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    A memria e o espao sagrado:os colonos e a apropriao simblica dos lugares1

    Memory and sacred space: colonists and the symbolic appropriation o places

    Clia Maia Borges *

    Artigo Recebido e aprovado em outubro de 2010 Resumo:

    O presente artigo prope-se a ser uma re exo acerca das relaesque os colonos estabeleceram com o novo territrio no qualreconstruram o seu novo espao e as suas memrias. Por recurso anlise terica, nosso objetivo tentar perceber a importncia que teve a eleio de alguns lugares tidos como sagrados e mostrarque os portugueses ao construrem as suas memrias coletivasorganizaram o espao, edi caram templos e cuidaram de algunssmbolos sagrados. Para muitos deles tornou-se undamentalagruparem-se em con rarias, dentre outras associaes, e nesseslugares projetaram as suas crenas e seus ideais undados na solidez das pedras, ao mesmo tempo que ancoravam os seussentimentos de pertena ao passado e cultuavam os seus santos,sem contudo perderem as suas matrizes religiosas.

    Palavras-chave:

    Memria. Espao. Sagrado.

    Abstract:

    Tis article ofers a re ection on the relations that Portuguese

    colonists established with the new territory where they reconstructed their new space and their memories. Using theoretical analysis, our goal is to try to understand theimportance o opting to hold some places sacred, and show that

    1 odos os dados re erentes s irmandades do Santssimo Sacramento oram extradosdo meu projetoOs irmos do Santssimo Sacramento:sociabilidade e devoo em MinasGerais, pesquisa que conta com o nanciamento da FAPEMIG.

    * Docente do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Juiz deFora. Doutora em Histria Social (UFF) e Mestre em Sociologia da Cultura (UFMG).Contato: [email protected]

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    the Portuguese, to build their collective memories, organized thespace, built temples, and were the caretakers o several sacredsymbols. For many o them it became essential to work togetherin brotherhoods, among other associations, where they projectedtheir belie s and ideals based on the solidity o stones, whileanchoring their eelings o belonging to the past and worshipping their saints, yet without losing their religious re erences.

    Keywords:

    Memory. Space. Sacred.

    Introduo

    Quando os colonos migraram para o Novo Mundo transportaramos seus valores e com um repertrio de conhecimentos, tcnicas, hbitose crenas, reconstruram a sua nova condio existencial. A partir de suaslembranas, procuraram re azer o seu mundo no s objetivo, com suasruas e casas, mas tambm plasmaram no novo lugar suas representaessimblicas, com tudo o que valorizavam do passado. A substituio doselementos da vida anterior, da sua vida cotidiana, signi cava repor os es-paos anteriores, reconstruir uma nova organizao espacial para alocar assuas memrias. Por isso, procuraram edi car igrejas, templos e reuniram--se em associaes religiosas a m de garantir proteo na es era divina,apoio a etivo entre os seus semelhantes e a solidariedade destes na vida e na morte. Graas, pois, a esse conjunto de aes os povoadores oramcapazes de sedimentar as suas memrias pessoais e coletivas e construirnovas re erncias dentro das ronteiras recm-conquistadas.

    Exemplo disso pode ser apontado no es oro realizado pelas or-ganizaes leigas de carter religioso na capitania de Minas Gerais. Asprimeiras irmandades surgidas nessa capitania datam do incio do sculo XVIII e oram as do Santssimo Sacramento; seguiu-se a de Sabar, erigida em 1710, depois a de So Jos del-Rei ( iradentes) e posteriormente a

    de So Joo del-Rei, esta ltima em 1711, dois anos antes do povoadose tornar vila e antes mesmo da chegada do Estado e da Igreja, enquantoinstituies. Os seus iniciadores oram portugueses, a maioria proceden-tes do norte de Portugal. Alm de edi carem igrejas, instalaram nos seusaltares smbolos sagrados, ou seja, pxides, custdias, turbulos e navetas etudo o que dava apoio conservao das espcies eucarsticas no sacrrio

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    sistema de contrastes elaborados por cada cultura possvel construirum conjunto signi cativo, que in orma sobre o situar dos indivduos.

    Cada sociedade [para lembrar Roberto da Matta] tem uma gramtica deespaos e temporalidades para poder existir enquanto um todo articuladoe isso depende undamentalmente de atividades que se ordenem tambmem oposies di erenciadas, permitindo lembranas ou memriasdi erentes em qualidades, sensibilidade e orma de organizao5.

    al espao socialmente criado e percebido o que Yi-Fu- uan chama de lugar. Para esse autor, o espao trans orma-se em lugar, na medida emque adquire de nio e signi cado6. Imersos nas experincias ntimas daspessoas, os lugares criam re erncias e do uma ideia de aconchego. Ainda se-gundo o gegra o chins, o lugar constitui uma pausa no movimento, isto ,a pausa permite que uma localidade se torne um centro de reconhecimentoe valor.7 No entanto, o valor do lugar depende das relaes ali estabelecidas,das lembranas que guardam da intimidade com o local.

    assim que o lugar pode ser considerado como algo que concor-re para que os diversos elementos do espao existam di erenciadamente.ais elementos passam a ser representados a partir de percepes cultu-rais, ormando um arcabouo mais ou menos organizado, que permitea orientao de grupos e pessoas. Enquanto componente de percepesundadas em vises culturais, ele atravessado por categorias valorati-vas. Como diz Da Matta, citando Karl Polany, o espao [...] no existecomo uma dimenso social independente e individualizado, estandosempre misturado, interligado ou embebido com outros valores queservem de orientao geral8.

    Lugares e objetos so, nessa perspetiva, elementos depositriosde valores capazes de atrair ou repelir as pessoas. Segundo ChristianNorberg-Schulz, todas as culturas desenvolvem sistemas de orientao [...]9. Para obter um suporte existencial, o homem tem de ser capazde se orientar: ele tem que saber onde est, mas ter que saber tam-

    5 MA A, Roberto da. A casa e a rua.Espao, cidadania, mulher e morte no Brasil. SoPaulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 31.

    6 UAN, Yi-Fu.Espao e lugar:a perspectiva da experincia. So Paulo: DIFEL, 1983, p. 151.

    7 Idem, p. 153.8 MA A, Roberto da.Op.cit. p.31.9 NORBERG-SCHULZ, Christian.Genius loci. owards a phenomenology o

    architecture. London: Academy Editions, 1980.

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    bm como ele num certo lugar10. Quer dizer, ter que identi car-secom o lugar. A m de desenvolver essa ideia da relao homem-lugar,Christian Norberg-Schutz retoma o conceito romano deGenius Loci .De acordo com uma crena existente na Roma antiga, todo ser inde-pendente tem seu genius , ou melhor, seu esprito guardio. Esse espritod vida a pessoas e a lugares, acompanha-os do nascimento morte edetermina o carter de suas essncias11. O homem reconhece-se numcerto lugar con orme se orienta por signos e smbolos, os quais, ela-borados em gramticas signi caticas, lhe permitem identi car-se comaquele lugar. Na medida em que compartilha no cotidiano elementoscomuns com um determinado grupo, a relao estabelecida entre ossujeitos permeada por cdigos comuns que lhe permitem asseguraruma constante sensao de estabilidade, entender e dar sentido s suasvidas e, desde logo, criar uma identidade. A identi cao signi ca queo ambiente, o lugar, os objetos, so experimentados como signi cativospara aqueles que com eles convivem.

    Como se pode perceber, do nosso interesse nesta exposiopensar o lugar enquanto expresso cultural, enquanto ponto de re-velao de aes presentes e passadas, suporte existencial de grupose pessoas, que possibilita o remapeamento mental do mundo vivido. As imagens que ornece aos indivduos e aos grupos orientaes eidentidades so produzidas a partir de sensaes imediatas e de expe-

    rincias passadas, recolhidas pela memria, permitindo interpretar asin ormaes e dirigir aes12.Os moradores de uma cidade por exemplo, com seus vrios grupos

    sociais, atribuem signi cados distintos aos lugares que os cercam. Atravsde uma lgica prpria, os homens atribuem signi cados resultantes deum eixo cultural e , por via disso, que ordenam simbolicamente tudoquanto os rodeia. As vilas e as cidades participam da experincia sensveldas pessoas; os moradores, de maneiras di erentes, se apropriam dos luga-res e, como tal, do valores desiguais aos vrios locais.

    Cabe aqui recorrer a Durkheim, quando re ere que o espaotende a ser dividido e classi cado pelos homens enquanto arquitetosda representao espacial13. Essa representao consiste essencialmen-

    10 Idem.11 Ibidem.12 LYNCH, K.Te image o the city. Cambridge: Te echnoloogy Press/ Harvard

    University Press, Massachusetts, 1960.13 DURKHEIM, E.Les ormes elmentaires de la vie religieuse . Paris: Presse Universitaires

    de France, 1960, p. 15.

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    te numa primeira coordenao introduzida nos dados da experincia sensvel. Contudo, para esse autor, a coordenao seria impossvel seas partes em que se divide o espao se equivalessem quantitativamente,quer dizer, se ossem realmente substituveis umas s outras.

    Para dispor espacialmente as coisas necessrio poder situ-las de mododiverso: colocar umas direita e outras esquerda, estas no alto e aquelas embaixo, ao norte e ao sul, a leste ou a oeste []. Isto signi ca dizer que o espaono poderia ser o que , se, como o tempo, no osse dividido e di erenciado14.

    A classi cao e a atribuio de valores azem parte da condiohumana e con guram o suporte de cada cultura, que cria representaesa respeito do espao vivido. De origem social, esse espao representadoparticipa da experincia dos sujeitos e um espao socialmente vividoonde se criam sentidos que orientam as pessoas e os grupos sociais emrelao ao lugar. Motivo por que o lugar participa ou se con unde com a experincia do existir dos sujeitos. Ecla Bosi, a esse respeito, assinala:H algo na disposio espacial que torna inteligvel nossa posio nomundo, nossa relao com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligao com a natureza15. Desse modo, o homem constri e reconstriseus pressupostos simblicos, reveste o mundo vivido de signi cadosprprios, onde ele se reconhece e se identi ca e estabelece a sua di eren-a com os outros grupos sociais. isso que az com que os objetos, oslugares e os eventos assumam signi cados que para um estrangeiro po-dem parecer relativamente estranhos. Essa condio permite aos sujei-tos reconhecerem-se em certos lugares, em certos objetos, em prticas,atos e atributos valorativos, que guardam sentidos que so, no undo,muitas vezes, incompreensveis para outros grupos humanos.

    nesse sentido que cada sociedade organiza simbolicamente a sua vida, o seu dia-a-dia, a sua histria. Roberto da Matta, em sugestivasre exes produzidas acerca desse enmeno, dizia:

    Cada sociedade ordena aquele conjunto de vivncias que socialmenteprovado e deve ser lembrado como parte e parcela de seu patrimnio como os mitos e narrativas daquelas experincias que no devem seracionadas pela memria, mas que evidentemente coexistem com as outrasde modo implcito, oculto, inconscientemente, exercendo tambm uma orma complexa de presso sobre o sistema cultural16.

    14 Idem.15 BOSI, Ecla. Memria e sociedade:lembranas de velhos. So Paulo: . A. Queiroz,

    1983, p. 370.16 MA A, R. Op. cit , p. 39.

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    Dito de outro modo: os grupos organizam qualitativamente oseu espao, mas sobretudo o seu tempo socialmente vivido, sem esque-cer tambm das suas memrias.

    Maurice Halbwachs, um dos principais estudiosos da memria coletiva, chamava a ateno para a importncia do espao como auxiliardo trabalho da memria:

    [] a maior parte dos grupos, no somente aqueles que resultam da justaposiopermanente dos seus membros nos limites de uma cidade, de uma casa ou deum apartamento, mas tambm muitos outros, de nem a sua orma sobre osolo e encontram suas lembranas coletivas no quadro espacial assim de nido17.

    Sob esse aspecto, o espao apresenta-se como suporte da memria.Os materiais nossa disposio ajudam a reconstituir a memria indivi-dual e coletiva; da mesma maneira que os lugares, os objetos, bem comoos diversos elementos espaciais, nos permitem evocar lembranas. No necessrio que tais lugares e objetos se apresentem na sua totalidade, bas-tam ragmentos de elementos espaciais para que o trabalho da memria se renove e se revitalize. Foi com base nesses ragmentos que Pedro Nava reencontrou a sua cidade e reviveu o seu passado: [] Eternidade da cidade: a que me permite encontrar o seu passado apesar de tudo, numresto de muro, num beiral que escapou, numa tampa de esgoto e rejuve-

    necer-se ao contato destas velharias que devolver meu passado menino18

    .Do mesmo modo que as imagens espaciais ocupam um papelsensvel no trabalho da memria coletiva, tambm esta memria tendea subsistir ao lado da memria do grupo e no apenas junto da memria do indivduo, uma vez que o sujeito em si compartilha com o grupoinmeras lembranas que so criadas e atualizadas socialmente.

    Entretanto, lembrar o passado no nos garante em absolutoobter reminiscncias is de antigos acontecimentos; os sujeitos lem-bram a partir de certas re erncias particulares. Por mais ntida que nosparea a lembrana de um ato antigo, ela no corresponde mesma imagem que experimentamos na in ncia, porque ns no somos osmesmos de ento e porque nossa percepo se alterou e, com ela, asnossas ideias e os nossos juzos de valor19. Nossa percepo alterada com o tempo, assim como as ideias, juzos da realidade e valores. Aslembranas, sendo ao mesmo tempo passado e presente, irrompem na

    17 HALBWACHS, M.La memoire collective . Paris: Press Universitaires de France, 1950, p. 166.18 NAVA, Pedro.Cho de erro. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1976, p. 69.19 BOSI, E. Op. cit. p. 17.

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    conscincia e trazem imagens undadas num caldo de narrativas indi-viduais e de grupo. A memria, como evidente, no retm tudo dopassado, quando muito, limita-se a selecionar elementos capazes de seinserir no uxo da histria individual ou coletiva e a organizar, por ou-tro lado, um todo signi cativo capaz de emprestar um sentido s expe-rincias dos sujeitos e dos grupos. Nesse sentido, as imagens adquiremum grande papel como auxiliar na construo das recordaes e istoporque o espao recebeu as marcas dos grupos.

    Maurice Halbwachs diz-nos tambm sobre a importncia do es-pao como auxiliar no trabalho da memria. As lembranas de um gru-po religioso so em parte proporcionadas pela rememorao constantede alguns lugares. Assim o autor en atizava: Que toda a histria evan-

    glica est constituda sobre o solo20

    ; Que as lembranas de um gruporeligioso lhes sejam lembradas pela vida de alguns lugares, ocupaes edisposies dos objetos, no h como se espantar. 21

    O pensamento coletivo religioso constantemente renovado ere eito de maneira a poder persistir como um sistema coerente de ima-gens coletivas; isto s possvel na medida em que, para raseando Bas-tide, se pode imobilizar na estabilidade das coisas materiais22.

    A busca da materialidade assim realizada como orma deapoiar o pensamento, criando a ideia de estabilidade e equilbrio.Segundo Halbwachs,

    A sociedade religiosa [ainda segundo o conceito de] tenta persuadir as pessoas deque ela no muda enquanto tudo se trans orma sua volta. Ela reune condiespara encontrar o lugar, ou para reconstituir em volta dela uma imagem, aomenos simblica, dos lugares nos quais ela est de incio constituda 23.

    O pensamento coletivo religioso tem maior chance de ser

    preservado na medida em que renovado constantemente, atravsda teatralizao, revivendo sempre os atos principais que orientamo pensamento. isso que explica a reproduo dos espaos sagradosem outros lugares, que no tem nenhuma relao com o lugar de ori-gem. Ao reconstituir-se a via dolorosa e suas estaes bem longe de

    20 HALBWACHS, M.Op. cit ., p. 165.21 Idem, p. 160.22 BAS IDE, R. Memire collective et sociologie du bricolage. In:Lanne sociologique.

    Paris: PUF, 1970, p. 81.23 HALBWACHS, M.Op. cit , p. 165.

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    Jesusalm, tornou-se possvel aos peregrinos reviverem inteiramenteas cenas sucessivas da paixo 24.

    A construo de um templo passa, nesse caso, a reter signi cadosque azem parte do eixo principal de um certo pensamento religioso. alespao auxilia sempre o trabalho da memria e, a um s tempo, revela, deacordo com o exemplo citado, os mistrios da gnese da vida, do homeme do mundo. Em suma, o lugar como algo revivi cado pela memria. Atravs do ritual de renovao possvel abolir a histria e possvel,en m, a renovao do tempo. Como analisa Mircea Eliade: [] A cons-truo de um santurio ou de um altar de sacri cio repete a cosmogonia,e isto no s porque o santurio representa o mundo, mas tambm por-que encarna os vrios ciclos temporais 25. Eis, portanto, a tese que susten-

    tamos: ao darem primazia edi cao de templos e ereo de con rariaspara administrarem os smbolos sagrados, os colonos procuravam xarre erncias destinadas a consolidar as marcas do passado e a re orar a proteo espiritual, ao mesmo tempo que reconstruam as suas memrias.

    O espao sagrado: a construo da memria

    Os espaos sagrados, como se pode ver, so parte desse processo.endo em conta a orma como os homens apreendem o espao, eles atri-

    buem-lhe signi cados distintos; alguns lugares, por serem privilegiados,adquirem um estatuto especial no recorte espacial e, justamente por isso,lhe so con eridos valores econmicos, a etivos e religiosos, nem sempreexcludentes. Por essa razo, interessa-nos aqui pensar o signi cado doespao sagrado para o homem religioso, o signi cado dos santurios, dasigrejas que abrigam santos de devoo, o signi cado dos centros das ro-marias, espaos que so preservados, antes de tudo, pela vontade dos is.

    Os primeiros santurios cristos da Antiguidade resultaram da necessidade de cultuar a memria de homens e mulheres vistos comosantos em uno da sua proximidade a Cristo26; ou ainda como re-sultado do culto dos mrtires cristos com as suas relquias e sepulturas,

    24 Idem.25 ELIADE, M. O Mito do eterno retorno. Lisboa: Edies 70, 1985, p. 92.26 VAUCHEZ, A. SAN IDADE. IN:Enciclpedia einaudi.Lisboa: Casa da Moeda/imprensa

    Nacional, 1987. vol. 12, In: MENEZES, Renata de Castro. A dinmica do sagrado: rituais,sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2004, p. 31.

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    que oram trans ormadas em objetos de devoo27. Pierre Sanchis men-ciona a trans ormao dos antigos santurios pagos em locais de cultocatlico montes, rochas , graas a um trabalho de sincretismo28. Na Idade Mdia, vrios santurios apareceram associados ao culto das rel-quias dos santos catlicos. O de Santiago de Compostela, na Espanha, um bom exemplo. O culto aos restos mortais dos santos arrastava para esses locais verdadeiras multides, produzindo desta orma uma ebre de abricao de relquias. Mas, como observa Alphonse Dupront,autnticos ou super ciais, [esses santurios] encontram-se carregadosde sacralidade e o seu comrcio deve ter sido, pelo menos durante ummilnio, expresso da ome sacra do Ocidente cristo29.

    Na Idade Moderna a criao de santurios esteve, em geral, asso-

    ciada ao aparecimento de santos, cuja expresso maior so os santurios deNossa Senhora de Ftima, em Portugal, e de Lourdes, em Frana, ou a ima-gens consideradas milagrosas (como a de N. Sr. Aparecida, no Brasil); ouainda, aos santurios criados pela de devotos que edi caram templos coma nalidade de abrigar a imagem de um seu santo particular. Esse o casodo santurio Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, originado no scu-lo XVIII, que ainda hoje atrai multides quela localidade de Minas Gerais.Merc da devoo dos is, um local ainda preservado, ao contrrio da cidade que abriga o santurio, que por e eito da explorao do minrio deerro e por descuido dos responsveis pelos servios de preservao, teve o

    seu patrimnio degradado. certo que o santurio se salvou, mas somentepor ter mantido sua antiga uno, de guardio do sagrado. Assim, a relao que os devotos estabelecem com os espaos sa-

    grados revela ormas de preservao de uma memria que se d emuno da relao de respeito ao lugar que abriga uma santidade. Solugares que suspendem o espao e o tempo pro anos, guardam uma ora poderosa que pode ajudar os is a tornarem-se mais ortes rentes adversidades30. em razo Durkheim ao acreditar que a vida social spode ser entendida dentro deste vasto simbolismo.31 Ao reconstruir os

    27 MENEZES,R. de C. op.cit, p 31; BROWN, P.Te culto the saints. Chicago: TeChicago University, 1982.

    28 SANCHIS, P. Sincretismo e pastoral de massas. In: LESBAUPIN, I. (Org.).Igreja,comunidade e massa . So Paulo: Paulinas, 1996, pp. 151-198.

    29 DUPRON , Alphonse. A Religio: Antropologia Religiosa. Fazer Histria: novascontribuies, Lisboa: Bertrand Editora, 1989, vol. 2, p. 138.

    30 ELIADE, M.O Sagrado e o pro ano. A essncia das religies . So Paulo: Martins Fontes, 1992.31 DURKHEIM, mile. As ormas elementares da vida religiosa . So Paulo: Edies

    Paulinas, 1989. Este autor, ao trabalhar o totem como emblema, abriu um grandecampo de pesquisa para as anlises simblicas.

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    lugares sagrados ou os smbolos sagrados, os colonos edi cavam supor-tes para a sua vida, de modo a az-los sentir-se mais ortes.

    Cabe aqui sublinhar a ora que adquiriu o enmeno eremticoe a glori cao dos ascetas e daqueles que se isolaram nas montanhas enos lugares ermos da Pennsula Ibrica. al ato conheceu uma ampla divulgao na literatura religiosa, cuja n ase maior oi dada espiri-tualidade mstica e vida isolada nos desertos32. Por essa razo no di cil entender as solues orjadas por alguns colonos que, rente a vrias di culdades, viram na reconstruo do espao sagrado e isoladodas montanhas o lugar ideal de puri cao33. Foi este o passo dado peloportugus Loureno de Nossa Senhora que, por volta de 1770, aban-donou o arraial do ijuco e escolheu uma serra de di cil acesso para

    construir um eremitrio, o chamado Hospcio de Nossa Senhora Medos Homens, a m de ali se encontrar com Deus34.O colono portugus Antnio da Silva Bracarena, movido por

    semelhante iderio religioso, resolveu dedicar uma ermida Virgem na ngreme Serra da Piedade35. Como se pode ver, esses homens repro-duziam na colnia antigos ideais que identi cavam as montanhas e osermos como lugares sagrados.

    Feliciano Mendes no sculo XVIII resolveu edi car uma capela do Senhor Bom Jesus de Matosinhos nas proximidades do povoado doRedondo, depois de se ter curado de uma doena grave. Para construir a ermida ao santo, seguiu um preceito de ento: vest[iu] um hbito azul,de azenda grosseira, cing[iu] um cordo cintura, tom[ou] o bordode peregrino, pendur[ou] ao pescoo uma caixinha com a imagem doSenhor Bom Jesus, e sai[u] a esmolar []36.

    Os novos locais identi cados como sagrados tornam-se centrosde peregrinao por acreditarem os colonos que os santurios so locaisprivilegiados de encontro com Deus. As romarias no sculo XVIII oramresultado do investimento principalmente destes ermites que edi caram

    32 Ver a este respeito DIAS, Silva.Correntes de sentimento religioso em Portugal . Sculos XVIa XVIII. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, p. 65.

    33 Jacques Brosse aponta o ato de as montanhas desempenharem um papel de destaqueenquanto lugar sagrado para vrios povos. Ver deste autor: De la montagne sainte autemple. In: ROUVRE, E. (coord.).Grands sanctuaires . Paris: Hachette, 1960, p. 12.

    34 CARRA O, Jos Ferreira. Aventura e mstica portuguesa nas Minas do Ouro do Brasil.Revista de Guimares, n. 81, Guimares. Portugal: Sociedade Martins Sarmento, Jul./Dez. 1971, pp. 265-283.

    35 Idem, p. 183.36 CARRA O, Jos Ferreira. As Minas Gerais e os primrdios do Caraa.So Paulo:

    Companhia Editora Nacional, 1963, p. 208.

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    os santurios37. Estes novos centros de peregrinao passaram a atrairpessoas de vrias localidades da colnia. Atualizavam assim prticas queaconteciam na Metrpole, onde as romarias compunham a vida dos anti-gos arraiais. Situados nos topos das serras e montanhas, os novos lugaressagrados tornavam-se agora pontos cardiais numa nova geogra a sagrada.De nidos os locais sagrados, e recebida a proviso para a construo dasigrejas e capelas, edi cados os templos, estes passavam a constituir uma nova re erncia para suas memrias. Na ora de lugares tornados sagra-dos, os colonos encontravam um apoio mental no novo territrio queescolheram para viver. E assim re zeram suas histrias pessoais e coletivas.

    Concluso

    Os portugueses logo que chegaram elegeram seus espaos sagrados,colocaram cruzes e edi caram igrejas. Construram irmandades e con ra-rias. Entre espaos pblicos e privados escolheram sempre um lugar centralpara locus de suas devoes. rouxeram suas lembranas e as amparam na solidez da matria. Novos santurios apareceram, novos centros de devo-o por onde cruzavam os is, sedentos de auxlio e proteo. Procura-ram reproduzir na colnia os espaos sagrados; lugares que lhes ajudavam a con erir uma re erncia simblica, em busca de apoio no plano espiritual. Assim, no estavam sozinhos mas auxiliados pelo sobrenatural. O cartera etivo e o carter sagrado respondiam pela necessidade da preservao da memria. Os testemunhos do passado que guardavam em suas lembranasserviram de base para orientar a apropriao do lugar e para o re azeremem uno de seus valores, de suas orientaes religiosas e culturais. poressa razo que o espao religioso tem sempre mais chance de sobreviver,pois ampara-se na dos crentes, no a eto e na vontade de preservao, dosquais dependia tambm a sua identidade. Por esse motivo, os monumentosreligiosos, os templos, os santurios perduram contra os abalos do tempo.Esto amparados, antes de tudo, pelo olhar do el que, se no pode sozinho

    preserv-lo, az tudo o que est a seu alcance para a sua conservao.Frente ao espao indi erenciado, os colonos elegeram os novos lu-gares sagrados e organizaram o seu novo espao e assim as suas lembran-as; espao que sediou suas memrias, reconstrudas no novolocus que es-colheram para viver. A apropriao do lugar ez-se a partir dos seus ideaise de seu imaginrio. As solues encontradas zeram-se assim de acordocom as suas crenas, dando suporte s suas representaes mentais.

    37 AZZI, Riolando. As Romarias no Brasil. Revista de Cultura. n. 4, vol.73, p. 43.