MEDIR O TEMPO, UM SABER MESOPOTÂMICO

296

Transcript of MEDIR O TEMPO, UM SABER MESOPOTÂMICO

  • 2

    UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Reitor

    Ricardo Vieiralves de Castro

    Vice-reitor

    Christina Maioli

    Extenso e cultura

    Ndia Pimenta Lima

    IFCH - INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    Diretor

    Dirce Eleonora Rodrigues Solis

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    Chefe

    Paulo Roberto Gomes Seda

    Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH/UERJ)

    Tnia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

    NEA - NCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE

    DIRETORA

    Maria Regina Candido

    EDITORES

    Prof. Ms. Carlos Eduardo da Costa Campos Prof. Ms. Junio Cesar Rodrigues Lima Prof. Dr. Maria Regina Candido

    DIAGRAMADORES

    Prof. Ms. Junio Cesar Rodrigues Lima Prof. Mestrando Luis Filipe Bantim de Assumpo

  • 3

    REVISOR DE PERIDICO

    Prof. Ms. Renan M. Birro

    CONSELHO EDITORIAL

    Prof. Dr. Alexandre C. Cerqueira Lima - Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Andr Leonardo Chevitarese - Universidade Federal do Rio de Janeiro Prof. Dr. Carmen Soares - Universidade Coimbra Prof. Dr. Claudia Beltro da Rosa - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Prof. Dr. Daniel Ogden - Exeter University London Prof. Doutorando Devid Valrio Gaia - Universidade Federal de Pelotas Prof. Dr. Fabio Faversani - Universidade Federal de Ouro Preto Prof. Dr. Fbio Joly - Universidade Federal de Ouro Preto Prof. Dr. Margaret M. Bakos - Pontifcia Universidade Catlica RS Prof. Dr. Maria Cecilia Colombani - Universidad Moron - Universidad Mar Del Plata Prof. Dr. Maria do Carmo Parente Santos - Universidade do Estado do Rio de Janeiro Prof. Dr. Vicente Carlos R. Alvarez Dobroruka - Universidade de Braslia

    CONSELHO CONSULTIVO

    Prof. Dr. Claudio Umpierre Carlan - Universidade Federal de Alfenas

    Prof. Ms. Giselle Marques Cmara - Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro

    Prof. Dr. Fbio Vergara - Universidade Federal de Pelotas

    Prof. Dr. Julio Csar Gralha - Universidade Federal Fluminense Plo Campos dos

    Goytacazes

    Prof. Dr. Ktia Maria Paim Pozzer - Universidade Luterana do Brasil - Canoas

    Prof. Doutoranda Liliane Coelho - Centro Universitrio Campos de Andrade

    Prof. Ms. Miriam Lourdes Imperizielle Luna da Silva - Universidade do Estado do Rio

    de Janeiro

    Prof. Dr. Moacir Elias Santos - Centro Universitrio Campos de Andrade

    Prof. Dr. Renata Senna Garraffoni - Universidade Federal do Paran

    Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari - Universidade Estadual de Campinas

  • 4

    Capa: Junio Cesar Rodrigues Lima Zeus watches as Nike presents Athena with laurels. http://glauxnest.blogspot.com.br/2011/01/photos-from-nashville-parthenon.html Editorao Eletrnica: Equipe NEA www.nea.uerj.br

    Indexado em Sumarios.org e AWOL Ancient World On-line

    CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS / CCS/A

    N354 Nearco: revista eletronica de antiguidade. - Vol. 1, Ano VI, n.1 (2013) Rio de Janeiro:UERJ/NEA, 2013 - v.11 : il. Semestral. ISSN 1982-8713 1. Historia antiga - Periodicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nucleo de Estudos da Antiguidade. CDU 931(05)

  • 5

    Sumrio

    Editorial DOSSI: PERIODIZAO HISTRICA DEBATES E QUESTIONAMENTOS

    Carlos Eduardo da Costa Campos & Maria Regina Candido, 7

    Dossi MEDIR O TEMPO, UM SABER MESOPOTMICO

    Katia Maria Paim Pozzer, 13

    TEMPO E HISTRIA NA CHINA ANTIGA

    Andr Bueno, 25

    PERIODIZAES NA NDIA ANTIGA

    Edgard Leite, 44

    ERAS DO MUNDO E FINITUDE DO HOMEM EM ALGUNS TEXTOS PERSAS TARDIOS

    Vicente Dobroruka, 61 DARK AGE: QUESTO DE DEBATE, UMA POLMICA ABERTA

    Maria Regina Candido, 81

    AS PERIODIZAES DA HLADE CONSIDERAES ACERCA DOS CONCEITOS DE ARCAICO, CLSSICO E HELENSTICO

    Luis Filipe Bantim de Assumpo, 94 O PROBLEMA DA PERIODIZAO DA REPBLICA ROMANA: ALGUMAS OBSERVAES A PARTIR DO ESTUDO DA RELIGIO ROMANA

    Cludia Beltro da Rosa, 116

    O "FIM" DO MUNDO ANTIGO EM DEBATE: DA "CRISE" DO SCULO III ANTIGUIDADE TARDIA E ALM

    Gilvan Ventura da Silva & Carolline da Silva Soares, 138

  • 6

    ISLAM AND THE DISSOLUTION OF LATE ANTIQUITY

    Ian D. Morris, 163

    ENTRE TEMPORALIDADES E MEMRIAS MITOLOGIAS HISTRICAS DO MEDIEVO JUDAICO E A CONSTRUO DA CONSCINCIA DIASPRICA

    Renata Rozental Sancovsky, 185 FORMA E NARRATIVA- UMA REFLEXAO SOBRE A PROBLEMTICA DAS PERIODIZAOES PARA A ESCRITA DE UMA HISTRIA DOS CELTAS

    Dominique Vieira Coelho dos Santos, 203

    O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE PARA OS ESTUDOS DA EUROPA NRDICA: A ERA VIKING

    Renan Marques Birro, 229

    BREVE ENSAIO SOBRE O CONCEITO DE TEMPO HISTRICO

    Joo Oliveira Ramos Neto, 256

    Artigos ESTUDIO SOBRE LAS FUNCIONES MAGISTRALES EN EL SISTEMA INSTITUCIONAL DE LA POLIS ATENIENSE

    Jorge Antonio Durbano, 263

    Resenha MEDEIA, MITO E MAGIA: A IMAGEM ATRAVS DO TEMPO

    Guilherme Keller Fragomeni, 291

  • 7

    DOSSI: PERIODIZAO HISTRICA DEBATES E

    QUESTIONAMENTOS

    Carlos Eduardo da Costa Campos1 & Maria Regina Candido2

    Como historiadores nos deparamos com um problema constante em nosso ofcio:

    explicar determinadas periodizaes histricas, para contextualizarmos o objeto de

    pesquisa. Como profissionais que lidam com o homem no tempo e no espao devemos ter

    em mente que uma categorizao temporal o produto de um lugar social especfico, o

    qual visa elaborar um discurso de normatizao para que os eventos passados possam ser

    inteligveis as necessidades atuais. Deste modo, o presente dossi intitulado de

    Periodizao histrica debates e questionamentos, da Revista NEARCO 2013.1

    pretende lanar novos olhares para os recortes temporais, afim de desnaturalizar tais

    sistematizaes, que em muitos casos passam por despercebidas. A empreitada foi rdua,

    contudo como diz um antigo provrbio: caminhando sozinho podemos chegar em algum

    lugar, contudo caminhando em conjunto chegaremos mais longe. De tal forma recorremos

    1 Prof. Ms. Carlos Eduardo da Costa Campos membro do Ncleo de Estudos da Antiguidade, da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa: Religio, Mito e Magia no Mediterrneo Antigo. O mesmo atua como docente do Curso de Especializao em Histria Antiga e Medieval, CEHAM UERJ.email: [email protected]

    2 Prof. Dr. Maria Regina Candido docente associada em Histria Antiga e coordenadora do Ncleo de

    Estudos da Antiguidade, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A mesma atua como membro da coordenao do Curso de Especializao em Histria Antiga e Medieval, CEHAM UERJ e como Professora do Programa de Ps-Graduao em Histria da UERJ e do Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada, da UFRJ.

  • 8

    aos nossos parceiros de longa data para formularmos esta publicao, que comemora os

    nossos quinze anos de democratizao do saber a sociedade. As temticas contidas nesta

    edio perpassam pelas demarcaes histricas da Antiga Mesopotmia, passando pelo

    perodo denominado de Antiguidade Tardia e findando com o recorte intitulado de

    Medievo.

    A pesquisadora Katia Pozzer explicita que no mundo antigo, diferentes sistemas de

    contagem do tempo foram utilizados, segundo as regies e a poca. Os gregos, por

    exemplo, contavam os anos a partir da primeira olimpada, os romanos a partir da

    fundao de Roma. No que tange aos habitantes do Oriente Prximo, os mesmos se

    referiam aos anos dos reinados de seus soberanos ou aos nomes de seus dignitrios. O

    calendrio das civilizaes antigas era baseado no ritmo das atividades agrcolas e

    religiosas e era marcado por intervalos de tempo naturais, dados pelo deslocamento do

    sol no horizonte, pelo ciclo das colheitas e pelo movimento da lua. Assim a autora

    pretende analisar o calendrio mesopotmico, o qual era composto de um ano solar, com

    meses lunares e de um dia solar. J o Prof. Dr. Andr Bueno visa em seu artigo

    problematizar a questo da relao entre tempo e histria na China Antiga. Bueno para

    dar conta de sua proposta se utiliza dos textos de Confcio (-551 a -479) e Sima Qian (-145

    a -85), que so considerados como os dois principais fundadores da historiografia chinesa.

    O trabalho do autor, alm de inovador, nos possibilita conhecer sobre um importante

    campo, que ainda apresenta certa escassez de produo no Brasil.

    As nossas anlises sobre as periodizaes tambm envolveram outras regies

    orientais como da Antiga ndia. O texto produzido pelo Prof. Dr. Edgard Leite foi

    direcionado nos convida a desenvolver algumas questes tericas sobre os problemas de

    periodizao da ndia antiga. O referido pesquisador nos aponta as dificuldades que

    envolvem a comparao com processos histricos fundadores que so verificados no

    Ocidente, assim o mesmo destaca o papel da Revoluo Neoltica no entendimento das

    grandes transformaes estruturais na histria. Alm da ndia Antiga, os nossos escritos

  • 9

    buscaram refletir eventos que envolveram a sociedade Persa. Em virtude do exposto

    recorremos ao Prof. Dr. Vicente Dobroruka que analisou a apocalptica persa. Assim o

    referido estudioso frisa em seu artigo os diferentes usos das periodizaes histricas num

    apocalipse persa conhecido como Zand-i Wahman Yasn (ZWY). Em sua proposta enfatiza-

    se que ao longo do apocalipse citado so utilizadas matrizes diferentes dos temas

    tradicionais dos metais, das idades do mundo e dos imprios mundiais.

    Ao nos direcionarmos para os estudos que envolvem a sociedade helnica

    buscamos o apoio da Prof. Dr. Maria Regina Candido. A referida helenista focou em seu

    artigo nos estudos que envolvem o perodo entre 1200 a 800 antes de nossa era, cujo

    resultado foi emergncia da polis. O perodo ora identificada como Idade do Bronze,

    Tempos obscuros, Idade Media dos gregos ou simplesmente Dark Ages pela historiografia

    anglo-americana. Os pesquisadores afirmam que o termo se deve ao retrocesso cultural

    e econmico que ocorreu na regio helnica como ausncia da escrita, dificuldade em

    estabelecer assentamentos e assim como a perda dos contatos e rotas comerciais no Mar

    Egeu. Sendo assim, a autora almeja analisar os termos junto a historiografia, alm de

    expor como o conceito tem sido aplicado, os seus possveis significados e criticas junto aos

    pesquisadores helenistas. Complementando os estudos helnicos, nosso dossi contou

    com a participao do pesquisador Luis Filipe Bantim de Assumpo. O autor salienta que

    as periodizaes so sistematizaes acadmicas passveis de um processo de

    historicizao. Desse modo, o mesmo objetiva analisar a maneira como as periodizaes

    histricas de Arcaico, Clssico e Helenstico foram desenvolvidas para dar conta das

    especificidades existentes nas sociedades helnicas.

    No que tange ao recorte histrico denominado de Repblica Romana, nosso dossi

    teve como autora a Prof. Dr. Claudia Beltro da Rosa. A especialista argumentou que a

    periodizao tradicional dos estudos histricos um modelo que, como todos os modelos,

    deve existir em benefcio da anlise e da interpretao dos dados, e no o contrrio. Logo,

    a autora frisa que algumas questes sobre a pertinncia do modelo monarquia/no

  • 10

    monarquia para o estudo da religio romana na Repblica, assim como o perodo

    denominado de republicano necessitam ser estudados pelos pesquisadores, a fim de

    contextualizar seu objeto de pesquisa. Alm dos escritos de Claudia Beltro da Rosa, os

    pesquisadores Gilvan Ventura da Silva e Carolline da Silva Soares foram vitais nas anlises

    que envolvem a periodizao romana. Assim o artigo de Silva e Soares voltado para

    refletir os limites e possibilidades dos conceitos mais comuns utilizados para definir o

    sentido das transformaes operadas no Imprio Romano a partir da morte de Cmodo

    (192), transformaes estas que culminaram na redefinio do sistema imperial romano e,

    do ponto de vista da longa durao, na sua gradual desagregao medida que avana o

    sculo V.

    Ao nos depararmos com a periodizao da sociedade islmica recorremos ao

    estudioso Ian Morris, o qual indica que as sociedades que formavam o imprio islmico

    emergiram na Antiguidade Tardia. Para o autor a fragmentao poltica e espiritual de tal

    rea imperial ocorreu entre c.700-950, o que decididamente constituiu as comunidades

    medievais sob comando das dinastias islamizadas. Seguindo pela perspectiva cronolgica

    chegamos aos escritos da historiadora Renata Rozental. As reflexes da autora so

    voltadas para a formao de conscincias histricas entre os judeus da Idade Mdia. Desta

    forma, Rozental salienta que a memria apresenta-se como instrumento narrativo e

    configura-se como parte da nova identidade judaica entre os sculos XIV-XVI. Neste

    estudo possvel perceber o uso social do tempo como campo legtimo de estudo do

    historiador.

    Alm das sociedades mencionadas podemos ressaltar pesquisas como as de

    Dominique Vieira Coelho dos Santos e Renan Marques Birro, que analisam

    respectivamente a sociedade Cltica e Nrdica, as quais o modelo de periodizaes

    histricas tradicionais no so apropriados para as suas especificidades culturais.

    Dominique Vieira Coelho dos Santos apresenta uma reflexo acerca do modo pelo qual os

    historiadores produzem suas narrativas sobre os celtas a partir da construo de formas e

  • 11

    periodizaes. Logo, o artigo convida ao leitor a repensar as periodizaes e seus usos,

    alm de contribuir para novas perspectivas sobre a Histria da Irlanda. No caso de Renan

    Birro, o mesmo destacou que a utilizao de temporalidades (ou eras) para o Estudo da

    Europa Nrdica (compreendida sem limites muito estritos como os atuais pases Nrdicos,

    o Leste da Alemanha e o Leste Europeu) foi empreendida como um exerccio didtico para

    simplificao dos estudos e deteco de tendncias artstico-estilsticas, culturais, sociais e

    tecnolgicas durante a Antiguidade e o Medievo. Todavia, Birro ressalta que os avanos da

    Arqueologia, de estudos comparativos e micro-analticos tem pulverizado esse panorama

    conforme a observao minuciosa de regies especficas. Assim, o autor se prope realizar

    uma breve retrospectiva at a quase reinveno das palavras Viking e Era viking no

    contexto do nacionalismo, ps-colonialismo e na busca de identidade da Inglaterra

    vitoriana no sculo XIX e seus usos atravs das ltimas centrias.

    Quanto ao aspecto terico o dossi conta com os estudos do historiador Joo de

    Oliveira Ramos Neto. O referido autor apresenta de forma introdutria as concepes de

    tempo histrico em Durval Muniz de Albuquerque Jnior, Franois Hartog, Reinhart

    Koselleck, Antoine Prost, Jos Carlos Reis e Paul Ricoeur, propondo um breve debate entre

    eles na tentativa de compreender a relao do historiador com o tempo que oscila entre a

    concepo natural e a concepo filosfica. No artigo so tratados temas e conceitos

    como calendrio, estrutura, conjuntura, fato histrico e regime de historicidade.

    Alm do dossi, a revista apresenta a sesso de artigos livres que contm a

    produo de Jorge Durbano. O presente artigo visa debater sobre as funes institucionais

    e administrativas que um cidado ateniense no perodo clssico deveria executar para o

    acesso e manuteno de seu cargo na polis de Atenas. Alm do referido texto, a revista

    NEARCO tambm expe a resenha efetuada por Guilherme Keller Fragomeni da obra

    Medeia- Mito e Magia, de autoria da helenista Maria Regina Candido. O referido trabalho

    visa apresentar os principais pontos que constituem o livro sobre um dos personagens

    histricos mais debatidos na histria.

  • 12

    Em suma, o conselho editorial da Revista NEARCO deseja a todos uma boa leitura!

  • 13

    MEDIR O TEMPO, UM SABER MESOPOTMICO

    Katia Maria Paim Pozzer3

    RESUMO

    A palavra cronologia deriva do termo grego chronos, que significa tempo, e logos que quer dizer estudo, assim cronologia o estudo do tempo. No mundo antigo, diferentes sistemas de contagem do tempo foram utilizados, segundo as regies e a poca. Os gregos contavam os anos a partir da primeira olimpada, os romanos a partir da fundao de Roma. Os habitantes do Oriente Prximo se referiam aos anos dos reinados de seus soberanos ou aos nomes de seus dignitrios. O calendrio das civilizaes antigas era baseado no ritmo das atividades agrcolas e religiosas e era marcado por intervalos de tempo naturais, dados pelo deslocamento do sol no horizonte, pelo ciclo das colheitas e pelo movimento da lua. Assim, o calendrio mesopotmico era composto de um ano solar, com meses lunares e de um dia solar. Palavras-chave: Cronologia Mesopotmia Tempo.

    ABSTRACT

    The word chronology derives from the Greek chronos, meaning time, and logos which means study, so chronology is the study of time. In the Ancient World different systems of counting time were used according to region and season. The Greeks counted the years from the first Olympiad, the Romans from the founding of Rome. The inhabitants of the Near East referred to the years of the reigns of sovereigns or their names of their

    3 Doutora em Histria pela Universit de Paris I Panthon-Sorbonne, Ps-doutora pela Universit de Paris

    X Nanterre, Professora do Curso de Histria da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Projeto de Pesquisa Guerra e Religio - Estudo de textos e imagens do mundo antigo oriental (CNPq/FAPERGS). E-mail: [email protected].

  • 14

    dignitaries. The calendar of ancient civilizations was based on the cycle of agricultural and religious activities and was marked by natural intervals of time, given by the displacement of the sun on the horizon, the harvest cycle and the motion of the moon. Thus, the Mesopotamian calendar consisted of a solar year with lunar months and a solar day.

    Keywords: Cronology Mesopotamia Time.

    INTRODUO

    Antes de apresentarmos uma discusso sobre as diferentes maneiras de medir o

    tempo que os habitantes da antiga Mesopotmia utilizaram, ao longo de sua histria,

    necessrio que fixemos alguns conceitos fundamentais que compem esta problemtica.

    A palavra cronologia deriva do termo grego chronos, que significa tempo, e logos

    que quer dizer estudo, cronologia pois, o estudo do tempo. Partindo-se da premissa de

    que o estudo da histria uma diviso da epistemologia, possvel dizer que a cronologia

    um ramo da historiografia. Assim, podemos afirmar que a teoria do conhecimento

    discute o que pode ser conhecido sobre o mundo e sobre a atividade humana ao longo do

    tempo. No sentido moderno do termo, a cronologia serve, fundamentalmente, para fins

    epistemolgicos. Portanto, estabelecer a durao dos eventos histricos crucial para

    podermos interpretar seu impacto social, suas tendncias, seus movimentos e direes.

    CATEGORIAS CRONOLGICAS

    Existem dois tipos de cronologia: a absoluta e a relativa, ainda que, no senso

    estrito, todas as cronologias sejam relativas. Segundo CRYER (2000: 652) a nica

    cronologia verdadeiramente absoluta aquela que tem como ponto de partida um

    presumvel cataclisma que liberou energia e desencadeou o incio do Universo e cuja

    medida do tempo feita em intervalos finitos at o ltimo aquecimento mortal do

    universo. Ento, em princpio, seria possvel identificar cada evento na histria do

    cosmos dentro do espectro definido por esses dois pontos.

  • 15

    Mas do ponto de vista histrico, podemos afirmar que a cronologia absoluta

    localiza os eventos no tempo de acordo com o calendrio juliano-gregoriano4, usado nos

    dias de hoje, nas assim chamadas sociedades ocidentais, em uma escala que se estende

    em duas direes, antes e depois, do nascimento de Jesus de Nazar.

    J os cronologistas da antiguidade, incluindo os do antigo Oriente Prximo,

    mediam o tempo em termos de escolhas arbitrrias, a partir de um ponto fixado no

    passado que poderia ser a ascenso ao poder de um rei ou de uma dinastia, como a de

    Hammu-rabi da Babilnia, a fundao de um Estado ou de uma capital, como a Roma

    antiga ou um evento regular de carter scio-poltico, como as Olimpadas na Grcia. o

    que chamamos de cronologia relativa.

    O PROBLEMA DA ESCALA

    O rigor na cronologia se faz necessrio para que possamos ordenar a histria

    poltica com certa fidedignidade. O grau de preciso da medida cronolgica deve ser

    claramente estabelecido e indicado, como no exemplo a seguir: 1250 a.C. 10 anos. Isto

    significa que esta data se encontra entre o perodo de 1240 a.C. e 1260 a.C. Contudo, em

    algumas situaes podemos trabalhar com uma cronologia dita "flutuante", pois

    possumos raras evidncias e pouco detalhamento do perodo em questo.

    Uma questo que deve ser considerada da escala da cronologia, que foi objeto

    de reflexo primeiramente da chamada Escola dos Annales e, posteriormente, da

    microhistria (REVEL, 1996). Frederick Cryer (2000: 653) retoma a referncia terica dos

    Annales e prope a existncia de trs escalas cronolgicas:

    - a de longa durao, que pode ser medida em sculos, milnios ou milhes de

    anos e usada para medir o tempo geolgico ou ecolgico, como por exemplo, na

    descrio da histria da presena humana na Amrica do Norte;

    4 O calendrio juliano o definido na poca de Jlio Csar, imperador romano (100-44 a.C.) e o gregoriano

    o estabelecido pelo papa Gregrio XIII (1502-1585).

  • 16

    - a de mdia durao, que pode ser medida em dcadas ou sculos se aplicada ao

    tempo social, como por exemplo, para descrever as lutas entre os grupos tnicos na

    Amrica do Norte no perodo moderno;

    - a de curta durao, a histria do evento, que pode ser medida em horas, dias,

    semanas ou anos se aplicada ao tempo poltico, como por exemplo, para descrever a

    Guerra Civil Americana, o movimento dos direitos civis na dcada de 60 ou a queda do

    presidente Nixon nos EUA.

    Temos, ainda, na fsica, a medida em bilhes de anos para o tempo csmico ou a

    medida em nano segundos para partculas muito pequenas. As diversas escalas no se

    excluem e podem ser complementares, dependendo do propsito do historiador.

    MTODOS DE DATAO

    De acordo com Cryer (2000: 654-655), a principal evidncia para o estabelecimento

    de uma cronologia provm das escavaes arqueolgicas e cujos critrios centrais para

    datao podem ser assim enumerados:

    1. estratigrafia do stio arqueolgico, que pode datar um artefato em relao

    outro;

    2. datao por carbono-14, que baseada no estudo da radiao natural

    residual do istopo de carbono-14 do elemento qumico Carbono e expressa em "x anos

    antes do presente (A.P.)". As medies de C-14 correspondem datas absolutas mais a

    expresso de seu desvio padro. O ano-base foi arbitrariamente definido em 1950

    (segundo o calendrio gregoriano) e o fator do desvio padro assegura um percentual

    de 68% de acuidade do valor obtido. Assim, por exemplo, uma data expressa em 2350 A.P.

    70 traduzida como 400 a.C. 70 anos;

    3. termoluminescncia, est ligada capacidade de alguns cristais (presentes,

    por exemplo, na cermica, no slex ou no vidro) acumularem energia (radiao natural) ao

    longo do tempo. Quando submetidos altas temperaturas, eles liberam esta energia em

  • 17

    forma de luz que, uma vez medida, pode nos dizer a data na qual aquele objeto foi

    confeccionado;

    4. arqueomagnetismo, que so estudos baseados na observao de que

    partculas de xido de ferro presentes na argila sofrem uma reorientao de campo

    magntico, pela queima em alta temperatura, para o padro do campo magntico da

    Terra, e, aps o resfriamento, readquire seu padro magntico anterior. Os arquelogos

    utilizam este mtodo para datar tijolos e fornos in situ;

    5. a tipologia dos artefatos, que deixa traos do desenvolvimento histrico de

    vrias manufaturas, e estes vestgios permitem estabelecer padres de culturas e

    sociedades;

    6. dendrocronologia, que a contagem dos anis de crescimento anuais das

    rvores. Este mtodo usado com preciso para objetos em madeira. No antigo Oriente

    Prximo a cadeia dendrocronolgica ininterrupta at 927 d.C.;

    7. paleografia, que a datao das fontes escritas baseada nas tipologias da

    evoluo dos sinais.

    TEMPO, HISTRIA E DOCUMENTO

    Possumos muitos documentos de antigos escribas que fornecem dados

    astronmicos referentes fenmenos celestes que, analisados por astrnomos modernos,

    podem ser recalculados, no calendrio juliano-gregoriano, com grande preciso. E com

    isso, contribuindo de forma eficiente para o estudo da cronologia do antigo Oriente

    Prximo. Tomemos como exemplo, o documento conhecido por "Tablete de Vnus de

    Ammiaduqa", que um texto cuneiforme que contm os registros dos aparecimentos do

    planeta Vnus, durante o reinado do rei Ammiaduqa, o segundo rei da dinastia de

    Babilnia na sucesso, depois de Hammu-rabi. Os astrnomos modernos usaram estas

    informaes para estudar as datas em que o planeta Vnus esteve visvel e chegaram a

    inmeras possibilidades. Combinando as evidncias arqueolgicas e histricas, foram

  • 18

    propostas algumas datas para a destruio de Babilnia, durante o reinado do sucessor de

    Ammiaduqa e que varia segundo a cronologia empregada. Pela cronologia alta este

    evento se situaria em 1651 a.C., j a cronologia mdia prope a data de 1595 a.C. e a

    cronologia baixa aponta o ano de 1531 a.C. para tal acontecimento (COLLINS, 2008: 11).

    No passado, a cronologia mdia foi utilizada na grande maioria das publicaes e

    nas informaes pedaggicas dos museus, pois ela ficava entre a cronologia alta, baseada

    em dados astronmicos e a cronologia baixa, baseada em evidncias arqueolgicas e

    textuais. Mas, atualmente, a cronologia mdia no mais uma opo sustentvel para os

    pesquisadores, pois no serve a nenhum propsito. Assim a cronologia baixa vm sendo

    utilizada por um nmero cada vez maior de historiadores. Isto significa que as evidncias

    da cultura material vm sendo consideradas de maior autenticidade que as demais.

    Os debates sobre os indcios continuam, mas as descobertas arqueolgicas trazem

    cada vez mais dados, novos textos so traduzidos e interpretados e novas tcnicas

    cientficas de datao so utilizadas, apontando a possibilidade de refinamento e de

    integrao de cronologias entre os diversos espaos geogrficos do planeta.

    No mundo antigo diferentes sistemas de contagem do tempo foram utilizados,

    segundo as regies e a poca. Os gregos contavam os anos a partir da primeira olimpada

    (776 a.C.), os romanos a partir da fundao de Roma (753 a.C.). Os habitantes do Oriente

    Prximo s adotaram sistema semelhante a partir de 312 a.C., na era selucida. Antes eles

    se referiam aos anos dos reinados de seus soberanos ou aos nomes de seus dignitrios.

    No primeiro caso, cada ano do reinado era designado por uma frmula que

    relatava um fato ocorrido no ano precedente ou no incio daquele ano (uma vitria

    militar, uma construo monumental ou um ato piedoso do rei), segundo uma tradio

    herdada do sul mesopotmico. Segundo o mtodo de eponmios, em uso em Assur desde

    o incio do II milnio a.C., um dignitrio dava seu nome ao ano em curso. Uma terceira

    norma consistia em exprimir os anos dos reinados em nmeros sobre o modelo "ensimo

    ano do rei x" e ela foi empregada, sobretudo, na Babilnia, a partir do II milnio a.C. e

  • 19

    pelos reis do Levante, notadamente por Israel e Jud, de acordo com a Bblia (BORDREUIL;

    BRIQUEL-CHATONNET; MICHEL, 2008: 08).

    Nosso conhecimento sobre a cronologia mesopotmica se baseia em listas dos

    anos dos reinados dos soberanos, em listas de eponmios e listas dinsticas, indicando os

    nomes dos reis e o nmero de anos de seus reinados. Porm, estas listas no so

    confiveis, pois algumas foram redigidas tardiamente, outras contm distores

    voluntrias, a fim de legitimar um rei que teria usurpado o poder, por exemplo. Cada uma

    destas listas apresenta um problema de calendrio, pois "um ano" do calendrio antigo

    no corresponde um ano do calendrio gregoriano. Isto porque no existe nenhuma

    regra que obrigue um rei utilizar o mesmo cmputo de clculo que outro. Tampouco

    uma mesma cultura ou sociedade emprega o mesmo modelo de contagem do tempo ao

    longo de sua histria.

    Tomemos pois, como exemplo, a contagem de um perodo cronolgico de 1.000

    anos. Ele pode ser medido por dois calendrios antigos diferentes. O calendrio lunar

    mede o "ano" em intervalos de treze luas novas, definidas arbitrariamente, onde cada

    uma contm 29 ou 30 dias, perfazendo um ano de 354 dias. J o calendrio solar possui

    um ano de 365 dias. Assim, a diferena entre o calendrio lunar e o calendrio solar, para

    um perodo de 1.000 anos, de cerca de 11.000 dias, isto , de 30 anos! (CRYER, 2000:

    655-656). Portanto, estabelecer a natureza dos calendrios a serem utilizados pelas

    sociedades antigas tarefa de fundamental relevncia historiogrfica.

    Existem importantes referncias de uma historiografia antiga acerca da cronologia,

    sobretudo a partir do I milnio a.C. Na Babilnia, a partir da metade do sculo XVIII a.C.,

    temos registros dirios sobre os fenmenos celestes e a ligao deles com eventos

    climticos, econmicos e religiosos, tais como as cheias dos rios, as flutuaes de preos

    ou os nascimentos incomuns de seres anmalos (animais com duas cabeas, crianas

    hermafroditas, etc.). Ocasionalmente, as observaes estelares eram justapostas

  • 20

    eventos polticos, como a chegada de Alexandre, o Grande em Babilnia, em 327 a.C.,

    quando assume o ttulo de rei do Universo (BRIANT, 1996: 881).

    As datas assrio-babilnicas so originrias da tradio das crnicas babilnicas,

    fixadas no perodo de Nab-nir (747-734 a.C.), que no calendrio juliano apresentam

    uma divergncia de apenas um ms no perodo de um ano (PRITCHARD, 1969; GLASSNER,

    1993). Devemos ainda referir que, muitas vezes, o ltimo ano de um rei e o primeiro de

    seu sucessor podem estar superpostos. Contudo, as crnicas babilnicas oferecem

    informaes bastante precisas sobre os eventos polticos na Babilnia e na Assria, do

    perodo de 747 668 a.C.

    As datas assrias do I milnio a.C., que podem ser consideradas como um exerccio

    de cronologia relativa, so baseadas nas listas de eponmios e quando um escriba

    necessitava examinar a data de um documento, ele consultava a lista de eponmios para

    determinar h quanto tempo ele tinha se passado. Atualmente, o uso destas listas

    permitem uma reconstituio cronolgica de 900 650 a.C., com bastante preciso.

    A acuidade da cronologia assrio-babilnica para o I milnio a.C. possibilita, ainda, a

    datao de outros eventos histricos no antigo Oriente Prximo, ainda mais quando estes

    esto relacionados outras civilizaes, como no caso da conquista do Egito por

    Asarhaddon, rei da Assria, em 671 a.C. ou a queda de Assur, capital do imprio assrio, em

    614 a.C. diante da coalizao medo-babilnica. A conjuno de eventos bastante

    utilizada no estabelecimento de datas absolutas para os acontecimentos relatados na

    Bblia hebraica. Contudo, para os perodos mais antigos temos uma grande lacuna de

    fontes, ainda que os escribas tenham pretendido recompor estes hiatos, dando

    continuidade certos reinados, prtica j atestada desde a formulao das listas sumrias

    no III milnio a.C.

  • 21

    MEDIR O TEMPO NO MUNDO MESOPOTMICO

    O calendrio mesopotmico, assim como de outras civilizaes antigas, era

    baseado no ritmo das atividades agrcolas e religiosas e era marcado por intervalos de

    tempo naturais, dados pelo deslocamento do sol no horizonte, pelo ciclo das colheitas e

    pelo movimento da lua. Assim, o calendrio mesopotmico era composto de um ano

    solar, com meses lunares e de um dia solar.

    O ano solar (MU em sumrio, attu em acdico) era definido pelo retorno

    sucessivo das colheitas. O ano novo babilnico iniciava na primavera, com o ms Nisannu

    (maro/abril do calendrio juliano) e o primeiro dia do ano era equivalente ao equincio

    da primavera. O calendrio assrio diferia do babilnico, pois iniciava no equincio de

    outono, mas esta discrepncia terminou quando os assrios adotaram o calendrio

    babilnico no incio do I milnio a.C.

    O ms (ITI, em sumrio) e cujo nome em acdico, arhu, formado por uma das

    designaes do deus Lua, definido como o intervalo de tempo transcorrido entre duas

    aparies sucessivas da primeira lua. O ms comeava na noite em que a lua crescente

    reaparecia pela primeira vez no horizonte oeste, logo aps o pr-do-sol. O ms lunar

    possui 29 ou 30 dias, sendo 30 o nmero simblico do deus Sn, o deus-lua. Desde o incio

    do III milnio a.C. os meses so designados em funo das atividades que acontecem

    dentro de um ciclo anual, assim seus nomes fazem referncia aos trabalhos agrcolas ou s

    festividades religiosas. Outro fenmeno observado na Mesopotmia que existiram

    vrios calendrios simultaneamente em todo o territrio, o que explica, por exemplo, que

    o ms VII, tartu, que significa "o comeo" (do ano) lembre a tradio assria do incio do

    ano no equincio de outono, tradio essa mantida pelos hebreus, que at hoje

    comemoram o ano novo (Yom kippur) nesta data (JOANNS, 2001: 152).

  • 22

    Calendrio Mesopotmico

    Sumrio acdico calendrio juliano

    I BAR.ZAG.GAR nisannu maro/abril

    II GU4.SIS ayyaru abril/maio

    III SIG4.GA simnu maio/junho

    IV U.NUMUN tammuzu junho/julho

    V NE.IZI.GAR abu julho/agosto

    VI KIN.INANNA ellu agosto/setembro

    VII DU6.K tartu setembro/outubro

    VIII APIN.DU8.A arahsammu outubro/novembro

    IX GAN.GAN.E kislimu novembro/dezembro

    X AB.BA. tebtu dezembro/janeiro

    XI ZZ.M abtu janeiro/fevereiro

    XII E.KIN.KU5 addaru fevereiro/maro

    Fig. 1 Calendrio Mesopotmico (LABAT, 1988, p. 289).

    O carter astronmico do calendrio babilnico no inclua a noo de semana,

    com um ciclo de sete dias, isto foi uma criao hebraica (ROCHBERG, 2000: 1931).

    Originalmente os mesopotmicos empregaram uma diviso arcaica do dia de 24 horas,

    dividido em quatro perodos de seis horas, que foi abandonada e substituda pelo modelo

    de diviso do ano em 12 meses, onde o dia (mu, em acdico) comeava no crepsculo e

  • 23

    se dividia em 12 "horas-duplas". Segundo a concepo sexagesimal babilnica do tempo, a

    hora tinha sessenta minutos e o minuto era dividido em sessenta segundos (HALLO, 1996:

    124-129).

    A diviso do dia solar em 24 horas foi uma inveno egpcia de cerca de 1.300 a.C.,

    mas essas horas variavam conforme a estao do ano, pois cada 12 horas representava

    uma metade do tempo entre o nascer e o pr-do-sol (HALLO, 1996, p. 121).

    CONCLUSO

    Construir uma cronologia para o mundo antigo uma tarefa de notvel

    complexidade, pois envolve a combinao de diferentes mtodos de datao. Assim,

    compatibilizar os dados da cronologia relativa, como a estratigrafia das escavaes

    arqueolgicas, com as da cronologia absoluta, baseadas em dados astronmicos e

    calendrios dos textos antigos, com os mtodos cientficos, como a datao de rdio

    carbono e termoluminescncia implica em grandes dificuldades, pois nenhum destes

    mtodos consegue reconstituir a totalidade dos dados e a prpria natureza fragmentria

    das fontes tambm contribuem para agigantar o problema.

    Contudo, possvel recompor, com razovel preciso, a cronologia do Egito, da

    Assria e da Babilnia baseada nas listas reais, no registro de um eclipse solar, anotado em

    um documento assrio, que ocorreu em 15 de junho de 763 a.C. e em outros documentos

    escritos a partir de 1.400 a.C. Antes dessa data as cronologias so bastante imprecisas,

    pois poucas evidncias anteriores essa poca chegaram at ns (COLLINS, 2008: 09).

    Para os antigos habitantes da terra entre rios, medir o tempo foi um saber que

    precisou ser inventado para que pudessem registrar os acontecimentos e realizar uma

    narrativa histrica de longa durao que, para ser legtima, exigia rigor e exatido.

    Esperamos que esta breve reflexo sobre a cronologia da antiga Mesopotmia

    possa ser mais uma contribuio para elucidar os problemas que acompanham a medio

  • 24

    do tempo ao longo da histria e destacar que, sem o conhecimento da cronologia, o

    prprio estudo da histria seria impossvel.

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA

    BORDREUIL, P.; BRIQUEL-CHATONNET, F.; MICHEL, C. Les Dbuts de l'Histoire. Paris:

    ditions de La Martinire, 2008.

    BRIANT, P. Histoire de LEmpire Perse. Paris: Fayard, 1996.

    CAD. Chicago Assyrian Dictionary. Chicago: The Oriental Institute of the University of

    Chicago, 1956-2006.

    COLLINS, P. Assyrian Palace Sculptures. London: The British Museum Press, 2008.

    HALLO, W. Origins The Ancient Near Eastern background of some Modern Western

    institutions. Leiden-New York-Kln: E. J. Brill, 1996.

    GLASSNER, J.-J. Chroniques Msopotamiennes. Paris: Les Belles Lettres, 1993.

    JOANNS, F. (org.). Dictionnaire de la Civilisation Msopotamienne. Paris: Robert Laffont,

    2001.

    LABAT, R.; MALBRAN-LABAT, F. Manuel dpigraphie Akkadienne. Paris: Geuthner, 1988.

    POSTGATE, J.N. Early Mesopotamia. London and New York: Routledge, 1992.

    PRITCHARD J.B. Ancient Near Eastern Texts, Relating to the Old Testament. Princeton:

    Princeton University Press, 1969.

    REVEL, J. Jogos de Escala. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1996.

    ROCHBERG, F. Astronomy and Calendars in the Ancient Mesopotamia. In: SASSON, J. M.

    (ed.). Civilizations of the Ancient Near East. Peabody: Hendrickson Publishers, 2000,

    p.1925-1940.

  • 25

    TEMPO E HISTRIA NA CHINA ANTIGA

    Andr Bueno5

    RESUMO Nesse artigo, discutiremos a questo da relao entre tempo e histria na China Antiga, baseando nossa anlise nos textos de Confcio (-551 a -479) e Sima Qian (-145 a -85), os dois principais fundadores da historiografia chinesa. Palavras Chave: China Antiga Sinologia Historiografia Chinesa

    ABSTRACT In this article, we discuss the question of the relation between time and history in ancient China, basing our analysis on texts of Confucius (-551 a -479) and Sima Qian (-145 a -85), the two main founders of Chinese historiography. Keywords: Ancient China Sinology Chinese Historiography

    INTRODUO

    H um velho provrbio chins que diz: o povo chins tem uma mente histrica. A

    anlise dessa simples frase nos indica um fator crucial para o entendimento da

    mentalidade chinesa: a crena de que a histria o sustentculo da civilizao. Para a

    China tradicional, histria e cultura so praticamente sinnimas; todavia, a primeira

    delimita, no tempo, o momento (espao) das transformaes na segunda. Isso levaria os

    chineses, desde os tempos mais remotos, a tentarem uma srie de mtodos e formas de

    periodizar sua histria, buscando compreender e organizar sua dinmica de

    5 Prof. Adjunto de Histria da UNESPAR; Ps-Doutor em Histria pela UNIRIO.

  • 26

    transformao. Nesse texto, analisaremos o surgimento das frmulas de periodizao

    estabelecidas na China Antiga, principalmente em Confcio (-551 a -479) e Sima

    Qian (-145(?) a -85), os dois grandes inaugurados da histria chinesa, e cujas

    contribuies marcariam decisivamente a formao da historiografia e do pensamento

    chins.

    O TEMPO

    O conceito de Tempo, (shi) no pensamento chins antigo, bastante vago. Ele

    se articula a duas questes uma filosfica, outra lingustica que fazem parte da

    mentalidade chinesa. A primeira considerao, de ordem filosfica, a pouca importncia

    dada pelo pensamento chins ao verbo Ser (shi) como sentido de existncia. O mundo

    material era entendido como um mundo em mutao (yi), no qual a manifestao das

    coisas se dava de forma dinmica. A essencialidade de algo, pois, no se apresentava

    diretamente, mas era mediada pela forma com que se manifestava. Assim, a existncia

    era entendida como transitria, fludica; um dos verbos bsicos para defini-la, por

    exemplo, era Estar (zai). Algo no , algo est, num determinado contexto, dentro do

    mundo da mutao. Por causa disso, a preocupao sobre uma possvel essencialidade se

    dirige a investigao das leis naturais que regem essas manifestaes. Isso se projeta

    diretamente sobre a ideia de tempo. O tempo um momento em que as coisas esto de

    um modo especfico. Sabia-se que havia um padro de tempo em funo das estaes do

    ano, sempre repetidas em srie e em propriedades naturais. Marcaes lunares

    delimitavam os meses. Todavia, a preciso cronolgica no era uma preocupao

    fundamental para a maior parte da sociedade. Os camponeses ficavam apreensivos com a

    aproximao das pocas de plantio e colheita, de seca e de chuva, ou seja, momentos

    num ciclo anual perene. Entendido assim, a essncia do tempo seria um padro natural de

    repeties de momentos, de estados das coisas (LARRE, 1975). Proclamar um calendrio

    anual, que interpretasse esses sinais do tempo, acabou por tornar-se um atributo

  • 27

    imperial; cabia ao soberano compreender o ritmo (yun) das estaes e inteirar a

    sociedade sobre isso, justificando desse modo o seu papel de intermedirio entre o cu e

    a terra (como podemos ver claramente no captulo Yueling do Liji, ou

    Recordaes Culturais).

    Tal vagueza e impreciso so representadas, igualmente, pela questo do tempo

    verbal entre os chineses. Na antiguidade como at hoje no h, na lngua chinesa,

    flexo direta de um verbo para o passado ou futuro. Todos os verbos so sempre

    apresentados no tempo presente. Quando algum desejar expressar temporalmente, em

    chins, por exemplo: ontem fui escola, dir eu ontem ir escola. Quando algum diz:

    sou professor h dez anos, traduza-se eu professor ter dez anos ou eu dez anos ser

    professor. Pode-se usar partculas como guoou lepara indicar situaes j

    encerradas: eu fui professor (wo shi le laoshi, ), denota que essa estado j

    mudou, e no se mais docente. Um texto histrico chins se aproxima, portanto, de uma

    narrativa atemporal, e precisa estar situada no contexto. Outra traduo simples pode nos

    dar uma idia disso: Confcio dizer aos seus discpulos; eu estudar o passado (forma

    infinitiva), poderia ser traduzido como Confcio diz..., Confcio disse... ou Confcio

    dizia.... Tais ambigidades foraram os historiadores chineses a inserir o discurso histrico

    numa datao, no momento do tempo em que se desenrola. A histria, pois, um registro

    de momentos elucidativos sobre a compreenso da realidade, e disso resulta sua

    importncia fundamental.

    AS PRIMEIRAS DATAES E O CALENDRIO CHINS TRADICIONAL

    (NONGLI)

    Ento, quando foi que os chineses comearam a datar seus acontecimentos? As

    referncias mais antigas de que dispomos esto gravadas em carapaas de tartarugas e

    escpulas de bois e carneiros, do perodo Shang(-1523 a -1027). Elas eram utilizadas

  • 28

    com fins oraculares, e nelas vislumbramos a origem da escrita chinesa. O sistema de

    consulta consistia, basicamente, em escrever duas previses na superfcie do osso ou

    carapaa uma favorvel, outra no. Inseriam-se barras de metal aquecidas, que

    provocavam rachaduras no material. O curso das rachaduras em direo a uma das

    mensagens determinava o augrio. Um detalhe importante surge nesses materiais

    oraculares: as datas de consulta. Possivelmente com o objetivo de arquivar as predies, e

    montar um balano anual dos movimentos da natureza, em algum momento essas

    carapaas e ossos comearam a ser guardados, formando as enormes colees dos quais

    dispomos hoje. Nelas, eram indicados o ano(nian) e o ms(yue, ou lua) e por vezes,

    o dia. provvel que esses orculos fossem de uso particular de uma elite, e o sistema de

    datao era desconhecido de grande parte da populao. De fato, no temos nenhum

    documento da poca Shang que nos explique o funcionamento desse calendrio. Ele ser

    explicado, na verdade, pelos documentos histricos da dinastia Zhou(-1027 a -221),

    principalmente a partir da poca de Confcio (-551 a - 479). Esse mtodo de

    datao seria chamado de nongli.

    O sistema do calendrio tradicional, o nongli(ou, calendrio agrcola),

    organizava a periodizao do tempo em um ciclo de sessenta anos(Ganzhi, ou

    sistema troncos-ramos), que podia ser estendido pela insero de elementos

    complementares. Sua composio bsica era a seguinte:

    a) Os Troncos Celestes(Tiangan), em nmero de dez, e organizados na

    seguinte sequncia: jia (), yi (), bing (), ding (), wu (), ji (), geng (),

    xin (), ren () e gui ().

    b) Os Ramos Terrestres(Dizhi), em nmero de doze, e organizados na

    seguinte sequncia: zi (), chou (), yin (), mao (), chen (), si (), wu

    (), wei (), shen (), you (), xu () e hai ().

  • 29

    O ciclo era organizado da seguinte maneira: combinava-se um dos troncos

    celestes, em sequncia, com um ramo terrestre, para criar o nome do ano. Assim, os

    anos eram nomeados da seguinte forma: 1.1(jiazi), 2.2(yichou), 3.3(bingyin)

    at 10.10(guiyou), quando o ciclo continua em 1.11, 2.12, 3.1 [...] at

    a juno 10.12. Como a conjuno dual, dela resulta uma sequncia que s se

    repete a cada sessenta anos. Esse padro pode ser diversificado com a insero dos

    Xing(estados da matria, ou: metal, gua, madeira, terra e fogo) aos troncos celestes,

    e com a associao dos animais do zodaco chins (em nmero de doze) para

    corresponder aos ramos terrestres. Esse ciclo apresentava a vantagem de estabelecer

    dataes especficas para cada ano, afastando a possibilidade de confundir uma data em

    seis dcadas. Alm disso, registros de acontecimentos astronmicos podiam ser

    comparados e calculados com a data do ano, confirmando a ocorrncia de um

    determinado evento importante.

    Por outro lado, o sistema lunisolar de clculo dos meses necessitava de ajustes

    peridicos, que revelavam as falhas desse sistema. Os meses chineses eram baseados nas

    fases da lua, possuindo de 29 a 30 dias. O final de um ciclo de doze lunaes marca o incio

    de um novo ano, em sua primeira lua nova. O problema a defasagem de dias ao final de

    cada ano, que exigem o acrscimo de dias para manter a sincronia entre o ano solar e o

    lunar. O registro desses meses excedentes complicava, por vezes, a recuperao de uma

    data. Outro problema era a distncia temporal em relao aos acontecimentos: quanto

    mais antigos, maiores as chances de ocorrerem confuses ou coincidncias entre os anos

    de um ciclo (ASLAKSEN, 2010).

    A grande ironia que esse sistema de calendrio, chamado de agrcola ou

    campons, era desconhecido da maior parte da populao rural. Como vimos, a

    proclamao de um calendrio anual era atributo do imperador. Devemos nos perguntar:

    qual a necessidade de um sistema to complexo e elaborado como esse, numa sociedade

    em que a maioria do povo se preocupava com a repetio das estaes, e no com anos

  • 30

    especficos? Como vimos, o incio do nongli estava ligado aferio e preservao de

    orculos, bem como a predio das colheitas; contudo, durante a dinastia Zhou, o

    surgimento do gnero literrio histrico exigiria um aperfeioamento dessa questo. Para

    a intelectualidade chinesa, a histria tornar-se-ia o registro da ao humana no tempo, e o

    estabelecimento das razes da cultura. Por isso, ela merecia uma ateno especial, que

    seria dispensada por aquele que foi considerado um dos maiores sbios chins de todos

    os tempos: Confcio.

    A ESCRITA DA HISTRIA NA POCA DE CONFCIO

    Temos poucas informaes sobre quando a literatura histrica propriamente dita

    comeou a ser escrita na China. Se pudermos acreditar no Corao da Literatura e o Cinzel

    do Drago(Wenxin Diaolong), de Liuxie(+461 a +521?) um dos primeiros

    manuais sobre a histria da literatura chinesa, escrito em torno do sc. +6 j se escrevia

    a histria desde tempos imemoriais, e durante o perodo Xiae Shang, j existiriam

    funcionrios dedicados a anotar as ocorrncias da corte (BUENO, 2004, cap.16). Mas foi

    na poca Zhou, porm, que ela se transformou no registro legal dos acontecimentos,

    salvaguardando para a posteridade as leis, os conhecimentos e os exemplos morais que

    conduziriam a sociedade. Liuxie se baseava, provavelmente, nas indicaes que Confcio

    deixou sobre a presena de obras e documentos histricos em sua poca. Todavia,

    Confcio tambm se queixava que muita coisa havia sido perdida, o que dificultava o

    estudo do passado: O Mestre disse: que sei da cultura de Xia? No sobrou muito em Qi,

    seu herdeiro. Que sei da cultura de Yin [Shang]? No sobrou muito em Song, seu herdeiro.

    Sem evidncias e estudiosos, fica difcil conhecer essas culturas *Conversas(Lunyu),

    BUENO, 2012].

    Essa reclamao reincidente na historiografia chinesa; as sucessivas queimas de

    bibliotecas imperiais, em meio a crises de sucesso dinsticas, ocasionaram uma perda

  • 31

    inumervel de textos. Tais dificuldades fizeram com que Confcio publicasse dois livros de

    histria fundamentais para a compreenso do passado chins: o Tratado dos Livros (

    Shujing) e as Primaveras e Outonos (Chunqiu). O Tratado dos Livros, a princpio, no

    era de sua autoria: era uma coletnea dos principais discursos, eventos e passagens

    biogrficas dos grandes heris civilizadores da China Antiga. Apesar de indicar as possveis

    datas de cada uma dessas passagens, a organizao cronolgica do livro solta, marcada

    por interrupes, ausncias e descontinuidades, num esprito semelhante vagueza do

    conceito de tempo comum a sociedade chinesa da poca. Por outro lado, podemos supor

    que tal apresentao da obra, cujo fim era educativo, colocava tais passagens histricas

    como exemplos e, portanto, atemporais, embora tenham ocorrido que vem de

    encontro a preservar essa memria de modo perene. Como vimos, a indistino temporal

    na lngua chinesa tornava os discursos do Tratado dos Livros praticamente atuais,

    tornando sua indicao cronolgica um elemento quase secundrio (ON-CHO & WANG,

    2005, p.1-31).

    O livro das Primaveras e Outonos bastante diferente, porm, e praticamente

    inverte o paradigma do Tratado dos Livros. Segundo Mncio(-385 a -304), discpulo

    confucionista do sc. -4, o livro seria de autoria do prprio Confcio, que esperava ser

    lembrado como um grande pensador justamente por meio dessa obra histrica (Mengzi,

    Livro 3, cap. 1). Nela, o velho mestre redigiu uma seca e taciturna cronologia de eventos

    histricos, a partir dos arquivos de que dispunha em sua terra natal, Lu. Uma

    primeira leitura de qualquer passagem das Primaveras e Outonos muito pouco

    esclarecedora: ela indica o ano de um reinado, uma data lunar (ms), os personagens e o

    acontecimento. Nada mais dito. Mas na linguagem sutil da obra, cada uma dessas frases

    tinha um significado importantssimo. Quando Confcio informava, por exemplo, que o o

    rei X foi assassinado, a palavra assassinado indicava claramente uma conspirao, e

    possivelmente seus culpados. Do mesmo modo, a frase fulano descansou em data y

    implicava que o referido personagem havia bem desempenhado suas funes na vida, e

  • 32

    que podia ser tido como exemplo. A redao das Primaveras e Outonos causou

    preocupao e comoo em sua poca: ser acusado de um crime qualquer, no livro,

    equivalia a uma condenao pblica. Muitas famlias nobres, cujos ancestrais haviam

    praticado atos considerados indignos, ficaram alvoroadas e irritadas com tais revelaes,

    feitas em frases singelas e de poucas palavras (GUERRA, 1981; SCHABERG, 2005: 21-57).

    Com o intuito de corroborar suas afirmaes, Confcio atrelava suas denncias e elogios a

    datas que podiam ser verificadas nos documentos que ele consultara. Ou seja, ele partia

    do princpio de que um determinado evento ocorrera num determinado espao ou

    momento do tempo, e que podia assim ser localizado. Embora esse pressuposto possa

    parecer simples e quase ingnuo nos dias da hoje, na poca ele representava uma

    revoluo em termos de narrativa histrica. Ao datar e identificar os personagens de um

    determinado evento, Confcio abria a possibilidade dele ser confirmado, negado ou

    mesmo discutido, a partir dos livros de histria espalhados pelas diversas regies da

    China. Como vimos, o prprio Confcio reclamara que dispunha de poucos meios para

    estudar a histria e os costumes das dinastias anteriores. Era importante, pois, criar uma

    referncia geral, um guia para elucidar as principais passagens histricas. Por fim,

    Confcio emendou a cronologia dos reinados e ducados, indicando suas datas de incio e

    fim, para estabelecer sua continuidade.

    A extensa cronologia das Primaveras e Outonos, que ia aproximadamente de -841

    at a poca de Confcio, representava esse paradigma de pesquisa e nesse caso, no

    podemos esquecer que essa histria, para os chineses, era o registro tico das aes

    individuais no passado, responsveis pela continuidade (ou crise) da sociedade. As

    Primaveras e Outonos se constituem um livro rico de indicaes moralizantes, mas cujo

    domnio era difcil e exaustivo. Gradativamente, muitas de suas informaes foram

    perdendo o carter de crtica histrica, e seu vocabulrio preciso adquiriu caractersticas

    polissmicas, ensejando dvidas sobre sua interpretao. Isso levou a redao de trs

    comentrios diferentes, que discutiam as passagens da obras: o Zuo zhuan, o

  • 33

    Gongyang zhuane o Guliang zhuan. Destes, o primeiro terminou sendo

    aceito tradicionalmente, pelos confucionistas, como a mais adequada interpretao das

    palavras de Confcio; mas os outros dois livros sobreviveram, e continuaram sendo lidos e

    discutidos pela intelectualidade chinesa.

    AS ERAS HISTRICAS (DINSTICAS)

    Com Confcio, temos a primeira apresentao de um esquema histrico e

    cronolgico da China Antiga. por meio de sua obra que conhecemos a sequncia

    histrica das trs primeiras dinastias e suas possveis dataes: Xia(-2205 a -1523),

    Shang(-1523 a -1027) e Zhou(-1027). A denominao de uma dinastia na antiguidade

    (, chao ou, dai), por si mesma, j definia uma primeira noo de Era histrica. Ela se

    constituiria num perodo em que um determinado grupo (designado como famlia ou casa

    real, Jia) assumiria o Mandato do Cu(Tianming), o atributo de governar o pas,

    durante um espao de tempo. O Mandato implicava na manuteno de uma ordem

    harmnica (He) entre sociedade e natureza. A durao desse perodo no estava

    definida: ela dependia da boa administrao do pas, e a sucesso real dentro de uma

    mesma casa dependia diretamente da qualidade dos governantes escolhidos. Por isso, a

    documentao confucionista identifica, tambm, a ideia de um ciclo de ascenso,

    manuteno e decadncia que seria inerente a todas as dinastias. Tal como num

    movimento natural, nenhuma dinastia poderia manter-se no poder eternamente; ela

    nasceria, cresceria e pereceria pelos seus prprios excessos e defeitos. Uma casa

    dinstica, porm, seria datvel e o registro de sua histria, sujeito ao julgamento crtico,

    tal como nas Primaveras e Outonos, colocava seu prestgio e continuidade em jogo.

    Novamente, a histria surgia a para educar aqueles que estivessem interessados em

    preservar-se no poder por mais tempo: Zizhang perguntou: podemos prever o futuro

    daqui h dez geraes? O Mestre disse: Yin adotou os costumes de Xia, e Zhou adotou os

  • 34

    de Yin. Sabemos o que se perdeu e o que foi acrescido. Quem suceder Zhou far o mesmo,

    j sabemos como ser. *Conversas (Lunyu), BUENO, 2012].

    Nas Recordaes Culturais, Confcio apresenta, porm, uma outra forma de definir

    a evoluo histrica chinesa. Ele apresenta a teoria de que a histria estaria dividida em

    duas Eras distintas: a Era da Grande Paz (Datong) e a Era da Paz Menor

    (Xiaokang):

    Quando reinava, na idade de ouro, o grande Dao [caminho], o mundo era propriedade comum (no pertencendo a nenhuma famlia dominante), os governantes eram escolhidos de acordo com a sua sabedoria e capacidade, havia paz e confiana mtua. Por isso as pessoas no tratavam apenas os prprios pais como pais e os prprios filhos como filhos. Os ancios sabiam prezar a sua velhice e os jovens sabiam usar o seu talento, os mais moos tinham os velhos por quem olhar, e as vivas desamparadas, e os rfos, e os mutilados e aleijados eram tratados com carinho. Os homens tinham afazeres especficos e as mulheres cuidavam dos lares. Como as pessoas no desejassem ver seus bens desperdiados, no tinham motivo para os conservarem egoisticamente para si; e como as pessoas tivessem energia mais do que suficiente para o trabalho, no precisavam limitar-se a trabalhar s em proveito individual. Por isso no havia malcia nem intrigas, nem ladres nem bandidos, e conseqentemente no havia necessidade de cada qual fechar a sua porta (ao cair da noite). Assim era o perodo do Datong, ou a Grande Comunidade. Agora, porm, j no reina o grande Dao e o mundo est dividido entre famlias adversas (tornou-se propriedade privada de algumas famlias), e as pessoas consideram como pais apenas os prprios pais e como filhos apenas os prprios filhos. Cada qual entesoura seus bens e trabalha apenas em proveito prprio. Estabeleceu-se uma aristocracia hereditria e os diversos Estados construram cidades, cidadelas e fossos para sua defesa. Os princpios da Li (regras sociais) e da lei funcionam como simples regras de disciplina; por meio de tais princpios os cidados procuram manter a distino oficial de governantes e governados, ensina-se aos pais e filhos e irmos mais velhos ou mais moos e esposos e esposas a viverem em harmonia, estabelecem-se obrigaes sociais, e vive-se em grupos de aldeias. Os mais fortes fisicamente

  • 35

    e os mentalmente mais vivos galgam posies de relevo, e cada um trata a sua prpria vida. Da a malcia e os ressentimentos, resultando em guerras. (Os grandes fundadores de dinastias como) Os Imperadores Yu, Tang, Wen, Wu e Cheng, e o Duque Zhou, foram os melhores homens desta poca. Sem uma nica exceo, foram todos seis profundamente ciosos dos princpios da Li, mediante os quais a justia foi mantida, a confiana geral foi instaurada, os erros e equvocos foram banidos. Um ideal de verdadeira humanidade, ren, foi estabelecido, e cultivaram-se as boas maneiras e a cortesia como slidos princpios a serem seguidos pelo povo. Qualquer autoridade que violasse tais princpios haveria de ser denunciada como inimigo pblico e destituda do cargo. Este se chama o Perodo da Xiaokang ou "o

    Perodo da Paz Menor". [Recordaes Culturais (Liji) em BUENO, 2011].

    Embora no se trate especificamente de um livro de histrias, as Recordaes

    Culturais constituem um levantamento de prticas, costumes e crenas da poca Zhou, se

    tornando uma fonte indispensvel de histria cultural da China Antiga. A observao

    presente nesse fragmento interessante porque denota, para ns, a existncia

    concomitante de trs periodizaes distintas e, no entanto, no excludentes entre si.

    Uma a do tempo amplo, do calendrio, dos discursos antigos presentes no Tratado dos

    Livros; a segunda, do tempo cronolgico, datado, dos perodos dinsticos e das

    Primaveras e Outonos; e a terceira, a das Recordaes Culturais, que analisa em conjunto

    a relao entre as outras duas perspectivas. Esse ltimo tipo de periodizao vaga e

    abrangente no se firmou, porm, talvez por depender de um grande espao de tempo

    para ser feita e a, a distncia histrica dos eventos em questo dilui as possibilidades de

    se fazerem uma anlise crtica mais efetive sobre os mesmos. Uma ltima tentativa nesse

    sentido surgiu no Gongyang zhuan, que propunha igualmente uma nova teoria para

    realizar uma leitura compreensvel das Primaveras e Outonos. Na passagem sobre o

    primeiro ano do reinado do Duque Yin de Lu (yinyi), o comentarista Hexu ,

    propunha que a histria podia ser dividida em trs grandes etapas ou momentos: o mais

  • 36

    distante seria o ouvi dizer, que corresponderia aos acontecimentos que nos so passados

    de forma indireta; o eu ouvi, que significa ter contato com testemunhas de uma poca,

    sem t-la vivido; por fim, o eu vi, que significa testemunhar diretamente a histria. Para

    Gongyang, a percepo desse esquema surgiu na poca de Confcio, e desde ento o

    mundo seguiria uma trajetria de aperfeioamento por meio da constatao atenta e

    consciente dos eventos histricos. Uma das caractersticas interessantes da concepo de

    Gongyang que ela pode ser compreendida, de certa forma, como uma metodologia de

    escrita histrica, que permite classificar as fontes e relatos do ponto de vista do prprio

    historiador e seu contexto (CSIKSZENTMIHALYI, 2006: 84-88). Essa possibilidade de

    atualizar a histria seria importante na poca da Dinastia Han quando Sima Qian, leitor

    de Gongyang, iria revolucionar decisivamente os mtodos historiogrficos chineses.

    SIMA QIAN E AS RECORDAES HISTRICAS

    Durante o perodo Han, a construo da histria chinesa seria definitivamente

    marcada pelo trabalho realizado por Sima Qian (-145(?) a -85). Sima Qian fora

    diretamente influenciado por seu pai, Sima Tan, historiador e astrlogo da corte, e por

    Dong Zhongshu , um dos maiores filsofos confucionistas da poca, cujas

    contribuies veremos a seguir (WATSON, 1958). A partir deles, Sima Qian iria propor uma

    remodelao da histria, representada em sua extensa e copiosa obra, as Recordaes

    Histricas ( Shiji), cujo objetivo era cobrir toda a histria da China desde suas origens

    at sua poca. As Recordaes Histricas envolvem diversos empreendimentos tericos e

    metodolgicos para a formulao de uma cronologia mais exata, que sustentasse uma

    periodizao dinstica contnua. Inspirado em Confcio, Sima queria fazer com que sua

    histria fosse moralizante, mas ao mesmo tempo, calcada em referncias que ele julgava

    as mais realsticas possveis. Isso no era muito diferente do que o prprio Confcio havia

  • 37

    proposto, mas Sima Qian levaria essa proposta a um novo nvel de refinamento, cuja

    complexidade iria influenciar toda a historiografia chinesa posterior.

    Primeiramente, a questo da cronologia e das dataes. Sima Tan, pai de Sima

    Qian, era um profundo estudioso dos movimentos celestes e da astronomia (que nessa

    poca, no se distinguia da astrologia). Como ele, Sima Qian teria aprendido a aprimorar o

    uso do calendrio de sessenta anos (o nongli), relacionado os anos a posio das

    constelaes e eventos csmicos notveis, como a passagem de cometas e eclipses.

    Calculando retroativamente a ocorrncia de alguns desses eventos (principalmente

    eclipses lunares), Sima Qian definia as possveis datas para seu acontecimento e verificava

    se, na documentao, havia meno aos mesmos. A concordncia de uma determinada

    data numa passagem textual com essas indicaes astronmicas referendava, em sua

    viso, a existncia do evento o momento exato no tempo em que ele se desenrolou.

    Discrepncias entre o calendrio anual e a indicao desses eventos apontavam, nessa

    mesma linha de raciocnio, que existiam problemas nas fontes consultadas e sobre os

    quais o historiador deveria, ento, emitir um parecer crtico. O preciosismo de Sima Qian,

    em relao questo das dataes, fez com que ele tomasse o cuidado de propor que

    todas as datas antes de -841 (incio das Primaveras e Outonos) eram propositivas. Todavia,

    no incio do sculo 20, a descoberta de carapaas de tartaruga oraculares, com listas dos

    reis da dinastia Shang, comprovou que as dataes indicadas por Sima Qian estavam

    corretas. admirvel, pois, que no campo cronolgico Sima Qian tenha conseguido

    avanos notveis, sem uso direto de uma arqueologia cientfica, a ponto de alcanar tal

    preciso para perodos anteriores a ele em mais de dez sculos.

    Por outro lado, as Recordaes Histricas manifestam a preocupao de organizar

    a histria chinesa num ciclo maior, natural, como manifestao da vontade do Cu. Essa

    inspirao veio de Dong Zhongshu (-179 a -104), um dos mestres de Sima Qian, e o

    principal responsvel pela fuso entre a ideologia confucionista e o pensamento

  • 38

    cosmolgico, que buscava justificar a existncia do Estado e da organizao social com

    base na dinmica da natureza (QUEEN, 1996; LOEWE, 2011). Dong Zhongshu defendia que

    a sociedade e o governo derivavam de uma evoluo das foras naturais, e por isso,

    estavam sujeitas a ao das mesmas, o que era explicado pelo sistema wuxing (cinco

    estados da matria). O sistema wuxing explicava a mutao da matria (qi) com base

    em dois ciclos, um de criao e outro de destruio. Para ele, o mesmo se dava em relao

    vida humana. No fragmento seguinte, vemos como o ciclo de criao construdo, e sua

    conseqente interpretao para a ordem social e as relaes familiares:

    Tem o cu cinco foras, a saber: a madeira, o fogo, a terra, o metal e a gua. A madeira o primeiro, e a gua o ltimo, com a terra no meio. Tal sua seqncia ordenada pelo cu. A madeira d origem ao fogo, o fogo d origem a terra (cinzas), a terra d origem ao metal, o metal d origem a gua, e a gua d origem a madeira. Tal sua relao criadora. A madeira est esquerda, o metal direita, o fogo adiante, a gua atrs, e a terra no centro. Esta a ordem em que, como pais e filhos, recebem o ser e o transmitem em reciprocidade. Assim, a madeira o recebe da gua, o fogo da madeira, a terra do fogo, o metal da terra, e a gua do metal. Enquanto os transmissores todos so pais; enquanto receptores, todos so filhos. Confiar constantemente no prprio pai a fim de prover para o prprio filho a via do cu. Por conseguinte a madeira, enquanto rvore vivente, alimentada pelo fogo (sol); o metal, uma vez morto, sepultado pela gua; o fogo se compraz na madeira, e a nutre por meio da energia yang (solar); a gua vence ao metal (seu pai), mas o chora por meio da energia yin. A terra demonstra a mxima lealdade no servio do cu. Assim, as cinco foras proporcionam uma norma de conduta para ministros leais e para filhos devotos de seus pais... O sbio, compreendendo isso, incrementa o seu amor e diminuiu sua severidade, faz mais generoso seu auxilio aos vivos e mais respeitoso seu cumprimento dos ritos funerrios pelos mortos, ajustando-se assim a norma estabelecida pelo cu. Como filho, cuida piedosamente de seu pai, o mesmo que o fogo na madeira, e chora a seu pai, o mesmo que a gua quando vence ao metal. Serve ao seu soberano como a terra reverencia ao cu. Assim, pode chamar-se um homem de fora.

  • 39

    Exatamente igual como cada uma das cinco foras mantm seu lugar prprio de acordo com sua ordem estabelecida, assim os funcionrios pblicos, em conformidade com as cinco foras, se esforam ao mximo empregando suas faculdades em seus deveres respectivos. [Gemas preciosas das Primaveras e Outonos

    (Chunqiu Fanlu), BUENO, 2011]

    Dong Zhongshu elaborara esse sistema com base em sua interpretao pessoal do

    comentrio Gongyang das Primaveras e Outonos, que ele apresentou em sua obra Gemas

    preciosas das Primaveras e Outonos (Chunqiu Fanlu). Sima Qian inspirou-se

    nessa ideia, e procurou justificar a sucesso dinstica dentro da mesma concepo de

    ciclo natural, colocando cada uma das dinastias anteriores como governada por uma

    dessas foras. Ele esperava, assim, apresentar uma ordenao macro csmica para a

    sucesso poltica e histrica, inserido dentro desses perodos o desenrolar dos

    acontecimentos. Seu esquema para as eras dinsticas, baseado no ciclo de sucesso

    (destruio) era o seguinte:

    Dinastia Xia: Madeira

    Dinastia Shang: Metal (corta a madeira)

    Dinastia Zhou: Fogo (derrete o metal)

    Dinastia Qin: gua (apaga o fogo)

    Dinastia Han: Terra (absorve a gua)

    Esse esquema representado, por exemplo, nesse fragmento sobre a sucesso

    poltica, presente nas Recordaes Histricas:

    Este o parecer do historiador: o governo da dinastia Xia foi marcado por bons augrios, mas com o tempo deteriorou-se e voltou a rusticidade e a decadncia. Shang substituiu Xia, e reformou seus defeitos por meio da virtude da piedade filial. Mas esta piedade degenerou, e as pessoas dirigiram-se para o mundo das supersties e espritos. Ento Zhou seguiu corretamente, corrigindo esta falta por meio dos rituais e da ordem. Mas os ritos se deterioraram porque caram nas mos daqueles que os transformaram em um simples espetculo. Ento, tornou-se

  • 40

    necessrio novamente acabar com este espetculo, reformar o mundo e buscar novamente um bom destino. Este foi o caminho das trs dinastias, e o ciclo dinstico um caminho que comea, termina e continua sempre. bvio ento que nos final de Zhou e nos tempos iniciais de Qin os ritos estavam deteriorados, e a ordem corrompida. Mas o governo Qin falhou ao tentar corrigir estas falhas, adicionando a elas leis e punies durssimas. Este no foi um grave erro? Por isso, quando os Han chegaram ao poder, buscando consertar as falhas de seus predecessores, e trabalhando para corrigir o mundo e p-lo em ordem, seus esforos seguiram corretamente a ordem apropriada e determinada pelo Cu. Eles ordenaram a corte em doze meses, coloriram as vestimentas e as carruagens de amarelo e o restante

    o acompanhou. [Recordaes Histricas(Shiji) em BUENO, 2011]

    De fato, a dinastia Qin adotara cor preta como oficial (cor da gua, na China), bem

    como se afirmava patrocinada por essa fora. Liu Bang, primeiro imperador Han,

    adotou o Amarelo, que simboliza a Terra. No entanto, as evidncias para isso estavam na

    prpria histria escrita por Sima Qian, o que gerou muitas crticas posteriores. A questo

    Sima Qian criara uma histria to bem articulada, para sua poca, que qualquer

    contestao partia, inequivocamente, dela. Para completar a questo da periodizao,

    Sima Qian inseriu, ainda, as Datas Marcantes(nian biao), que marcavam

    acontecimentos polticos importantes para a dinastia. Com isso, ele esperava reforar o

    aspecto pontual da cronologia histrica (JOPPERT, 1979: 205-207).

    O aspecto da periodizao fica ainda mais evidente quando observamos a diviso

    dos captulos nas Recordaes Histricas. A obra est dividida em cinco partes:

    Anais(Benji), Cronologias(Biao), Famlias(Shijia), Livros(Shu) e

    Biografias(Liezhuan). Os trs primeiros dedicam-se, quase exclusivamente, a

    apresentar a conjuntura temporal das histrias. Os Anais (doze captulos) trazem a

    descrio e as dataes das dinastias e dos principais imperadores Qin e Han; as

    Cronologias (dez captulos) informam, detalhadamente, as principais datas da histria, e

  • 41

    organizam a sucesso dos eventos, sua coordenao e proximidade; e as Famlias (trinta

    captulos) trazem as crnicas histricas dos estados e reinos que compunham a dinastia

    Zhou, antes da unificao promovida por Qin. Nos Livros (oito captulos), Sima Qian

    apresenta dissertaes sobre assuntos tcnicos ou polticos, como a questo do

    Calendrio e da Astronomia; e nas Biografias (setenta captulos), ele discorre sobre as

    personalidades, individualmente ou coletivamente, e as re-escalona perante os eventos

    histricos.

    Podemos observar que Sima Qian tentava conciliar o diverso material histrico de

    que dispunha. Se as Biografias e os Livros se aproximam bastante do Tratado dos Livros,

    os empreendimentos cronolgicos so nitidamente influenciados pelas Primaveras e

    Outonos. provvel que Sima Qian buscasse assim, numa nica obra, articular os

    acontecimentos histricos dentro de um nico modelo, que concatenasse as informaes

    disponveis, estabelecendo uma srie de crculos concntricos, indo do macro (o ciclo, a

    era dinstica) para o micro (o evento em si), e do social-histrico para o exemplo

    individual e moral. Essa teia de relaes criou um profundo impacto na mentalidade

    histrica chinesa, cujos desdobramentos so sentidos at os dias de hoje (HARD, 1999).

    CONCLUSO

    A obra de Sima Qian mudou, em definitivo, o perfil das obras histricas chinesas e

    a questo da periodizao. As Recordaes Histricas deram origem, e serviram de

    modelo, para as chamadas Histrias Oficiais(Zhengshi), que se transformaram num

    empreendimento controlado pelo Estado. Depois dos Han, todas as dinastias dispunham

    de suas prprias agncias histricas, responsveis pelo registro dos acontecimentos, pela

    redao dos Anais e pela censura. Em contraposio a esse controle, os chineses tambm

    desenvolveram uma tradio de historiadores independentes, crticos, dispostos a

    contestar a criao de verses oficiais. Contudo, ambos partiam, inequivocamente, da

  • 42

    obra de Sima Qian. Sculos depois, durante seu longo perodo imperial (que s findaria

    em 1911) os chineses ainda debatiam sua histria com base nas periodizaes propostas

    pelas Recordaes Histricas. A ideia dos ciclos das eras dinsticas, representados pelo

    sistema wuxing, quanto das aferies cronolgicas baseadas no nongli continuaram a

    ser empregadas, e somente em 1927 se concluiu a histria da ltima dinastia (Qing),

    com base nesses antigos mtodos.

    O que podemos observar, portanto, que a antiguidade chinesa criou uma srie

    de meios para interpretar, classificar e ordenar o tempo. Intimamente ligada tanto a

    questo da natureza como da poltica, a questo da periodizao criou, no imaginrio

    chins, uma forte impresso sobre a necessidade da histria, como mantenedora de suas

    tradies e de sua cultura. A localizao no tempo, a delimitao no passado, a possvel

    veracidade garantida pela cronologia, criaram o slido sentimento de uma real e milenar

    herana cultural entre os chineses, da qual a histria seria a principal responsvel pela

    continuidade. A sutileza do sistema de periodizao proposto, a partir de Sima Qian, faz

    com que seja praticamente impossvel abordar a histria chinesa sem antes dominar sua

    cronologia tradicional. E por isso, ainda hoje, essa histria tradicional chinesa um desafio

    para qualquer um que deseje se aventurar no campo da sinologia.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ASLAKSEN, Helmer. The Mathematics of the Chinese Calendar. Singapura, 2010, disponvel

    em http://www.math.nus.edu.sg/aslaksen/calendar/cal.pdf

    BUENO, Andr. A Histria e seus comentrios. 2004, disponvel em

    http://orientalismo.blogspot.com.br/2007/07/histria-e-seus-comentrios-de-liu-xie.html

    (Captulo 16 do Wenxin Dialong)

    BUENO, Andr. As Conversas do Mestre. 2012, disponvel em

    http://orientalismo.blogspot.com.br/2012/04/as-conversas-do-mestre.html (Lunyu)

  • 43

    BUENO, Andr. Cem textos de Histria Chinesa. 2011, disponvel em

    http://chinologia.blogspot.com (Fragmentos doLiji, Chunqiu Fanlu e

    Shiji)

    CSIKSZENTMIHALYI, Mark. Readings in Han Chinese thought. Indianapolis: Hackett, 2006.

    GUERRA, Joaquim J. Escrituras Selectas. Macau: Jesutas de Macau, 1980 (Traduo

    doShujing).

    _____. Quadras de Lu e Relao Auxiliar. Macau: Jesutas de Macau, 1981 5 volumes

    (Traduo do Chunqiu).

    HARD, Granty. Worlds of bamboo and bronze. Columbia: Columbia University Press, 1999.

    JOPPERT, Ricardo. O Alicerce Cultural da China. Rio de Janeiro: Avenir, 1979.

    LARRE, C. A percepo emprica do tempo e a concepo da histria no pensamento chins

    em RICOEUR, P. (org.) As culturas e o tempo. So Paulo: Vozes-USP, 1975.

    LOEWE, Michael. Dong Zhongshu, a Confucian heritage and the Chun qiu fan lu. Leiden:

    Brill, 2011.

    MESKILL, John. The Pattern of Chinese History: Cycles, Development or Stagnation?

    Bostson: D.C. Heath and Company, 1965.

    ON-CHO, Ng & WANG, Edward. Mirroring the past: the writing and use of history in

    imperial China. Honolulu: University of Hawai Press, 2005.

    QUEEN, Sarah. From chronicle to Canon: the hermeneutics of the Spring and Autumn,

    according to Tung Chung-shu. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

    SCHABERG, David. A patterned Past: Form and Thought in Early Chinese Historiography.

    Harvard: Harvard University Press, 2005.

    WATSON, Burton. Ssu-Ma Chien, Grand Historian of China. Nova Iorque: Columbia

    University press, 1958.

  • 44

    PERIODIZAES NA NDIA ANTIGA

    Edgard Leite 6

    RESUMO Nesse texto pretendemos desenvolver algumas questes tericas sobre os problemas de periodizao da ndia antiga. Consideramos as dificuldades de comparao com processos histricos fundadores verificados no Ocidente, e valorizamos o papel da Revoluo Neoltica no entendimento das grandes transformaes estruturais na histria. Palavras-chave: ndia Antiga Periodizao Revoluo Neoltica

    ABSTRACT In this text we aim to develop some theoretical questions about the problems of ancient India periodization. We consider the difficulties of comparison with founding historical processes verified in the West, and value the role of the Neolithic Revolution in understanding the major structural transformations in history. Keywords: Ancient India, Periodization, Neolithic Revolution.

    Reinhardt Koselleck afirmou que a Histria s pode existir como uma disciplina se

    ela desenvolve uma teoria de periodizao; sem essa teoria, a Histria perde-se em um

    questionamento sem limites de tudo (KOSELLECK, 2002: 04). So expressivas as questes

    imbricadas em tal assertiva, principalmente porque envolvem tanto o problema de uma

    teoria de periodizao, quanto o de uma outra construo terica prvia, relativa

    natureza ou sentido da articulao cronolgica dos eventos histricos. Ou seja, exige a

    6 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Prof. Dr., Projeto de pesquisa atual: Processos de secularizao na modernidade [email protected]

  • 45

    aceitao da idia de que a histria tenha um sentido depreensvel, algum tipo de lgica

    sequencial, cujas etapas possam ser entendidas a partir de uma periodizao.

    Alguns historiadores do sculo XIX, por exemplo Leopold Van Ranke, viam tal

    perspectiva com desconfiana (POMIAN, 1990: 148), basicamente porque exigiria um

    esforo significativo na construo de uma teoria geral sobre o desenvolvimento do

    processo histrico, a fim de dela extrair-se uma teoria de periodizao. De tal processo o

    empirismo rankiano mantinha distncia, pois implicava na relativizao do fato,

    introduzindo outros elementos, nem sempre documentveis, na considerao dos

    processos.

    A possibilidade de depreendermos finais, mesmo que parciais, no futuro, nunca

    pareceu muito claro aos estudos histricos documentais, pois, nos documentos, apesar do

    futuro estar sempre presente e projetado, nunca parece estar presente uma lgica

    perfeitamente compreensvel que possa explicar o desenvolvimento ulterior e permitir, a

    partir deles, a construo de certezas ltimas. A tradio religiosa de judeus e cristos, a

    partir de Daniel, sempre afirmou a realidade de uma lgica que preconizava o fim, mas tal

    certeza vinha de uma revelao, alheia obra humana. Confirmar que tais escatologias

    expressavam realidades histricas, localizveis nos documentos, tornou-se uma pauta

    oculta da historiografia ocidental na era da secularizao.

    As teorias de histria desenvolvidas no sculo XIX, por exemplo a de Hegel, a de

    Marx ou a de Comte, investiram na crena em sentidos, no caso, na afirmao de uma

    concepo de histria linear, que avanava em direo a um futuro previsvel. Em geral,

    tal futuro correspondia ao esprito da escatologia judaico-crist, isto , o de uma

    sociedade superior ou perfeita. Tal perspectiva se imps gradualmente entre alguns

    historiadores. H que se anotar que tal entendimento emergiu em oposio s vises

    crticas, renascentistas, sobre o assunto, que tendiam, maneira clssica, ou pag,

    considerar a histria como dotada de uma temporalidade cclica, onde um perodo de luz,

    a Antiguidade, era seguido por outro de trevas, o perodo medieval, e por outro

  • 46

    novamente luminoso. As tentativas de recuperar algum tipo de escatologia ou teleologia

    tornam-se evidentes a partir de Voltaire, no sculo XVIII, segundo Pomian (POMIAN, 1990:

    148). Voltaire entendeu que o mundo moderno, na verdade, era superior Antiguidade, o

    que introduzia uma nova varivel de superioridade do tempo presente e a ruptura com a

    circularidade renascentista.

    A crena no sentido linear e positivo da histria no deixava de ser, no sculo XIX,

    como vimos, uma retomada de preocupaes medievais presentes na historiografia crist,

    cuja raiz, a historiografia bblica apocalptica, asseverava que os perodos histricos

    estavam inseridos em um processo maior de sentido, originado dos desgnios de Deus - e

    que teriam um bom final (LEITE, 2009: 81). Em Hegel, Marx ou Comte, a histria teria suas

    determinaes fundadas em razes metafsicas, cientficas ou econmicas predominantes,

    mas de qualquer forma apontavam igualmente em um sentido positivo: o fim da histria

    ou a transformao de sua natureza. Desnecessrio anotar que todas as trs concepes

    exigiam menos elementos documentais que as justificassem, e mais uma intensa crena

    na necessidade do sentido maior da histria.

    As periodizaes, portanto, usualmente foram relacionadas a uma projeo de

    destinos e utilizadas na Histria para tornar compreensveis especficos discursos sobre o

    futuro. O discurso sobre o porvir legitima ou no legitima aes no presente. Como

    entendeu Pomian, os fatos se tornam pensveis, quando inseridos em uma

    morfognese... as periodizaes servem para fazer os fatos pensveis. Serviram assim os

    perodos para dar congruncia vivncia do presente (POMIAN, 1990: 187) e s

    expectativas futuras.

    Muitos historiadores, no entanto, acreditam que a insistncia na busca de teorias

    de periodizaes uma necessidade cientfica fundamental. Wolfgang Reinhard, por

    exemplo, sustentou que no pode haver comunicao entre pesquisadores sem alguma

    razovel subdiviso da histria (REINHARD, 1997: 269). Nessa perspectiva, a tentativa,

    prpria do pensamento iluminista, segundo Koselleck, de realizar a passagem do imprio

  • 47

    da reduo da histria cronologia, que era caracterstica da historiografia medieval, para

    uma adequao da cronologia histria, utilizando-se de categorias obtidas da prpria

    histria (apud JORDHEIM, 2012: 161), parece continuar em vigor como um imperativo

    acadmico.

    Segundo Reinhard, a

    Periodizao histrica necessria... mas os perodos histricos devem ser considerados como construes puramente artificiais. Isso no quer dizer que sejam criaes arbitrrias... pois devem responder ao estado de debate acadmico relativo a um respectivo perodo (REINHARD, 1997: 269).

    A periodizao , portanto, um desafio irrenuncivel. O desenvolvimento da

    Antropologia e as diferentes inflexes tericas de cunho estruturalista que influenciaram

    as cincias humanas na segunda metade do sculo XX tornaram-na teoricamente

    complexa. J que muitas dvidas ficaram evidentes sobre ao que, de fato, se referiam os

    perodos e se deveramos pens-los em funo de futuros.

    Se temos razes para, por exemplo, acompanhar Levi-Strauss na crtica a um

    processo evolutivo em histria, no podemos deixar de reconhecer, como ele mesmo o

    fez, a existncia de eventos singulares no passado que determinaram transformaes

    significativas na histria, ou na relao do homem com o mundo, como a Revoluo

    Neoltica (LEVI-STRAUSS, 1962: 24) ou a Revoluo Industrial (apud POMIAN, 1990: 174).

    Tais eventos apontam para destinos e fatalidades, cuja dinmica, no entanto, difcil de

    depreender para alm do paradigma que instala, e que parece articular em si relaes e

    conflitos no necessariamente evolutivos, cujo fim no um ponto terminal no futuro,

    mas sim um desenvolvimento constante em torno de determinados padres. E assim

    como comparamos a perspectiva linear evolucionista com a tradio histrica

    apocalptica, poderamos, talvez, entender essa perspectiva estruturalista de uma forma

    mais prxima uma recuperao do pensamento mtico na historiografia secular.

  • 48

    Em ambas dimenses, no entanto, uma perspectiva pluralista, de forma diferente

    dos monismos hegeliano, marxista ou comtiano, pode permitir o entendimento de

    mltiplas perspectivas de sentido temporal, capazes de engendrar diferentes

    periodizaes (JORDHEIM, 2021: 160), ou mltiplas temporalidades, tanto lineares quanto

    estruturais. A experincia da periodizao, assim, cumprindo seus objetivos disciplinares,

    pode continuar a desenvolver um papel eficaz como guia para a reflexo sobre realidades

    histricas, aproximando-se de forma controlada a um questionamento sem limites da

    realidade da histria e do tempo, mas no dissolvendo a integridade disciplinar da

    Histria. Esse desafio, que expressa os problemas tericos mais amplos da historiografia

    contempornea, envolve a disposio de responder ao debate acadmico mesmo

    sabendo do seu carter evanescente e mutvel.

    II

    A realidade histrica da ndia na Antiguidade, evidentemente, no nos permite que

    projetemos, nela, integralmente, os modelos lineares de periodizao utilizados na

    histria europia, ou no Mediterrneo Oriental, pelos pensadores do sculo XIX. Marx, por

    exemplo, reconhecia tal diferena, e acreditava que o papel da dominao inglesa na

    regio quaisquer que fossem os crimes da Inglaterra (MARX, 1853: 34) era

    regeneradora, ou seja, instalar os fundamentos materiais da sociedade ocidental na sia

    (MARX, 1853b: 38). Em outras palavras, adequar a dinmica histrica da ndia aos

    princpios que ele entendia serem ordenadores de um nico sentido histrico. O mesmo

    se aplica s vises de Hegel ou de Comte, que extrapolavam o sentido atribudo histria

    europia toda histria da humanidade. Hegel, especificamente, sustentou que os

    indianos eram incapazes de escrever histria, simplesmente porque eles no a tinham