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1 OS LIMITES NO ATENDIMENTO PSICOLÓGICO DA CRIANÇA NO SEU CONTEXTO FAMILIAR Maria Paula Miranda Chaim Dra. Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Costa Goiânia – GO Fevereiro / 2019

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    OS LIMITES NO ATENDIMENTO PSICOLÓGICO DA CRIANÇA NO SEU

    CONTEXTO FAMILIAR

    Maria Paula Miranda Chaim

    Dra. Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Costa

    Goiânia – GO

    Fevereiro / 2019

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    OS LIMITES NO ATENDIMENTO PSICOLÓGICO DA CRIANÇA NO SEU

    CONTEXTO FAMILIAR

    Maria Paula Miranda Chaim

    Dra. Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Costa

    Artigo apresentado ao Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Gestalt-terapia. Campo de Estágio: Centro de Estudos e Pesquisas de Psicologia (CEPSI)

    Banca Examinadora: Dra. Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Costa Presidente da Banca: Professor-Supervisor Data da Avaliação: __________/__________/__________ Nota final:___________________________________________ Daniela Mendonça Leão de Araújo Professor Convidado Data da Avaliação: __________/__________/__________ Nota final:___________________________________________ Solana Carneiro Fernandes Professor Convidado Data da Avaliação: __________/__________/__________ Nota final:___________________________________________

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    Os Limites no Atendimento Psicológico da Criança no seu Contexto Familiar The Limits in the Psychological Care of Children in their Family Context Los Límites en el Servicio Psicológico del Niño en su Contexto Familiar

    Categoria: Relato de Pesquisa

    Resumo: Antes do século XX a criança era desvalorizada. Transformações culturais alteraram a forma de percebê-la. O mesmo ocorreu nos contextos terapêuticos de acordo com as perspectivas psicológicas. Na abordagem gestáltica, criança é vista inserida num contexto familiar, onde o contato forma fronteiras nas quais alguns distúrbios podem se instalar, entre eles a confluência a proflexão e a deflexão que serão abordadas neste trabalho. Desse estudo participou Ana, 6 anos, seu irmão gêmeo e seus pais no CEPSI e as queixas envolviam a dificuldade do pai em aceitar a diferenciação da filha por ser gêmea. Concluiu-se que por meio da perspectiva humanista, a terapeuta apreciou a totalidade e a alteridade da criança, permitindo o descobrimento da sua própria fronteira do eu. Palavras-chave: Gestalt-terapia; fronteiras de contato; família; criança. Abstract: Before the twentieth century the child was devalued. Cultural transformations have altered the way of perceiving it. The same occurred in the therapeutic contexts according to the psychological perspectives. In the gestaltic approach, the child is seen inserted in a familiar context, where the contact forms borders in which some disturbances can be installed, among them the confluence the profusion and the deflection that will be approached in this work. From this study participated Ana, 6, her twin brother and her parents at CEPSI and the complaints involved the father's difficulty in accepting the daughter's differentiation for being a twin. It was concluded that through the humanist perspective, the therapist appreciated the totality and the otherness of the child, allowing the discovery of its own border of the self. Keywords: Gestalt therapy; contact boundaries; family; Child. Resumen: Antes del siglo XX el niño era devaluado. Las transformaciones culturales cambiaron la forma de percibirla. Lo mismo ocurrió en los contextos terapéuticos de acuerdo con las perspectivas psicológicas. En el abordaje gestáltico, el niño es vista insertada en un contexto familiar, donde el contacto forma fronteras en las cuales algunos disturbios pueden instalarse, entre ellos la confluencia a la profética y la deflexión que serán abordadas en este trabajo. De ese estudio participó Ana, 6 años, su hermano gemelo y sus padres en el CEPSI y las quejas envolvían la dificultad del padre en aceptar la diferenciación de la hija por ser gemela. Se concluyó que por medio de la perspectiva humanista, la terapeuta apreció la totalidad y la alteridad del niño, permitiendo el descubrimiento de su propia frontera del yo. Palabras Clave: terapia Gestalt; fronteras de contacto; la familia; niño. Introdução

    A origem de um olhar atentivo ao desenvolvimento e cuidados das crianças, iniciou-se

    apenas no século XX, os primeiros filósofos a defender a existência de determinadas

    características inatas do ser humano, foram J.J Rousseau e I. Kant (Marcílio, 1998; Ribeiro,

    2006). A ideia da filosofia de Rousseau (1978), afirmava que a criança nascia com uma

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    bondade natural e com um sentimento inato do que é certo e errado. Já a de Kant (1993), o

    desenvolvimento infantil pode estar ligado a existência de categorias inatas de pensamento,

    como as de tempo e espaço.

    Ainda no âmbito do desenvolvimento, três teorias clássicas foram idealizadas com

    o objetivo de compreender o crescimento humano, sendo elas: psicanálise freudiana; teoria

    do desenvolvimento do psicólogo suíço Jean Piaget; e o pensamento da teoria do

    desenvolvimento moral de Kholberg. Algumas das características comum que permeiam

    entre as três perspectivas é a ideia do desenvolvimento em etapas, onde em cada uma existe

    as características, as particularidades e os desafios a serem superados para avançar ao novo

    estágio (Miranda, Silva & Malloy-Diniz, 2018).

    Embora estas três perspectivas, somadas à outras existentes tenha, trazido

    contribuições significativas para a compreensão do desenvolvimento emocional, cognitivo,

    social e moral, com a modernidade dos estudos, a percepção sobre a criança sofreu e sofre

    constantemente influências tanto do contexto histórico, quanto cultural, fazendo com que a

    forma de compreender e experienciar o que é ser criança se transforme cronologicamente e

    consequentemente, modificando a forma de compreender e experienciar o que é ser criança

    (Miranda, Silva & Malloy-Diniz, 2018; Pimentel, Araújo, 2007).

    Neste contexto, para compreender a criança como ser único, independentemente de

    sua cronologia, necessita-se de uma perspectiva humanista existencial, encontrada na

    abordagem gestáltica (Pimentel, 2003). Etimologicamente, Humanismo é tudo aquilo que

    se volta para o humano, que é relativo ao homem e que o define como o ser criador de seu

    próprio ser. A postura humanista, segundo Ribeiro (1985) e Amatuzzi (2012) conduz à

    reflexão sobre o que há de positivo, criativo e potencializador no ser humano, mesmo

    sabendo de suas limitações, deficiências e impossibilidades.

    Compreendido a perspectiva humanista, entende-se que o ser humano é um ser em

    formação. Baseado nesta afirmação e na filosofia humanista como um todo, surge uma linha

    de pensamento denominada de existencialismo. A mesma é entendida como um conjunto de

    doutrinas filosóficas cuja a ideia central é a existência humana em sua concepção individual

    e particular tendo por objetivo compreender o homem como ser concreto nas suas

    circunstâncias e no seu viver, ou seja, nas suas relações, conforme se mostra na sua realidade

    (Cardoso, 2013).

    Assim como na perspectiva humanista, na perspectiva existencial, o homem é

    considerado um ser livre e responsável por construir a própria existência (Cardoso, 2013).

    Sartre (2012), um dos principais filósofos precursores desta vertente, afirma que “a

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    existência precede a essência”. Isso significa que o homem surge no mundo como um ser

    particular, sem a possibilidade de definição prévia, e somente depois poderá vir a ser, como

    um ser livre para escolher sua essência a cada instante, consumando, assim, seu projeto de

    vida de ser no mundo (Cardoso, 2013; Ribeiro, 1985).

    Em continuidade aos pressupostos humanista e existencial, o homem é um ser que

    se forma em relações, descobrindo através delas suas potencialidades. Entretanto existem

    diversas formas de se relacionar, umas permitindo um encontro ajustado em relações de

    igualdade e outras não. Compreende-se como relações de igualdade, quando as pessoas

    inseridas na relação visam compreender, experienciar e individualizar o significado do

    existir. Buscando assim uma integridade humana, que se dá através dessa relação paritária,

    gerando assim o encontro existencial (Feldman, 2006; Ribeiro, 2007; Ribeiro 1985).

    O encontro existencial enfatiza a importância do inter-humano na constituição do

    ser. Para Buber (2001), o encontro, no qual cada uma das partes envolvidas aprecia a

    alteridade e a totalidade d outro, simultaneamente, é denominado de relação Eu-Tu.

    A relação Eu-Tu é uma atitude de intenso interesse pelo outro, um interesse genuíno,

    valorizando a sua alteridade, ou seja, quando há um reconhecimento do outro como um ser

    singular e único, que é separado de si mas tendo em comum a humanidade e a relação, em

    que se é parte um do outro (Hycner, 1995). Por outro lado, o homem também se relaciona

    com a superfície das coisas e as experiências. Para este tipo de relação Buber (2001) a

    denominou como relação Eu-Isso. A relação Eu-Isso ocorre quando a outra pessoa com

    quem se relaciona é coisificada, e o “Eu” faz dela um objeto, utilizando-a como um meio

    para um fim. Essa relação é necessária para a vida do ser humano, todavia ela se torna

    deletéria a partir do momento em que se relaciona apenas dessa forma (Hycner, 1995).

    Baseado nestas bases filosóficas, surge a fenomenologia, cuja a etiologia alemã

    utiliza do sentido etimológico grego de logos – razão, e também o sentido de aparência

    (Petrelli, 2001). Para King (2001), fenomenologia pode ser definida como “o estudo das

    formas como algo aparece ou se manifesta, em contraste com estudos que procuram explicar

    as coisas a partir de relações causais ou processos evolutivos” (p. 109). A forma como algo

    se manifesta é o que se chama de fenômeno.

    Vale-se ressaltar que nesta filosofia fenomenológica, a consciência é intencional, ou

    seja, está relacionada a algo. Husserl (1962) foi um dos autores que retoma a separabilidade

    entre sujeito e objeto. Afirmando que existe o sujeito e o objeto que se manifesta a ele. O

    que se assemelha a filosofia de Hegel (1990),o fenômeno não contrasta como essência. O

    fenômeno é em si a essência.

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    Para ser possível empregar o método fenomenológico nasceu uma forma de

    investigação denominada por epoché ou redução fenomenológica (Husserl, 1962) onde a

    teoria husserliana defendia que a epoché é permanente, constante e interna. A epoché vai

    consistir em suspender qualquer juízo existente a priori para que possa perceber a realidade

    tal como ela é e consequentemente proporcionar uma ampliação da consciência classificada

    por awareness (Frazão, Funkumitsu, 2013; Yontef, 1998).

    Ribeiro (2006) classifica a awareness como o ato de estar consciente da própria

    consciência, de ir ao encontro da própria intencionalidade. Demonstrando que essa forma

    de consciente ultrapassa o domínio intelectual, traduzindo-se numa transcendência na qual

    o ser se percebe como um todo integrado no universo.

    Observa-se que o homem como ser único e em relação com o mundo está presente

    nos aparatos filosóficos citados, que, em união com a Psicologia da Gestalt, proporcionam

    sustentação das teorias da Gestalt-terapia (Cardella, 2002). A Psicologia da Gestalt enfatiza

    que, a organização de fatos, percepções, comportamentos ou fenômenos, e não os aspectos

    individuais de que são compostos, define e lhes dá um significado especifico e particular.

    Além disso, ainda no mesmo princípio, desenvolve conceitos como figura e fundo, todo e

    parte, que são hoje, uns dos principais conceitos da Gestalt-terapia e que comprovam que o

    homem não pode ser compreendido como um ser separado em partes, pois a todo momento

    ele pode emergir novas figuras, sendo assim, afirmado mais uma fez a importância da

    totalidade (Ginger & Ginger, 1995; Ribeiro, 1985; Polster & Polster, 2001).

    Como o homem é um ser de relação e precisa ser compreendido em sua totalidade,

    Kurt Goldstein buscou compreendê-lo através do método holístico, desenvolvimento a

    Teoria Organísmica. A partir desta visão o homem passou ser considerado como um

    organismo em sua totalidade, um ser dinâmico que se autorregula, que sofre por qualquer

    alteração que ocorrer no campo e pode modificar sua forma exclusiva de ser. (Cardella,

    2002; Lima, 2005; Perls, 1988).

    Compreende-se por maneira exclusiva a forma como o homem se relaciona com o

    mundo, de maneira individual, enfatizando que, ser e mundo, sujeito e objeto, não são dois

    absolutos, independentes, mas dois polos ligados em relação recíproca de cognoscibilidade,

    como afirma, Berg (1973). Bisnwanger (1967), por seu turno, enfatiza que o mundo,

    apresenta-se ao homem em três aspectos simultâneos, porém diferentes: o circundante, o

    próprio e o humano. O primeiro refere-se às relações estabelecidas no ambiente, diante do

    qual o sujeito se autorregula. Dele fazem parte as condições externas e o próprio corpo; o

    mundo próprio caracteriza-se pela significação que as experiências têm para o sujeito e, pelo

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    conhecimento de si próprio. Finalmente o mundo humano, aquele que diz respeito ao

    encontro e convivência da pessoa com seus semelhantes.

    Diante desta relação, observa-se que a Gestalt-terapia é uma abordagem

    fenomenológico-existencial, com uma visão holística que, prioriza as formas que o ser-no-

    mundo, estabelece contato, seja consigo mesmo ou com o mundo. Existencialmente falando,

    com suas cinco dimensões, racional, emocional, física, social e sagrada, segundo, Ginger &

    Ginger (1995). Concluindo que, dentro dessa perspectiva clínica, o organismo não é

    autossuficiente, precisa sempre do contato com o meio para a sua sobrevivência,

    intencionando-o e estabelecendo suas fronteiras de contato.

    Para Yontef (1998) o termo contato, refere-se a todo o processo de reconhecer o self

    e o outro, pela movimentação em direção a conectar-se / fluir-se, e também por separação /

    afastamento (Yontef, 1998, p. 237). Ribeiro (2007) complementa a ideia dizendo que

    contato é o processo que permite a relação acontecer; a experiência humana se dá entre as

    vivências do indivíduo. Segundo os pressupostos gestálticos, as dimensões do ser estão

    predispostas ao contato e todos os seus sentidos são canais entre o indivíduo e o mundo

    externo. A diferença vivida entre si e o outro permite o encontro; a relação de aproximação

    e separação possibilita a organização da fronteira e simultaneamente sua delimitação,

    favorecendo a preservação da própria identidade. A fronteira de contato é considerada

    portanto, o espaço limítrofe subjetivo onde os eventos psicológicos acontecem.

    Ribeiro (2007), descreve este mecanismo como o ciclo, composto por processos que

    definem os fatores de cura (fluidez, sensação, consciência, mobilização, ação, interação,

    contato final, satisfação e retirada) e por aspectos que definem os bloqueios de contato

    (fixação, dessensibilização, deflexão, introjeção, projeção, interação, retroflexão, egotismo

    e confluência). Estas são formas polares complementares, que representam a dinâmica entre

    saúde e doença.

    No que se refere aos aspectos do bloqueio de contato, a fixação é compreendida

    como processo do qual a pessoa se apega excessivamente a outro ser, ideias ou coisas, se

    sentindo incapaz de explorar situações instáveis; a dessensibilização é caracterizada pela

    diminuição sensorial do corpo, não diferenciação de estímulos externos e perda do interesse

    por sensações novas e mais intensas; a deflexão é marcada pela evitação do contato, onde a

    pessoa se sente desvalorizada e apagada; a introjeção é o processo do qual a pessoa obedece

    e aceita opiniões arbitrárias sem conseguir se defender, preferindo a rotina, simplificações e

    situações facilmente controláveis; a projeção é quando a pessoa se sente ameaçada pelo

    mundo em geral, identificando facilmente nos outros dificuldades e defeitos semelhantes

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    aos seus, demonstrando dificuldade em assumir responsabilidades pelo que faz; a proflexão

    é o desejo do ser, que os outros sejam como ele; a retroflexão é quando o ser deseja ser como

    os outros desejam que ele seja, ou deseja ser como as outras pessoas são; o egotismo é

    marcado pelo processo do qual a pessoa se coloca sempre como centro das coisas, exercendo

    um controle rígido e excessivo no mundo externo; a confluência é decorrente do processo

    do qual a pessoa se apega fortemente aos outros, sem diferenciar o que é dele e o que é do

    outro.

    Aproximando-se no contexto infantil, observa-se que a criança, desde seu

    nascimento, estabelece relações, visto que está inserida num contexto familiar, onde o

    contato entre o eu e o não-eu dialeticamente ocorre entre o ponto de união e divisão na

    fronteira do mesmo. A família, portanto do ponto de vista da Gestalt-terapia, apresenta o

    principal campo do qual a criança está inserida. Pode ser compreendido, então, como uma

    totalidade, no qual, os sujeitos, encontram-se em permanente interação, afetando-se uns aos

    outros em busca da melhor forma possível de autorregulação. Portanto, uma vez que seus

    elementos estão em permanente interação, o comportamento de cada familiar estará

    relacionado e dependerá do comportamento de todos os outros (Aguiar, 2014).

    O desenvolvimento da criança inevitavelmente perpassa os mecanismos de contato

    em suas várias formas. Inicialmente estes se manifestam a partir de introjeções e

    confluências, fundamentais para a sobrevivência. Posteriormente, a criança se percebe no

    processo de diferenciação, assumindo sua própria medida ao demonstrar suas

    potencialidades e limitações, manifestando novas possibilidades de contato, assimilando

    e/ou rejeitando o que é nutritivo ou não do ambiente. Muitas vezes os pais dificultam essa

    diferenciação buscada pela criança, exigindo que as confluências e as introjeções, entre

    outras formas disfuncionais de ser e estar no mundo, sejam mantidas. Portanto, faz-se

    necessário investigar por meio do atendimento da criança e de seu contexto familiar, como

    ocorrem os vínculos estabelecidos, ou seja, as vivências das introjeções, confluências, e

    todos aspectos que fazem parte do encontro de diferentes subjetividades e de suas formas de

    se autorregular. Nesse sentido, o comportamento da criança ainda que incomode os pais,

    parece estar a serviço de um equilíbrio maior, o que na maioria das vezes não é percebido

    pela família (Aguiar, 2014).

    Diante desta realidade, o presente trabalho pretende sob a fundamentação filosófica

    e teórica da Gestalt-terapia, em particular do uso da metodologia dialógica e

    fenomenológica, relatar o processo de atendimento de uma criança, cuja as queixas

    envolviam, o fato de assumir posturas diferentes em relação a alimentação, socialização e

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    linguagem, em comparação com seu irmão gêmeo. Tendo como objetivo evidenciar a

    dificuldade de diferenciação da criança do seu contexto familiar. Sendo justificado pelo

    interesse despertado na futura Gestalt-terapeuta em compreender a criança, como um ser

    único e exclusivo, fruto das relações estabelecidas.

    Metodologia

    Participante:

    O presente estudo teve como participante Ana (nome fictício), 6 anos de idade, sexo

    feminino, bivitelina, e sua família, sendo esta composta por: pai, mãe e seu irmão gêmeo.

    As queixas sobre Ana envolviam, o fato de assumir posturas diferentes em relação a

    alimentação, socialização e linguagem, em comparação com seu irmão bivitelino.

    Materiais:

    Utilizou-se durante todo o trabalho um consultório, no Centro de Estudos e Pesquisa

    de Psicologia (CEPSI), da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), localizado

    na Rua 232, número 128, segundo andar, Setor Universitário na cidade de Goiânia - Goiás.

    Instrumentos:

    Foram utilizados Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), gravador

    digital, papel, caneta, régua, mesa, seis cadeiras, almofadas, tapete, computador, pen drive,

    impressora, lápis de cor, tinta, pincel, folhas, caderno, cartolina, relógio, e brinquedos

    educativos como: casinha, bonecas, quebra-cabeça, jogo da memória, massinhas, entre

    outros.

    Procedimentos:

    A terapeuta escolheu aleatoriamente uma das fichas para atendimento psicológico

    dentre as disponíveis no cadastro de espera no CEPSI. Os atendimentos terapêuticos

    ocorreram semanalmente, com duração 50 minutos cada, totalizando seis sessões entre

    agosto e novembro de 2014. Todavia, serão utilizados neste trabalho apenas cinco sessões.

    A terapeuta, a cliente e a família firmaram o contrato terapêutico, no qual constavam

    normas da clínica, sigilo terapêutico, dia, horário da sessão e ausências às sessões. Ciente

    dessas informações, a família e a cliente concordaram em participar do estudo e assinaram

    o TCLE, autorizando assim a gravação das sessões, para fins estritamente acadêmicos.

    A metodologia dialógica e fenomenológica foram utilizadas ao longo dos

    atendimentos, a fim de vivenciar o compartilhar das igualdades e semelhanças das formas

    de ser e estar no mundo dos envolvidos no processo terapêutico. Além de possibilitar abordar

    uma compreensão da individualidade da criança.

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    Resultados e Discussão

    Serão apresentados relatórios e/ou trechos transcritos das sessões realizadas com a

    cliente de forma a evidenciar a trajetória por ela percorrida, ao buscar se perceber no

    processo de diferenciação, assumindo sua própria individualidade ao demonstrar suas

    potencialidades e limitações, manifestando novas possibilidades de contato, assimilando

    e/ou rejeitando o que é nutritivo ou não do ambiente. Serão utilizadas as siglas: C.

    representando a criança, P. o seu pai, M. a sua mãe, I. a seu irmão, T. a Terapeuta e V. a Co-

    terapeuta.

    Na primeira sessão com a criança não houve rejeição ou dificuldade de estabelecer

    vínculo com a terapeuta. A criança entrou desacompanhada dos pais ao consultório e,

    quando solicitada se comunicava, utilizando pouco repertório verbal, não elaborando frases

    por completo e demonstrando preferências em se expressar através dos gestos. No decorrer

    do atendimento a criança optou por brincar sozinha, tendo preferências pela brincadeira com

    bonecas e trocas de roupa nas mesmas. Entretanto, algumas roupas a criança não conseguia

    colocar sozinha.

    Nesse momento vemos que o brinquedo foi um importante recurso no processo

    terapêutico, uma vez que por meio do lúdico a cliente pode se expressar e mostrar sua

    maneira de ser e agir no mundo, evidenciando que brincar também é uma forma de

    comunicação (Aguiar, 2014).

    Durante todo o atendimento, a terapeuta utilizava do método da descrição

    fenomenológica para compreender a brincadeira da criança, suspendendo os seus valores

    pessoais. E através do método e da forma de brincar da criança, a terapeuta chegou ao eixo

    da terapia: ajuda. Posteriormente, foi inserido no processo terapêutico o pai, visando

    demonstrar que todas as pessoas precisam de ajuda.

    Percebe-se aqui que a T. somente consegue apreender o fenômeno que emerge no

    consultório, descrevendo o que se mostrava na realidade. Postura de suma importância,

    defendida por Frazão & Funkumitsu (2013) e Ribeiro (1985). Para além disso, T. demonstra

    a relevância de considerar a totalidade que a criança está inserida, no caso a família. Como

    proposto por Ribeiro (2007).

    A sessão foi finalizada solicitando a presença do pai para realização do contrato

    terapêutico, onde foi acordado que em algumas sessões o pai, a mãe e o irmão gêmeos iriam

    participar e que também teriam atividades para desenvolverem em casa. Após

    consentimento do pai, a terapeuta explicou o que havia sido trabalhado na primeira sessão e

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    solicitou que os envolvidos do processo terapêutico escrevessem ou desenhassem em casa

    as coisas que fazem com e sem ajuda, em função do que se evidenciou na sessão.

    Logo no início da segunda sessão, Ana se direcionou aos brinquedos silenciosamente

    e a terapeuta a acompanhou realizando a descrição fenomenológica e utilizando da temática

    da primeira sessão: ajuda.

    T: (...) pegou um sapo (...) agora a Ana pegou a boneca (...) guardou a boneca e

    começou a brincar com o carrinho do macaco. O carrinho do macaco está indo para frente

    e para atrás. O macaco precisa de ajuda para ele conseguir andar um pouco mais. Nós

    podemos tentar ajudar o macaco a andar um pouco mais. (...) agora a Ana vai brincar com

    os ursos (...) urso difícil para colocar de cabeça para baixo. Ele está precisando de ajuda

    para ficar em pé. Olha só a Ana está ajudando o urso. Quando a Ana ajuda o urso consegue

    ficar em pé. (...)

    Neste momento pode-se perceber, que a terapeuta buscou estabelecer um contato

    com a criança. Assim como afirma Buber, 2009, o terapeuta precisa entrar em uma relação

    genuína com o cliente, permitindo-se, no contexto terapêutico, que o cliente se torne

    presente, aceitando e percebendo a cliente em sua totalidade, como um ser único.

    Demonstrando a importância do terapeuta compreender a necessidade de estabelecer uma

    sintonia com o outro muito antes de lhe apontar responsabilidades ou ajuda-lo a pensar em

    ações.

    A fim de auxiliar no desenvolvimento do processo terapêutico a Co-terapeuta

    começou a participar dos atendimentos. Iniciou sua intervenção situando a criança no aqui

    e agora, perguntando sobre a tarefa da semana passada e solicitando a ajuda da criança para

    incluir os elementos da família presentes. Foi perguntando para a criança quem ela gostaria

    que entrasse primeiro, dentre o pai e o irmão, tendo em vista que apenas os dois haviam

    comparecido. Imediatamente ela disse que seria seu irmão gêmeo João.

    Observa-se que a criança utilizou da sua capacidade de escolha para delimitar quem

    ela gostaria que entrasse na sessão, demonstrando que sabe o que quer e para onde pretende

    ir, indicando sua liberdade e responsabilidade pelas suas escolhas. Essa perspectiva é

    assumida pela visão humanista existencialista defendida por Ribeiro (2007).

    Logo que João adentrou no consultório, começou a explorar os diversos brinquedos

    e indagar a terapeuta sobre a funcionalidade. Neste momento, a terapeuta, conectou ao eixo

    da sessão anterior relacionada à necessidade de pedir “ajuda”, em alguns momentos. Neste

    contexto por meio de uma leitura do sistema, ficou evidenciado que ambos precisavam de

    ajuda. O que os igualava no aqui-e-agora.

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    No processo de observação do diálogo entre os irmãos, evidenciou-se na fala do

    irmão, uma tentativa de apressar o tempo de Ana. Diante deste fenômeno que se mostrou, a

    co-terapeuta investiga.

    V: (...) Quando a Ana estava falando, você falou assim, Ana fala... fala... fala... (...)

    você lembra da palavra que você usou?

    I: Logo.

    Neste momento a co-terapeuta teve como objetivo compreender como essa atitude

    do irmão afetava suas fronteiras de contato. Investigando: V: Isso logo. Ana, o que que você

    sente no seu coraçãozinho quando o João fala: Fala logo!

    A Co-terapeuta trouxe as emoções e sentimentos vividos pela cliente para o aqui-e-

    agora, porque uma das finalidades da psicoterapia é a recuperação do emocional, é

    reexperienciar o passado e futuro com a força da energia do presente (Ribeiro, 2007).

    C: Nada.

    Neste momento é notório a dificuldade de Ana de estar em contato com a realidade,

    demonstrando claramente o que afirma a teoria de Ribeiro (1997) referente ao bloqueio de

    contato denominado de deflexão, que é a evitação do contato e o sentimento de

    desvalorização experienciado pela pessoa.

    A partir deste momento, a terapeuta e a co-terapeuta optaram pela a utilização de

    algumas técnicas em Gestalt-terapia, para que as crianças pudessem compreender a relação

    estabelecida entre eles e o significado de suas falas.

    T: (...) Eu estou entendendo que você João está me falando que a Ana demora um

    tempo maior para falar. Então que o reloginho da Ana, anda mais devagar que o reloginho

    do João.

    A partir dessa descrição fenomenológica, a terapeuta tentou possibilitar às crianças

    a compreensão de que cada uma tem a sua individualidade, utilizando a vivencia do tempo,

    apesar de serem gêmeos.

    Diante disso, a terapeuta utilizou de materiais lúdicos e de técnicas de construção de

    um material concreto: relógio; para que vivenciassem como lidam com o tempo, aspecto

    trazido por João ao tentar apressar Ana na fala. Como defendido por Costa (2014) e Ribeiro

    (2007) a valorização das diferentes maneiras de vivenciar o tempo é essencial, visto que este

    não é matemático, mas sim funcional e relacional e carregado de sensações e emoções que

    são fatores de diferenciação entre os seres.

    Para participar da atividade e compreender as individualidade dos filho gêmeos, o

    pai foi convidado a entrar no setting terapêutico, visto que era o único membro da família

  • 13

    que estava na recepção.

    Como afirma a teoria de Ribeiro (2007) e Rodrigues (2013), a pessoa aprende a ser

    nas suas relações e existem forças do campo que interferem diretamente na percepção e

    comportamento que cada pessoa tem de si.

    Após o pai adentrar no consultório a terapeuta e a co-terapeuta os situaram da sessão

    e o envolvou na atividade de desenhar o relógio e demonstrar a velocidade do tempo. Neste

    momento o pai demonstrou uma consciência ampliada sobre a atividade realizada no

    processo terapêutico, relatando que o seu “relógio” é mais lento e aparentando compreender

    a individualidade dos filhos.

    P: (...), muitas vezes o outro não aprende na mesma hora.

    V: Repete o que o papai falou. Cada um vai repetir o que o papai falou.

    O Co-terapeuta, ao pedir para que as crianças repetissem o que o pai havia dito, tinha

    como objetivo solicitar a conscientização por parte das criança. Pois como afirma Perls,

    (1997) a conscientização é a condição básica para fornecer aos pacientes a compreensão de

    suas próprias capacidades e habilidades, de seu equipamento sensorial, motor e intelectual.

    P: (...) cada um tem um tempo.

    T: Olha só a Ana foi mais rápida para fazer o relógio dela do que o João. (...) cada

    pessoa tem o seu relógio, (...) seu tempo (...)

    Neste momento a terapeuta demonstrou estar atenta à temporalidade e espacialidade

    das crianças e do pai. Pois de acordo com Ribeiro (2007), é fundamental tal intervenção,

    pois é necessário trabalhar sempre no aqui-e-agora.

    Além de demonstrar a questão da temporalidade no contexto familiar, junto com o

    pai e o irmão, foi trabalhado também a questão de solicitar ajuda. Foi também trabalhado a

    percepção de que necessitar do outro, faz parte do convívio social.

    Neste momento percebe-se uma percepção distorcida do pai em relação ao filho,

    fazendo jus a queixa, o mesmo denigre a filha em detrimento da supervalorização das

    habilidades do filho. Tanto é que ele se surpreende com a dificuldade do filho. A pergunta

    a seguir demonstra neste detalhe:

    P: O João não da conta de escrever o nome dele normal? – pergunta o pai em uma

    postura que evidencia surpresa.

    T: O João não deu conta, ele precisou de ajuda.

    C: Eu não preciso de ajuda para fazer tarefa de casa.

    Neste momento observa-se que Ana é capaz de expressar-se enfatizando a sua

    autossuficiência do que se refere a tarefa de casa. Percebe-se que neste momento ela se

  • 14

    diferencia de uma das queixas apresentadas no início da terapia pelo pai, que era a

    dificuldade de se expressar. Assim, pode-se inferir que Ana, assim como seu pai ampliaram

    a sua consciência a respeito de si próprio e das habilidades de Ana. De acordo com Alvim

    (2014) awareness, é um processo que envolve contato, sentimento, excitamento e formação

    de Gestalten. Sendo todos estes demonstrado pela criança no todo do diálogo. Além disso,

    demonstrou estar situada no aqui e agora, ao mostrar suas habilidades de escuta através do

    responder.

    Baseado nestes dois temas: temporalidade e a necessidade natural de solicitação de

    ajuda, no final da sessão o pai pediu ajuda novamente para uma das queixas dita no início

    do processo terapêutico que era: quantidade de ingestão de alimentos. Em função do vivido

    e para que se ampliasse a awareness das diferenças, das habilidades e das medidas de cada

    um, foi solicitado pela terapeuta que trouxessem na sessão seguinte um balão, para que fosse

    utilizado um recurso da Gestalt-terapia. A solicitação do material foi para que eles já

    iniciassem o contato em casa com a flexibilidade do balão e suas diversas possibilidades de

    tamanho, dependendo do ar que ele pudesse conter. Além disso, o objetivo era evidenciar

    também que cada um, em um determinado tempo e espaço, poderia se apresentar de

    diferentes formas o que também acontece com a tarefa e a agilidade descritas ao longo da

    sessão e também ao tamanho do estômago.

    Na sessão posterior, ou seja, na terceira sessão, Ana já é capaz de expressar seus

    sentimentos quando ela se refere a tristeza que está sentindo porque o cachorro da sua avó

    está doente e em seguida relembra que trouxe o balão, ferramenta solicitada no atendimento

    anterior.

    C: Eu trouxe 4 balão.

    TE: Você trouxe 4 balões, que bacana. E o que que nós vamos fazer (...)?

    C: Por dentro da barriga.

    Devido a dificuldade de se expressar, a terapeuta pediu para que a Ana explicasse

    como seria colocar o balão dentro da barriga e a criança a partir de uma comunicação não

    verbal demonstrou a intenção de dizer que o balão iria representar o tamanho dos estômagos.

    Ainda na tentativa de conectar todos os eixos terapêuticos de Ana, a terapeuta buscou

    recordar junto com ela o que mais já havia sido trabalhado na terapia e Ana respondeu:

    C: O relógio.

    TE: O relógio. (...), isso mesmo. E o que que você aprendeu com o relógio?

    C: Que eu sou mais rápida para fazer tarefa.

    Mais uma vez é possível compreender a ampliação da consciência de Ana, visto que

  • 15

    ela é capaz de perceber em si algo positivo, ainda que no seu contexto familiar fosse

    evidenciado os fenômenos negativos.

    Ainda em sintonia com o que foi dito pela criança a terapeuta buscou também o que

    tinha falado em outras sessões e aproveitou para investigar o que que ela fazia devagar, já

    que a tarefa ela fazia rápido.

    TE:A Ana faz tarefa rápida e o João (...) devagar. E o que que a Ana faz devagar.

    Em seguida Ana respondeu: C: Eu como.

    TE: Ah, você come devagar. E o que que o João faz rápido?

    C: Ele veste roupa mais rápido.

    C: (...) cada pessoa tem o seu relógio.

    A criança a cada momento demonstra seu avanço no processo de diferenciação,

    compreendendo as individualidades. No decorrer da sessão a terapeuta buscou confirmar o

    vivido da criança, valorizando suas habilidades e sua forma única de ser. No momento em

    que foi iniciado sobre a questão da alimentação, foi perguntado para a criança quem ela

    gostaria que entrasse ao consultório, e a mesma respondeu que seria a mãe.

    Neste momento a criança demonstrou a fluidez do seu campo, visto que nas sessões

    passadas se mostrava mais próxima de seu irmão. Este aspecto é valorizado pela teoria de

    campo, proposta por Ribeiro (2007) onde fluidez é um fator de cura que representa a

    dinâmica entre saúde e doença.

    Assim que a mãe e a criança entraram na sala, a terapeuta não percebeu que ela era

    magra. Após a permanência apenas das duas na Terapia, entraram o restante da família. A

    terapeuta deu continuidade explicando que cada pessoa tem sua forma de organizar seu

    tempo e relacionou a questão da individualidade do comer. Neste momento foi solicitado

    que cada pessoa enchesse um balão do tamanho que era o seu estômago.

    Cada pessoa da família começou a encher o seu balão. Ana e sua mãe encheram um

    tanto que consideram o balão pequeno; João e o pai, consideraram os balões grandes.

    Vale a pena considerar que fisicamente o pai estava acima de 90 kg e a mãe abaixo

    de 50 kg. O que de alguma maneira fica evidenciado também pelo tamanho dos balões

    apresentados.

    No momento da dinâmica com os balões fica evidente a presença da teoria de campo,

    proposta por Kurt Lewin e a importância de compreender o ser como único, individual,

    proposto pela teoria existencialista. Como afirma Holanda (2014) e Forghieri (2004) o

    homem tem a possibilidade de fazer a construção e a desconstrução contínua do seu

    paradoxo existencial.

  • 16

    Na quarta sessão, a criança por si só, retoma o tema da sessão anterior afirmando:

    C: (...) a pessoa come o tanto que cabe na barriga.

    No decorrer do atendimento, a terapeuta e a criança, começaram a relacionar o que

    haviam aprendido sobre ajuda, tempo e individualidade com o eixo na alimentação. Toda

    essa recapitulação, ocorreu enquanto a criança realizava um desenho de seu corpo. No

    decorrer da atividade Ana relatou que seu tempo passa devagar enquanto come, que come

    pouco, mas que nesta semana havia se alimentado mais. Demonstrando assim ter

    consciência sobre o seu corpo e como afirma Ribeiro (2006) conseguindo ultrapassar o

    domínio intelectual para uma visão transcendental de seu todo integrado.

    Em seguida, a terapeuta fez uma síntese, do que havia sido pronunciado pela criança.

    Essa ferramenta é explicada por Feldman (2004) quando cita a importância de uma síntese

    com conteúdo para demonstrar o que foi compreendido do discurso do cliente.

    TE: (...) quanta coisa Ana, você me contou que come pouco e devagar, que o seu

    reloginho, na hora de comer, passa devagar. Mas em compensação quando você está

    fazendo tarefa ele passa rapidinho. E agora você me contou que na semana passada você

    comeu mais e se sentiu bem. Falou também que se sentir bem é melhor.

    Em continuidade, pode-se afirmar que a terapeuta deve uma escuta diante da

    afirmação da cliente de que ela tivesse comido mais, porém o mais para a criança, podia não

    ser o mais exigido naquele contexto familiar. Nas fronteiras de familiaridade comer estava

    associado a uma quantidade que não era ingerida por Ana.

    Em seguida o pai entrou e a terapeuta tentou ampliar a consciência do pai no que se

    refere a comida, ainda com objetivo de favorecer a habilidade de exposição e expressão de

    Ana. Por isso perguntou:

    TE: (...) Ah papai!! A Ana contou que essa semana foi diferente. O que que foi

    diferente essa semana Ana?

    C: Eu comi. Como devagar.

    TE: Então olha só papai, a Ana está contando para gente que essa semana a barriga

    dela tinha mais comida, (...) ela comeu (...) e que seu reloginho passa devagar (...). Agora

    vamos pedir ajuda para o papai para ele nos explicar o que está entendendo?

    P: Então vamos lá. A gente aprendeu que cada um tem seu tempo. Que cada um tem

    a quantidade certa de comer, não é? Que uns comem muito outros comem menos. E que o

    tempo para comer, uns comem mais rápido e outros mais devagar. É isso?

    C: É.

    Em seguida o pai afirma: P: Senti melhora na questão de alimentação dela. (...) essa

  • 17

    semana depois da terapia ela começou a alimentar um pouquinho melhor.

    TE: Ana, você está ouvindo o que que o papai está falando?

    C: To.

    TE: (...) ele percebeu igual a você. (...). A Ana essa semana comeu mais papai e isso

    precisa ser valorizado.

    Neste momento percebe-se a ampliação da consciência do pai e uma relativa

    confirmação. Embora ainda não satisfaça a expectativa da quantidade ingerida.

    No final da sessão o pai apresentou novamente a queixa de que a criança falava

    pouco. A TE buscou valorizar as diferentes formas de falar. Além disso, o pai apresentou

    reclamação sobre a alimentação, afirmando que estava fraca e pouca. A criança interagiu

    mostrando que estava mudando sua forma de ser.

    C: Ontem eu comi tudo.

    Neste momento fica evidenciado a tentativa da criança de se diferenciar da

    expectativa imposta pelo pai em relação a comida. Até o presente momento era recorrente o

    mecanismo de confluência entre a vontade do pai e o sentimento de necessidade da filha.

    Como afirmado por Ribeiro (2007) confluência é o processo do qual a pessoa se apega

    fortemente aos outros, sem diferenciar o que é dela e o que é do outro.

    Ainda assim o pai completou: P: Ontem você comeu tudo de uma refeição. Das 3

    que você teve, você apenas jantou e deixou ainda um pouquinho no prato.

    Perante esta afirmação, a terapeuta aproveita para demonstrar a importância de

    valorizar o bom, o belo e o positivo. Como afirmado na teoria humanista descrita por

    Amatuzzi (2012)

    TE: Ah, então ela está comendo pai. Muito bem Ana. Está diferente do que estava.

    C: Eu deixei um restinho mais depois eu voltei e comi.

    É notório o quanto a criança está em processo de desenvolvimento da consciência de

    suas ações, de suas potencialidades e individualidades; buscando constantemente, formas de

    ser percebida em sua singularidade por seu pai.

    Na sexta sessão, a terapeuta e a co-terapeuta sentiram a necessidade de compreender

    novamente as expectativas do pai. Portanto, nesta sessão, foi feito a descrição do diálogo

    entre a terapeuta, co-terapeuta e o pai, no sentido de que este vem reclamar que seus

    objetivos não estavam sendo alcançados. Ainda assim as terapeutas tentam expor que o

    objetivo da Gestalt-terapia é o resgate da singularidade e a compreensão da criança em seu

    contexto familiar. Como defendido por Aguiar (2014).

    Logo ao adentrar ao consultório e ser situado sobre o objetivo da sessão, o pai disse:

  • 18

    P: Para te dizer a verdade, a gente estava buscando ajuda, então foi indicada pelo fono

    essa ajuda né. Viemos pela indicação da fono para ajudar na terapia com o fono, (...) as

    outras coisas foram colocadas pela conversa que a gente teve. Então assim, eu penso que,

    pode ajudar, não fazer terapia (...) não vou comparar um filho com o outro, (...), porque

    cada ser é um individuo, e como a gente tem aprendido, temos que respeitar o espaço e a

    vontade, ser independente, eu não posso impor. (...). Agora, (...) a gente pode deixar ela só

    com a fono. Tá? Porque assim, (...) cada vez que a gente vem, eu sou bombardeado, como

    se eu tivesse precisando de ajuda, (...) o foco não sou eu. É ela. (...) a nossa expectativa tem

    sido atendida um pouquinho só, (...) se é para continuar dessa forma a gente prefere que de

    alta pra ela.

    Para efeito deste trabalho, não foi transcrito a quantidade de informações falada pelo

    pai, que gerou a sensação na terapeuta de ausência de espaço para falar. O que

    provavelmente também poderia estar acontecendo com a própria filha. Mesmo assim a

    terapeuta completa:

    TE: Então pai, (...), dentro das suas expectativas, eu não vou conseguir aumentar o

    tamanho da barriga da Ana, eu não vou conseguir fazer com que a Ana fale mais com a

    boca, (...) Retomando sobre o que o senhor falou de ser bombardeado, (...) O nosso objetivo

    na terapia não é este, é mostrar as diferenças. (...) eu trabalhar com a Ana individualmente

    não terá o mesmo resultado, de quando envolve a família. (...)

    P: (...) eu estou sendo bem sincero com você, abrindo meu coração e falando o que

    que eu espero. (...) Eu sei que a psicologia não vai ajudá-la, (...) quem convive com ela, sou

    eu, os irmãos e a minha esposa. Nós que temos que ajudá-la, (...) mas que não fique apenas

    colocando o foco na gente (...) ela também tem as necessidades dela. (...). Como eu disse na

    semana passada. Da alimentação.

    Neste momento observa-se que o pai não escutou o que a terapeuta disse e inclusive

    enfatizando: P: Não é porque a barriga dela é pequenininha que ela tem que comer

    pequenininho. (...) isso também serve para a comunicação.

    O pai compreende a terapia de forma diferente da criança, da terapeuta e da co-

    terapeuta, não conseguindo valorizar a melhora e reconhecer a nova forma de ser da criança.

    Em seguida, a terapeuta questiona a criança se ela está compreendendo exatamente o que

    está sendo dito pelo pai e a mesma afirma que sim, porém o pai continua dizendo:

    P: (...) Eu vou ter que procurar um gastro para ver. Porque uma criança, (...) não

    ter a mínima vontade de comer e o pensamento dela é eu quero ficar magra igual a minha

    mãe. (...). Ou seja, tem algo errado nessa criança.

  • 19

    Neste momento o pai demonstrou uma falta de contato com o significado apontado

    pela criança perante o seu comportamento. Apontando uma forma de bloqueio de contato,

    denominada por Ribeiro (1997) de proflexão, onde há um desejo de transformar a percepção

    e o outro de acordo com os seus desejos.

    Ao longo de todo o processo terapêutico, a terapeuta fez o constante exercício de

    valorizar o desenvolvimento da criança, em detrimento de um olhar adoecido expressado

    pelo pai. Visto que o objetivo da terapia era aceitar e compreender as diferenças e o pai

    desejava enquadrar a filha nas suas fronteiras de familiaridade, o processo terapêutico foi

    encerrado, pois dentro das propostas da Gestalt-terapia, não foi possível satisfazer os desejos

    do pai.

    Considerações Finais

    Nesta experiência, pude visualizar e vivenciar as dificuldades de enfrentar as

    fronteiras de familiaridades no atendimento infantil. O pai não conseguiu perceber a

    totalidade da filha, focando apenas em partes individuais como: tempo, dificuldade,

    intencionalidade e quantidade. Durante todo o processo terapêutico, o que foi figura para o

    pai era a confluência de Ana com seu irmão gêmeos. Sendo necessário trabalhar a

    reversibilidade com o pai para que ele percebesse a filha em sua totalidade. Para mim, Ana

    descobriu suas potencialidades e sua liberdade para ser diferente. Assim a grande luta

    terapêutica foi entre o ser igual e ser diferente.

    Neste momento, pode compreender o que Aguiar (2014) afirma em sua teoria: a

    criança está inserida em um campo familiar, os elementos estão em permanente interação.

    Ou seja, o comportamento de cada familiar estará relacionado e dependerá do

    comportamento de todos os outros. Esta afirmação foi notória na prática, pois nos momentos

    em que a criança começou a se ajustar de forma mais saudável e de acordo com as suas

    medidas, o pai demonstrou perder o seu equilíbrio, não compreendendo a forma de

    manifestação da criança como um processo de diferenciação, mas sim como uma

    incapacidade da terapia em ajudá-la.

    Consequentemente, o processo terapêutico demonstrou a dificuldade do pai em

    aceitar o processo de diferenciação da criança, visto que a finalidade imposta por ele era a

    igualdade no aspecto psicológico entre os irmãos, assim como ocorria no sentido fisiológico

    por serem gêmeos. Esta apreensão familiar é abordada na teoria de Aguiar (2014) no

    momento em que afirma que: o comportamento da criança ainda que incomode os pais,

    parece estar a serviço de um equilíbrio maior, o que na maioria das vezes não é percebido

    pela família.

  • 20

    Ademais, no atendimento psicológico com Ana, seu irmão gêmeos, seu pai e sua

    mãe, pode-se concluir que é de suma importância compreender os limites existentes neste

    contexto familiar, entendendo que nenhuma manifestação do ser acontece em um vazio, a

    mesma está sempre inserida em um campo relacional, como afirma o autor Ribeiro (2007)

    "“A doença é relacional. Não existe doença em si, pois, se a doença é negação de parte da

    energia de uma totalidade, admiti-la em si é admitir a existência do nada (...) Doença é

    fenômeno como processo (...)” (p.53).

    Por isto, conclui-se que Ana não possui os diagnósticos e os "rótulos" que a foi

    imposta por seu contexto familiar. Ela é apenas uma criança que se ajusta dentro das suas

    possibilidades e dentro das possibilidades do campo a qual faz parte. Sendo assim, a criança

    precisa ser vista como um ser saudável, pois o seu adoecer, imposto pelos pais, é fruto de

    uma relação desarmoniosa entre a criança, seu ambiente e suas relações.

    Referências: Aguiar, L. (2014). Gestalt-Terapia com Crianças: Teoria e Prática. São Paulo: Summus. Alvim, M. B. (2014). Awareness: experiência e saber da experiência. Em L. M. Frazão & K.O. Fukumitsu (Org(s).), Gestalt-terapia: conceitos fundamentais (pp. 13-30). São Paulo: Summus. Amatuzzi, M. M. (2012). Rogers: Ética Humanista e Psicoterapia. Campinas: Editora Alínea. Binswanger, L. (1967).El caso de Eilen West. In May, R. (org). Existência.Madrid: Gredos. Buber, M (2001). Eu e Tu. Tradução, introduçãoo e notas por Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro. Buber, M. (2009). Do Diálogo e do Dialógico. Tradução Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva. Cardella, B. H. P. (2002). A Construção do Psicoterapeuta: Uma Abordagem Gestáltica. São Paulo: Summus. Cardoso, C. L. (2013). A Face Existencial da Gestalt-terapia . Em L. M. Frazão & K.O. Fukumitsu (Org(s).), Gestalt-terapia: fundamentos epistemológicos e influências filosóficas (pp. 59-75). São Paulo: Summus. Costa, V. E. S. M. (2014). Temporalidade: aqui e agora . Em L. M. Frazão & K.O. Fukumitsu (Org(s).), Gestalt-terapia: conceitos fundamentais (pp. 131-145). São Paulo: Summus. Feldman, C. (2004). – Sistematizando as habilidades pessoais. Encontro: uma abordagem humanista. (pp.123 - 153). Belo Horizonte: Crescer. Feldman, C. (2006). Encontro: uma abordagem humanista. Belo Horizonte: Crescer. Forghieri, Y. C. (2004). Psicologia Fenomenológica: fundamentos, métodos e pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomson Learning. Frazão,L.M. Fukumitsu, K. O. (2013) Gestalt-terapia: fundamentos epistemológicos e influências filosóficas. São Paulo: Summus. Ginger, S. & Ginger, A. (1995). Gestalt: uma terapia do contato. São Paulo: Summus. Goldstein, K. (1995). The Organism. New York: Zone Books.

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