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7/18/2019 Maril Do
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Revista PRAIAVERMELHA / Rio de Janeiro / v. 19 nº 1 / p. 125-128 / Jan-Jun 2010
RESENHA
Recebido em 20.10.2008. Aprovado em 17.03.2009.
O escritor francês Gustave Flaubert (1995: 94),
no seu mordaz Dicionário das Idéias Feitas, sen-
tenciou: “há romances escritos com a ponta de um
bisturi”. O livro de Marildo Menegat, professor e
pesquisador vinculado à Escola de Serviço Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assíduo
colaborador dos movimentos sociais organizados,não é propriamente um romance, não obstante tra-
tar um bom romance como um acontecimento para
a teoria, nos moldes do crítico literário marxista
Roberto Schwarz (1987), conforme comprovam
seus momentos de crítica da ideologia e da cultu-
ra. Composto de nove artigos, distribuídos em três
partes distintas (porém comunicantes), encaixa-se
uentemente na sentença de Flaubert: parece, sim,
ter sido escrito com a ponta de um bisturi, dada
toda a sua radicalidade constitutiva, responsável
pela recusa em transigir com o “triunfo” da socia-lização pela mercadoria.
Com a derrocada do “socialismo” (realmen-
te existente), o mundo imantou-se pela lógica do
capital, reduzindo-se a um espaço sistêmico, ime-
diatamente funcional aos seus imperativos de mul-
tiplicação desvairada. No lugar de prosperidade e
harmonia, propaladas pelos arautos da democracia
de mercado, uma espiral de precarização e belico-
O olho da barbárie
Felipe Brito*
ESS/UF RJ
sidade. Contudo, desmoronando-se o “socialismo”
(realmente existente), desmoronou-se também a
verve crítica de grande número de indivíduos, en-
gajados, outrora, em diferentes níveis e plataformas
sublevatórias. Como desdobramento veio a (re)con-
ciliação com a ordem, através de três perspectivas
básicas: envolvendo-se em algum tipo de tentativade “humanizar” o horror, segundo os parâmetros
da democracia de mercado; descambando para um
niilismo, contíguo à misantropia; ou, até mesmo,
através da conversão em operadores mais ou me-
nos diligentes do capital. Lastreando tal concilia-
ção, encontram-se os impulsos ontologizadores do
Iluminismo burguês, sustentáculos da ideologia do
progresso, cujo ressurgimento implacável (em no-
vas roupagens, geralmente) feriu a capacidade for-
mulativa dos antigos adversários da ordem, sorven-
do o reservatório de negatividade. Nesses termos,esvaiu-se a crença na possibilidade de transcender o
presente; a “poesia” do futuro passou a consistir na
assimilação categorial do presente, com possíveis
“ajustes” (não categoriais), no máximo. Mercado,
Estado e trabalho reproduzem-se, assim, como fun-
damentos sociais inatacáveis, mesmo revelando de-
crepitude objetiva, em meio ao contexto geral de
crise da forma capitalista de socialização.
RESENHA: O olho da barbárie
MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
BOOK REVIEW: The barbarism eye
MENEGAT, Marildo. The barbarism eye. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
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Revista PRAIAVERMELHA / Rio de Janeiro / v. 19 nº 1 / p. 125-128 / Jan-Jun 2010
O livro O olho da barbárie, ao contrário, de-
monstra que existe vida para além da conciliação.
Mais: de que ainda existem aqueles que se negam
a calar sobre aquilo de que é difícil falar . Merca-
do, Estado e trabalho não saem incólumes. Mene-
gat propõe a avaliação segundo o qual o colapso
da experiência “socialista” (realmente existente)representa, na verdade, um indelével episódio do
processo de crise global da sociedade burguesa,
por não ter suplantado, a rigor, os horizontes ca-
tegoriais do capital. A propalada vitória do capital,
nesse registro, é tratada como um traço da sua pró-
pria decadência, e o resultado disso é um mundo
unicado pela catástrofe. Diante desse cenário de
horror, Menegat desencadeia uma profunda rede
de problematizações direcionada aos cânones do
“marxismo tradicional”, do “marxismo realmente
existente”, empenhando-se em sustentar uma re-serva de negatividade, para fornecer contribuições
possíveis à construção de uma práxis anti-sistêmi-
ca. Ainda em nome de tais contribuições, também
problematiza a capacidade das leituras pós-mo-
dernas, a despeito de suas pretensões constituírem
uma crítica radical do projeto da modernidade.
Ao longo dos artigos que compõem o livro, a
barbárie consiste em um o condutor conceitu-
al para analisar e expor a armação histórica da
modernidade capitalista, de modo a problematizar
as expectativas otimistas que correlacionam ime-
diatamente progresso social e desenvolvimento
das forças produtivas. O autor não se restringe,
portanto, a um ímpeto adjetivador lançado aos
horrores da socialização burguesa: empenha-se
em fornecer um estatuto conceitual à barbárie.
Diante de todas as catástrofes técnico-cientícas
do século XX (corporicadas, no seu paroxismo,
em Auschwitz e nas bombas atômicas jogadas em
Hiroshima e Nagasaki), tornou-se insustentável
tematizá-la como um resquício pré-moderno ouuma interrupção abrupta da “normatividade civi-
lizatória” do capital. Nesse registro, o fenômeno
da barbárie não é tomado como um conjunto de
ações e idéias patológicas que invadem e corroem
as bases da “dinâmica civilizatória ordinária”, tal
qual os cupins o fazem com as mobílias de madei-
ra. A barbárie emerge do seio da própria raciona-
lidade vigente que, plasmada no interior de uma
forma-social fetichizada – inconsciente, portanto,
perante si mesma – objetiva-se como expediente
de dominação das naturezas “externa” e “interna”
(reduzidas a objetos de domínio), incapacitando-
se para desenvolver uma auto-reexão, um auto-
esclarecimento. Perante a metafísica secularizada
do capital, a razão que se fez mundo perpetua-se
vocacionada a “produzir monstros”. Daí, o trata-
mento da barbárie como a teleologia da históriaem curso. Mais especicamente, assinalou o ex-
cesso civilizatório como o propulsor da barbárie,
num hediondo processo no qual o “arcaico” não
representa um freio ao “moderno”, mas é engen-
drado pelo “moderno” na sua forma social “mais
pura” – a violência.
A problemática da crise sistêmica da forma-
mercadoria de reprodução social, representada
no predomínio gigantesco do trabalho morto
(MARX, 1988) sobre o trabalho vivo (Marx,
1988), é objeto privilegiado de atenção de Mene-gat, por alicerçar o conjunto de questões enfrenta-
das na coletânea de artigos. Compondo esse cená-
rio, encontra-se a crise de legitimação do Estado,
ao mesmo tempo base e efeito da disseminação
do neoliberalismo ao redor do mundo. A massa
de seres humanos descartáveis em meio ao esva-
ziamento da regulação social por via da política
provoca uma explosiva combinação, controlada
por um verdadeiro terrorismo de Estado, baseado
na articulação entre extermínio (em nome da lei)
e encarceramento galopantes. Para o autor, essa
conguração do Estado é considerada expediente
necessário para a sobre-vida das relações sociais
capitalistas, nessa cada vez mais rarefeita atmos-
fera de valorização do valor (Marx, 1988). Daí,
falar em guerra civil , referindo-se tanto ao expe-
diente quanto aos catastrócos efeitos.
A articulação entre extermínio e encarceramen-
to, pautada na “racionalização-irracional” moderna
e capitalista, é capaz de conjugar o arcaico cassetete
e a sosticada metralhadora belga FN Herstal (queexecuta 200 disparos em cerca de 15 segundos), o
“pau-de-arara” com minuciosos métodos de deco-
dicação digital, revelando todo potencial de bar -
bárie do “projeto civilizatório”. Enquanto prática
institucional cada vez mais assimilada, sustenta-se
numa implacável criminalização da pobreza, bem
examinada pelo autor, valendo-se, inclusive, dos
lemas e “gritos de guerra” das forças de repressão
brasileiras, onde a identicação entre “bandido” e
“favelado” é automática1.
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127O olho da barbárie
Revista PRAIAVERMELHA / Rio de Janeiro / v. 19 nº 1 / p. 125-128 / Jan-Jun 2010
Como notórias inuências do empenho de Me-
negat em fornecer um estatuto conceitual à barbá-
rie destacam-se questões e indicativos de respostas
elaborados por componentes da chamada Escola de
Frankfurt, como Adorno, Horkheimer, Benjamin e
Marcuse. A crítica da economia política de Marx,
percorrida pela mediação central da crítica do feti-chismo da mercadoria, costura a mobilização des-
sas inuências pelo autor, que não deixa de recor -
rer a outras fontes do pensamento marxista, como
Lukács, Mandel e Mészaros. O alcance teórico de
Menegat atinge destacados pensadores não-marxis-
tas, como Foucault e Bordieu, através de um reco-
nhecimento que não inibe diálogos tensionadores.
Perpassando os nove artigos encontra-se a pre-
ocupação em atualizar a advertência do socialis-
mo ou barbárie, a ponto de mencionar um vigente
estado de crises sem m. Se, por um lado, não éinexorável um futuro emancipado, por outro, não
é inexorável a humanidade padecer sob os ditames
do capital. Menegat acredita nisso! Por conseguin-
te, sentimo-nos autorizados a tratar o Olho da Bar-
bárie como uma audaciosa diatribe, apontada para
as sufocantes vicissitudes pragmático-realistas que
depreciam ou, até mesmo, bloqueiam a gestação
de uma diversicada e generalizada intervenção
social anti-capitalista.
Referências Bibliográcas
MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Pau-
lo: Expressão Popular, 2006.
FLAUBERT, G. Dicionário das idéias feitas. São
Paulo: Nova Alexandria, 1995.
MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Po-
lítica. Livro I, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural,
1988.
SCHWARZ, R. Pressupostos, salvo engano, de
“Dialética da Malandragem” In: Que horas são?
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Notas
1. “ A mãe dá a luz, a Rota apaga” (lema ocio-
so da ROTA – Rondas Ostensivas Tobias de
Aguiar – “tropa de elite” da Polícia Militar de
São Paulo); “o interrogatório é muito fácil de
fazer, pega o favelado e dá porrada até doer.
O interrogatório é muito fácil de acabar, pega
o bandido e dá porrada até matar ” (“grito de
guerra” do BOPE – Batalhão de Operações
Especiais da Polícia Militar do Rio de Janei-
ro, cujo símbolo é uma caveira penetrada poruma faca).
* Felipe Brito é doutorando do Programa de Pós-
graduação em Serviço Social.