Memorial do convento_[1]

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MEMORIAL DO CONVENTO José Saramago Tudo é autobiografia «Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto do chão.» Ontem como hoje, «pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor». In Diário de Notícias, 1998-10-09 1

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago

Tudo é autobiografia

«Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada umde nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos,nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos eolhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto dochão.» Ontem como hoje, «pergunto-me se o que move o leitorà leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidadede vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a históriacontada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor».

In Diário de Notícias, 1998-10-09

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José Saramago

«Como escritor, sou um produto do 25 de Novembro. Com o 25 deNovembro, fiquei sem trabalho e com pouca esperança de conseguir umsítio onde o encontrar. Eu estava muito marcado. Decidi, aos 53 anos, queseria "agora ou nunca". Se as circunstâncias me retiraram a possibilidadede trabalhar, iria escrever. Não foi fácil. Durante uns anos vivi de traduções.Eu já não estava no circuito, ninguém pensou mais em mim e ainda bem.Fechei-me em casa a traduzir para ganhar a vida e para escrever. Publico,em 1977, o Manual de Pintura e Caligrafia; em 1978, o Objecto Quase.Ainda nesse ano vou para o Alentejo e daí saiu o Levantado do Chão. OMemorial do Convento, em 1982, e acho que também O Ano da Morte deRicardo Reis confirmaram que estava ali um escritor. A partir daí não tinhanada que provar a não ser a mim mesmo, até onde poderia chegar. Chegueiàs Intermitências da Morte, aos 83 anos, e espero que haja mais.»

In Diário de Notícias, 2005-11-09

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José Saramago

"Memorial do Convento", de 1982, é o romanceque o vai tornar célebre. É um texto multifacetadoe plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo,uma perspectiva histórica, social e individual. Ainteligência e a riqueza de imaginação aquiexpressas caracterizam, de uma maneira geral, aobra saramaguiana.

A ópera "Blimunda", do compositor italiano Corghi, baseia-se neste romance.

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As epígrafes do romance

Padre Manuel Velho

Concepção determinista da História – existem forças e leis sociais que

ultrapassam a vontade individual de cada homem.

Marguerite Yourcenar

Concepção contingente da História – aceita a existência de uma

realidade social não passível de ser epistemologicamente conhecida

com rigor e exactidão.

[Poderia existir uma terceira extraída do poema de Bretch “Perguntas de

um Operário Letrado” que começa pelos versos: “Quem construiu Tebas, a

das sete portas / Nos livros vem o nome dor reis. / Mas foram os reis que

transportaram as pedras?”]

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Entrevista

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Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar convento em Mafra…

José Saramago

«Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanosna vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste diaem que estamos…»

Cap. I, p. 14

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Era uma vez a gente que construiu esse convento…

«Em que posso então eu trabalhar, irmão, isto perguntou Baltasar a Álvaro Diogo,seu cunhado […] Há aqui mais quem esteja dormindo […] só tem doze anos […]este é o filho que ficou, chega à noite morto de dar serventia, andaime acima,andaime abaixo, acaba de cear e adormece logo, Querendo, há trabalho para todaa gente, disse Álvaro Diogo, podes ir de servente ou fazer carretos com os carros demão, o teu gancho é quanto basta para amparares o varal»

Cap. XVII, pp. 212

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Era uma vez um soldado maneta e umamulher que tinha poderes…

«Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadasvestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foimandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhecortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala emfrente de Jerez de los Caballeros»

Cap. IV, p. 35

«Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me,Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca teolharia por dentro. […] Eu posso olhar por dentro das pessoas.[…] mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo aseguir, quem me dera que o não tivesse»

Cap. VIII, pp. 79/80

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Era uma vez um padre que queria voar emorreu doido…

Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quemchamam o Voador»

Cap. VI, p. 61

«Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meuinvento coisa de vento que se há-de acabar cedo, se não fosse a protecção de el-rei não sei oque seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina»

Cap. VI, p. 64

«És um homem natural, nem cascos de mula nem asas de passarola, É assim que se chama asua máquina, perguntou Baltasar, e o padre respondeu, Assim lhe têm chamado pordesprezo.»

Cap. VI, pp. 65/66

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Tipologia da narrativa

O romance histórico é um tipo de narrativa ficcional em que, de maneiraevidente, se manifestam as chamadas modalidades mistas de existência(…) o que significa que personalidades, eventos e espaços que conhecemosou podemos conhecer como históricas (…) coexistem com personagens,eventos e espaços ficcionais.

Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, in Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina

Memorial do Convento integra-se nesta tipologia de romance que concilia História e ficção?

Análise dos elementos da História e ficcionais (personalidades, eventos,

espaços)

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O que diz o narrador? E o

autor?

Consultar

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Tipologia da narrativa

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Personagens reais Personagens fictícias

D. João V Sebastiana Maria de Jesus, feiticeira e mãe de Blimunda

D. Maria Ana Josefa Blimunda, com poderes visionários

D. Francisco e D. Miguel (irmãos do rei) Baltasar, soldado, maneta, operário

Maria Bárbara, Pedro e José (os infantes) João Francisco e Marta Maria, pais de Baltasar

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão Inês Antónia, irmã de Baltasar

Domenico Scarlatti Álvaro Diogo, cunhado de Baltasar

Arquitecto alemão Ludwig João Elvas, amigo de Baltasar e antigo soldado

Outras figuras da época (Madre Paula de Odivelas, Bispo inquisidor D. Nuno da Cunha, Frei Boaventura de S. Gião, censor do Paço)

Trabalhadores do convento: Manuel Milho, Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim Rocha, João Anes, Julião Mau-Tempo

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Tipologia da narrativa

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Factos históricosCasamento real - 1709 Epidemias de cólera e febre-amarela, em Lisboa - 1723

A construção da passarola pelo padre Bartolomeude Gusmão e voo da máquina voadora, na Casa daÍndia (1709)

A presença em Portugal do músico Domenico Scarlatti, como professor de D. Maria Bárbara

Três anos após o casamento de D. João V comMaria Ana de Áustria, auto-de-fé (1711)

Abalo sísmico - 1723

O voto do rei Cortejos nupciais - 1729

Construção do convento de Mafra – 1717 a 1730 Cerimónia de sagração da Basílica de Mafra (22 deOutubro de 1730) e todo o esforço que a antecedeu(recrutamento de homens em todo o país,movimentação das pedras desde Pêro Pinheiro, mortede operários)

A Inquisição

Touradas

Procissões religiosas – ex: Corpo de Deus, 8 deJunho de 1719

Auto-de-fé em que morre António José da Silva, o Judeu - 1739

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Tipologia da narrativa

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Situações ficcionais

A amizade entre Bartolomeu de Gusmão, Baltasar eBlimunda e seu envolvimento na construção dapassarola;

A cumplicidade de Scarlatti nesta construção.

A recolha de vontades A participação da música de Scarlatti na cura deBlimunda

O voo tripulado da passarola A peregrinação de Blimunda durante nove anos

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Tipologia da narrativa

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Espaços reais Espaços fictícios

Lisboa e arredores: Palácio Real, Ribeira, Terreiro do Paço, Rossio, Palácio dos Estais, Rua Nova, Quinta do Duque de Aveiro em S. Sebastião da Pedreira, Odivelas, Azeitão Arrábida

Abegoaria

Casa de Blimunda

Mafra e arredores: Alto da Vela, Pêro Pinheiro, Serra do Barregudo, Serra de Montejunto

Casa dos pais de Baltasar

Alentejo: Aldegalega, Palácio de Vendas Novas, Montemor, Évora, Vila Viçosa, Fronteira do Caia, Elvas

Outros espaços

ligação

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“… passando tempo, sempre se encontrará alguém para imaginar que estascoisas poderiam ter sido ditas, ou fingi-las, e, fingindo, passam então as históriasa ser mais verdadeiras que os casos verdadeiros que elas contam… “ (p. 139)

A voz do narrador…

“Não há nada fora da história, a ficção acaba por reflectir sempre a história, ahistória está nela mesmo que seja na última franja do que se narra.”

…e a voz do autor

“A minha arte consiste em tentar mostrar que não existe diferença entre oimaginário e o vivido. O vivido pode ser imaginário, e vice-versa.”

“Se não ligasse o meu trabalho à História não faria qualquer trabalho (…) oque eu quero escrever liga-se aos factos e aos homens passados, mas não emtermos de arqueologia. O que eu quero é desenterrar os homens vivos.”

Tipologia da narrativa

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Tipologia da narrativa

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O romance histórico teve o seu apogeu no romantismo,passando para segundo plano nas últimas décadas do séculoXIX com o romance realista, centrado na pintura da sociedadeda época ; a partir dos anos oitenta do século XX, assiste-se aum renascer do romance histórico, introduzindo temáticas deordem acentuadamente social.

Memorial do Convento enquadra-se nesta tipologia : romancehistórico, mas também social e de intervenção, pois para alémda crónica de costumes, apresenta-nos a história repressivaportuguesa.

Tipologia da narrativa

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Categorias do texto narrativo

1. A estrutura (Cf. Apresentação do romance 4-7)

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Categorias do texto narrativo2. O tempo – contrastes de uma época

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Relação de D. João V e de D. Maria Ana Josefa

Relação de Baltasar Sete-Sóis e de Blimunda Sete-Luas

• Relação contratual: cumprimento do dever conjugal – “duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal” (p. 11). • Ausência de amor

• Ausência de contrato matrimonial.

• Relação de amor; partilha de sonhos e dedesejos – “Para dentro da barraca o levouBlimunda, não era a primeira vez que alientravam a horas nocturnas, ora porvontade de um, ora por vontade do outro,faziam-no quando a necessidade da carnese anunciava mais expansiva…” (p. 333).

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Categorias do texto narrativo2. O tempo – contrastes de uma época

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Vida luxuosa da nobreza e do clero Vida miserável do povo

A alimentação – “há quem morra por muito

ter comido durante a vida toda” (p. 27);

“El-rei, com os infantes seus manos e suas manasinfantas, jantará na Inquisição depois determinado o acto de fé, e estando já aliviado doseu incómodo honrará a mesa do inquisidor-mor, soberbíssima de tigelas de caldo de galinha,de perdigões, de peitos de vitela, de pastelões,de pastéis de carneiro com açúcar e canela, decozido à castelhana com tudo quanto lhecompete, e açafroado, de manjar-branco, eenfim doces fritos e frutas do tempo.” (p. 51).

A alimentação – “Mas não falta […] quem

morra por ter comido pouco durante toda a vida,ou que dela resistiu a um triste passadio desardinha e arroz.” (p. 27);

“Comeu duas sardinhas fritas sobre um pedaçode pão, usando a ponta e o fio da navalha com aarte de quem abre miniaturas em marfim,quando terminou limpou a lâmina às ervas, amão ao calção, e dirigiu-se à máquina.”(p. 336)

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Categorias do texto narrativo2. O tempo – contrastes de uma época

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Vida luxuosa da nobreza e do clero Vida miserável do povo

Os espaços habitacionais

“Já se deitaram. Esta é a cama que veio daHolanda quando a rainha veio da Áustria[…]. A um desprevenido olhar nem se sabese é de madeira o magnífico móvel, cobertocomo está pela armação preciosa, tecida ebordada de florões e relevos de ouro, istonão falando do dossel que poderia servirpara cobrir o papa.” (p. 16).

Os espaços habitacionais

“O padre Bartolomeu Lourenço esperouque Blimunda acabasse de comer da panelaas sopas que sobejavam, deitou-lhe abênção, com ela cobrindo a pessoa, acomida e a colher, o regaço, o lume nalareira, a esteira no chão…” (p. 56).

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Categorias do texto narrativo2. O Tempo da história – 28 anos

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• Início da narrativa – 1711 – deduzida a partir das seguintes afirmações:“um homem que ainda não fez vinte e dois anos” (D. João V, nascido em 1689); “S. Francisco andava pelo mundo precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze”.

• “oito de Junho de mil setecentos e dezanove”: procissão de Corpo de Deus.

• 1717: A data da bênção da primeira pedra do convento de Mafra conhece-se pela expressão“se não foi dito já, sempre são seis anos de casos decorridos” . A indicação 17 de Novembro de1717 surge como dado cronológico.

• 22 de Outubro de 1730, dia do 41º aniversário de D. João V: “Então D. João V disse A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois de Outubro de

mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte”. (pp. 291, 352)

• 1739: “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar”: Auto-de-fé (condenação e mortede Baltasar);

• 1728 “dezasseis anos passaram desde que a (Blimunda) vimos pela primeira vez” (no auto-de-fé em que sua mãe fora condenada). Pode ainda deduzir-se pelas referências aos príncipesD. José, 14 anos, e Maria Bárbara, de 17 anos… A ordem para que se acabe o convento noespaço de 2 anos….

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Categorias do texto narrativo2. O Tempo da história – 28 anos

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Baltasar Sete-Sóis

Passagem do tempo sobre as personagens Blimunda Sete-Luas

26 anos Conhecem-se (auto-de-fé em que a mãe de Blimunda é condenada) 19 anos

40 anos Diz aos companheiros de trabalho que esteve perto do sol 33 anos

45 anos Baltasar desaparece no dia 21 de Outubro de 1730 38 anos

54 anos Blimunda procura Baltasar durante nove anos. Encontra-o na hora da

sua morte. 47 anos

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Categorias do texto narrativo2. O Tempo da história – 28 anos

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A situação do narrador fora do tempo cronológico explicaas sucessivas analepses e prolepses e a elipse queencontramos no texto. Assim, o tempo da história dura 28anos e o tempo do discurso abre brechas nesse períodocronológico para o integrar num tempo uno, em quepassado, presente e futuro se misturam.

Anacronias do Tempo do Discurso

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Categorias do texto narrativo2.1 Anacronias do tempo do discurso

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Analepse- Referência a 1624: “Tanto mais que o Convento de Mafra o anda a querer a ordem de S. Francisco desde mil seiscentos e vinte e quatro, ainda estava rei de Portugal um Filipe espanhol”.

- Referência a 1709: “dois anos depois de se queimarem pessoas em Lisboa”.

-O narrador relembra a primeira vez que Baltasar e Blimunda entraram na quinta do duque de Aveiro: -“nada havia que pudesse lembrar a brava selva de há dez anos, quando pela primeira vez Baltasar e Blimunda aqui entraram”.

Prolepse- Prenúncio da morte da filha do Visconde de Mafra para daí a dez anos: “não vai haver muita música na vida desta criança (…) daqui a dez anos morrerá e será sepultada na igreja de santo André”.

- Antecipação da morte de Álvaro Diogo: “em breve cairá duma parede onde não tinha de subir (…) quase de trinta metros de altura será a queda e dela morrerá”.

- Antecipação do número de bastardos de D. João V: “por isso se diverte tanto com as freiras (…) que quando acabar a sua história se hão-de contar por dezenas os filhos assim arranjados”.

- Antecipação da revolução de 25 de Abril de 1974: “ai o destino das flores, um dia as meterão nos canos das espingardas”.

Elipse- Baltasar desaparece no dia anterior à Sagração do Convento (21 de Outubro de 1730) e Blimunda percorre o país, numa busca constante do seu companheiro, durante nove anos. Acerca do que se passou durante este período temporal nada sabemos a não ser que “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. (…) Milhares de léguas andou”.

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Categorias do texto narrativo3. O espaço

3.1 espaço físico

ESPAÇOS PRIVILEGIADOS: Lisboa: Terreiro do Paço, Ribeira, Rossio (Casa da Índia e Palácio do Corte Real), S. Sebastião da Pedreira (a abegoaria), na quinta do Duque de Aveiro Mafra: Alto da Vela, Ilha da Madeira, Monte Junto, Pêro Pinheiro, Torres Vedras.

Outros espaços:Jerez de los Caballeros, Montemor, Évora, Elvas, Coimbra, Holanda, Áustria.

Lisboa - cidade que contém em si ricos e pobresAlentejo - permite conhecer a miséria do povoMafra - deu trabalho a muita gente, mas, socialmente, destruiu famílias e crioumarginalização.

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José Saramago

Categorias do texto narrativo3. O espaço

3.2 O espaço social (ambientes / atmosferas sociais)

A vida social no século XVIII – feitiçaria, escravatura, Inquisição, epidemias,rituais da corte e da igreja, alquimia, festividades – grandes quadros dasociedade cortesã e popular.

LISBOA• Procissão da Quaresma• Autos-de-fé• A tourada• Procissão do Corpo de Deus,

8/06/1719

MAFRA• Recrutamento dos trabalhadores para a construção do convento• Início da construção• Condições de vida e alojamento• Condições laborais• Momentos de lazer• A sagração da basílica

A visão oficial da História exalta os poderosos, Saramago eleva o povo e os seusmártires ao estatuto de verdadeiros fazedores da História.

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3. O espaçoCategorias do texto narrativo

3.3 espaço psicológico

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Vivências, experiências, filtradas pelas emoções, reflexões, meditações.

• Blimunda procura Baltasar: errância caracterizada por profunda angústia e amor

• Meditações do rei, espécie de monólogos interiores • Sonhos da rainha com D. Francisco

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José Saramago

4. As personagens (principais)

Categorias do texto narrativo

1. O grupo do poder

• D. Maria Ana Josefa

• D. João V

2. O grupo do contra-poder

• Padre Bartolomeu Lourenço de

Gusmão

• Domenico Scarlatti

• Baltasar Sete-Sóis

• Blimunda Sete-Luas

O povo: todos os anónimos que

construíram a História são representados

através daqueles a

quem o autor dá nome: Alcino, Brás,

Nicanor, etc.

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago

Categorias do texto narrativo

5. O narrador (as suas vozes/funções discursivas)

• sentencia, segue ou inventa provérbios

• dialoga com o narrador

• manipula as personagens

• apaga-se face às personagens

• ironiza / assume-se /compromete-se

• domina e autolimita-se face ao conhecimento da história

• profetiza

• descreve paisagens, situações, factos acontecidos (e a

acontecer)

Este narrador ultrapassa o habitual estatuto de narrador

omnisciente, próprio do romance histórico, ele conduz a narrativa a

seu bel-prazer, interessado , acima de tudo, em denunciar.

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago

Categorias do texto narrativo

5. O narrador – (as suas vozes/funções discursivas)

5.1 Intertextualidade com outras obras e outros autores, ultrapassando as barreirasdo tempo (referências ao Padre Ant.º Vieira e sua oratória, Pessoa e Mensagem,Camões e Os Lusíadas .

5.2 Mudança de focalização do narrador para a de uma personagem• para Sebastiana Maria de Jesus, no auto-de-fé;• para o patriarca e para o rei, na procissão do Corpo de Deus;• para Ludwig aquando do desejo do rei de construir uma igreja na corte, como a de S. Pedro de Roma.

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago

Categorias do texto narrativo

5.3 Mudança repentina do convencional discurso de terceira pessoa para o deprimeira pessoa, indiciando uma proximidade do narrador, por vezes afectiva, comas personagens e acontecimentos, embora não seja personagem da diegese. (pp. 35,

273)

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5.4 Permanente ansiedade do narrador pela contemporaneidade que conduz a uma constante reflexão sobre a vida humana.

5.5 O conhecimento de histórias da tradição e do imaginário popular – o vulto do homem na lua. (p. 253)

5.6 Os juízos pessoais, amargamente irónicos, mas também simpáticos. (pp. 88, 222)

5. O narrador – (as suas vozes/funções discursivas)

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago32

5.7 Apartes que revelam cumplicidade com o leitor. (pp. 266, 289)

5.8 A partilha de referentes comuns ao narrador e ao leitor do século XX, profundamente irónica:• o nome de Saramago (p.97)

• a moda do bronzeado (p. 153)

• flores de Abril (156)

• o cinema como forma de lazer (p. 221)

• o parto sem dor (p. 234)

5.9 A actualização de conceitos, uma vez que o narrador tem consciência de que o leitor não domina o universo do século XVIII. (p. 81)

5.10 A conversão de pesos e medidas aquando da apresentação da pedra da varanda do convento. (p. 247)

5. O narrador – (as suas vozes/funções discursivas)

Categorias do texto narrativo

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José Saramago33

A dimensão simbólica do romance

Ao longo do romance há vários elementos simbólicos que se conjugam com o universo verídico e histórico.

1. A máquina voadora - constitui um símbolo da liberdade, mas igualmente de luz, de guia.

2. Sete-Sóis – “baptismo” de Baltasar porque só pode ver à luz.

3. Sete-Luas – “baptismo de Blimunda, porque só vê no escuro, evidenciando os dotes da clarividência.

4. Algarismo sete – totalidade completa e perfeita – é referenciado várias vezes ao longo da obra.

5. Algarismo nove – “o nove parece ser a medida das gestações, das buscasfrutíferas e simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação.”

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José Saramago34

A dimensão simbólica do romance

6. O convento – “o esforço mortífero”.

7. A figura feminina – no mundo dos pobres ela possui as virtudes de uma heroínaanónima, embora sem ser reconhecida.

8. O sonho – muitas personagens têm o seu espaço onírico, mas o sonho de voardomina o romance.

9. A vontade - simboliza o querer humano sem o qual nada é possível concretizar.

10. A trindade – Bartolomeu, Baltasar e Blimunda é uma tríade indissociável,harmoniosa e perfeita.

Para além deste elementos simbólicos, também as personagens assumem um valor simbólico, mesmo as que pertencem à realidade histórica, o que atesta, sem dúvida, que o Memorial do Convento é muito mais do que um simples romance histórico, permanecendo, ao longo de todo a obra uma conjugação entre o real e o simbólico.

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago35

A dimensão simbólica do romance

O paralelismo simbólico dos episódios iniciais e finais

Auto-de-fé de Sebastiana

Maria de Jesus, mãe de

Blimunda

Primeiro encontro entre

Blimunda e Baltasar

- "Que nome é o seu, e o homem

disse, naturalmente, assim

reconhecendo o direito de esta

mulher lhe fazer perguntas".

Espaço – Rossio- "O Rossio está cheio de

povo“

As últimas

páginas…

Blimunda "repetia um

itinerário de há vinte e

oito anos".

-O rio como imagem da

precariedade da vida.

- Blimunda está em

Lisboa pela sétima vez:

encerramento de um

ciclo de vida.

Auto-de-fé de Baltasar

Sete-Sóis

Último encontro de

Blimunda e Baltasar- "Naquele extremo arde um

homem a quem falta a mão

Esquerda".

Espaço - Rossio- "Meteu-se pela Rua Nova dos

Ferros, virou para a direita na

igreja de Nossa

Senhora de Oliveira, em Direcção

ao Rossio“

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago36

Ambiente soturno:

-"sobre o Rossio caem as

grandes sombras do convento

do Carmo;

- "e as pessoas voltarão às

suas casas, refeitas na fé,

levando agarrada à sola dos

sapatos alguma fuligem,

pegajosa poeiras de carnes

negras, sangue acaso ainda

viscoso se nas brasas não se

evaporou.“

Ambiente soturno:

-"caminhava no meio de

fantasmas, de neblinas que

eram gente";

- "Entre os mil cheiros fétidos

da cidade, a aragem nocturna

trouxe-lhe o da carne

queimada".

A dimensão simbólica do romance

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MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago37

A multidão reúne-se- "O Rossio está cheio de

povo".

As condenações da

Inquisição:- condenação da mãe de

Blimunda (ao degredo).

Ritual de morte

Blimunda comunica

enigmaticamente com a

Mãe- "não fales, Blimunda, olha só

com esses olhos que tudo são

capazes de ver;

- "adeus Blimunda que não te

verei mais".

Blimunda que, no primeiro

encontro com Baltasar,

prometera que nunca o veria

por dentro, usa os seus dons

nos momentos finais da vida

de Baltasar e vê uma nuvem

fechada que está no centro do

seu corpo - RECOLHE A SUA

VONTADE.

A multidão reúne-se-"havia multidão em S.

Domingos“

As condenações da

Inquisição:- condenação de António José

da Silva, "autor de comédias de

bonifrates";

-condenação de Baltasar Sete-

Sóis.

Blimunda comunica

enigmaticamente com

Baltasar - "Então Blimunda disse, Vem.

Desprendeu-se a vontade de

Baltasar Sete-Sóis".

A dimensão simbólica do romance

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Lisboa é o último (grande) espaço a ganhar

importância e a fechar o círculo iniciado no capítulo V,

verdadeiro incipit do romance (funcionando os

primeiros capítulos como amostras das peças de

encaixe do romance como construção). É num dia de

auto-de-fé que Blimunda (re)encontra Baltasar, agora

no lugar de condenado, a arder na fogueira, e acolhe a

sua vontade comungada com ela. Esta vontade

acolhida em si transforma o momento em espaço de

encontro e de partilha.

A dimensão simbólica do romance

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A visão crítica

1. Desde o início que Memorial do Convento se apresenta como uma crítica cheia deironia e sarcasmo à opulência do rei e de alguns nobres por oposição à extremapobreza do povo. “Esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejopara um lado e de escasso para o outro”; A tropa andava descalça e rota, roubava oslavradores.

2. O adultério e a corrupção dos costumes são factores de sátira ao longo da obra.Critica a mulher porque, entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem; criticauns tantos maridos cucos e não perdoa aos frades que içam as mulheres paradentro das celas e com elas se gozam; não escapam os nobres e o próprio rei, atéporque este considera que as freiras o recebem nas suas camas, nomeadamente amadre Paula de Odivelas.

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A visão crítica

3. Há uma constante denúncia da Inquisição e dos seus métodos e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimaram os condenados.

4. A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do reiem obrigar todo o homem válido a trabalhar no convento;

5. Não deixa de fora os príncipes, como D. Francisco, que se entretém aespingardear os marinheiros ou quer seduzir a rainhas, sua cunhada, e tomar otrono.

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A linguagem e estilo

A escrita de Saramago caracteriza-se pela qualidade e pelo inédito, nomeadamente no que diz respeito às alterações das normas relativas à expressão gráfica e pontuação.

Entre as características principais, podemos salientar:

1. no discurso directo, verifica-se a abolição do uso do travessão e dos dois pontos, asubstituição do ponto de interrogação e de outros sinais de pontuação pela vírgula, osimples uso da maiúscula inicial das palavras marca a mudança de interlocutor;

2. a vírgula apresenta-se como o mais recorrente e importante sinal de pontuação :separa as várias falas das personagens (dando-lhes um certo ritmo e marcamomentos de enumeração);

3. a coexistência de várias modalidades discursivas sem marcação gráfica (narração,descrição, discurso directo, discurso indirecto, discurso indirecto livre, monólogointerior e apartes) , tornando as frases longas e próximas da oralidade;

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A linguagem e estilo

4. as invectivas e as interpelações directas ao leitor (narratário), criando um estilo próximo da oratória barroca e uma maior cumplicidade entre narrador/narratário;

5. o uso predominante do presente do indicativo, apoiando a perspectivatridimensional do tempo (narrador movimenta-se entre o passado, o presente e ofuturo);

6. o uso do polissíndeto;

7. o uso da enumeração de cariz popular – “ele é os ourives…, ele é os fundidores… , ele é os escultores…”;

8. o aproveitamento de aforismos e provérbios;

9. o uso do trocadilho;

10. o uso da ironia;

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A linguagem e estilo

11. o uso da metáfora sugestiva (o transporte da pedra é visto como um jogo de lançar papagaios);

12. o jogo de expressões antinómicas;

13. o uso de uma linguagem barroca, caracterizada pelo detalhe excessivo(apresentação do noivado da infanta Maria Bárbara e do noivado do infante José;referências à estrutura do sermão…);

14. a apropriação / interpretação subjectiva do discurso evangélico (“Pater noster que non estis in coelis”…);

15. a criação de neologismos;

16. o uso de termos anacrónicos;

17. a intertextualidade frequente, sobretudo com Os Lusíadas de Luís de Camões.…

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Subversão (transgressão) no romance

Memorial do Convento pode ser considerado um romance transgressor quer naconstrução da própria narrativa (relações entre personagens, estatuto do narrador),quer no domínio da escrita.

Os elementos que podemos apontar como transgressores são:

1. especificidade do amor de Blimunda e Baltasar, vivido à margem das regras socialmente aceites: não são casados, uniram-se pelo ritual do sangue e da colher, vivem uma relação de igualdade, num estado de perfeição que não é deste mundo;

2. Padre Bartolomeu desafia o poder da Igreja, seguindo o seu sonho e acreditando na ciência;

3. Passarola que voa, que ousa sair do domínio dos homens e entrar no domínio de Deus, subvertendo as leis do universo;

4.Conjugação inusitada de saberes: o saber científico associado ao trabalho artesanal e à magia;

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Subversão (transgressão) no romance

5. O estatuto do narrador: acompanha a acção, comentando e criticando,estabelecendo uma interacção permanente entre passado, presente e futuro(presença do anacronismo);

6. Concepção das personagens: as tradicionais figuras históricas, como o rei D.João V e a rainha, assumem uma feição caricatural; as personagens Baltasar eBlimunda assumem, contra as expectativas iniciais, o estatuto de protagonistas danarrativa;

7. A escrita literária: supressão das marcas gráficas do discurso directo (diálogos),multiplicação das vírgulas que substituem os pontos finais, criando uma leituracontínua; o uso das maiúsculas no meio da frase para introduzir as falas daspersonagens.

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Subversão (transgressão) no romance

A subversão conhece o seu grau mais elevado no tratamento das grandesfiguras históricas. Ao contrário do que acontece no romance histórico deScott e Tolstoi onde Maria Stuart, Luís XI ou Kutusov são figurasinesquecíveis de recorte pessoal epocal, pessoal e humano, emSaramago as figuras históricas perdem a sua grandeza histórica e sãopintadas com as cores da caricatura. São exemplos máximos o rei e arainha, meros instrumentos da necessidade nacional em produzir umherdeiro.

Luís Francisco Rebelo, Memorial do Convento, José Saramago,25 anos da 1ª edição: a recepção da crítica na época, Lisboa, Caminho

Para finalizar…