Matéria luiz gonzaga 31 de maio

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SOM, RITMO E VOZ DE UM MATUTO MESTRE No ano de comemoração do centenário de Luiz Gonzaga, obra, talento, autodidatismo e aspectos de sua vida pública são colocados em evidência atestando o seu legado relevante na música popular brasileira. Histórias de superação, de transposição das barreiras perversas impostas pela sociedade ou por nichos sociais, sempre trazem um ar de emotividade. Da tinta metafórica ofertada pela vida, ou, proveniente de escolhas individuais, traços, linhas, círculos, representações variadas, objetivas e subjetivas, são empregados - conscientes ou inconscientes - para alinhar o rumo de cada ser. É certo também que nunca a tela se apresenta somente com cores vivas, claras, suaves e alegres. Por vezes, a sombra, o negro das tristezas e aquela cor turva da ferida que cisma em não cicatrizar, se esparrama nas telas da vida. Alegria e tristeza pavimentam a estrada de cada um. Isto é fato. É sobre este cenário flutuante que se celebra neste ano, 2012, o centenário de Luiz Gonzaga do Nascimento, ou simplesmente, Luiz Gonzaga, o menestrel nordestino. Saído do sertão nordestino, precisamente, da cidade de Exu, situada aos pés da serra do Araripe, em Pernambuco - 600 km de Recife, capital pernambucana, e à mesma distância da capital cearense, Fortaleza esse matuto pode tranquilamente ser inserido em um contexto de excepcionalidade. Talento manifestado precocemente e lapidado pela influência do pai, Januário, tocador e consertador de sanfona, o garoto, segundo dos nove filhos do casal composto pela presença feminina de Ana Batista, mais conhecida como Santana, cresceu, se apaixonou, sofreu, saiu pelo mundo, persistiu nos objetivos e conquistou um lugar de destaque na galeria da música popular brasileira. Luiz Gonzaga foi um artista que soube como poucos ousar. Não ficou preso a rótulos estilísticos e foi adiante. Ousou na sonoridade de sua música. Rompeu a implicância dos pseudo-experts que consideravam sua voz como fora do padrão de “vozeirão” que ditava o mercado na época. Sua música transcendeu a qualquer limitação de classificação, era universal. Da fusão de zabumba, triângulo e sanfona e de sua voz anasalada, porém, vibrante e altiva, músicas bastante representativas do universo do cidadão sofredor do campo e do sertão, do cidadão comum de toda e qualquer cidade por que não dizer assim, ganharam vida e foram consagradas. Pela vida espalhou o seu talento, alcançou sucesso e teve que conviver com uma gangorra inerente ao reconhecimento de sua importância musical. Ora, por cima, ora, por baixo. Oscilava períodos de luz sobre a sua obra e momentos de apagão. Isso por

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SOM, RITMO E VOZ DE UM MATUTO MESTRE

No ano de comemoração do centenário de Luiz Gonzaga, obra, talento, autodidatismo e

aspectos de sua vida pública são colocados em evidência atestando o seu legado relevante na

música popular brasileira.

Histórias de superação, de transposição das barreiras perversas impostas pela

sociedade ou por nichos sociais, sempre trazem um ar de emotividade. Da tinta metafórica

ofertada pela vida, ou, proveniente de escolhas individuais, traços, linhas, círculos,

representações variadas, objetivas e subjetivas, são empregados - conscientes ou

inconscientes - para alinhar o rumo de cada ser. É certo também que nunca a tela se

apresenta somente com cores vivas, claras, suaves e alegres. Por vezes, a sombra, o negro

das tristezas e aquela cor turva da ferida que cisma em não cicatrizar, se esparrama nas telas

da vida. Alegria e tristeza pavimentam a estrada de cada um. Isto é fato. É sobre este cenário

flutuante que se celebra neste ano, 2012, o centenário de Luiz Gonzaga do Nascimento, ou

simplesmente, Luiz Gonzaga, o menestrel nordestino.

Saído do sertão nordestino, precisamente, da cidade de Exu, situada aos pés da serra

do Araripe, em Pernambuco - 600 km de Recife, capital pernambucana, e à mesma distância

da capital cearense, Fortaleza – esse matuto pode tranquilamente ser inserido em um

contexto de excepcionalidade. Talento manifestado precocemente e lapidado pela influência

do pai, Januário, tocador e consertador de sanfona, o garoto, segundo dos nove filhos do

casal composto pela presença feminina de Ana Batista, mais conhecida como “Santana”,

cresceu, se apaixonou, sofreu, saiu pelo mundo, persistiu nos objetivos e conquistou um

lugar de destaque na galeria da música popular brasileira.

Luiz Gonzaga foi um artista que soube como poucos ousar. Não ficou preso a rótulos

estilísticos e foi adiante. Ousou na sonoridade de sua música. Rompeu a implicância dos

pseudo-experts que consideravam sua voz como fora do padrão de “vozeirão” que ditava o

mercado na época. Sua música transcendeu a qualquer limitação de classificação, era

universal. Da fusão de zabumba, triângulo e sanfona e de sua voz anasalada, porém, vibrante

e altiva, músicas bastante representativas do universo do cidadão sofredor do campo e do

sertão, do cidadão comum de toda e qualquer cidade por que não dizer assim, ganharam vida

e foram consagradas. Pela vida espalhou o seu talento, alcançou sucesso e teve que conviver

com uma gangorra inerente ao reconhecimento de sua importância musical. Ora, por cima,

ora, por baixo. Oscilava períodos de luz sobre a sua obra e momentos de apagão. Isso por

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parte da crítica e da imprensa, porque para o povo, principalmente, para o nordestino, o seu

valor foi sempre incontestável. O casamento com a sanfona foi harmônico, feliz e

duradouro. Entoando versos, envolvendo a amada de foles em seus braços e a acariciando no

ritmado dançar de seus dedos, uma obra rica se construiu. O enlace foi tão perfeito, a relação

por todo tempo irretocável, que corpo humano e corpo instrumental pareciam uma coisa só.

Perto de completar 18 anos, havia se apaixonado perdidamente por uma moça

chamada Nazarena e a quem namorava às escondidas do pai dela. Ao descobrir o namoro de

sua filha com um sujeito que se mostrava sem encaminhamento na vida, o pai de Nazarena

proíbe o namoro. O jovem Luiz Gonzaga não gostando da atitude do pai da moça – após

ingerir doses de cachaça para despertar coragem – vai tirar satisfações e leva uma surra

colossal. A partir desse acontecimento, a vida de Gonzaga ganha novos contornos. Com

vergonha da surra que levou, deixa Exu para trás e decide ir para o Ceará. Em Fortaleza,

alista-se no exército e é na caserna que vai passar os próximos nove anos de sua vida. Em

razão de transferências, serve em algumas cidades brasileiras e se estabelece por mais tempo

em Juiz de Fora, Minas Gerais. No quartel passa a ser soldado corneteiro e ganha o apelido

de “bico de aço”. Vale destacar que durante todo o período de vida militar, o “bico de aço”

desenvolveu forte traço de disciplina e não se separou em nenhum momento do instrumento

de fole, exercitando-se em momentos esparsos e esmerando cada vez mais a sua técnica.

Após ser desligado do exército, desembarcou no Rio de Janeiro, em 1939. Lá, iniciou

a sua carreira profissional depois de muito penar pelos mais variados lugares nos quais

tentava ganhar dinheiro e se tornar conhecido. Na verdade, a cidade o seduziu e o

“prendeu”. Luiz Gonzaga ao chegar a então capital federal e tendo que aguardar o embarque

no navio que o levaria de volta à Recife, sai para dar uma volta pela cidade. Indicada por

pessoas que por ali circulavam, vai conhecer a zona do mangue, reduto conhecido de

prostituição. Claro, sem desgrudar do seu amado acordeão. Ao se deparar com o movimento

frenético do local, gente tocando e cantando em frente aos bares, mulheres em fartura e a

pulsação daquele ambiente boêmio, com meretrizes, malandros, marinheiros do mundo

inteiro, absorve um sentimento de encanto pelo lugar. Timidamente começa a tocar o seu

acordeão - sanfona para os nordestinos – e as pessoas gostam.

Logo consegue um companheiro, o violonista Xavier Pinheiro. O Rio de Janeiro

havia conquistado aquele ex-marinheiro. Xavier acolhe Gonzaga em sua casa no morro de

São Carlos e essa amizade só se fortalece ao longo do tempo. Passam a tocar em bares do

mangue, nas ruas, em gafieiras, em festinhas de subúrbio, nos cabarés da Lapa, enfim, em

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qualquer lugar que tivesse aglomeração de pessoas. Tocando fados, mazurcas, polcas, choro,

Fox trote, levam os seus dias.

A vida era dura. Gonzaga não recusava convite algum. Apresentando-se em uma

casa noturna, deparou-se com um grupo de estudantes cearenses que foram decisivos na

mudança do estilo musical do Gonzagão. Esses estudantes perguntaram a Gonzaga de que

lugar ele era. Ao responder Pernambuco, recebeu o contra-ataque. Se ele era do Nordeste,

por que não tocava algo típico da região? Gonzaga retrucou que na próxima vez em que

aparecessem por lá, ele tocaria algo ligado ao Nordeste. Esse compromisso ficou rondando a

sua mente. Algum tempo depois quando os rapazes apareceram novamente, Gonzaga, no

final da apresentação, mandou ver e executou duas músicas que misturavam sons da cultura

nordestina. Soltou “Pé de Serra” e o chamego, “Vira e mexe”, que sacudiram o ambiente e

enlouqueceu a todos. Empolgado, decide ir ao programa de auditório que era o mais

badalado da época. Era o programa do Ari Barroso. Fez enorme sucesso também por lá.

Levou a nota máxima do exigente Ari e sua carreira começou a decolar

Em 1941 grava o seu primeiro disco como instrumentista. Leva quatro anos para

conseguir o que tanto queria. Além de tocar sanfona, queria soltar a sua voz. Entre 1941 e

1945, ficou só nos discos de vertente instrumental. Foi proibido de gravar cantando em seus

discos. As gravadoras alegavam que ele não possuía uma voz que se enquadrasse nos

padrões da época. Durante esse período fez carreira no rádio carioca e as portas foram se

abrindo mais e mais.

Outro fato marcante em sua carreira foi quando participando de um programa de

auditório na Rádio Nacional se deparou com o estilo gaúcho do catarinense Pedro

Raimundo, vestido com bombacha, pilcha e botas. Como em um lampejo surgiu a ideia de

se apresentar com vestimenta típica do nordestino sertanejo e tendo como inspiração, a

figura de Lampião. Sim, porque até então Gonzaga se apresentava de terno, gravata e sapato

fino. Decidido que passaria a ter um novo figurino, o de cangaceiro, e mesmo censurado por

um bom tempo, nada o afetaria em sua decisão de ter uma indumentária própria tendo como

um dos adereços, o chapéu de couro.

Foi entre os anos de 1945 e 1946 que veio a conhecer aqueles que se tornariam os

seus dois parceiros mais efetivos, Humberto Teixeira e Zé Dantas. Em 1945 nasce também

Gonzaga Júnior, filho de Odaléia Guedes - uma cantora da noite com quem Luiz Gonzaga

flertou e que viria a falecer alguns anos depois vitimada pela tuberculose. A paternidade

biológica de Gonzaguinha sempre foi um assunto incutido em um campo minado, mas está

registrado: Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior. Pai: Luiz Gonzaga do Nascimento. A

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relação entre os dois sempre conturbada teve, alguns anos antes da morte de Luiz Gonzaga –

Gonzaguinha viria a falecer em 1991, dois anos após a morte do pai - durante a turnê do

show, “Gonzagão e Gonzaguinha, a vida do viajante”, um momento de acerto de contas.

Passaram toda a relação a limpo e segundo consta na biografia “Gonzaguinha, Gonzagão,

uma história brasileira”, da jornalista e escritora Regina Echeverria, reconheceram que o

amor havia construído um envoltório sólido que os unia como pai e filho sem que houvesse

a necessidade de laços biológicos. Ambos se desculparam pelas falhas cometidas entre os

dois e os corações ficaram em paz.

A música de Luiz Gonzaga se expressou como forma consistente de tornar a cultura

do nordeste conhecida no eixo Sudeste do país. Soube revelar os anseios e todo o sofrimento

do homem nordestino do campo e deu voz a esse povo sofrido dos rincões, tão esquecidos e

massacrados pelo descaso do poder público. Foi senão o maior, um dos maiores

representantes da cultura nordestina. Ele não se resumiu somente aos aspectos de amargura

do povo nordestino. Cantou amores, desventuras, andanças, amizade, encontros,

reencontros. Sua música era uma festa de sonoridade ampla, irrestrita e o seu verbo

profundo. Soube misturar com maestria gêneros e foi o grande expoente do baião.

Para o jornalista potiguar, radicado em Campina Grande, Xico Nóbrega, “Luiz

Gonzaga é o maior nome da música popular brasileira de todos os tempos. Diante do imenso

carisma, a sua maestria no instrumento (sanfona), o cantar maravilhoso, a riqueza temática, a

quantidade e qualidade da obra poético-musical, tenho essa certeza. Isto desde a segunda

metade da década de 1940, quando lançou o seu gênero musical mais famoso, o baião,

apesar da invasão cultural dos Estados Unidos”. O jornalista está à frente de alguns projetos

culturais de reverência a figura de Luiz Gonzaga e trabalha incansavelmente na divulgação e

preservação da obra gonzagueana. São três livros, uma enciclopédia de 150 obras

comentadas, e mais duas obras temáticas sobre as influências da Paraíba nas músicas DE

Luiz Gonzaga. “Quanto mais eu desço no poço dos estudos do Rei do Baião, mas me

deslumbro com a magnitude de sua obra, verdadeiro patrimônio do canto popular da

humanidade”. Além destas realizações, Xico Nóbrega trabalha na sucursal do jornal ‘A

União’ de Campina Grande como repórter cultural, escrevendo sobre temas nordestinos,

especialmente, Luiz Gonzaga. É um dos profissionais da imprensa brasileira mais dedicados

a Luiz Gonzaga, desde 1989, quando fez a primeira e mais importante reportagem da vida,

justamente a cobertura do sepultamento do Rei do Baião. É o editor do site do Museu

Fonográfico Luiz Gonzaga de Campina Grande-PB, o www.museuluizgonzaga.com.br, o

primeiro da Paraíba do gênero notícia, memória, vida e obra do Rei do Baião.

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Luiz Gonzaga durante toda a sua carreira primou pela excelência em seus discos e

shows. Sempre se cobrava muito. Conquistou a admiração de muitos célebres artistas da

música brasileira e das artes em geral, e teve canções suas gravadas por nomes como

Gilberto Gil, Caetano Veloso, Raul Seixas, Dominguinhos, Elba Ramalho, Alceu Valença,

Hermeto Pascoal, Fagner, Elis Regina, Lulu Santos, Maria Bethânia e muito mais gente boa

e de destaque.

Asa branca é uma das músicas mais regravadas no Brasil e com algumas gravações

internacionais também. É um dos artistas mais biografados. Possui uma legião de discípulos

e fãs que não cansam de proteger e difundir a sua obra. Luiz Gonzaga é sinônimo de

pluralidade, fineza. Seus versos, melodias e harmonias são destacados como uma marca

única e que estampam a sua identidade musical, irrepreensível. Ele foi detentor de uma

esmerada capacidade criativa

Neste ano de comemoração aos seus cem anos, shows tributos e gravações de CDs e

DVDs espocam de Norte a Sul do Brasil. Artistas e personalidades das mais variadas áreas

reafirmam a importância do rei do baião para a música e cultura popular brasileira. No

carnaval deste ano uma justa homenagem se fez. A Unidos da Tijuca retratou a vida e obra

de Luiz Gonzaga na avenida. O nome do enredo, "O dia em que toda a realeza desembarcou

na Avenida para coroar o rei Luiz do Sertão". Pela força do tema, dentre outros requisitos,

conseguiu a escola levantar o caneco de campeã.

Ele foi craque em variados ritmos regional brasileiro, bem como, em ritmos de outros

países: toada; xote; chamego; xaxado. Passou pela valsa, polca, mazurca, europeia; guarânia

paraguaia; marchas juninas do nordeste; lundu, samba e choro, carioca; frevo,

pernambucano; calango mineiro; maracatu africano, além é claro de ter ficado marcado

como maior representante do forró e do baião.

O filho de Januário foi um viajante poeta musical que com seus baiões, forrós, xotes,

toadas, xaxados, estampou tão bem a realidade brasileira e, destacadamente, a do Nordeste.

Inseriu um tipo de música com cara de Brasil e em uma época na qual os olhos e ouvidos se

voltavam para a música americana, elevou o baião ao posto de expoente cultural.

O pesquisador e poeta, sócio do Instituto Cultural do Oeste Potiguar – ICOP e do

Instituto Histórico e Geográfico do RN – IGHRN, Kydelmir Dantas, destaca que Gonzagão

foi uma figura ímpar. “Ele foi um dos maiores divulgadores da MPB, com ênfase para o

Nordeste. Porém, gravou diversos gêneros musicais, antes de enveredar pelo ‘caminho da

roça’ nordestina. Gravou valsas, choros, marchas, rancheiras, toadas, polcas, maracatus,

frevos, sambas, maxixes, guarânias”. E Lembra nostalgicamente o momento em que o rei

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do baião entrou na sua vida. “No final da década de 1960, pelas ondas sonoras da Rádio

Brejuí, de Currais Novos, RN, comecei a ter contato com as músicas de Luiz Gonzaga.

Aquelas melodias, a voz grave, o toque da sanfona... quando chegava o mês de junho, os

preparativos para as festas juninas excitavam o moleque na expectativa das comidas típicas e

nas danças da quadrilha; os forrós eram para os adultos, depois comecei a participar. Lembro

que a música “Olha pro céu” sempre me fazia levantar a vista, e vislumbrar a noite, os

balões, os fogos de artifício, num enlevo de criança, numa saudade de adulto, como ainda

hoje me ocorre”.

Recife foi o local escolhido pelo maçom Luiz Gonzaga para morar em sua fase final

de vida. O lua, como era chamado também - pelo formato arredondado de seu rosto - entre

idas e vindas – sempre anunciava que iria parar – nunca conseguiu ficar por muito tempo

longe dos palcos e esteve junto a ele, se apresentado, até bem antes de ser internado em um

hospital de Recife com problema de câncer de próstata. O ano era 1989. No último show em

que teve participação – tributo a ele realizado no teatro Guararapes, na capital

pernambucana, Luiz Gonzaga, já debilitado em razão dos problemas de saúde, numa cadeira

de rodas, proferiu em 06 de junho de 1989 – quarenta e seis dias antes de sua morte - estas

palavras. “Boa Noite minha gente! (...) Minha gente, não preciso dizer que estou enfermo.

Venho receber essa homenagem. Estou feliz, graças a Deus, por ter conseguido chegar aqui.

E estou até melhor um pouquinho. (...) Quero ser lembrado como o sanfoneiro que amou e

cantou muito seu povo, o sertão; que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros,

os retirantes, os valentes, os covardes, o amor. Este sanfoneiro viveu feliz por ver o seu

nome reconhecido por outros poetas, como Gonzaguinha, Gilberto Gil, Caetano Veloso e

Alceu Valença. Quero ser lembrado como o sanfoneiro que cantou muito o seu povo, que foi

honesto, que criou filhos, que amou a vida, deixando um exemplo de trabalho, de paz e

amor”.

Em 02 de agosto, Luiz Gonzaga saiu definitivamente de cena. Quer dizer deixou pra

trás o aspecto de homem e virou mito. Sanfona e artista se desligaram. Partiu para outros

planos, feliz por ter construído uma carreira bonita e pelo passar a limpo de sua relação com

o seu filho Gonzaguinha. E como ele mesmo cantou “Minha vida é andar por esse país pra

ver se um dia descanso feliz, guardando as recordações das terras por onde passei, andando

pelos sertões, e dos amigos que lá deixei”, dessa maneira, fez um delineamento que cabe em

sua vida.

Mulherengo como sempre foi, teve em seu velório as presenças de Helena Neves

Cavalcanti, a sua esposa legal – estiveram juntos por 40 anos - e Edelzuíta Rabelo, paixão de

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sua última fase, debruçadas sobre o caixão e reverenciando antes de qualquer coisa, o

homem, Luiz Gonzaga. “Amei Lula sem nada pedir ou esperar, mas sabendo que me bastava

estar diante do homem mais extraordinário que já conheci, que me fez renascer e me ensinou

grandes lições”, afirma Edelzuíta.

“Luiz Gonzaga está ao lado dos grandes compositores e intérpretes da história de

nossa música popular. Sua intuição e predisposição para divulgar o canto do povo humilde

do sertão nordestino, não têm parâmetros de comparação (...). Ele levou ao grande publico

as canções alegres ou tristes que refletem a alma brasileira”, enaltece Regina Echeverria,

escritora, jornalista e autora da biografia ‘Gonzaguinha & Gonzagão – Uma História

Brasileira’. Ela detalha a descoberta de uma particularidade envolvendo a música ‘Paraíba’.

Ela que tem o refrão: Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor. “Sempre acreditei que a

letra da música se referia a uma mulher, mas não. A canção foi feita sob encomenda de

políticos do Estado da Paraíba, ela sim, a masculina e mulher macho”.

O livro de Regina é uma das bases do filme que será lançado no final do ano,

“Gonzaga – De Pai para Filho”, superprodução do diretor Breno Silveira - 2 filhos de

Francisco - que narra a vida do sanfoneiro através do olhar de Gonzaguinha. O diretor fala

de como lhe veio a ideia de desenvolver o filme. “Resolvi voltar a filmar uma biografia ao

receber fitas cassetes em que o filho adotivo entrevista Luiz Gonzaga e expurga anos de

frustração por ter sido abandonado em uma favela no Rio. Eles eram cão e gato, mas, graças

a Deus, se perdoaram no fim dessas gravações em fitas e acabam fazendo juntos a turnê

‘Vida do Viajante’ que marca a paz entre os dois. Logo depois, os dois morrem. É muito

louco. Gonzagão é um épico. Luiz Gonzaga foi um gigante, um mito no Nordeste, e tem

uma história fantástica, própria para grandes públicos”.

A obra de um artista fala por si só. A figura do artista construída a partir de traços de

sua personalidade como pessoa comum ganha aceitação, devoção, reprovação, críticas, e por

aí vai. No entanto, é a obra que atravessa o tempo e deixa registrada na história de um povo,

de uma nação, na história universal por que não?, a beleza, o vigor, a relevância que se

debruça sobre ela. No caso de Luiz Gonzaga sua obra assim se apresenta e todo brasileiro

tem obrigação de agradecer a Deus por ter tido uma figura humana que soube como poucos

contar histórias e deixar para a posteridade uma obra ímpar.

Em Abril, durante a sua turnê pelo Brasil, o ex-beatle, Paul McCartney, ao pisar o

palco em Recife sentenciou. "Salve a terra de Luiz Gonzaga". E um dos melhores

depoimento sobre o rei do baião foi concedido pelo jornalista, escritor e ex-presidente da

academia brasileira de letras, Austregésilo de Athayde, no encarte do projeto comemorativa

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à obra de Luiz Gonzaga, chamado 50 Anos de Chão. “As elites... Ah! as elites... Com que

empáfia torcem o nariz para a alma brasileira... Nordeste? Coisa de pau-de-arara. E sanfona?

Coisa de cego de feira... Como explicar Gonzagão? No mínimo um ‘paraíba’ ridículo,

usando aquelas roupas de cangaceiro. E tocando sanfona, ainda por cima! Quanta ousadia.

Mas o sertão está em todo o lugar. As emoções não podem ser racionalizadas. Traduzir

Gonzagão nem chamando Millôr Fernandes. O importante é que o povo o ama, se entende

através de sua arte, faz levantar a poeira nos forrós de chão batido. Seus dedos de mestre

traçam canções de tempos imemoriais. Sei que cada vez que abre o fole, a natureza se

aquieta para melhor ouvir a si própria. E o Sul? Que se dana! Quem não for sensível o

suficiente que vá construir espigões na beira da praia. Que vá tocar fogo no mato. Que dê

tiros no Saci. Que acue a pintada. Gente besta! Faz mal não. É até melhor, pois que assim

sobra mais pra quem o ama”.

Por:

Daniel Freire e Thiago Damasceno