o narrador, tinha os

quatro pés calçados, e uma estrella na testa; as crinas, e a cauda eram negras, e da mesma cor

prolongava-se uma listra des d’entre as pequenas orelhas, por sobre o dorso, até a raiz da cauda.

Ventas abertas, olhos grandes, fogosos, e arrogantes, cabeça de carneiro, pescoço largo, anca de

porco, etc., era, finalmente, um cavallo perfeito em tudo! Na Inglaterra seria solemnemente

acclamado com tres Hips e um Hurrah, pelo mais bem feito, forte, diligente, ardido, fogoso, e nobre

cavallo de todo o mundo! e o mais é que elle o era! para, porém, domar e sofrear um animal assim,

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era mister ser não só cavalleiro, mas muito habil, e muito déstro, na arte da picaria; e, com effeito, o

mancebo que cavalgava, tão bello e brioso corsel, o era, absolutamente fallando.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 323, 17/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 322).

Apenas o mancebo parou á porta da estalagem, um caixeiro veiu tomar o seu cavallo. O Snr.

João Esteves saudou o mancebo, e por uma ligeira sorpreza pareceu sentir o bello d’esse rosto

angelico, e render-lhe esse culto, que o bello exige, e reclama de todos, sem excepção; mas, como

pouco admirador do formoso, e do bello humano, o nosso homem voltou-se para o cavallo, e

começou de contemplal-o com admiração, e extasi, como mais entendedor do formoso e do bello

caballino. Depois, voltando-se para o mancebo, dice-lhe:

- Quer vender o seu cavallo, meu menino?

- Não, meu senhor (respondeu o joven).

- Então pelo que?

- Porque não tenho outro para continuar a minha viagem.

- Podemos fazer uma braganha.

- Tambem não, meu senhor.

- Para onde se bota?

- Para o Rio de Janeiro.

- Pois si hade lá vender o cavallo, melhor o venderia aqui.

- Não tenho tenção de vendel-o aqui, nem lá.

- Está bom: então perdôe.

- Não ha de que. –

O mancebo pediu alguma cousa para jantar, e assentou-se n’uma cadeira, e, sempre que

podia, fitava os olhos no Snr. João Esteves, e o contemplava com indizivel curiosidade; depois, sem

pestanejar, pregava os olhos n’um ponto, franzia sua larga testa, arqueava mais suas lindas

sombrancelhas, regalava seus bonitos olhos, mordia seu bello labio inferior, apertava, ou dilatava sua

bocca, passava a mão por seus cabellos e testa, e apertando depois estas mimosas mãos fazia estalar

os seus torneados dedos! Dir-se-ia que este coração ainda tão virgem batia d’encontro a alguma

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grande dor, d’aonde partiam sons melancholicos, lugubres, e tristes; ou que esta cabeça ainda tão

joven luctava com o enorme peso de uma grande idéa, com a qual não podia; ou que esta memoria

ainda tão nova achava em si algumas vagas lembranças de que se queria recordar, desfilando assim

uma serie de fugitivas reminiscencias, até achar claras, discretas e positivas as idéas, e as notas de

pessoas e cousas, que queria agora reproduzir!

Ainda mais: é preciso confessar que entre estas duas creaturas, que formavam uma perfeita

antithese, o Snr. João Esteves, e o mancebo, havia alguma cousa de sombrio, terrivel, e mysterioso,

como o ha entre o senhor e o escravo, porque o Snr. Esteves contemplava o moço de uma maneira

indecifravel, e o moço, quando o Snr. Esteves se approximava, ou fallava, tremia todo, e a seu pesar!

Pouco depois chegaram mais viandantes, e entre elles um que trazia por pagem um preto, já

não creança. O mancebo olhou para o preto, e experimentou alguma sorpreza, e fez, como quem se

deseja lembrar. Meia hora depois o preto e o joven conversavam calorosa e familiarmente, como se

fossem conhecidos velhos. Esta conversação durou seguramente uma hora.

Das sete horas em diante trovejou e choveu, de modo que os viandantes não poderam seguir

o seu caminho, si é que o queriam. De noute, cada um tomou o seu aposento, e o mancebo só o fez

depois que teve em particular uma conversa com o senhor do preto com quem conversara. O dono

da estalagem, declarando que todos os quartos estavam occupados, o que na realidade assim era, deu

ao mancebo uma cama que estava em um grande salão, accrescentando que podia fechar por dentro

todas as postas e janellas. O mancebo o fez.

Pouco depois da meia noute os hospedes da estalagem, caixeiros, e escravos, acordaram-se ao

écho de dous tiros, um pouco depois do outro, e dos gritos do Snr. João Esteves, que pedia

soccorro, gritando que o tinham matado.

Todos, os que isto ouviram, correram para o lugar d’aonde os échos eram partidos; e de um

em um foram obrigados a entrar para a sala, aonde dormira o mancebo, por uma especie de postiço

aberto em uma porta que communicava esta sala com o quarto de dormir do dono da estalagem.

Chegados a esta sala viram o mancebo vestido, como si não se tivesse despido para deitar-se, em pé,

tendo na mão uma pistola. O Snr. João Esteves no chão, envolto em sangue, quasi moribundo, e

tendo junto de si também um pistola!

Entre os que haviam acudido, era o preto com quem o mancebo havia tanto conversado; este

chegando-se ao ferido, ergueu-lhe a cabeça e dice-lhe:

- Conhece-me, meu senhor?

- Não (respondeu elle com voz já moribunda).

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- Pois, Snr. Estevão.. quem deve a Deos paga ao diabo... Sou José Pachola... –

O moribundo fez um esforço para erguer-se, exclamando:

- Ah!!! –

José Pachola continuou:

- Lembra-se do Snr. Augusto, em quem deu um tiro na Praia-Pequena? Lembra-se da menina

Maria, que roubou de seu pae?.. –

O ferido, fazendo um ultimo esforço, cahiu de joelhos, e com as mãos postas, e erguidas aos

céos, bradou:

- Perdão... pelo amor... de De... –

Expirou! O mancebo, deixando cahir a pistola, ajoelhou-se, e levantando as mãos aos céos,

exclamou:

- Meu Deos, perdão para sua alma! –

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 324, 21/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

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Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 323).

XXVII.

O Juiz de Paz, e o criminoso.

O mancebo tinha feito sua supplica a Deos pela alma do Snr. Estevão, e levantava-se, quando

José Pachola, disfarçadamente passando por detraz delle, soprou-lhe ao ouvido estas palavras:

- Fuja, meu senhor moço... fuja...

- Não – (respondeu o mancebo).

Então os caixeiros da casa, estupefatos até ali, bradaram:

- Prendamos este assassino... prendamos...

E dizendo isto, avançaram um passo para o joven, que, socegado e tranquillo, apenas

levantou a mão, fazendo-lhes signal para que parassem, e dice:

- Suspendam-se, meus senhores... Aqui não está um assassino... Matei, é verdade, este

homem, mas matei-o nobremente em um duello muito leal...

- Mas um duello sem testemunhas, meu menino?

Perguntou o homem, que tinha vindo com José Pachola, ao que respondeu o mancebo:

- Deos foi testemunha. Este papel (dizia elle, mostrando um papel collocado sobre a mesa), e

aquella pistola, que ali está junto do fallecido, provam a minha lealdade. Foi um combate leal...

homem por homem, braço por braço, arma por arma, bala por bala, successo por successo, vida por

vida, vingança por affronta: eis-aqui tudo! Fui mais feliz! Deos assim o permittiu... Aqui está a bala,

que contra mim enviou a arma do Snr. Estevão: errou a sua pontaria... Deos o quiz, seja Elle

louvado.–

E dizendo isto, o mancebo mostrou em uma parede o buraco, que havia, feito a bala, que

conta elle havia disparado a arma nas mãos do Snr. Estevão. Essa bala, apesar do Snr. Estevão não

saber atirar á pistola, lhe havia passado uma, ou duas pollegadas distante do hombro esquerdo, e se

tinha empregado na parede.

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- Eis o lugar aonde entrou a bala (dizia o mancebo). Agora, peço a um dos senhores o

obsequio de mandar, ou ir chamar o Snr. Juiz de Paz, ao qual farei as minhas declarações, e me

entregarei. Não é preciso que algum dos senhores me ponha a mão. Matei como um homem de

honra, e não fugirei como um assassino vil e covarde.

Si eu quizesse fugir já o teria feito. Emquanto os senhores procurassem lugar para entrar para

esta sala, teria eu carregado as minhas pistolas, sahido por uma destas janellas, e me evadido; mas tal

não foi, nem é a minha tenção. Matei sem premeditação alguma, e tanto que nem sei em que lugar

ficou o meu cavallo.

Quanto aos senhores, si quizerem ficar nesta sala, ou se retirarem, é-me indifferente; eu

porém esperarei o Snr. Juiz de Paz aqui mesmo. –

Ao romper do dia foi chegado o Snr. Juiz de Paz, acompanhado pelo seu escrivão, dous

officiaes de sua alçada, e um medico.

O anceão, que havia ali pernoutado, referiu ao Juiz de Paz o que sabia, accrescentando que o

criminoso não fugira porque não quizera. O Juiz de Paz mandou pelos dous meirinhos prender o

joven delinquente, e tratou de fazer corpo de delicto. O criminoso enviou um dos meirinhos ao Juiz

dizendo-lhe que elle se considerava preso, e debaixo da lei, des do (sic) momento em que matára o

Snr. Estevão; mas que tinha que fallar a S. S., e fazer-lhe algumas declarações. Ao que o Juiz de Paz

respondeu, que isso era de seu dever, e que elle sabia bem os seus deveres, que findo o corpo de

delicto lá iria.

Com effeito, findo o corpo de delicto, o Juiz de Paz passou á sala em que estava o preso.

Apenas delle o encarou, recuando alguns passos, e sem dissimular a sua admiração, murmurou: -

Meu Deos!..

O mancebo, notando o espanto do homem da lei, dice:

- Horrorisa-se de me ver, Snr. Juiz?!..

- Até a falla! Meu Deos! até a falla!!! –

O Juiz de Paz não murmurou estas palavras tão baixo que o criminoso não as ouvisse, e

ouvindo-as dice:

- Porque esse espanto, senhor? Pois até na falla serei eu criminoso! –

O criminoso pronunciou estas palavras com um accento de dor tão notavel, com um ar de

melancholia tão profunda, e com uma resignação tão sublime, tão visivel, e tão christã, que o Juiz de

Paz arrependeu-se de sua sorpreza involuntaria, como si tivesse sido a obra do proposito: e então

respondeu:

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- Não, meu filho. A minha admiração é unicamente por ter diante de mim uma creança, e

com sentimentos tão nobres! Quando o senhor fallou, até na falla me pareceu uma creança! Eis o

motivo de minha exclamação: e admiro-me, porque não posso conciliar tanta mocidade, tanta honra,

e tão máo coração...

- Máo coração! (exclamou o preso), e porque, senhor?

- Um assassinato, meu filho! (dice o Juiz de Paz, apontando para o lugar aonde tinha cahido,

e expirado o Snr. Estevão, cujo corpo havia sido levado para outra sala) Um assassinato revela...

- Nem sempre, senhor... Matei em um duello.

- As nossas leis não permittem o duello.

- As nossas leis?!

- Sim, meu filho.

- E nós temos isso?

- Isso o que?

- Leis?

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 325, 24/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

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Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 324).

- Pois nós não temos leis?

- Não, Snr. Juiz.

- Como, meu menino?!

- Em verdade, senhor, eu sou um pobre menino, que nada sei; mas, aonde fui creado, ouvi

algumas vezes pessoas sabias e experientes, e a essas pessoas ouvi, que tinhamos meia duzia de

mentiras escriptas a que os magnates, os ignorantes, e ainda a gente de boa fé chamam leis; mas que

estas indignas mentiras, quando boas só têem acção para os grandes; quando más, para os pequenos.

Ouvi ainda, que quem tem dinheiro, ou poder, está ácima da lei; isto é, que póde fazer o que quizer:

que quem o não tem está fóra da lei; isto é, que póde ser espancado, espoliado, defraudado, e até

morto, sem o menor resultado para quem o fizer. Logo, em um paiz aonde tal se pratica, é

impossivel haver leis; e si alguma cousa ahi existe escripta, tudo pode ser, tudo, excepto leis! e para

que demos a esse escripto algum nome, chamemos-lhe mentiras, imposturas, escandalos, tudo; mas

não leis, que seria profanar uma palavra augusta...

- Menino, estou pasmado de ouvil-o!

- Acredito, senhor; não pela cousa, mas pela pessoa, porque sou uma criança; o que, não

obstante, a cousa não deixa de ser verdadeira; mas já disse a V. S.: na casa aonde fui creado em tudo

se conversava, e eu nada perdia. Além disto, tinhamos a mór parte dos jornaes, e eu os lia, e sobre

elles meditava... De que se admira, Snr. Juiz? Ahi está morto um grande malvado... Não lhe sirva de

pena... está morto, e Deos lhe perdôe... Um grande malvado, um extraordinario criminoso, que a

Justiça deixou sempre viver em paz, porque, além de muito criminoso, era tambem muito vil... eu,

porém, serei rigorosamente punido porque matei um grande malvado, e porque tenho uma alma

nobre. Isto porém me não admira; porque é tal a corrupção entre nós, que quando queremos elogiar

alguem dizemos que não é ladrão...

- É verdade! é verdade! –

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Isto dizia o Juiz de Paz, meneando a sua respeitavel cabeça quasi toda coberta de cabellos

brancos; e depois, fitando o joven, dice-lhe:

- Mas, meu filho, que idade tem?

- Não sei ao certo, Snr. Juiz; mas penso que já fiz desoito annos...

- Ah! desoito annos? desoito annos!.. –

O Juiz de Paz soltando um suspiro, e fazendo esta exclamação, não pôde continuar, que o

pranto suffocou-lhe a voz.

- O Snr. Juiz de Paz chora? pelo que, meu senhor?

Dice o mancebo, chegando-se ao Juiz, e tomando-lhe respeitosamente a mão.

- Pelo que chora? (tornou elle a perguntar).

- Compadecido de tanta candura, e mocidade!

- Senhor... perdão... mas eu não quero compaixão, quero justiça...

- E justiça será feita, ainda que esta justiça despedace o meu coração... Menino... Não sei

porque vos amo?!

- Porque talvez é pae, e tem bom coração...

- Ah! meu filho!...

- Pois bem, senhor! Não fique prejudicada a justiça da terra, e me chame seu filho... Tambem

eu não sei porque sinto prazer em ouvir essa palavra. Quando a pronuncia, ella cahe em meu peito

transformada em um balsamo de celeste consolação! Sou criminoso, e no entanto eu me sinto feliz

neste momento! Tambem chóro... Oh! pensei que na minha idade se não chorava de prazer e de

ternura!.. Mas ah! eu conheço a razão de minhas lagrimas: é porque não está diante de mim o homem

da lei, severo, terrivel e implacavel; mas sim o homem da natureza, o amigo da humanidade, o ser,

que tem entranhas de pae! Obrigado, meu Deos! como me são caras as lagrimas, que verto, e as que

faço verter!

- Mas, meu filho, sendo vós tão moço, e me parecendo tão bom; que motivo tiveste pra

cometter um assassinio?

- Senhor, para que eu pudesse dar uma razão plausivel do meu procedimento, era mister

contar-lhe uma historia longa, fastidiosa, e talvez sem o menor interesse para V. S.

- Não importa, eu a ouvirei. Póde essa historia justificar o seu procedimento, ou, ao menos,

minorar a intensidade do que por ora me parece um crime?

- Eu o creio, senhor.

- Pois, meu filho, contai-me a vossa historia.

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- Com uma condição...

- Qual é?

- Que me hade jurar um inviolavel segredo sobre o que é particular. V. S. poderá no meu

processo dizer quanto quizer do que eu lhe declarar ácerca do procedimento do Snr. Estevão, havido

comigo nesta casa; mas, sobre o que me é particular, V. S. jurará segredo.

- Juro-o pelo Santo Nome de Deos.

- Obrigado. Agora cumpre-me declarar-lhe, que não era de minha intenção revelar á pessoa

alguma estes segredos, e só sim o que diz respeito a mim, e ao Snr. Esteves, acontecido esta noute;

mas V. S. adquiriu tal imperio em meu coração, que com elle attrahiu toda a minha confiança. Si, sem

saber dos motivos do meu procedimento, deu algumas lagrimas á minha desgraça, estou certo que os

sabendo, talvez me louve. Aconteça o que acontecer, será para mim uma bem doce consolação a

lembrança de suas lagrimas e a de seus louvores! Essas lagrimas e louvores tem para mim o valor de

minha innocencia. Ignoro a fonte dos meus sentimentos; mas seja qual fôr, é tal a confiança e

sympathia, que me inspira, que si os homens me tivessem offendido a ponto de aborrecel-os a todos,

eu hoje a todos perdoaria só em attenção a esta confiança e simpathia! Eu vou principiar a historia.

Estamos sós? –

O Juiz de Paz sahiu fóra, e dice ao seu escrivão e aos meirinhos, que o esperassem; que não

deixassem pessoa alguma penetrar a sala aonde elle estava com o criminoso; e que nem-um delles lá

fosse senão a seu chamado. Dito isto, cerrou a porta, e ficou com o criminoso.

Um instante depois, seriam quasi seis horas da manhã, um mancebo, que teria os seus vinte

annos, não bonito, mas muito sympathico, e até agradavel, vestido com luxo, montado em um bello

macho, e acompanhado de um asseado pagem, chegou á hospedaria em que se achava o Juiz de Paz

encerrado com o criminoso. Ahi soube da bocca do escrivão o acontecido, e sabendo-o, quiz ver o

accusado: sendo, porém isso impossivel, pediu os signaes delle. Este mancebo mostrava grande

afflicção, e esta se mesclou com algum receio, principalmente quando lhe deram os signaes do

cavallo em que viera o joven criminoso, e o qual elle quiz ver. O mancebo não era conhecido no

lugar, mas tinha dinheiro; e como era conhecido do escrivão, este fez o quanto elle quiz. Apenas viu

o cavallo, soltou um grito indecifravel. Felizmente elle estava só com o escrivão; mas, apezar das

perguntas deste, o mancebo só lhe dice:

- Pinto, si és meu amigo, deixa-me introduzir n’algum quarto d’aonde eu ouça o que

conversam o Juiz de Paz com o criminoso. –

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O escrivão, depois de pensar um pouco, como conhecia a casa, fel-o saltar por uma janella, e

deixou-o n’um quarto, do qual poderia ouvir alguma cousa. Feito isto, o escrivão retirou-se,

recommendando ao seu amigo silencio, prudencia, e discrição.

Deixemol-os ahi ficar.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 326, 28/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 325).

XXVIII.

Cousas passadas.

- “Senhor (dice o criminoso), ha perto de doze annos que em um lugar chamado Praia-

Pequena, pouco distante da cidade do Rio de Janeiro, foi commetido um assassinato...

- Na pessoa de quem? (perguntou o Juiz de Paz).

- De um santo homem chamado Augus... –

O Juiz de Paz, dando um salto de sua cadeira, e tomando as mãos do mancebo, perguntou-

lhe, sacodindo-lh’as:

- Como sabeis disto, meu filho? como sabeis?

- V. S. saberá no fim.

- Pois bem, pois bem: continuae.

- Este assassinato foi perpetrado só com o fim de lhe roubarem sua unica filha, Maria, que

então tinha se...

- Sete annos, não?

- V. S. sabe disto?

- Tenho uma entre-lembrança de ouvir fallar nisso: mas para que roubar uma menina de sete

annos?

- Para matal-a, senhor!..

- Oh!!!.. –

O Juiz de Paz erguendo-se de sua cadeira, em uma especie de delirio, pallido e tremulo,

levantou as mãos em uma convulsão horrivel, e com ambas ellas tapando o rosto, exclamou:

- Matar uma innocente!

- Horrorisa-se, doutor, de uma tal acção?

- E quem se não hade horrorisar?

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- É verdade!

- E mataram-a?

- Não, senhor. Ha nesta casa quem saiba miudamente das velhacadas, infamias, e

indignidades então praticadas.

- Quem é?

- Permitte-me V. S. que lhe apresente essa pessoa?

- Pois não? e até desejo.

- Pois então, mande chamar um preto que aqui está, chamado José Pachola, que chegou

hontem em companhia de um seu senhor moço, o Snr. Silva.

O Juiz de Paz chamou um seu official, por elle mandou buscar o Pachola, que a pedido do

mancebo contou a historia do roubo de Maria, as velhacadas de Laura, malvadezas e patifarias do

Snr. Estevão. Todavia, o Pachola teve o cuidado de desviar de si a culpa da fugida da menina para o

mato; e nisto bem se houve, porque habil diplomata era elle! Durante esta narração do Pachola, o

Juiz de Paz, mudo e quedo, só deu alguns não equivocos signaes de vehemente furor, que elle

comprimia; e bem o teria feito si o iroso flammejar de seus olhos o não trahisse mais de uma vez!

Finda a narração do Pachola, dice-lhe o Juiz de Paz: - Está bom, meu filho, retira-te; logo

fallaremos. –

José Pachola sahiu. O joven criminoso continuou assim:

- Agora, senhor, vou continuar a minha historia.

- Sim, meu filho. Dotado eu de um bom coração, sendo compadecido, e tendo entranhas de

pae, tenho tomado por Maria um interesse, como si fosse seu pae... Coitadinha! (dizia elle,

enxugando suas lagrimas). Coitadinha! tão creança, e já tão desgraçada! Meu Deos! Como era

malvado esse homem, cujo cadaver ahi está! Pobre pae! Quanto não soffreria por sua infeliz filha!

Continuae, meu filho, continuae; eu vos supplico. –

Qual o enfermo, que, por esse maravilhoso instincto da natureza, suspeita que seus dias

correm perigo, encara o medico, e nos seus olhos, seus gestos, e modos busca estudar a sua vida ou

sua morte, não vivendo senão nesses labios, ou nessa mão, que vae ainda traçar um – Recife – que o

deve salvar, ou que não terá effeito; assim, o Juiz de Paz, com os olhos embebidos nos olhos do

criminoso, vivia unicamente nesses formosos labios, d’aonde ia cahir a historia de Maria. O

mancebo, tendo arrancado um suspiro, que, por mui prolongado e estremecido, parecia ter-se

escapado á força de lá tão do fundo do coração, proseguiu desta sorte:

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- Maria ficou perdida no mato! Descalça, sem chapéo, e com seus vestidos rasgados,

desamparada, de todos, sem saber caminho, nem carreira, começou a gritar: mas, debalde...

- Mas foi de Maria mesmo que soubestes estas cousas, meu filho?

- Deixe V. S. seguir a minha historia methodicamente, que de tudo saberá.

- Pois sim, meu filho; prossegui.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 327, 31/12/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 326).

- Maria teve fome, e Deos lhe mostrou um goiabal: teve sêde, e Deos lhe mostrou agoa.

Maria acreditou que duas lindas juritys eram dous anjinhos de Deos, que velavam por ella. Á noute a

filhinha de Augusto arranjou uma cama de folhas seccas, aonde deitou-se, e dormiu: e a unica filha

de Augusto, sua rica e tão querida herdeira, só teve por companheiros os bichos dos matos, talvez

compadecidos de sua miseria! Sede-me testemunhas, ó astros, que ardeis na morada de Deos, e que

com vossos olhos de fogo velaveis sobre a desgraçada filhinha do saudoso Augusto! –

O mancebo pronunciou esta exclamação com as mãos postas e erguidas para o céo, tendo

seu rosto inundado de lagrimas. O Juiz de Paz, assentado em sua cadeira, tal tremor o agitava, que

difficultosamente se podia ter. Assim, ora procurava firmar-se no seu assento, e ora tapava o rosto

com seu lenço, para melhor e mais a seu gosto prantear e soluçar.

- V. S. chóra? soluça? (dizia o criminoso). Maria é bem digna dessas lagrimas. Obrigado!..

(dizia elle tomando as mãos do Juiz de Paz e beijando-as) Obrigado!.. Seja abençoado... seja

abençoado por essas lagrimas de compaixão!

Assim correram alguns dias sem novidade. Todas as manhãs, todas as tardes, e sempre que

Maria tinha medo, ella ajoelhava-se, punha as mãosinhas, e orava assim: “Mamãe do Céo, pedi a

Papae do Céo por mim...” –

O Juiz de Paz, com voz intercortada de soluços, repetiu machinalmente as palavras dessa

supplica, acompanhando o mancebo, e dizendo: “Mamãe do Céo, pedi a Papae do Céo por mim!”

- Assim, sem novidade, passaram-se alguns dias (continuou o mancebo); mas em uma tarde

começou a trovejar, e pouco depois a chover. Veiu a noute, medonha como noute de tempestade. Os

relampagos cruzavam os ares, os trovões batiam o céo, o vento arrancava as arvores, e a chuva

açoutava a terra...

- Ella? que fazia ella?

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- Acolheu-se á sombra amiga d’arvore hospitaleira, que por oito noutes lhe havia dado

abrigo. Bem depressa as aguas do céo, imphiltradas por entre os ramos e folhas dessa arvore,

deixaram seus vestidos escorrendo agua; mas, a coitadinha, assim mesmo ali se conservou. As vezes

assentada, as vezes de joelhos, resou muitas vezes a sua oração. Maria nesta occasião lembrou-se das

palavras de seu pae, quando, apenas viuvo, exclamava no excesso de sua immensa dôr: - “Ah! minha

Leopoldina!.. Ella não virá mais!..” Maria, lembrando-se disto, tendo frio, e medo, exclamou:

“Mamãe!.. mas mamãe não vem mais!.. Eu tenho tanto frio!.. tenho tanto medo... –

O Juiz de Paz, como um pocesso, balbuciante, e com as mãos erguidas para o ar, foi-se

levantando da cadeira, como para fallar; mas, ou fôsse que seu pranto lhe não désse lugar, ou que não

quizesse interromper as palavras do joven, deixou-se outra vez cahir na cadeira em silencio, tapando

o rosto com as tremulas mãos. O joven proseguiu:

- Papae não vem me buscar!.. mas papae... –

O Juiz de Paz saltando da cadeira, como um louco, agarrou o mancebo, e cerrando-o sobre o

seu peito, exclamou em uma voz delirante:

- Menino... menino... queres matar-me? queres que eu morra de soffrer, e chorar? queres que

eu morra?..

- Pois bem, senhor, paremos com a historia de Maria...

- Cruel que dizes?! Não vês que eu gósto de chorar?! mas vós choraes tambem, e choraes

muito, choraes tanto, como eu; porque?

- Porque? porque...

- Eu vos comprehendo... Choraes por Maria?

- Sim, senhor, chóro...

- Velhaquinho... velhaquinho... Vós a amaes?

- Eu, senhor!.. Pois sim; amo-a.

- E vós sabeis della?

- Sim, senhor, sei; e eu pedi a V. S. que me deixasse ir até o fim...

- Sim... sim: é verdade; mas quero que tambem me ameis. As vossas palavras cahem em meu

coração, como punhaes; ellas me retalham o coração, e eu gósto de seus golpes! As vossas lagrimas

cahem em minha alma, como um incendio; ellas abrasam a minha alma, e eu gósto deste fogo.

Fallae... fallae de Maria... só della... fallae muito... muitas vezes... fallae... Choraes por Maria? Pois

bem: chorae... Apertae-me bem em vossos braços... Repousae a vossa cabeça de anjo sobre meu seio

dilacerado... derramae as vossas lagrimas sobre o meu coração... Gósto dos golpes, que me dão

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vossas palavras angelicas... Gósto do fogo que me ateam vossas lagrimas celestes... Derramae aqui as

vossas lagrimas; derramae-as sobre o meu coração... e no entanto eu gósto que minhas lagrimas

corram sobre a vossa cabeça, porque já vos amo, e muito...

- Mas, senhor, porque chora tanto V. S. por uma infeliz que não conhece?

- Porque gósto de chorar. Continuae a vossa historia. Maria tinha dito: - “Papae não vem me

buscar...” E que mais?

O criminoso continuou:

- “Papae não vem me buscar!... mas papae também não vem mais!..” Então Maria chorou

lagrimas de medo, e de saudades! Ajoelhou-se, e fez a sua oração.

Emfim, senhor, para abreviar esta narração, cumpre-me dizer-lhe que Maria sahiu do mato

depois de alguns dias...

- Mas como? como sahiu?

- Ouviu, não muito distante, berrar gado; seguiu direito a esse écho; e com effeito, em um

pequeno campo encontrou uma pequena manada; nesse campo havia um estreito trilho; ella enfiou-

se por elle, e a poucos passos sahiu a estrada. Ahi achou uns mineiros, que então passavam; estes

fizeram algumas questões a que ella respondeu, e compadecidos de seu desamparo, tomaram-a de

garupa, e levaram-a comsigo. –

Neste ponto o joven dice ao Juiz de Paz que carecia tomar uma chicara de café. O Juiz

mandou immediatamente dar ordem a isso, e voltou para seu lugar a ouvir o resto da história de

Maria, que é o de que o narrador dará conta no seguinte capitulo.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 328, 04/01/1853.

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POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 327).

XXIX.

O criminoso continua a historia de Maria e conta como foi ella recebida em casa da Snra. D.

Lordecene.

- Os mineiros (dice o joven reatando o fio de sua interrompida narrativa) fizeram a sua

viagem passando pela villa de Parahyba do Sul, aonde chegaram sem novidade alguma. Elles foram

pernoutar em casa da Snra. D. Lordecene...

- Tenho ouvido fallar da Snra. D. Lordecene (dice o Juiz de Paz).

- Ella móra não muito distante d’aqui. O mineiro, que parecia dono da tropa, que se

mostrava superior aos outros, o Snr. Cea, era parente, e bem proximo, da Snra. D. Lordecene. Esta,

vendo Maria, perguntou a seu parente, que menina era aquella. O Snr. Cea contou-lhe em poucas

palavras o que sabia. A boa senhora tomou Maria no seu collo, fez-lhe algumas peguntas, as quaes

Maria respondêra, como havia respondido aos mineiros. A Snra. D. Lordecene beijou-a muitas vezes,

e cobriu-a de caricias, e depois perguntou-lhe si queria ficar com ella. Maria respondeu pela

affirmativa. Então esta amavel e compadecida senhora pediu á seu parente que lhe deixasse a menina,

que ella a criaria como se fosse sua mãe. O Snr. Cea consentiu gostoso. Immediatamente a Snra D.

Lordecene mandou fazer, para Maria, toda a roupa precisa. Vinha então, todos os dias, á casa um

senhor ensinar a ler ao Snr. Alfredo, filho da senhora, que era um menino dos seus nove para dez

annos. Maria foi tambem entregue a seu cuidado. A Snra. Lordecene levou a sua bondade até querer

que Maria lhe chamasse sua mãe. Esta boa senhora nada poupava pra a educação moral e religiosa de

sua filha adoptiva. Ah! é impossivel pintar a sollicitude e o amor desta alma virtuosa por esta infeliz

menina!

Meu Deos... já que sois tão bom, meu Deos! (O mancebo, ao pronunciar estas palavras,

levantou-se da cadeira, e pondo as mãos, e erguendo-as aos céos, aonde pregou seus olhos, foi

lentamente curvando os joelhos, de modo que, quando pela segunda vez dice – meu Deos! – estava

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de joelhos, com as mãos erguidas, como quem ora, e com os olhos presos no céo; neste extasi elle

dizia):

- Meu Deos, abençoae a Snra. D. Lordecene! abençoae-a, meu Deos! Derramae sobre ella a

enchente de vossa Graças! Oxalá que a vossa Misericordia lhe augmente os bens, lhe avigore a saude,

e lhe prolongue a vida! Possa ella ser por immensos dias a providencia do pobre, a protectora dos

desvalidos, e a consolação dos afflictos! Abençoae-a, abençoae-a, meu Deos! –

Emquanto o joven fazia esta piedosa supplica, o Juiz de Paz, como um homem desvairado,

com os olhos inundados de lagrimas, se foi manso e manso approximando delle, como compassando

seus passos pelas palavras, que ouvia, de modo que, quando o moço teve terminado a sua prece, o

Juiz de Paz estava junto delle. O criminoso, tendo orado, quiz erguer-se; mas o Juiz de Paz, pondo-

lhe suavemente uma de suas mãos sobre seu hombro esquerdo, dice-lhe:

- Esperae, meu filho... É bom orar pelos justos, porque Deos converte em nosso favor

metade dessa oração. Tambem quero orar pela Snra D. Lordecene. Unamos pois as nossas preces;

suppliquemos ambos. A supplica é sempre grata aos olhos de Deos. –

Assim fallando o homem da lei, ajoelhou-se á direita do mancebo, e ambos alternando a sua

supplica, oraram assim:

- Meu Deos (dice o Juiz de Paz), por falta de fé eu não serei reprehendido, como

reprehendestes a Pedro a que dicestes: - “Homem de fé mesquinha, porque duvidastes?” – Meu

Deos, acredito sem ver; e por isso não serei reprehendido, como reprehendestes a Thomé á quem

dicestes: - “Felizes dos que não viram, e creram!” – Si alguma vez duvidei foi dos meus

merecimentos! Si não acreditei, foi unicamente em mim! Meu Deos, a vossa Misericordia jámais se

desmentiu, ainda para as vossas mais mesquinhas creaturas; e como assim é, fazei a Snra. Lordecene

a mais feliz de todas as mulheres! Sim, permitti que cada um instante dos que Maria viveu, ou vive á

sua sombra, seja para ella uma graça diante de vossos olhos! Que suas venturas sejam tantas, como as

horas que Maria passára em sua casa! Que seus annos sejam contados pelos mezes que Maria contára

a seu lado! E que na morada dos justos as flores de sua aureola excedam em numero ao numero dos

dias que a pobre Maria estivera junto della!

- Meu Deos (dice o mancebo), permitti que as felicidades da Snra. D. Lordecene sejam tantas

quantas têem sido as minhas lagrimas, des de hontem até este momento derramadas. –

Era para ver este quadro verdadeiramente interessante, nobremente pathetico, e

curiosamente sublime! Um anceão, e um menino, que pela primeira vez se encontravam, e em

consequencia de um facto a primeira vista detestavel, e que já se queriam com um amor verdadeiro,

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mysterioso e santo; verdadeiro, porque com veras se amavam; mysterioso, porque não sabiam a

razão deste amor; santo, porque seu amor tinha a santidade do amor paternal e filial!

Era para ver este contraste maravilhoso, esta antithese magnifica da eloquencia da Sorte! Um

anceao, e um menino! O anceão juiz, e o menino réo! A innocencia, e o crime! O ancião innocente e

o menino criminoso! O presente, que caminhava para o passado, sem levar comsigo uma mancha! O

futuro, que caminhava para o presente, trazendo comsigo um crime! E estas duas entidades, que se

deviam repellir, aborrecer e destestar, achavam-se unidas pelo mesmo motivo que os devia

odiosamente separal-as! É bem caprichoso o Destino; mas bem sublimes são alguns de seus

caprichos!

Era para ver estes dous entes inteiramente oppostos, ajoelhado um ao lado do outro, ambos

com as mãos postas, com os olhos nos céos, orando por uma mulher, que um conhecia apenas de

nome; não podendo nós ainda affiançar si o outro melhor a conhecia!

Este encontro parece bem digno de uma nota particularissima; por parecer o facto mais

notavel da vida destas duas creaturas, isto é, o unico facto estrondoso. Unico estrondoso, porque o

narrador pensa que assim como na vida do coração não ha sinão um amor (porque só uma unica vez

se ama); assim na vida do homem não ha sinão um unico facto de estrondo; porque todos os outros

são consequencia deste, ainda que o não pareçam.

(Continúa).

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ROMANCE BRASILEIRO

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Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 328).

Finda a supplica, os dous ergueram-se, o joven continuou:

- Maria, senhor, mostrou-se digna de amor, e sollicitude da Snra. D. Lordecene. Mostrando

alguma aptidão, e talento, aprendeu com facilidade a ler, escrever e contar, quando Maria teve doze

para treze annos; além disto, sabia um tanto ou quanto de grammatica e francez. A Snra. D.

Lordecene não se descuidou de sua educação familiar; applicou-a a todos os trabalhos de agulha, e a

tudo quanto deve saber uma mãe de familia. Além destas cousas, como Maria tinha coragem,

aprendeu a montar, e tão agil e dextra se fez neste exercicio, que, até em um cavallo ainda potro,

montava com agilidade, dextreza e segurança! Aprendeu a atirar, não só de espingarda como de

pistola, em que adquiriu bastante facilidade apostando quasi sempre ao alvo com o Snr. Alfredo, e

com este exercicio ganhou tal firmeza, que á trinta e quarenta palmos de distancia, raras vezes sua

bala não feria o alvo! Maria apostava a carreira com o Snr. Alfredo, tanto a pé, como a cavallo, caçava

com elle, e fazia todos os exercicios que a tornassem agil, déxtra e robusta: foi assim que ella cresceu,

e se tornou forte e habil para quasi todos os exercicios do corpo.

Algum tempo depois da estada de Maria em casa da Snra. D. Lordecene, aconteceu que veiu

para sua casa uma sua irmã, viuva, e ahi ficou morando. Quando esta senhora morreu tinha Maria já

os seus treze annos. A Snra. D. Agueda (a irmã da Snra. D. Lordecene) deixou, por sua morte, quasi

todo o seu ouro a Maria, um casal de escravos, um bello cavallo, com os competentes arreios, e um

par de pistolas de algibeira, com um rico polvarinho de prata e um chumbeiro de lã bordado á seda.

Cumpre declarar que estas pistolas, polvarinho, e chumbeiro, já ella lh’os havia dado em sua vida.

Pouco tempo depois o casal de escravos apresentou dinheiro para sua liberdade, Maria conveiu nisso,

e acceitou pela liberdade delles a quantia de quatrocentos mil réis.

- Tão pouco (dice o Juiz de Paz)!

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- Maria não quiz mais do que isso (continuou o joven), porque era para sua liberdade. A Snra.

D. Lordecene não quiz ficar com este dinheiro, não obstante Maria lh’o pedir, e Maria foi obrigada a

guardal-o ella mesma.

Tinha-me esquecido de dizer-lhe, que, logo que o Snr. Alfredo teve quatorze annos (tendo

Maria doze por conseguinte), foi para o Rio de Janeiro estudar preparatorios, e então só vinha para

casa no tempo das ferias do Natal. Quando elle teve dezenove annos, resolveu-se a não se formar, e

voltou para casa; tinha então Maria dezesete. Nesta idade diziam muita cousa della...

- Que cousas?!!!

- Banalidades, senhor. Uns diziam que ella era formosa; outros, que era bella; estes, que era

bem-feita; aquelles, que era engraçada; aquell’outros, emfim, que era espirituosa, agil, dextra, forte,

talentosa, &c., &e...

- Ella os acreditava?

- As moças, ainda as mais discretas, gostam sempre de louvores!

- Pelo que tenho ouvido, vós a conheceis, meu filho; como a achaveis?

- Sou suspeito: porém ella me agradava.

- Bem. Continuae.

- Tinha então o Snr. Alfredo dezenove annos, e Maria dezesete.

Desde que o Snr. Alfredo chegou os seus brincos com Maria começaram de ser novos, e um

tanto mysteriosos; o que, notado por Maria, começou também d’evital-o; mas, ou seja porque Maria

gostasse dos brincos do Snr. Alfredo, ou seja porque não o pudesse evitar completamente, o certo é

que o moço achava sempre occasião de lhe fallar de amor, e algumas vezes elle, e Maria chegaram a

divagar sobre este ponto; Maria advogando o consorcio, e Alfredo fallando contra. Maria, ao depois

julgando melhor evitar discussões a este respeito, ou sorria-se, ou ficava muda, ou respondia por

meio de evasivas. Um dia, porém, o Snr. Alfredo chegou a ser tão explicito e positivo, que obrigou a

que a moça igualmente o fosse: Maria dice-lhe pouco mais ou menos isto:

- Alfredo (elles se tratavam com familiaridade), eu não sei quaes são os vossos sentidos a meu

respeito... o que porém sei é que, vista minha posição em casa de vossa boa a virtuosa mãe, eu não

posso sahir della senão com um marido...

- Ou continuar a viver nella, casada; não é assim? (perguntou Alfredo).

- Sim, (respondeu Maria).

- Comigo? (perguntou o moço).

- Ou com quem Deos me destinar, (tornou ella).

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- Comigo, não, Maria! (dice Alfredo). É impossivel!..

- Alfredo, eu não vos comprehendo... explicae-vos (dice Maria)...

- Como é que heide casar comvosco? (tornou o moço). Quem sois vós? d’aonde viestes?

quem são vossos paes? de que paiz sois? qual é o nome de vossa familia? Eu não me heide casar com

uma...

- Vagabunda... acabe, Snr. Alfredo (dice Maria curvando-se, e affectando uma mentirosa

humildade, que era a expressão d’altiveza, ou a simulação do orgulho offendido, que se finge

humilhado, porque se não póde vingar, como a cobra offendida, mais impossibilitada de vibrar seu

dente).

- Sim (dice o Snr. Alfredo). Já que o dicestes, sim... Minha mãe já notou que eu gósto de vós,

e dice-me que eu visse o que fazia; que ella se não importava com cousa alguma que eu fizesse; mas

que jámais consentiria que vós fosseis minha mulher... vêde, pois... –

Emquanto o Snr. Alfredo assim fallava, Maria, com os braços cruzados diante delle,

contemplava-o com soberania e desprezo. Depois consentindo que seus labios esmagassem entre

elles uma parte desta injuria transformada em um sorriso ironico, dice:

- Então a Sra. D. Lordecene dice isso?

- Sim... dice (respondeu o Snr. Alfredo tambem com um sorriso)...

- Pois, Snr. Alfredo, sou tão grata á senhora sua mãe, que nem por isso lhe quero mal. Faça-

me o obsequio de dizer-lhe que Maria rogará sempre a Deos por ella; e que de hoje em diante a

vagabunda pedira mais a Deos pela Snra D. Lordecene, e seu filho, que por si propria. Adeus, Snr.

Alfredo. –

Maria dice estas palavras nobremente, e voltou as costas ao mancebo. Então ouviu o moço

chamal-a mais de uma vez, dizendo:

- Maria, ouvi... um só instante... ouvi Maria...

A moça não se voltou mais, e entrou para seu quarto. Des desse instante até o cahir da noute

o Snr. Alfredo procurou fallar a Maria, que não sahiu mais do seu quarto. A essa hora o Snr. Alfredo

sahiu. A hora da ceia Maria pretextando um ligeiro incommodo, não veiu para mesa. Durante a

noute, em casa da Snra. D. Lordecene nada occorreu: de manhã, porém, Maria não estava em casa.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 330, 11/01/1852.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 329).

XXX.

Contra a expectação do Juiz de Paz o joven criminoso deixa a historia de Maria, e começa a

fallar de si mesmo.

Quando o mancebo, que contava estas cousas, fallou do insulto, que á Maria fizera o Snr.

Alfredo, o Juiz de Paz franziu sua larga testa, carregou o sobr’olho, cruzou os braços, e num silencio

sombrio aguardou até o fim o desfecho desta historia! Quando o mancebo dice que Maria tinha

deixado a casa da Sra. D. Lordecene, o Juiz de Paz desenrugou um pouco sua fronte, uma chamma

inqualificavel brilhou instantaneamente em seus olhos, e um ligeiro, mas gracioso sorriso, roçou

levemente seus labios, e desappareceu debaixo das rugas de suas faces. Esse sorriso era intraduzivel;

podia ser a expressão ironica de uma dor, ou um signal fugitivo de um prazer interno! O mancebo

fez então tambem uma parada, e pouco depois proseguiu:

- Hontem, senhor, eram talvez mais de seis horas da tarde, quando parei nesta estalagem.

Logo que aqui cheguei tomaram-me o meu cavalo. O dono da casa appareceu, e não sei porque seu

rosto e sua voz me incommodaram. Elle commeteu-me negocios sobre o meu cavallo, que eu não

quiz acceitar. Pedi comida; e sempre que eu podia, fitava este homem, que minha alma repellia com

todas as forças. Parecia-me que já o tinha visto e ouvido; porém, por mais que eu chamasse as

minhas recordações, não me podia lembrar do tempo, lugar, e circumstancias em que vira este

homem. Não obstante, uma idéa horrivel me affligia; mas, essa idéa me parecia uma tentação, e

como tal eu procurava expellil-a de minha cabeça.

Algum tempo depois novos hospedes entraram a estalagem, e um delles era acompanhado

por um preto, que me pareceu conhecel-o; mas as mesmas dúvidas... como? d’aonde? porque? Este

preto, tendo arranjado o que pertencia a seu senhor, sahiu, e deitou-se á sombra de uma arvore ahi

junto á casa. Procurei-o, e puchei conversa com elle. Principiei por perguntar-lhe si era daqui, ou do

Rio de Janeiro; perguntou-me porque lhe fazia eu essa pergunta; respondi-lhe que me parecia que já

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o tinha visto, mas que me não lembrava aonde. Então perguntei-lhe si tinha vindo para cá vendido;

elle suspirou, sacodiu a cabeça, e dice: “Qual, meu senhor moço... foi uma historia que me

arranjaram, porque eu quiz fazer um bem.” A estas palavras mostrei-me admirado, e pedi ao preto

que me contasse essa historia. O preto fez muitas ceremonias, e não se resolveu a contar os seus

acontecimentos senão depois que lhe permittisse guardar segredo; eu lh’o prometti, salvo todavia

algum acontecimento imprevisto. Dada a minha palavra debaixo desta condição, contou-me elle a

historia do assassinato de Augusto, e do roubo de Maria, o que eu não ignorava; o que porém não

sabia, e que fiquei então sabendo, foi que o pae de Maria não morrêra do tiro. Maria, senhor, quando

contou esta historia aos mineiros, á Snra. D. Lordecene, e aos mais que lhe perguntavam, dizia que

seu pae havia morrido do tiro. O preto, além disto, contou a perseguição que lhe havia feito o Snr.

Estevão, e a Snra. D. Thereza, e acabou dizendo que o Snr. Estevão desaparecêra da noute para o

dia. Á vista desta historia comprehendi que não me havia enganado: com effeito, eu tinha visto o

preto, e já me lembrava aonde, como, e porque; mas, quanto ao Snr. Estevão, não tinha certeza.

Então perguntei ao preto si nunca mais tinha havido noticias do Snr. Estevão: “Andou algum tempo

occulto, até que depois appareceu por aqui, com casa de negocio” (me dice elle). – Por aqui onde?

(perguntei eu) pela Parahyba? – O preto sorriu-se maliciosamente, e eu continuei: - Sou capaz de

adevinhar aonde está o Snr. Estevão... “– Qual!..” (tornou elle) e eu lhe dice: - E, si eu lhe dicer

aonde está, e for verdade? – O preto olhou-me fixamente, e dice: - Si meu senhor moço dicer, e for

verdade, eu não negarei.” – Pois é o sugeito que aqui está nesta casa. – Dice eu, e o preto tornou-me:

“Mas, quem lhe dice? como sabe?” – Mestre José (lhe dice eu), sei tanto da historia de Maria, como

você, e desde que aqui entrei, e que lhe vi, desconfiei que você era o José Pachola, e que o Snr. João

Esteves era o Snr. Estevão. O que eu não sabia é que seu pae não morrêra do tiro. Os signaes que

me deram do Snr. Estevão, de José Pachola, e de Pedro Mandingueiro, foram tão positivos, que

jámais me escapariam.”– Mas, meu senhor moço, quem lhe contou tudo isso? Seria tia Laura

mesmo?” (perguntou o preto). – Sim, a mesma tia Laura (respondi eu).

Em consequencia da chuva, que hontem cahira, eu, e os demais hospedes desta casa, não

pudemos proseguir nossa viagem, e força nos foi aqui pernoutarmos. Antes de nos agazalhar tive

uma conversa com o Snr. Silva, que é, não senhor do Pachola, mas irmão de sua senhora, e o tem á

sua conta, e perguntei-lhe si a senhora do José o forraria; elle dice-me, que como forro vivia elle em

sua casa, não fazendo mais que tratar de seus cavallos, e acompanhal-o em alguma pequena viagem.

Perguntou-me porque queria eu forrar o preto: pretextei o que pareceu-me, e pedi-lhe que me dicesse

aonde, no Rio, poderia encontrar a dita senhora. Ensinou-me, e eu despedi-me.

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Á hora de agasalharmo-nos dice-me o Snr. Estevão que todos os quartos estavam occupados,

e que por isso eu dormiria nesta cama. O Snr. Estevão acompanhou-me até aqui, e ao retirar-se dice-

me que eu podia fechar por dentro as portas e janellas. Logo que elle retirou-se, fil-o. Quando fiquei

só, assentei-me sobre esta cama, e recostado a esta grande mesa, comecei a pensar sobre este

homem, e as desgraças que elle havia causado á infeliz Maria. Confesso, eu tinha medo delle, e por

isso não me quiz despir. Depois tomei a minha pequena mala, que nunca larguei, abria-a (sic), e para

contar e fazer meus calculos, tirei o dinheiro que nella trazia, porque uma porção era em prata, e

ouro, e contei-o. Findo isto, guardei o dinheiro, quando me ia outra vez assentar no mesmo logar da

cama em que estivera assentado, ouvi um rumorzinho naquella porta, e não sem grande admiração

minha, e susto, vi abrir-se na mesma porta aquelle postigo, e apparecer nelle a cabeça do Snr.

Estevão. Tremi, porque sempre se treme diante dos malvados! mas chamei Deos e a Virgem

Santissima em meu soccorro, e esperei o resultado. Cumpre accrescentar aqui que, como tinha nos

bolsos de minha larga calsas as minhas pequenas pistolas, assentei de, fiado nellas, impor ao Snr.

Estevão o respeito que eu queria manter, si elle se atrevesse a alguma cousa; é porém verdade que eu

não penetrava as suas intenções, que me pareciam não boas, visto o caminho por onde vinha.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n.331, 14/01/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 330).

O Snr. Estevão entrou para esta sala, e serrou o postigo. Eu continuei assentado no mesmo

lugar. Felizmente para mim o homem não podia chegar á minha cama sem rodeiar esta grande mesa,

o que me dava tempo de salvar-me, rodeando-a pelo lado opposto. O Snr. Estevão assentou-se

defronte de mim, do outro lado da mesa, ficando esta entre mim e elle. Ahi assentado, dice-me:

“Então o menino não quiz se despir?” – Não, senhor (lhe tornei eu). “Porque? (perguntou-me elle)”

– Como tenho de sahir muito cedo (lhe respondi), quero já estar prompto para viagem. – “O menino

então vae para o Rio de Janeiro... Bem; mas que é seu pae?” Á esta pergunta respondi-lhe: - O senhor

não conhece meu pae. – “Como, meu menino? si eu conheço a meio mundo!..” Isto me dizia elle

com um sorriso escarnecedor, e eu lhe tornei: - Pois meu pae não é do mundo. – O Snr. Estevão fez:

“An... an! (e continuou) Mas o menino tão criança... fazendo uma longa viagem sósinho... n’um

cavallo tão bonito... e trazendo até dinheiro de ouro e de prata... Não... aqui ha cousa...” – Que

cousa?! (perguntei eu um tanto assomado) – e elle com uma diabolica pachorra, dice-me: “Ora que

cousa? alguma estrepolia de crianças... uma gaveta arromabada.. um cavallo furtado... Emfim, meu

menina...” – Menina?! – (perguntei eu com impeto). “Sim... (me dice elle). Um rapaz com essa cara é

mais uma moça que um moço...” – Snr. João Esteves, (dice-lhe em um tom muito grave). Não o

conheço, nem o quero conhecer... Seja eu quem for... não tenho que lhe dar satisfações... Eu quero

dormir... – “Ah! meu menino! que modo! Eu não vim offendel-o... Venho antes fazer-lhe uma

proposição...” Então perguntei-lhe: - Que proposição? – Antes de responder olhou-me de um modo

tão não sei como... que me fez extremecer da ponta dos cabellos até as unhas dos pés, e depois dice-

me: “Com effeito, é bonito rapaz! O menino hade ficar morando comigo. Aqui nada lhe hade faltar:

boa mesa, vestidos finos, dinheiro á sua disposição, tudo, tudo quanto quizer... porque preciso de um

caixeiro...” – Fico-lhe muito obrigado (respondi eu); mas não posso acceitar... Quero seguir meu

destino. – “Ora deixe-se disso, menino... (tornou-me elle). Deixe-me assentar perto de você, para

conversarmos mais a gosto...” Dizendo isto, ergueu-se para rodeiar a mesa, e vir para junto de mim.

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Levantei-me tambem, e fui fugindo pelo lado opposto, e dizendo: - Si o senhor não se retira, e já,

veja que grito... – “E que importa? (dice o homem) eu metto-me por baixo desta mesa, e o agarro...

Si se calar, bem iremos; si intentar fazer barulho, eu o farei calar com esta faca... Ficarei herdeiro

daquellas moedinhas, que estão naquella mala, e daquele bello cavallo, que é uma estampa. Ninguem

saberá quem o matou, porque ninguem sabe daquelle postigo por onde vim, e por onde irei.” Á este

tempo brilhava nas mãos do Snr. Estevão aquella faca, que alli está sobre a mesa! As palavras do Snr.

Estevão me haviam causado medo! eu temia que elle tivesse descoberto um segredo que me era

preciso manter á todo o transe! Deste segredo dependia a minha salvação, e a minha honra! Além

disto, o empenho que elle fazia de approximar-se de mim, me enchia de pavor. Collocado então no

ultimo extremo, appellei para as minhas forças. Resoluto, metti as mãos aos meus bolsos, e tirei as

minhas pistolas, e armadas, e engatilhadas, apontei ambas pra elle dizendo: - Si dá mais um unico

passo, faço-lhe saltar os miolos... – O homem parou, e reconheci que teve medo. Então com voz mal

segura, e com um disfarce por demais grosseiro, dice-me: “Oh, meu amigo! isto era brincadeira!” –

Não duvida (dice-lhe eu); mas já agora é preciso chegarmos a um accordo... – “Estou prompto. Qual

é? (perguntou-me elle)” e eu lhe respondi: - Largue a faca sobre esta mesa, e retire-se para aquelle

canto da sala. – “Então agrada-lhe que eu faça isso? (perguntou o homem)” e eu lhe tornei: - Sim,

senhor, agrada-me – “Pois eu o farei, não por medo, mas por ver que nisso lhe dou gosto.” Dito isto,

largou a faca, e foi pôr-se no lugar por mim indicado. Então tomei a faca, guardei-a; e pensando no

dito, que – quem a seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre – entendi dever acabar com este homem

funesto, ou morrer.

Assim pensando, tomei aquelle tinteiro, e papel, e escrevi isto. Queira V. S. ler. – O Juiz de

Paz leu o seguinte:

“Eu, o mancebo, que no dia 12 de dezembro de 1838 cheguei a casa do Snr. João Esteves,

aonde nessa noute pernoutei, declaro, e juro aos Santos Evangelhos que na madrugada do dia 13 do

mesmo mes, e anno, em um duello de morte, muito nobre, lealmente bati-me com o mesmo senhor

á pistolas, dando-lhe a vantagem de atirar primeiro. Faço, e sobre esta mesa deixo esta solemne

declaração; para que, no caso de eu morrer, não seja o dito senhor tido, como um vil assassino.

“Villa de Parahyba do Sul, 13 de dezembro (pouco depois da meia-noute) de 1838.

“O mancebo que ahi pernoutou nesse dia, e que não tem

Nome Entre os Homens.”

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 332, 18/01/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 331).

- Mas, meu filho (dice o Juiz de Paz), esta assignatura...

- Assignei a verdade, senhor (dice o mancebo).

Já agora vamos até ao cabo da historia.

Pois bem: vamos. –

O mancebo criminoso proseguiu desta sorte:

- Emquanto eu escrevia esta declaração, o Snr. Estevão estava alli em pé (o mancebo apontou

para um dos angulos da sala, que ficava mais distante da mesa, e da porta aonde havia o postigo por

onde entrára o Snr. Estevão), e eu tinha junto de mim as minhas pistolas promptas. Quando acabei

de escrever, li alto para o Snr. Estevão ouvir; e elle tendo ouvido, dice:

- Como, meu menino, pois vamos nos bater?

- Irremediavelmente (dice-lhe eu).

E elle tornou-me:

- Oh, meu Deos! isso é uma desgraça!

- Para quem, Snr. João Esteves? (perguntei-lhe-eu).

- Para o senhor, visto que quer que eu atire primeiro (tornou-me elle).

Ao que eu respondi:

- Não tenha pena de mim. Atire, e mate-me. Tenho até vontade de morrer.

O Snr. Estevão tornou-me:

- Não, não o quero matar, e por isso não aceito o duello.

- Está enganado (dice-lhe eu); hade escolher uma das duas: ou acceita o duello, ou faço-lhe

fogo já... Decida.

- Nesse caso (dice elle), acceito, porque sou forçado.

- Bem (dice-lhe eu) quer atirar primeiro?

- Quer o senhor atirar primeiro, ou quer que eu atire (perguntou-me elle)?

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E eu respondi-lhe:

- Quero que o senhor atire primeiro. Antes, porém, chegue-se á esta mesa, e escreva uma

declaração, como lhe eu dictar.

Com effeito, o homem chegou-se para mesa, conservando-me em distancia delle de modo

que me podesse servir de minhas pistolas, no caso de aperto.

O Snr. Estevão assentou-se, tomou papel, e foi escrevendo o que eu lhe ia dictando. Eis a

declaração que escreveu. –

O joven criminoso, dizendo isto, tomou a declaração, que estava sobre a mesa, e debaixo de

um tinteiro, e deu-a ao Juiz de Paz, dizendo:

- Logo que o Snr. Estevão a escreveu, dobrei-a e pul-a aqui, debaixo deste tinteiro, d’aonde

não sahiu senão agora. –

O Juiz de Paz tomou a declaração, que era do theor seguinte:

“Eu, abaixo assignado, declaro, e juro aos Santos Evangelhos, que, na madrugada do dia 13

de Dezembro do anno de 1838, em um duello de morte, muito nobre, e lealmente bati-me com o

mancebo, que á minha casa chegou no dia 12 do mesmo mez e anno, e que nella pernoutou; sendo o

duello a pistolas, no qual deu-me elle a vantagem de atirar primeiro. Faço, e sobre esta mesa deixo

esta solemne declaração, para que, no caso de eu morrer, não seja o dito mancebo tido como um vil

assassino.

“Villa da Parahyba do Sul, em 13 de Dezembro de 1838.

João Esteves.”

Depois que o Juiz de Paz leu estas duas declarações, dobrou-as, e metteu-as no bolso. O

mancebo continuou:

- Feita esta declaração pelo Snr. Estevão, mandei-o outra vez para aquelle canto, aonde

estivera antes. Logo que alli esteve, mostrei-lhe as pistolas, e dizendo-lhe que ambas estavam

carregadas, convidei-o para que escolhesse a que quizesse. O homem, que tudo fazia com ronha e

velhacaria, foi se approximando, como para escolher a pistola...

- Alto lá... (bradei-lhe eu, apontando-lhe as duas armas á cara). Alto lá... se não, morre...

- Mas como hei de escolher uma pistola sem ver as duas (perguntou-me elle)?

- D’ahi mesmo (dice-lhe eu). Tenho uma em cada mão: ambas estão carregadas. Qual

escolhe, a da mão direita, ou a da esquerda?

- Mas (dice-me elle com visivel embaraço), eu atiro primeiro... e, si a minha pistola negar fogo

não perco a vantagem de atirar primeiro?

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- Si negar fogo (tornei-lhe eu), dou-lhe a vantagem de atirar segunda vez, e terceira, quarta,

quinta, sexta, emfim, todas as que quizer emquanto a sua arma negar fogo; mas lhe asseguro que não

hade negar. Segure bem a sua pontaria, e atire. O espaço não é longo... Esta sala... creio que não terá

mais de vinte e cinco, a trinta palmos, e á tal distancia não deve errar. Vamos, qual escolhe?

- Tomarei a da mão direita (dice elle).

Immediatamente tirei a espoleta a essa pistola, e pul-a sobre a mesa, para que o Snr. Estevão

a viesse buscar. Elle tomando a pistola, e vendo-a sem espoleta, dice:

- Isto é trahição! A pistola não tem espoleta!!!

- Não se assuste (respondi-lhe eu); vou dar-lhe a espoleta. Como tenho a desgraça de o

conhecer, e conhecer muito, é-me preciso toda cautela com vosmecê. Assim, emquanto vem buscar a

pistola sobre a mesa, emquanto volta para seu posto, e escorva, &c., é mister que eu tenha sempre a

minha pistola de pontaria feita, para lhe fazer voar os miolos, no caso de uma trahição... heim?

- Então o senhor me conhece muito (perguntou-me o homem)?

Eu, embrulhando em um papel doze espoletas, dice-lhe:

- Vou lhe atirar doze espoletas embrulhadas neste papel... Logo que as receber, eu faço a

minha pontaria á sua testa... Minhas armas não negam fogo; e então só a sua honra o poderá salvar...

- Como (perguntou-me elle)?!

- Si fizer sua pontaria no lugar em que está, si não der nem meio passo para diante, e acertar-

me... dê parabéns á sua fortuna... Mas note, si intentar alguma trahição, e avançar só meio passo...

então disparo immediatamente. Veja lá: eu me encosto a esta parede; assim como estou... olhe...

espero a sua bala... (Eu dizia isto, encostado áquella parede, e fazendo os movimentos proprios).

Acerte-me na cabeça, ou no coração, e está tudo acabado. O senhor fará o mesmo... Hade disparar, e

ficar ahi quietinho, encostado nessa parede. Ora bem, aqui tem as espoletas. (E dizendo isto, atirei-

lhe o embrulho das espoletas).

O homem abaixou-se, tomou o embrulho, e tirando delle uma, começou a escovar a pistola.

Então, dice-lhe eu, vendo ir levantando a pistola:

- Segure o ponto... Não faça, como na Praia-Pequena, quando assassinou Augusto para

roubar-lhe a filha.

O Snr. Estevão, tirando a arma da pontaria, todo tremulo, e com voz medrosa, dice:

- Quem é o senhor?..

- Não é da sua conta (tornei-lhe eu). Si não atira, morre...

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Com effeito, elle tornou a fazer ponto, e disparou, mas sempre trahidor; apenas disparou,

abaixou-se, e talvez por isso errasse o seu tiro: não obstante, porém, abaixar-se, a boca de minha

pistola seguiu a direcção de seu peito, e irritado ainda com mais esta perfidia, segurei bem a minha

pontaria.

(Continúa).

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Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 332).

XXXI.

Quem era o joven.

Neste lugar da narração o mancebo parou, e com os braços cruzados diante do homem da

lei, ficou mudo, e estatico. No entanto, em seus olhos, em seus gestos, e em seus modos, havia

alguma cousa de mysterioso, que bem se via que elle desejava revelar; mas que era contido por medo,

ou algum receio, ou emfim por alguma desconfiança. O Juiz de Paz conheceu perfeitamente a

existencia deste mysterio, e deste medo ou receio, ou o que quer que fosse; mas, temendo uma

indiscrição, nada se atrevia a perguntar, bem como o mancebo a nada mais dizer. Assim, ambos

mudos, immoveis e receiosos, conservando-se defronte um do outro, estiveram durante um ou dous

minutos. Então o Juiz de Paz como um homem pollido, que sabe respeitar uma posição melindrosa;

como um homem discreto, que foge de affrontar os segredos alheios; mas como um homem fino,

que tem comprehendido a existencia de uma falta de confiança; fingindo não entender a existencia

desses segredos, ou o melindre dessa posição, e essa falta de confiança, dice:

- Então, meu filho, terminou a sua historia?

- Sim, meu senhor (dice o joven).

- Pelo que tenho ouvido, creio que é alguma pessoa, que vae em busca de Maria, não?

- Não, Snr. Juiz.

- Então nada comprehendo... Não é o Snr. Alfredo?...

- Tambem não, senhor.

- Talvez algum apaixonado de Maria?...

- Menos, meu senhor.

- É extraordinario!

- O que, Snr. Juiz?

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- Pelos seus acontecimentos, que nesta casa tiveram lugar, venho no conhecimento de que o

senhor não matou ao Estevão para vingar o roubo de Maria, nem o assassinato de Augusto; mas sim

por temer desse Estevão um insulto qualquer: não é exacto?

- Exactissimo.

- Mas o senhor podia ter contado os seus acontecimentos, sem contar a historia de Maria,

que me parece ter aqui entrado como Pilatos no Credo; visto que o senhor por si, e não por ella, foi

que se bateu.

- Também é verdade.

- Mas para que veiu a historia de Maria? Para unicamente ter o barbaro gosto de me causar as

mais dolorosas impressões, e gozar do cruel prazer de me ver chorar como uma criança? O que ha,

pois, de commum entre Maria, e o matador de Estevão?

- Que sua historia está intimamente ligada.

- Mas não vejo esta ligação...

- É que ainda não a acabei.

- E o que falta?

- Que V. S. jure pelo Santo Nome de Deos, e pela sua honra de não revelar jamais, seja a

quem for, o segredo que vae ouvir.

- Pois bem. Juro pelo Santo Nome de Deos, e pela minha honra, de não revelar á pessoa

alguma o segredo de que vou ser depositário... Estaes contente, meu filho?

- Sim, senhor; agora sim.

- Agora diga-me o que há de commum entre Maria, e o matador de Estevão.

- Que Maria e o matador de Estevão são um unico personagem! –

O Juiz de Paz, pallido, vermelho, com os olhos em fogo, delirante, como um possesso,

desconcertado, e sem accordo; erguendo ao ar os tremulos braços, mal se podendo firmar sobre as

pernas; atirou-se ao pescoço do pretendido mancebo, exclamando com voz balbuciante:

- Minha filha!!!... –

Unica phrase, que n’uma lucta suprema, como nas supremas luctas das grandes paixões, a

dor, e o prazer arrancaram-lhe ao coração já eivado do muito padecer! e como para arrancal-a era

preciso um omnipotente esforço, nesse esforço extraordinario acabou por despedaçar-se o coração!

Ergueu-se no peito, bateu com força, como a ultima pancada de vida, soltou a phrase da dor, e do

prazer, despedaçou-se, e cahiu no peito, quando o corpo, já tão fraco que não podia suportar o vae-

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vem dessa lucta suprema, e desses esforços sublimes, desamparado das forças vitaes, cahiu tambem

sem sentidos!

O corpo de Augusto (que era o Juiz de Paz) iria redondamente medir o chão, si Maria (que

era o pertendido mancebo) não o amparasse em sua quéda, e não o assentasse na cadeira, que estava

proxima.

Maria tirou immediatamente d’algibeira de sua jaqueta um pequeno vidro, que continha agua

de Colonia, e dando a cheirar a Augusto, e esfregando-lh’a nas fontes, começou de diligenciar para

fazel-o tornar a si.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 334, 25/01/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

____

MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 333).

A moça que, não obstante as lagrimas, as exclamações do Juiz de Paz durante a narração de

sua historia, e o interesse, que lhe prestára, nada havia desconfiado, porque, bem que soubesse que

seu pae não morrêra na Praia-Pequena, comtudo o acreditava no Rio de Janeiro, caso fosse vivo; á

vista desta derradeira effusão, ouvindo este grito – Minha filha! – começou a desconfiar o que quer

que fosse.

A syncope de Augusto não a fez desesperar. Os pedaços daquelle coração, pesados do amor

filiar, procuraram seu centro; ahi se reuniram, e esse coração, bafejado pela celeste aragem de

vivificadora esperança, ungido pelo balsamo das lagrimas do amor filiar, palpitou de novo; Augusto

voltou á vida. Maria então lhe dice:

- Senhor, que significam essa palavras?

- Minha filha... eu sou Augusto, teu desgraçado pae...

- Meu pae!!!... –

Foi a unica resposta de Maria, e cahiu-lhe nos braços!.. O pae e a filha serraram-se

estreitamente em um destes abraços inqualificaveis pela mistura dos affectos! serraram-se pois n’um

abraço que, bem que traduzindo todos os indefiniveis abalos d’alma, exprimindo todas as ineffaveis

effusões de uma agnição estupenda; não póde todavia ser descripto, nem ainda pela mais estupenda

de todas as pennas!

Ha na vida humana scenas de tal maneira emphaticas, nobres, e augustas, que ninguem póde,

que ninguém deve descrevel-as; e fazel-o, é enlanguecer essas scenas, despojal-as de sua energia

natural, rebaixal-as ao gráo da vulgaridade, tornar prosaico o que tem de poetico, profanar o que em

si tem de santo, e tornar pequeno, feio, e ridiculo o que nellas ha de grande, de bello e de sublime!

O narrador toma a liberdade de pedir ao leitor que se colloque no lugar de Augusto, e á

illustre leitora no lugar de Maria, e então poderão fazer uma idéa approximada das sensações

delicadas desses dous corações; das commoções sublimes, dos abalos supremos, dos sentimentos

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ternos, dos variados affectos, das estremecidas effusões, e de todas as dores, e prazeres, temores, e

esperanças, que constituiam a solemnidade dessa peripécia maravilhosa, da qual, tanto o pae, como a

filha, talvez tivessem ha muito perdido as derradeiras esperanças!

Passado este momento de transporte, e enthusiasmo, Augusto, depois de ter abraçado muito,

e beijado sua filha, dice-lhe:

- E agora, minha filha?

- E agora o que, meu pae (perguntou a moça)?

- Criminosa! nodoada aos olhos do mundo!...

- Meu pae, estou pura, parece-me, aos olhos de Deos: estarei igualmente pura aos olhos de

meu pae?

- Não o duvides, não, minha filha.

- Então que me importa o mundo?!

- Mas entregar-te a justiça?

- Sem duvida, meu pae.

- Oh! é horrivel!

- Mas é forçoso.

- Minha filha!...

- É forçoso, meu pae. Triumphem o amor filial e paternal, exulte a natureza; mas não gema a

justiça. Si a lei me considera criminosa, seja eu entregue á lei. Seguirei meu destino. Folgue o pae nos

braços da filha; mas não se aniquile a honra do Juiz!

- Oh Providencia!

- É justa a Providencia, e a nós só convém abençoal-a.

- Maria... minha filha, o que dizes?

- A verdade, meu pae. A Providencia permittiu que eu fosse insultada; que por causa deste

insulto fugisse á minha bemfeitora; que viesse parar à esta casa; que nella salvasse o mundo de um

monstro, e que em consequencia deste feito, a que o mundo chama um crime, reencontrei meu pae.

Sem este insulto, sem este pretendido crime, Maria seria sempre a orphã, a menina achada sobre uma

estrada, uma vagabunda enfim.... Meu Deos (Maria assim fallando, cahiu de joelhos, e com as mãos

erguidas ao céo, continuou), meu Deos, como são profundos os vossos juizos, e incognitos os

caminhos da vossa Providencia! Já não sou uma miseravel, uma vagabunda! O mundo já me não

affrontará, perguntando-me por minha familia, por que posso lhe mostrar meu pae. Obrigada, meu

Deos, obrigada.

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Augusto, banhado em lagrimas, suffocado em soluços, levantou sua filha em seus braços

dizendo:

- Mas quando o mundo fallar de teu crime, minha filha?

- O mundo verá que fui forçada a esse crime. O Snr. Estevão, passando ao meu aposento

sem meu beneplacito, ostentava-se como um ladrão. Os seu olhares deveriam encher de medo a uma

mulher honesta; o empenho, que elle punha em que eu ficasse em sua casa, e o desejo que tinha de

approximar-se de mim, me faziam desconfiar que havia descoberto o meu sexo, e logo que eu tive

esta desconfiança, já não podia continuar a minha viagem com segurança, e então era mister ou a

minha morte, ou a deste homem, ou a de ambos nós.

- Mas, minha filha, para aonde te dirijias?

- Para o Rio de Janeiro.

- E depois?

- Para um convento, aonde professaria. O meu pouco dinheiro devia chegar para minha

dotação.

- Meu Deos: illuminae-me sobre o que devo fazer!..

- É claro, meu pae.

- Como, Maria?

- Meu pae deve organisar o meu processo, porque não deve de maneira alguma revelar o

nosso segredo. A verdade do acontecimento me basta; não preciso do menor favor. Feito isto, devo

ir para a prisão. Deos e meu pae, velarão sobre mim. O resto, meu pae, pertence a Deos: deixemol-o

obrar como quizer, e não tentemos a sua Providencia.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 335, 28/01/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 334).

XXXII.

Explicações.

O pae e a filha por longo tempo entregaram-se ainda aos seus transportes, dando-se de mais

a mais ao doce prazer de darem um livre curso ás suas amorosas lagrimas. Augusto contou à filha

miudamente tudo quanto lhe havia acontecido des do momento em que a perdêra até o momento

actual. O leitor poderá bem figurar, que de lagrimas de transportes, de sensações, &c... não custaria

aos dous esta narração, que deveria ser terna, apaixonada e pathetica!

Depois Augusto pediu a Maria que lhe contasse o como tinha effeituado a sua sahida da casa

da Snra. D. Lordecene.

Maria tomou a palavra, e fallou nos seguintes termos:

- Insultada pelo Snr. Alfredo, não sahi mais do meu quarto. Lá pelas dez horas, talvez, tendo

escripto uma carta, dobrei-a, fechei-a, e puz-lhe sobrescripto para a Snra. D. Lordecene; esta carta

puz sobre uma mesa. O rascunho guardei comigo. Vendo que a casa estava em silencio, fui ao quarto

de um rapazinho, que era o nosso pagem (ele é do meu corpo), tirei de sua caixa duas mudas de

roupa, um par de botins, o chapéo, o chicote, e uma pequena mala, e com isto voltei para meu

aposento: ahi vesti uma das mudas, calcei os botins, e puz-me prompta; a outra muda metti na mala,

com todo o meu dinheiro, o meu polvarinho, e chumbeiro, bem providos, algumas buxas e uma

caixinha de espoletas: tomei as minhas pistolas, carreguei-as com balas (pois as tinhamos para os

nossos divertimentos ao alvo), e metti-as nos bolsos de minhas calças, que felizmente me ficaram um

tanto largas. O meu ouro, que a Snra. D. Agueda me havia deixado, e toda a minha roupa, deixei

ficar. Feito isto, para não deixar aberta a casa de minha bemfeitora, fechei por dentro a porta de meu

quarto, e sahi por uma janella delle. Na estribaria tomei o meu cavallo, arreei-o, puz-lhe a mala, e

parti.

- E a que horas?

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- Eram talvez onze, pouco mais, ou menos.

- Uma menina de dezoito annos... tão só, e a taes deshoras.

- Não, meu pae, nem só, nem a deshoras...

- Como?!

- Ninguem está só, porque Deos está em toda a parte. Para o justo, para o bem intencionado

todas as horas são boas. As minhas intenções eram puras; sahia da casa de minha bemfeitora para a

casa do meu Creador; deixava a Snra. D. Lordecene por Deos; eu não podia perder na troca; nem a

Snra. D. Lordecene offender-se pela preferencia!

- Minha filha, parece-me que a Snra. D. Lordecene é uma mulher mui piedosa, uma

verdadeira christã, cuja fé faria honra aos martyres do christianismo!

- Sem dúvida, meu pae. Posso até jural-o.

- Nesse caso, como acreditar nas palavras do Snr. Alfredo?

- Eu não sei o que ella dice a seu filho, e disso me desejo esquecer; só digo o que della sei.

- Maria, no ponto em que nos achamos, parece que deve haver entre nós toda a franqueza...

- Sim, meu pae.

- Que pensavas tu do Snr. Alfredo, antes desse acontecimento?

- Que tinha bom coração, que era honrado e virtuoso, não obstante algumas ligeirezas

proprias de sua idade, e algumas idéas menos justas, fructo das aulas em que estudou.

- E quaes eram os teus sentimentos para com elle?...

- Os meus sentimentos... (dice a moça fazendo-se vermelha, e abaixando a cabeça).

- Sim, minha filha...

- Amava-o, meu pae! (dice ella em um tom sentimental e doloroso).

- Eu o tinha pensado: está bem. Tens o rascunho da carta que deixaste para a Snra. D.

Lordecene?

- Eil-o aqui.

Maria tirou de sua mala um papel dobrado, que entregou a seu pae, o qual abriu, e leu o

seguinte:

“Minha Mãe.

“Quiz Deos que a minha educação fôsse obra sua; mas não a minha felicidade ou desgraça!

Quando esta receber, Maria... a desgraçada Maria, a misera orphã, a pobre menina achada n’um

caminho publico, a vagabunda Maria... estará longe, e em longe do lar hospitaleiro, que com tanta

bondade a recebeu, aonde foi tão ditosa, e aonde, por experiencia propria, soube que a ventura

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existia na casa da virtude! longe e bem longe daquela a quem deve tudo, tudo... a quem ama, como

uma terna filha a uma caridosa mãe... de quem jámais se queria separar, e nem se separaria si a

Providencia a tanto a não obrigasse!

“Minha mãe, perdoe-me este passo... mas sou forçada a elle! Ah! pelo Céo, pelo Céo não me

amaldiçoe, e lastime o meu destino! Quem sabe o que será de mim! mas devo a mim propria este

espantoso e insolito sacrificio!

“Si Maria chegar ao seu destino, e vir coroados os seus votos, dará conta de tudo á sua

Bemfeitora, a sua mãe adoptiva, á virtuosa, á santa Snra. D. Lordecene.

“Minha mãe, trago duas mudas de roupa do Seraphim; isto me é preciso.

“Ainda uma vez... perdão, perdão, pelo amor de Deos... e a sua santa bênção todos os dias!

“Adeos, minha mãe, adeos!

“S. C. 12 de dezembro de 1838.

Sua filha

“Maria Lordecene dos Anjos.”

- Que nome é este, Maria? (perguntou Augusto)

- Eu me lembro (respondeu Maria), que minha mãe me ensinava que o meu nome era Maria

dos Anjos.

Augusto, enxugando as lagrimas, que des do principio da leitura da carta corriam de seus

olhos, dice:

- Assim era; mas este – Lordecene?

- Adoptei-o de hontem para cá, meu pae.

- Pois fique adoptado. Ainda tens, minha filha, uma malha de cabellos cor de fogo no alto da

cabeça?

- Sim, meu pae; não tão cor de fogo; mas differentes dos outros. É aqui, bem no alto da

cabeça.

Augusto e sua filha ainda se intretiveram até quasi ao meio-dia; à essa hora Maria, montada

em seu bello cavallo, seguida do Juiz de Paz, do escrivão, e meirinhos, foi para a cadeia da villa, a

cujo carcereiro o Juiz de Paz a entregou, recommendando que tratasse o preso com toda a decencia e

respeito. Augusto tomou conta do cavallo, arreios, mala, etc., do joven preso, e incumbiu-se de sua

comida e cama.

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 336, 01/02/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 335).

XXXIII.

A moça incognita.

Augusto em vez de seguir para sua fazenda, veiu para a villa e ficou em uma casa que ahi

tinha; dessa casa mandou á fazenda buscar arranjos para ficar na villa por algum tempo.

Escusado é dizer que o attribulado pae não tomou alimento algum, e que passou o resto do

dia chorando sobre o destino de sua filha.

Bem vontade teria Augusto de estar todo o tempo na prisão ao lado de sua filha; mas a sua

posição de juiz lh’o prohibia; além do juramento que havia dado a Maria de jámais revelar seu sexo.

Deixemos por agora Augusto, e voltemos á prisão de Maria, que havia comido bem do jantar

que seu pae lhe havia mandado, e que tinha passado o dia tranquilla e socegadamente.

Ás sete horas da noute, pouco mais ou menos, Maria pediu luz ao carcereiro, que

immediatamente lh’a deu.

A cadeia era vigiada pelo carcereiro, e guardada por tres guardas nacionaes, cuja promptidão

para o serviço não era lá muito para louvar-se. A essa hora os guardas nacionaes foram ceiar; o

carcereiro ficou só. Apenas os guardas sahiram, uma moça ligeiramente vestida, involta em um

grande chale, com um lenço por baixo dos queixos, e atado sobre a cabeça, que lhe tapava grande

parte do rosto, apresentou-se ao carcereiro, e com uma aflautada voz dice:

- O Snr. carcereiro? –

O carcereiro, abrindo uns grandes olhos, pondo-se sobre as plantas dos pés, e todo se

empertigando, dice, aparte:

- Oh! oh! temos gente fina! –

E caminhando para a moça, continuou:

- Quer alguma cousa, sinhásinha?

- Oh! Snr. carcereiro, si o senhor me fizesse um obsequio?

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- Então qual é?

- Mas o senhor me promette fazer?

- Conforme... Si estiver nas minhas mãos...

- Está, sim senhor, está.

- Não basta isso: é preciso que não seja contra as minhas obrigações, porque bem vê...

- Oh... não, senhor; eu não era capaz de pedir cousa alguma contra os seus deveres...

- Então diga, minha senhora, diga...

- E o Snr. faz? –

- Sendo assim, porque não. Diga.

- Eu queria que o senhor me deixasse fallar com o preso...

- An!.. Então elle é seu namorado?

- Não, senhor; elle é meu primo...

- Primo! primo!... e elle morava em sua casa?

- Morava, sim, senhor!..

- Um!!.. Por isso é que a senhora vem cá procural-o! Estes primos.. estes primos...

- Não, senhor: elle é meu primo só, sim, senhor...

- Mas então o que é que a senhora me hade dar, para lhe deixar fallar com o tal seu

primosinho?

- Eu? .. O que é que o senhor quer?

- Só si me der um beijo e um abraço...

- Ora... isso não, senhor...

- Pois então não falla.

- Ora, Snr. carcereiro, porque o senhor é máo? Eu nunca dei beijos em ninguem...

- Então eram só abraços?!

- Nem abraços; não, senhor.

- E quantos beijos e abraços dava no primo todos os dias?

- Eu nunca dei beijos nelle.

- Mas abraços dava. A boca não mente...

- Então me deixa fallar com elle?...

- Já lhe dice: um beijo e um abraço...

- Beijo não, senhor...

- Então abraço sim?..

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- Pois sim...

- Ora venha lá esse abraço. –

Com efeito, o magano do carcereiro recebeu o abraço convencionado, e por sua conta deu

mais alguns; mas a menina teve o modesto cuidado de amparar seu peito com os braços. O

carcereiro tambem, por sua conta, quiz dar um beijo, mas a boca da rapariga estava bem coberta com

o tal lenço, no qual ella tinha um minucioso cuidado. Comprada assim a permissão de fallar ao preso,

dirigiram-se ambos para o xadrez, aonde o carcereiro quiz chamal-o; mas a moça, impedindo-o, lhe

dice:

- Assim não, Snr. carcereiro...

- Então como, menina? (tornou-lhe este).

- Eu queria entrar lá dentro do xadrez...

- Lá dentro do xadrez?! Boas!.. (∗)

- Então aonde está o obséquio? aqui póde fallar todo o mundo com qualquer preso, que não

esteja incommunicavel, e elle não está.

- Mas é um criminoso de morte, um assassino.

- Ora, Snr. carcereiro... deixe-se disso... Eu sou pobre; mas si o senhor se não offende

oferecer-lhe-hei isto.

A moça proferindo estas palavras, escorregou na mão do carcereiro duas moedas de ouro. O

carcereiro, que não tinha ahi luz, recebendo-as, chegou-se para a luz, que alluminava Maria, viu duas

meias doblas. Electrisado por este toque magico, e sacodindo a cabeça, dice:

- Tentação!.. tentaçãosinha!.. Emfim, eu abro o xadrez; mas abrevie, antes que venham os

guardas.

Dito isto, abriu o xadrez. A moça entrou, e sem proferir nenhum monosyllabo, cortejou

Maria, que deitada sobre uma esteira, dormia á somno solto, tendo acordado nesse momento, á

bulha da chave na fechadura do xadrez. A recem-chegada tirou do seio uma carta, e deu a Maria; esta

abriu-a e leu o seguinte:

“Minha filha.

“A portadora trocará suas roupas comtigo, e ficará em teu lugar, e tu com as roupas della

sahirás. Saindo não dês ao carcereiro nem meia palavra, e retira-te o mais depressa possivel. Fóra da

prisão acharás um pagem a quem seguirás em silencio; elle te guiará até nossa casa. Si na minha sala

Nota do autor: (∗ ) Negativa familiar, e chula, que ouvimos em algumas partes. Assim se diz por elipse. A phrase é Boas cousas; com algum verbo ad hoc.

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estiver alguem, manda-me chamar em particular á porta da rua. Tudo isto te imponho, como um

preceito paterno. Não tenhas cuidado pela moça que fica em teu logar.

Teu pae

“Augusto.”

O carcereiro, querendo, sem escrupulo algum ganhar as suas duas meias doblas, retirou-se

alguma cousa do xadrez. A moça, emquanto Maria lia a carta, tomou a esteira, e encostou-a ao

xadrez, de modo que ficou aberta, e interceptanto a vista entre os que estavam no xadrez, e poderiam

estar fóra delle. Feito isto, sem jámais tirar o lenço dos queixos, tirou o chapéo, o chale, o vestido,

uma saia branca, e a camisa, e poz tudo isto no lugar em que Maria se devia vestir. Quando Maria

acabou de ler a carta, viu a moça de calças d’enfiar, atadas nas pernas, camisa de meia, e de costas

para ella, atando um lenço ao pescoço, de maneira que lhe cahia sobre o peito, querendo assim ficar

com o peito coberto. Maria, sem dizer palavra, vendo que a moça estava de costas para ella, entendeu

que era para dar-lhe liberdade de vestir-se sem vexame diante de uma desconhecida. Então, sem mais

demora, despiu as roupas de homem com que se havia disfarçado, e começou a vestir-se com o facto

que a moça havia deixado junto della. A moça não se voltou para Maria senão quando esta lhe pediu

para apertar-lhe o vestido, que era um tanto justo. Apertado, a moça, com admiravel presteza

envergou o facto de homem, deixado por Maria, tirou a esteira do xadrez, e tomou o lugar do preso,

tendo antes chamado o carcereiro para abrir o xadrez. Maria sahiu, e aligeirando os passos, foi se

escoando pela sala fóra, emquanto o carcereiro fechando a prisão dizia debalde:

- Venha cá, venha cá... Vae tão depressa... –

Maria, sem fazer o menor caso, foi se safando. Fóra da prisão achou o pagem esperando-a, e

este silenciosamente a guiou até a porta da casa de seu pae. Augusto estava só. Maria, certificada

disto, entrou, e apresentou-se a seu pae, dizendo:

- Meu pae... e a moça que ficou lá?

- Minha filha! tu aqui! Que moça?! que é isto?

- Que é isto?! E a sua carta? e a moça que lá ficou, meu pae?

- Que carta?! que moça!! –

Neste momento bateram á porta. Augusto, conduzindo Maria para os fundos da casa,

mandou ver quem batia.

(Continúa).

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ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

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MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 337).

XXXIV.

Quem era a moça, que ficou na prisão em lugar de Maria.

Augusto deixou sua filha no interior de sua casa, e veiu para a sala receber alguns amigos que

o vinham visitar. Com estes toda a conversação recahiu sobre o fallecido Estevão, e o joven, que o

matára.

O Snr. Silva sabia a historia do assassinato de Augusto, e do roubo de Maria, porque o

Pachola lhe havia contado; mas este, talvez com particulares tenções, nunca lhe havia revelado que os

Snrs. Estevão, e João Esteves eram o mesmo personagem. Verdade é que o Snr. Silva nunca tinha

pernoutado, nem ido á estalagem do Snr. Estevão com José Pachola. Maria tambem não se tinha

revelado ante José Pachola, nem este nada soube, ou desconfiou; e quando o Pachola dice a Maria,

depois da morte do Snr. Estevão, que fugisse, não foi senão por um acto de compaixão, e sympathia,

por tanta belleza e mocidade. O Snr. Silva contou então a todos tudo quanto sabia do Snr. Estevão,

de modo que a noute todo o mundo sabia que o Snr. João Esteves não tinha esse nome, mas sim o

de Estevão; que havia assassinado um homem no Rio de Janeiro, roubado uma menina para entregar

á morte, e todos os outros feitos do homem; que o homem que fôra assassinado era Augusto, e a

menina roubada uma sua filha. Então não houve quem não soubesse, quem não contasse uma

anedocta, uma maldade do Snr. João Esteves. O coração humano, por um instincto para o bem,

perdôa facilmente os males de um homem contra outro homem; mas quando esses males são contra

uma creança, o coração revolta-se e nega perdão ao seu autor. A sympathia pelo fraco, e a protecção

a elle dada, são uma manifestação, bem apreciavel, da bondade primitiva do coração humano; isto é,

dessa bondade natural, que existe no coração antes que funestos exemplos de uma sociedade

corrompida, e uma má educação a alterem (sic), transtornem e desgarrem! Com effeito, a sociedade

tem todavia suas cousas boas, a educação tem perfeições e bellezas; ellas operam seus milagres;

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corrigindo defeitos de uma natureza altiva, ardente e impetuosa; mas a bondade, essa não a dão ellas;

o que podem é aperfeiçoal-a; e dirigil-a. A differença dos genios das pessoas consiste em ser uns

brandos, pacatos e soffredores, e outros fortes, impetuosos e reluctantes. Uma educação habil

remedeia o defeito de um genio humilde até a baixeza, e altivo até o desaforo. Quanto aos outros

defeitos, que enxovalham a humanidade, e insultam a razão de modo tão escandaloso, nada mais são

que efeitos de uma pessima educação, e de máos exemplos; e, si a doutrina das bossas de Gall é

verdadeira, para corroborar a nossa fraca opinião, ahi está o exemplo de Sócrates!

Do que fica dito, vê o leitor que a morte do Snr. João Esteves nem por isso devia ser muito

sentida.

Como era natural, tendo se espalhado a noticia de que o Snr. João Esteves era um Estevão

que em outro tempo havia dado um tiro no Snr. Augusto, e lhe roubado a filha; os amigos de

Augusto quizeram saber essa historia da propria boca delle, e elle a todos satisfez; e quando lhe

perguntaram si nunca mais soube da filha, respondia que não. É claro que estes amigos de Augusto

não eram os intimos, que estes sabiam bem destes acontecimentos.

Livre Augusto destes amigos, que nunca foram tão impertinentes, e importunos, como nessa

occasião, voltou para sua filha, a quem abraçou e beijou muitas vezes, e depois destas effusões,

perguntou:

- Mas, minha filha, como é que estás aqui? Que carta, e que moça é esta de que me fallaste?

- Meu pae (respondeu Maria), eu de nada sei... Depois que escureceu, o carcereiro abriu o

xadrez e entrou uma moça, cujas feições não pude ver, porque ella, com um lenço, que tinha nos

queixos, tapava cuidadosamente seu rosto, e eu, como isso notei, não quiz ser indiscreta, reparando

muito nella. Esta moça, sem me dar palavra, cortejou-me, e deu-me esta carta, e emquanto eu a lia,

ella tirou este chapeo, este chale, este vestido, saia branca, e camisa, e tudo isto depoz junto de mim.

- E ella, como ficou?

- Com calças d’enfiar, camisa de meia, e um lenço no pescoço, cahido sobre os seios.

- E o lenço dos queixos não tirou?

- Nunca. Ella deu-me as costas, emquanto eu me vestia com o facto que havia tirado de si, e

só voltou-se quando lhe pedi que me apertasse o vestido, porque eu mesma o não pude, por ser um

tanto apertado.

- E depois?

- Sahi, e vim.

- E o pagem, que te seguiu?

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- Vi-o retirar-se, apenas aqui entrei.

- Bem. Só de manhã poderemos indagar este negocio. –

De manhã, logo cedo, diceram ao Juiz de Paz que o carcereiro lhe queria fallar; o Juiz de Paz

mandou-o entrar. O carcereiro pallido, tremulo, e desconcertado, apenas viu o Juiz de Paz, atirou-se-

lhe aos pés, exclamando:

- Meu senhor, me valha... estou perdido...

- Perdido como, homem?

- O preso fugiu, Snr. Juiz!..

- O preso fugiu! Então como? –

O carcereiro contou miudamente o acontecido; mas, por modéstia, a respeito da moça, calou

a circumstancia dos beijos e abraços; e a respeito de si, a circumstancias das meias doblas. Depois

desta narração, o Juiz de Paz dice:

- Então a moça ficou em lugar do criminoso?

- Ficou, Snr. Juiz; mas não é moça...

- Então que diabo é?

- Era um rapaz, vestido de moça, meu senhor...

- Essa agora é que não está mal...

- Sim senhor, Snr. Juiz... Ainda agora elle me pediu agoa para o rosto; levei-lhe a bacia com

agoa; e elle começou a lavar a cara á minha vista; quando botou agoa na cara, começou a sahir n’agoa

uma cousa branca, como polvilho... Chego perto, e vejo que suas feições são differentes da (sic) do

criminoso... Reparo bem, e descubro n’elle uma barba muito azul, e muito bem raspadinha: e o outro

quasi que nem buço ainda tem...

- E você não lhe dice nada?

- Perguntei-lhe quanto me veiu á cabeça, meu senhor...

- E que lhe diz elle?

- Anda em cima manga comigo. A tudo quanto lhe pergunto, responde que não sabe.

- Vá á cadeia, e traga o preso á minha presença.

Pouco depois o carcereiro trouxe o preso, no meio de dous guardas, á presença do Juiz de

Paz. Este ficou só com elle em uma sala, e mandou retirar o carcereiro. Logo que Augusto ficou só

com o preso, perguntou-lhe:

- Quem é o senhor?

- Eu não sei (respondeu o preso).

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- Oh! pois não sabe quem é?

- Não sei.

- Então porque está preso?

- Não, senhor.

- Mas como entrou para cadeia?

- Obrigaram-me a vestir-me de mulher, e a representar uma farça com o carcereiro, e depois

dentro da prisão, obrigaram-me a largar os vestidos de mulher, e a tomar outra vez os de homem.

- Mas quem lhe obrigou?

- Não sei.

- Pois supponhamos que o obrigaram a tomar vestidos de mulher, que o acompanharam até a

prisão; depois que ficou só com o carcereiro, quem lhe obrigou a enganal-o?

- O medo.

- Medo que de?

- Da morte.

- E quem lhe matava?

- Não sei.

- Então foi por medo que ficou em lugar do preso?

- Sim, senhor.

- E, si não ficasse?

- Morria.

- Mas quem lhe matava?

- Não sei. –

Este mancebo tinha em suas respostas, e modos, um ar tão zombeteiro, que o Juiz de Paz

mal se podia conter para não rir! Então, seismando o que quer que fosse, agitou a sua campainha, e

apparecendo um escravo, lhe dice que dicesse á senhora, que ahi estava, que viesse á sala, e elle foi

esperal-a á porta, que para a sala dava entrada. Logo que Maria ahi chegou:

- Alli está (dice-lhe Augusto ao ouvido) a pessoa que ficou na prisão em teu lugar.

Maria conhecendo logo as suas roupas; e sem ser vista; tendo conhecido o moço, sahiu para a

sala dizendo:

- Snr. Alfredo!!! –

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O Snr. Alfredo, voltando-se rapidamente para ella, e sem dar um passo, apertando as mãos

junto ao peito, como nos pintam o discipulo amado perto da Cruz do Salvador, com olhos

supplicantes, enternecidos, e amorosos, exclamou em um tom pathetico, e dilacerante:

- Maria!!!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 339, 11/02/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

____

MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 338).

XXXV.

Dedicação, e abnegação.

Era bello, e digno de ver-se o quadro magestoso, pathetico e sublime, que neste momento

solemne apresentavam estes tres personagens! O magestoso de suas attitudes, o pathetico de seus

semblantes, e o sublime dos affectos revelados por seus rostos, offereciam á vista um quadro

doloroso e sentimental; mas encantador e emphatico! Era uma dessas difficultosas e raras scenas da

vida, em que a vida se ostenta com todas as suas saudades e desgostos do passado; com todas as suas

seguranças, e receios do presente; com todas as suas esperanças, e temores do futuro; e rodeada do

apparatoso cortejo de seus affectos e paixões, pelo turbilhão de sensações, que, involta em glorias,

involta em penas, com tanta magestade alardêa! Era uma scena philosophica, pelo que pertencia aos

sentimentos d’alma! poetica, pelo contraste de tantas e tão variadas sensações! artistica, pelo que

revelavam essas phisionomias, aonde refflectiam tão diversos sentimentos, como em um prisma,

atravessado pelo raio solar, reflecte a luz tão variadas cores!

Maria, tendo dito – Snr. Alfredo!!! – estacou, e cruzou os braços: sua phisionomia doce, mas

que tinha uns longes de austera, tornou-se carregada; seus olhos um tanto ternos, e um tanto severos,

tornaram-se sombrios. Nessa postura, muda e estatica, a moça desfiava em sua mente um cahos

informe de tumultuarias idéas! As sombras de um affrontoso insulto, amplo de calculado abuso de

uma posição ditosa, arrojado contra uma posição excepcional, luctavam, por derramar sobre sua

alma a noute do esquecimento de tantos e tão sinceros beneficios, contra a brilhante luz de uma

dedicação sublime até o enthusiasmo do martyrio, partida de abnegação estupenda, levada até a

morte, até o sacrificio da reputação e da honra! Entre estas sombras, entre esta luz, grandes deveriam

ser as paixões e os affectos, que se deviam agitar e debater!

Alfredo, na postura em que o narrador o descreveu no capitulo antecedente, traduzia em seu

semblante um amor supremo, até a dedicação sem limites; uma dedicação sem limites até a

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abnegação completa; uma abnegação completa, até a resignação do martyrio; e a resignação do

martyrio até as affrontas, o vituperio e a morte!

Augusto, em pé, com os braços estendidos, contemplava silencioso, e immovel, estas duas

victimas do amor, do resentimento e da leviandade, soffrendo como ellas, todas as dores, todas as

angustias, consequencias deste affecto, desta paixão e deste accidente! Elle tinha do primeiro jacto

tudo comprehendido!

Na postura em que temos descripto estes tres personagens, conservaram-se elles durante

dous ou tres minutos. Augusto foi quem se atreveu a quebrar o encantamento que prendia e

fascinava a estes dous corações, que mal podiam palpitar, subjugados por tantos sentimentos. Elle

pois dice:

- Que!.. ficamos assim até a noute?

- Maria!.. (dice Alfredo).

- Pertende de mim alguma cousa, Snr. Alfredo? (dice Maria).

- Snr. Alfredo! Grande Deos! Pois já não sou Alfredo, Maria? já não sou o vosso irmão

querido, o companheiro de vossa infancia, o socio dos vossos brincos?!

- O senhor o era, quando eu não era sinão uma vagabunda!

- Maria, é possível que um simples gracejo despertasse em vós um resentimento até a

loucura?!

- Até a morte, si preciso fosse!

- Está bem, minha irmã; fui louco, fui insensato, fui leviano! mas sede tão generosa quanto

fui leviano, insensato e louco! Eu vos juro pela sepultura de meu pae, pela velhice de minha mãe, e

pela minha honra... (bem vêdes, nada tenho de mais caro!) eu vos juro que o que vos dice não era

mais que um gracejo para vos ouvir fallar, porque gósto de ouvir-vos! Não obstante, amo melhor o

vosso perdão, que todas as desculpas do mundo inteiro!.. Maria... minha irmã... voltae para minha

mãe...

- Para sua mãe?!

- Sim, Maria...

- E não foi o Snr. Alfredo que me dice que ella não importava que eu fosse sua...

- Mas si eu vos dice que foi um gracejo meu?

- Logo, o senhor gracejando calumniou a sua mãe?

- Mas não pensei que tomasseis ao serio, nem que acreditasseis tal torpeza de tanta santidade!

Quando hoje se deu entre nós pela vossa falta, e a vossa carta me revelou o motivo da vossa sahida

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da nossa casa; com lagrimas da mais profunda dor contei á minha mãe todo o acontecido! Ah! Maria!

minha cara Maria! si a visseis!.. Suas lagrimas, seus soluços e gemidos, reprehenderam mais

amargamente a minha leviandade que todas as palavras as mais asperas e positivas! Si não voltaes

para o seu lado, Maria, não é sobre vós que negrejará para sempre a mancha funesta de uma

ingratidão horrivel; é sobre mim, é sobre minha alma que cairá eternamente o peso insupportavel de

desesperado remorso, na angustiosa lembrança de haver eu feito de vós uma mulher ingrata! de vós,

sempre tão boa, tão virtuosa, e tão pura!

Si visseis o lucto, que deixastes em nossa casa!.. Maria... vós ereis a alegria della, o prazer de

todos, e de todos a querida! Si visseis em que estado se acha aquella, que vos creou, e que vos ama

tanto como a mim!.. Talvez que des de hontem até este momento ainda não tenha tomado alimento

algum! Si a visseis banhada em lagrimas, suffocada em soluços, soltos os cabellos, os vestidos em

desordem, ulullando por toda a casa, e chamando pelo vosso nome: “Maria?! Vão me buscar a minha

Maria...”

- Basta... basta... Alfredo.

Maria não pôde dizer mais, porque, suffocada em pranto, cahiu sobre o seio de seu pae.

Alfredo approximando-se della, perguntou-lhe suavemente:

- Ides, Maria?

- Sim (dice Maria, e levantando o rosto para seu pae, dice):

- Meu pae, vamos aonde está minha mãe...

- Obrigado, obrigado, Maria... sêde abençoada.

Isto dizia Alfredo, beijando ardentemente a mão da moça. Maria desprendendo-se

rapidamente do seio de seu pae, dice:

- Mas eu não posso ir...

- Porque? (perguntou Alfredo).

- Porque devo ir para minha prisão.

- Para a vossa prisão vou eu...

- Nunca.

- Quereis, Maria, que minha mãe morra de dôr? Quereis abandonar vosso pae, que ha onze

annos vos busca, e que só hontem vos encontrou por um acaso, quando lhe contastes a vossa

historia, e vos revelastes a elle, sem ainda saberdes que era vosso pae?

- Como sabeis disto, Alfredo?

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- Quando hontem, quasi ás nove horas da manhã, se deu por falta de vós em nossa casa, sahi

logo em vossa procura, e apezar da diligencia que puz em alcançar-vos, só cheguei á estalagem

quando já tinheis punido aquelle grande malvado! Cheguei no momento em que ieis ficar só com

vosso pae na sala em que lhe fizestes as vossas revelações; por isso não pude ver-vos; mas, vendo o

vosso cavalo, e os arreios, desconfiei que ereis vós. Então, com o escrivão, com quem me dou,

obtive um quarto visinho á dita sala, e d’alli ouvi as vossas revelações.

- Indiscreto!.. (dice Maria, sorrindo-se). Si fosseis mulher não serieis perdoado por curioso.

- Maria, não vos demoreis... Eu já mandei dizer á minha mãe que se tranquilisasse; que hoje

por todo o dia serieis com ella.

- Mas como? deixar-vos na prisão sem crime algum?!

- Si eu o não tenho, nem vós.

- Matei um homem, e por isso devo estar presa.

- A questão não vale a pena. Os que nos paizes civilisados matam em um duello nobre e

lealmente, si nesse momento não são presos pela justiça, não se recolhem elles mesmos á prisão, seja

qual for o gráo de seus escrupulos e moralidade; si são presos e podem evadir-se, o fazem. Agora, si

vós vos julgaes criminosa aos olhos de Deos e de vossa consciencia, então ide para vossa prisão; não

tendes outro meio de expiar vosso crime, nem de apasiguar vossa consciencia: mas, si no que

praticastes com o tal Estevão não vos julgaes criminosa ante Deos, e vossa consciencia; ide para

minha mãe, e ficae tranquilla.

- É bem argumentado! (dice Augusto), mas o senhor?

- Não tenha cuidado em mim. Aqui poucas pessoas me conhecem, e os que me conhecem

ainda me não viram. V. S. entregue-me ao carcereiro, e diga-lhe só isto: “Leve o preso, metta-o na

prisão: quanto ao senhor espere lá mesmo as minhas ordens.” –

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 340, 15/02/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

____

MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 339).

XXXVI.

Um bello expediente.

O Juiz de Paz chamou o carcereiro, e em um tom grave, e modo bastante secco, dice-lhe:

- Sr. carcereiro, tome conta do preso, e metta-o no xadrez. Quanto ao senhor, não saia de lá,

e lá mesmo espere as minhas ordens, que ellas, em pouco tempo, lhe serão communicadas. –

O carcereiro, como um homem receioso e desconfiado, e querendo no rosto do Juiz de Paz

ler o mysterio destas palavras, olhou-o com hesitação, e depois voltando-se para o preso, com um ar

estupido ou preoccupado, dice:

- O senhor me perdeu!

- Como, si você está ahi, homem?! (respondeu o preso).

- O senhor ainda manga?!.. O que hade ser de mim?

- Eu sei cá?..

- Oh homem de mil diabos!..

- Não faça barulho... Olhe, escute: mande esses guardas embora: são horas de almoçar; elles

devem ter fome...

- O que?! para o senhor me pregar alguma!?

- Veja que eu sou um homem de bem... Você só é bastante para conduzir-me. Vamos, mande

os guardas embora...

- Não mando... não quero...

- Si os não manda, entro para a casa do Juiz de Paz, e lhe conto a historia dos abraços e dos

beijos desta noute... e das duas meias doblas, heim?.. Veja lá!..

- Mas o senhor não me deixa ficar mal?

- Não; não deixo. Mande os guardas embora. –

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Com effeito, o carcereiro dice aos guardas que podiam ir almoçar, que elle só conduzia o

preso. Os guardas immediatamente pozeram-se ao fresco. Os dous ficaram sós, e assim foram

caminhando para a cadeia. Um pagem asseadamente vestido, tendo embaixo do braço uma trouxa,

foi os acompanhando, um pouco mais afastado. Durante o trajecto da casa do Juiz de Paz á prisão,

era pelos dous sustentado este ridiculo dialogo. O carcereiro dizia pois:

- E agora?

- Agora o que, homem de Deos? (perguntou o preso).

- E o preso que fugiu?

- Isso foi bom.

- E eu que fiquei nas cordas?!

- Isso foi máo.

- E o criminoso esgravatando os dentes?!..

- Isso é bom.

- E eu criminoso em lugar delle!

- Isso é máo.

- Máo foi elle fugir por sua causa.

- Isso foi bom.

- O senhor me comprometteu...

- Isso foi máo.

- O senhor leva o negocio de mangação?

- Isso é bom.

- Não vê como estou afflicto?!

- Isso é máo.

- Mas que sahida dá o senhor ao preso que fugiu?

- Que isso foi bom.

- Ficando eu desgraçado?

- Isso é máo.

- Oh homem de mil diabos!

- Isso é máo.

- É um dardo, que o atravesse...

- Isso e muito máo.

- É um diabo que o leve...

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- Isso é ainda peior.

- Oh senhor!.. olhe que lhe arrebento a cabeça com este páo...

- Isso então é ir a peior.

- E então... dá-se uma pachorra igual!

- Isso agora é bom.

- Meu Deos! que me apparecesse este diabo para minha desgraça!

- Isso foi máo.

- Então.. que heide eu fazer agora?

- Isso agora é bom.

- O senhor que as armou, é bem que as desarme...

- Isso agora é melhor. –

Sustentando sempre este burlesco dialogo, os dous chegaram á cadeia; ahi o Snr. Alfredo,

dirigindo-se para uma porta fechada que havia na sala em frente do xadrez, dice:

- Esta porta dá para seu quarto, ou sala: não é assim?

- É, sim, senhor; porque?

- Pois abra-a...

- Para que?

- Quero aqui fazer-lhe entrega de umas cousas minhas, de uma porção de dinheiro, e dizer-

lhe certas cousinhas. –

O carcereiro abriu a porta; os dous entraram, e com elles o pagem, que os acompanhára. O

Snr. Alfredo, logo que entrou, teve o cuidado de fechar a porta por dentro e tirar a chave. Feito isto,

recebeu a trouxa das mãos do pagem, abriu, e com admiravel sangue frio, e invejavel pachorra,

despiu a roupa que trazia, e começou a vestir-se com a roupa, que tirava da trouxa. O carcereiro,

vendo isto, dice:

- Então, que diabo de historia é esta?

- O que, homem?

- O que homem?! Venha para o xadrez.

- Isso é máo.

- Não tem máo, nem meio máo... Venha...

- Isso é máo.

- Si não vem por bem, hade vir por mal.

- Isso é máo.

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- O senhor está mangando comigo?

- Isso é bom.

- Sabe o que é bom?

- Então o que é?

- É eu ser um homem prudente.

- Isso é bom.

- E sabe o que é máo?

- Vamos lá.

- Foi o senhor me dizer que era um homem de bem...

- Isso foi bom.

- E ser um patife...

- Isso é muito máo...

- E o ter eu me fiado no senhor...

- Isso foi mui bom.

- Está bem: não quer entrar por bem para o xadrez... entrará por mal... deixe vir os guardas,

que eu o conversarei...

- Isso será máo.

- Está bom... está bom... Os guardas não tardam.

- Isso é máo.

- Olhe, eu me assento aqui, e espero pelos guardas: quando elles vierem diga então: “Isso é

bom. Isso é máo...”

- Ora; o senhor sempre é um grande pedaço d’asno.

- Sim... sim. Sou tudo quanto quizer... Veremos logo.

- Qual logo, nem logo... O senhor é o homem mais tolo, que eu tenho visto... Tenho pena de

sua simplicidade.

- Então porque? porque?

- Pois você não ouviu a ordem que o Juiz de Paz deu?

- E o que tem a ordem?

- Pois, homem de Deos, o Juiz não lhe dice que esperasse aqui na cadeia as suas ordens?

- Sim, senhor, dice.

- E você não entendeu o que isso queria dizer?

- E então que queria dizer?

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- Coitado!.. Quer dizer que você passa de carcereiro a encarcerado.. Pedaço d’asno!..

- Pois sim; bem entendi: mas que quer que lhe faça?

- Oh tolo! Quem tempo tem, e tempo espera, lá vem um tempo, que o diabo leva.

- Mas que heide eu fazer?

- Fugir, basbaque, fugir.

- Como, senhor? como heide fugir?

- Sahindo por esta porta, e indo-se embora.

- Isso me-é impossivel.

- Porque?

- Porque não tenho um real.

- Pois aqui tem dinheiro. Va-se embora... vá buscar sua vida.

O Snr. Alfredo, dizendo isto, metteu nas mãos do carcereiro um maço de bilhetes, e muito

senhor de si foi se escoando pela porta fora, acompanhado de seu pagem.

O carcereiro, apertando os bilhetes na mão, mas sem se mover, com voz pouco segura, dizia

ao preso, que se retirava:

- Então o senhor vai sahindo?

- E faça você outro tanto, si não quizer que lhe cáhia nas costas o anno do Nascimento com

todo o seu apparato.

- E foi-se! .. E que tal está o desembaraço! Isto não é homem... isto é o diabo!.. Foi-se

embora deveras... E agora que heide eu fazer? Fujo tambem.

O carcereiro, dizendo isto, abriu o maço de bilhetes e dice:

- Quatrocentos mil reis! Não sou mais carcereiro! Adeos, senhora cadeia. Agora, si me pilhar,

só si for como encarceirado, que, como carcereiro, não é capaz. –

Elle dice, e desappareceu.

Quatro horas depois dizia-se em toda a villa da Parahyba do Sul, que o moço, matador de

João Esteves, havia fugido com o carcereiro, e todos diziam:

- Abençoado elle seja. Deos lhe dê saude e o livre das unhas da justiça.-

Poucas horas depois Alfredo encontrou em caminho a Maria, e seu pae, que iam para casa de

sua mãe; e antes da noute a Snra. D. Lordecene abraçou seu filho, sua filha adoptiva, e teve o gosto

de conhecer o pae daquella que havia recebido, como filha, e creado como mãe!

(Continúa).

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Marmota Fluminense – jornal de modas e variedades. n. 341, 18/02/1853.

ROMANCE BRASILEIRO

POR

Teixeira e Sousa.

____

MARIA, ou a menina roubada.

(Continuação do n. 340).

Conclusão.

O narrador entende que póde, e deve furtar-se ao trabalho de descrever as scenas, que

tiveram lugar entre a Snra. D. Lordecene, e sua filha adoptiva. Qualquer leitor póde destas scenas

fazer um juizo exacto.

Quanto ao Snr. Alfredo, quando sacrificou-se por Maria, a sua intenção era acceitar seu

crime, e por conseguinte subjeitar-se á punição delle. Não conhecendo a fundo o caracter de

Augusto, suppoz de si para si que este pae, vendo sua filha salva, sem compromettimento seu, que a

occultasse e subtrahisse á acção da lei, não importando-se muito com a pessoa que em se lugar havia

ficado na prisão, para o que não tinha elle nem de leve cooperado. As circumstancias, porém,

mudaram inteiramente as disposições do mancebo, dando-lhe lugar a que se evadisse, sem

comprometter pessoa alguma; porque era bem de esperar que o mesmo carcereiro não fosse

perseguido, visto a disposição publica contra o morto, e em favor do seu matador; á vista, pois, das

intenções do moço, é impossivel não admirar a sua dedicação sublime, e abnegação estupenda: como

porém tomariam Augusto, e sua filha esta acção extraordinaria, e verdadeiramente grandiosa?..

Dous annos depois destes acontecimentos, o campo em que se levanta a rocha pyramidal, em

cujo topo existe a capella de N. S. da Penha, estava coberta de uma multidão alegre, folgazona e

ruidosa: ondas de povo em que se confundiam todas as idades, sexos, classes, estados, etc.; ahi, com

estrondosa alegria, redemoinhavam por sobre uma gramma, que rugia debaixo de seus passos, e em

torno de vistosas barracas, ou por entre o verde de graciosos arbustos; em quanto outras ondulavam

em turbilhões, remontando-se da fralda até o cimo do penhasco, ou d’ahi precipitando até a sua raiz.

No templo, elegantemente armado, e decentemente illuminado, acompanhados pelos

maviosos sons de religiosa musica, soavam, com magestade sublime, entre os hymnos ao Eterno, os

angelicos Hosannas! Era um dia solemne, amavel e sublime! Solemne, porque era o dia da festa de N.

V. (sic) da Penha; amavel, porque antes da missa-cantada, na mesma capella, o Sacerdote do Senhor,

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ligando nos santos laços matrimoniaes, a dous estremecidos amantes, lhes havia dito: - “Amae-vos,

como Jacob e Rachel!” – sublime, porque um novo Sacerdote celebrava a sua primeira missa! Era,

pois, um dia maravilhoso!

Os dous conjuges, que, ao começar da missa, haviam recebido a benção matrimonial,

vestidos, como para essa ceremonia, na qual a religião sanctifica o amor, estavam ajoelhados pouco

distantes do altar, em que se celebrava, ouvindo essa missa nova, com uma devoção verdadeiramente

christã. Por detraz delles, uma grave, e modesta matrona, coberta de cabellos brancos, ouvia esta

missa com a mesma devoção dos noivos. Não longe delles, um preto, ancião, decentemente vestido,

ria-se e chorava com tanto prazer, como um ente verdadeiramente feliz... porque o verdadeiro

prazer, o prazer justo e santo, nunca se manifesta, sem as preciosas gottas do coração!

O leitor deverá, por sem dúvida, conhecer todos estes personagens; o que, não obstante, o

narrador entende que não póde eximir-se á obrigação de aqui consignar seus nomes.

Assim, pois, terminemos a nossa historia, por demais tosca, por demais informe, pedindo aos

pacientes leitores mil desculpas e perdões, declarando-lhes que o noivo chama-se Alfredo; a noiva,

Maria; a matrona, D. Lordecene; o preto, que com tanto prazer gozava de sua liberdade, nesse dia

recebida, era José Pachola; e o novo celebrante, chamava-se: - Frei Augusto de N. S. da Penha. –

FIN.

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Créditos. Maria ou a Menina Roubada foi digitado por Hebe Cristina da Silva como parte das atividades executadas para a realização do projeto de doutorado “Teixeira e Sousa e o Romance no Brasil”, desenvolvido junto ao IEL/UNICAMP, contando com o financiamento da FAPESP e a orientação da Profa. Dra. Márcia Abreu. A obra foi digitada a partir dos exemplares da Marmota Fluminense disponíveis, em microfilmes, no Arquivo Edgard Leuenroth (IFCH/UNICAMP), mantendo-se a grafia da versão original.