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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 3088 MEMÓRIAS DE MARIA HELENA DE NORONHA: UMA INCURSÃO PELOS MEANDROS DA EDUCAÇÃO DE SURDOS NO ESTADO DA GUANABARA Leila de Macedo Varela Blanco 1 [...] Voces que quizá no hablarian “solas” sin la presencia de un interlucutor, sin un otro con quien compartir esse “volver a vivir” que el linguage, con su cualidad performativa, trae como correlato obligado del “(volver a) decir” (ARFUCH, 2010, 2, p. 150) 2 . Este trabalho toma como objeto a imbricação da professora Maria Helena de Noronha com a educação da criança surda no antigo estado da Guanabara. Sua dedicação no que diz respeito à organização desta área de ensino na esfera pública e privada, à formação continuada de professores e à exploração de metodologias e práticas pedagógicas que levassem ao sucesso da aprendizagem escolar e da comunicação, está presente na narrativa de suas memórias e na de profissionais que com ela trabalharam. A trajetória profissional de Maria Helena de Noronha protagoniza a inserção de surdos nas escolas públicas guanabarinas, na década de 1960 e início dos anos 1970. O depoimento de Maria Helena de Noronha faz parte do conjunto de entrevistas produzidas pelo Instituto Municipal Helena Antipoff 3 (IHA), nos anos 2000. Esta coleção, composta de mais de vinte narrativas de professoras visando narrar a história da Educação Especial desenvolvida nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro, de 1975 a 2004, após tornar-se um município capital do estado do Rio de Janeiro, inclui depoimentos, como o de Maria Helena de Noronha, de profissionais que estruturaram o serviço na cidade durante sua condição de estado da Guanabara, após a transferência do Distrito Federal para a cidade de Brasília. Nesse artigo, portanto, trabalho com o período compreendido entre os anos de 1961 e 1973 como recorte temporal. 1 Mestre em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora de História da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. E-Mail: <[email protected]>. 2 O texto correspondente na tradução é: Vozes que, talvez não falassem, solitariamente, sem a presença de um interlocutor, sem um outro com quem compartilhar esse “voltar a viver” que a linguagem, com sua qualidade performática, traz como correlato obrigatório o “(voltar a) dizer”. 3 O Instituto Helena Antipoff foi criado em 10 de dezembro de 1959, na Secretaria Geral de Educação do Distrito Federal, com o nome de Instituto de Educação do Excepcional (EEX), visando a assistência social, física, de saúde, econômica e moral, prioritariamente, daqueles que apresentavam deficiência intelectual. Em 1974 recebeu o nome de Instituto Helena Antipoff, após a morte da educadora russa. Em 2008, passou a ser chamado Instituto Municipal Helena Antipoff. Mais informações na publicação SME/Rio, Instituto Helena Antipoff 25 Anos de História 1974/1999, 1999.

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

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MEMÓRIAS DE MARIA HELENA DE NORONHA: UMA INCURSÃO PELOS MEANDROS DA EDUCAÇÃO DE SURDOS NO ESTADO DA GUANABARA

Leila de Macedo Varela Blanco1

[...] Voces que quizá no hablarian “solas” sin la presencia de un interlucutor, sin un otro con quien compartir esse “volver a vivir” que el linguage, con su cualidad performativa, trae como correlato obligado del “(volver a) decir” (ARFUCH, 2010, 2, p. 150)2.

Este trabalho toma como objeto a imbricação da professora Maria Helena de Noronha

com a educação da criança surda no antigo estado da Guanabara. Sua dedicação no que diz

respeito à organização desta área de ensino na esfera pública e privada, à formação

continuada de professores e à exploração de metodologias e práticas pedagógicas que

levassem ao sucesso da aprendizagem escolar e da comunicação, está presente na narrativa

de suas memórias e na de profissionais que com ela trabalharam. A trajetória profissional de

Maria Helena de Noronha protagoniza a inserção de surdos nas escolas públicas

guanabarinas, na década de 1960 e início dos anos 1970.

O depoimento de Maria Helena de Noronha faz parte do conjunto de entrevistas

produzidas pelo Instituto Municipal Helena Antipoff3 (IHA), nos anos 2000. Esta coleção,

composta de mais de vinte narrativas de professoras visando narrar a história da Educação

Especial desenvolvida nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro, de 1975 a 2004, após

tornar-se um município capital do estado do Rio de Janeiro, inclui depoimentos, como o de

Maria Helena de Noronha, de profissionais que estruturaram o serviço na cidade durante sua

condição de estado da Guanabara, após a transferência do Distrito Federal para a cidade de

Brasília. Nesse artigo, portanto, trabalho com o período compreendido entre os anos de 1961

e 1973 como recorte temporal.

1 Mestre em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora de História da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. E-Mail: <[email protected]>.

2 O texto correspondente na tradução é: Vozes que, talvez não falassem, solitariamente, sem a presença de um interlocutor, sem um outro com quem compartilhar esse “voltar a viver” que a linguagem, com sua qualidade performática, traz como correlato obrigatório o “(voltar a) dizer”.

3 O Instituto Helena Antipoff foi criado em 10 de dezembro de 1959, na Secretaria Geral de Educação do Distrito Federal, com o nome de Instituto de Educação do Excepcional (EEX), visando a assistência social, física, de saúde, econômica e moral, prioritariamente, daqueles que apresentavam deficiência intelectual. Em 1974 recebeu o nome de Instituto Helena Antipoff, após a morte da educadora russa. Em 2008, passou a ser chamado Instituto Municipal Helena Antipoff. Mais informações na publicação SME/Rio, Instituto Helena Antipoff 25 Anos de História – 1974/1999, 1999.

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Estudos sobre a Educação Especial pública da cidade, utilizando a coleção de

depoimentos do IHA como fonte e objeto, foram feitos por mim4, mas torno a olhar a

narrativa de Maria Helena de Noronha para, encontrando outros ângulos de análise,

possibilitar nova compreensão sobre o período e, nesse caso, a especificidade da educação da

criança surda.

A narrativa em tela foi gravada, em 23 de março de 2007, por Maria Helena de

Noronha, como convidada, e a professora Elisa de Fátima Magalhães, responsável, à época,

pelo trabalho de história oral do Instituto Municipal Helena Antipoff (IHA). É, portanto, uma

fonte construída sob a ótica das inquietações dos anos 2000 tendo como horizonte o debate

com os professores cariocas em exercício e as futuras gerações. Partindo do cotidiano das

práticas e das realidades vividas por professores para a institucionalização da Educação

Especial pública da cidade, os depoimentos foram produzidos para o alargamento da

historiografia sobre o assunto.

A surdez na memória e na narrativa

Leio e analiso a entrevista que foi transcrita e não sofreu a necessária revisão (por força

da descontinuidade intempestiva do projeto de história oral em consequência da mudança de

direção do IHA). Retomo a leitura do depoimento de Maria Helena de Noronha, depois de

algum tempo, com a convicção de que é possível um novo diálogo com essa narrativa

4 BLANCO, Leila. Convocando outras vozes: a trajetória de Maria Therezinha Machado na História da Educação Especial do Município do Rio de Janeiro. 2014. 170 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014. BLANCO, Leila. Um protagonismo muito especial: trajetória de uma professora na rede de escolas públicas cariocas dos anos 1960, 1970. In: VI Congresso Internacional de pesquisa (auto)biográfica - entre o público e o privado: modos de viver narrar e guardar, 2014, Rio de Janeiro, 2014. BLANCO, Leila. Um caso muito especial: a educação de crianças com deficiência física na cidade do Rio de Janeiro (1975-1985). In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação: circuitos e fronteiras da História da Educação no Brasil, Cuiabá. 2013. BLANCO, Leila. Começar de Novo: as tensões dos anos 1980 na velha educação pública da cidade maravilhosa. In: V Congresso Brasileiro de Educação Especial e VII Encontro Nacional dos Pesquisadores da Educação Especial, 2012, São Carlos, SP. 2012. BLANCO, Leila. Se podes ver... a educação de crianças cegas e de baixa visão na perspectiva de Maria Terezinha de Carvalho Machado. XI Congresso Iberoamericano de Historia de la Educacion Latinoamericana. Toluca, México. 2014. BLANCO, Leila. Por trás da Porta: o nascimento da Educação Especial na escola pública carioca. VII Seminário Internacional - As Redes Educativas e as Tecnologias: transformações e subversões na atualidade. Rio de Janeiro. 2013. BLANCO, Leila. Práticas que viajam: substituição do modelo francês pelo modelo americano. IX Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação. Lisboa. 2012. BLANCO, Leila. Contando de Si e Encantando os Demais: narrativas de professoras da educação especial. V Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica: lugares, trajetos e desafios. Porto Alegre. 2012. BLANCO, Leila. O Trabalho com Alunos no Estado da Guanabara (1961 A 1974). VIII Congresso Brasileiro de Historia da Educação: matrizes interpretativas e internacionalização. Maringá. 2015. BLANCO, Leila. Maria Therezinha de Carvalho Machado na Educação Pública da Cidade do Rio de Janeiro. XII Congreso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana. Medellín. 2016.

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autobiográfica. No diálogo com Alberti (1994) busco a produção de novos sentidos para a

maior compreensão da história educacional de crianças surdas cariocas porque há muito por

entender sobre esse período em que se instala e se desenvolve a Educação Especial nas

escolas públicas.

Sendo uma entrevista autobiográfica, mediada por uma professora especialista em

educação especial, para a formação de um acervo voltado para essa área do conhecimento,

creio que deve ter sido um momento particularmente difícil para a narradora que

rememoraria o período em que a educação de surdos instituiu a oralização, isto é, ensinar o

surdo a falar e a fazer leitura labial e que vem sendo muito criticado pela comunidade surda e

especialistas da área. Maria Helena de Noronha, desde o início de seu testemunho, pareceu-

me ter a preocupação de justificar a concepção educacional que adotaram. Em 2007, ano em

que se deu o depoimento, o IHA orientava os professores municipais na utilização da Língua

Brasileira de Sinais (LIBRAS) como primeira língua, e pregava, como objetivo e prática

escolar, a construção de respostas educativas às necessidades dos alunos com deficiência

numa escola inclusiva. Ao narrar suas memórias, portanto, Maria Helena de Noronha o faz

justificando a escolha, atualizando suas lembranças pelas marcas do presente, porque,

[...] lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.[....] A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. (BOSI, 2001, p. 55)

Maria Helena de Noronha, em sua primeira fala, indica o ano de 1952 como o de sua

formatura no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, sua experiência inicial, com

alfabetização, nas escolas públicas da cidade e sua mudança para Belo Horizonte, em 1957,

acompanhando o marido transferido para o Colégio Militar de Belo Horizonte, recém-

fundado. Maria Helena ainda informa que:

[...] para não ficar sem trabalhar eu dava aulas de latim, para os meninos do Colégio Militar, que tinham muita dificuldade [...] eu tinha uns quinze alunos. Não ganhava dinheiro, quase. Porque, meu marido dizia assim: "Coitadinho! O pai dele tem dificuldade." Então, a gente começou [...] a trabalhar pelos mais necessitados, desde aquela época de Belo Horizonte (sic) (NORONHA, 2007) (Grifos nossos).

Com essa afirmação, a narradora, parece iniciar a construção de sua imagem como de

pessoa preocupada e solidária com os mais necessitados e, talvez, desta maneira costurar sua

imbricação com a educação da criança e do jovem surdo. Nesta releitura, observei um

movimento não percebido em leituras anteriores em que outros diálogos foram propostos ao

material. A narradora parece trazer a solidariedade como marca da percepção de si para

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deixar à entrevistadora e à entrevista gravada. “[...] essa percepção da vida e da identidade

[...], como uma unidade apreensível e transmissível, um fio que vai se desenvolvendo numa

direção, a ilusão biográfica” (ARFUCH, 2010b, p. 254-255).

Corroborando essa impressão, destaco sua fala sobre o período em que trabalhou com

turmas de séries mais adiantadas, antes de residir em Belo Horizonte. Nesse episódio, ela

acrescenta que levava seus alunos para sua casa e que, com isso, todos estudaram e se

formaram. “Eu trouxe os alunos para minha casa, os que queriam estudar. E coloquei-os

todos, fizeram faculdade e tudo” (Maria Helena de Noronha, 2007).

Em 1961, a família retorna à cidade do Rio de Janeiro que se organiza como um novo

estado − estado da Guanabara – e Maria Helena de Noronha é convidada a fazer parte do

grupo responsável por colocar em prática a Constituição Estadual, de 27 de março de 1961,

que determinava em seu Título V, Capítulo II, Artigo 60 que, “A educação de excepcionais

será objeto de especial cuidado e amparo do Estado, assegurada ao deficiente a assistência

educacional, domiciliar e hospitalar” (MACHADO; ALMEIDA, 1971, p. 13). Este direito que as

crianças com deficiência passaram a ter legalmente é, ainda, reafirmado pela primeira Lei de

Diretrizes e Bases Nacionais ─ Lei 4024 de dezembro de 1961 ─ que trouxe em seus artigos,

88 e 89, a orientação à escolarização da pessoa com deficiência, ressaltando a necessidade de

abertura dos sistemas educacionais na incorporação dessa modalidade.

Art. 88. A educação de excepcionais deve, no que fôr possível, enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade. Art. 89. Tôda iniciativa privada considerada eficiente pelos conselhos estaduais de educação, e relativa à educação de excepcionais, receberá dos poderes públicos tratamento especial mediante bôlsas de estudo, empréstimos e subvenções. (BRASIL, 19615)

A Secretaria de Educação e Cultura, estabelecida sob a nova ótica, incorpora a

necessidade de formação de equipe para as exigências legais de atendimento ao aluno com

deficiência nas escolas públicas. Maria Helena de Noronha narrou a formação de equipe,

então, com poucos critérios tecnicos, mas com a responsabilidade de acertar. Ela nos

aproxima dessa realidade contando que Edy Pinheiro Alves foi a professora encarregada da

formação da equipe e sua primeira coordenadora. Explicitando as áreas de deficiência pelas

quais cada uma das convidadas iria se responsabilizar comentou que:

[...] ela me chamou para a parte de surdos. Chamou a Therezinha Machado para a parte dos deficientes mentais; Flora, para os deficientes visuais. E

5 Informação disponível no site http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4024.htm. Acessado em 6 de abril de 2013.

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chamou a Marly Peixoto, para as classes hospitalares (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).

Não sabendo atender às responsabilidades que lhe foram confiadas, Maria Helena de

Noronha procurou o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), referência nesta área

de ensino, para aprender e iniciar a preparação dos professores da rede pública da cidade.

Contou com os professores Mario Barreto e Felipe Carneiro em sua formação e na de outros

professores. Por meio do ensino a distância, por correspondência, fez o curso oferecido pela

Tracy Clinic.6 “E usei muito do que eles davam para instruir meu pessoal, aqui” (Maria

Helena de Noronha, 2007).

Lendo o depoimento, é possível observar que ela se esforçou para organizar,

cronologicamente, os fatos vividos, fazendo lembrar a reflexão de Bourdieu (2002), que

aponta para esse tipo de situação de entrevista como orientada “pela representação mais ou

menos consciente que o investigado fará da situação de investigação” (p. 189).

Do primeiro curso para professores, realizado na Biblioteca Municipal, no centro da

cidade, Maria Helena de Noronha escolheu lembrar quatro primeiras professoras. Foram elas

as “[...] pessoas, que ficaram ligadas diretamente a mim. [...]. E com elas, nós começamos a

divulgar e a criar as turmas (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).

Surdez: como diagnosticar e atender?

A professora continuou lembrando o início do atendimento especializado e como

trabalhavam com a suspeita de surdez. Iam, ela e as outras quatro, para as escolas e faziam

um teste simples que consistia em falar palavras, em distância apropriada, para que a

criança, de costas para o emissor, ouvisse e repetisse o que estava sendo dito, cada vez mais

baixo. Após essa testagem rudimentar, separavam,

[...] aquelas que nós desconfiávamos, que tivesse alguma perda auditiva; aí, nós mandávamos para as clínicas, para as lojas, essas que vendem aparelhos, porque elas têm interesse em dizer se a criança tinha perda de audição ou não, para tentar nos vender os aparelhos, que nós não comprávamos, porque não tínhamos dinheiro. Mas, eles faziam o exame lá; e então, ficava comprovada, a perda de audição ou não. Foi assim, que nós começamos a fazer o trabalho. Quer dizer: foi um trabalho sério, responsável e que deu muito bom resultado (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).

6 A John Tracy Clinic é uma instituição privada, norte-americana, fundada na década de 1940, pelo ator Spencer Tracy e sua esposa, com o nascimento de um filho surdo. A clínica orienta profissionais e familiares de várias partes do mundo.

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O entrosamento entre a educação e as agências de saúde parecia não fazer parte das

demandas da equipe. A menção a exames feitos em firmas particulares de comercialização de

aparelhos auditivos para a confirmação de surdez, além da fragilidade das testagens feitas

pelas professoras para efetivar o encaminhamento, demonstram que não havia apoio

governamental ao trabalho iniciado. Porém, mesmo assim, o caminho estava sendo trilhado,

as turmas formadas e os atendimentos feitos. Há, entretanto, referências da narradora a

médicos que auxiliam na formação dos professores como “Murilo Drumond, que era casado

com uma professora de surdos: a Nara. E ele deu um curso inteirinho de neuro-fisiologia,

[...]porque nós pedimos. [...] eu conseguia que o Murilo desse toda parte médica de

identificação da deficiência[...]” (Maria Helena de Noronha, 2007).

Para algumas áreas de deficiência conta, eram aplicados testes psicológicos, mas no

caso da deficiência auditiva os testes não serviam. Com isso, a cientificidade pretendida pelo

grupo precisava de outros tipos de legitimação como, por exemplo, a participação de médicos

nas atividades de formação. Para Marila Brandão Wernekc, uma das quatro primeiras a fazer

parte da equipe de Maria Helena Noronha, a identificação de alunos surdos nas escolas

públicas “era mais aquela triagem grosseira, [...] repetir as palavras[...]” (Marila Brandão

Werneck, 2006). Depois de identificados, os alunos eram encaminhados para audiometria. A

triagem a que Marila Brandão Werneck se referia foi montada para a identificação de

problemas de visão e audição. As equipes iam juntas às escolas e “a gente chegava tinha mais

de 200 crianças esperando, era uma coisa alucinante[...]” (Marila Brandão Werneck, 2006).

Alguns casos, segundo esta narradora, apresentavam problemas de saúde e, “às vezes,

nem podia ficar perto da gente, o ouvido purgando [...] tinha que ser encaminhado. [...] para

posto médico, para vários lugares particulares” (sic) (Marila Brandão Werneck, 2006).

Afirma, com isso, a parceria com o comércio especializado ou o trabalho voluntário, mas

deixa entrever certa proximidade com as agências públicas de saúde por meio do posto

médico.

Em sua narrativa, Marila Brandão Werneck comenta que percorriam todas as escolas

da cidade em carros próprios, levantando a suspeita de surdez e encaminhando os alunos

para que fosse feito o diagnóstico. Crianças com baixa audição e baixo desempenho tinham,

dessa forma, a chance de sofrer um trabalho especializado. Com essa estratégia, houve

divulgação e as crianças surdas sem escolas começaram a procurar o atendimento

especializado feito, nas escolas comuns, em núcleos que ela define como “classes especiais

para surdos”. Assim, Marila Brandão Werneck apresenta, em nomenclatura atual para o

período de sua entrevista, os “Núcleos de atendimento” dos anos 1960. No depoimento de

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Maria Helena de Noronha essa estratégia também aparece, mas é contada como censo. Após

uma exclamação, ela diz: “[...] esqueci de dizer uma coisa: para criar essas turmas, nós

fizemos um censo nas escolas” (Maria Helena de Noronha, 2007).

Maria Helena de Noronha traz, em seu depoimento, um aspecto interessante sobre a

formação de turmas. Iniciando o atendimento na metade da década de 1960, ela comenta ter

chegado a mais de 60 turmas. Em cada uma das turmas poderiam estudar de 6 a 8 alunos

totalizando, então, um mínimo de 360 alunos surdos. É um período curto para uma

ampliação tão expressiva, denotando a demanda reprimida. Para dar conta de tantas turmas

foi necessário um número significativo de professores e o aproveitamento dos mais

experientes na formação e no acompanhamento dos mais novos no trabalho.

Formação de especialistas: o trabalho artesanal

Para compreender o que trazem as memórias sobre a formação dos professores

especialistas recorro a Goodson (2007), Tardif e Lessar (2012). Foi possível observar, em

seção anterior desse artigo, que Maria Helena de Noronha e a equipe que foi formando,

contaram com a solidariedade de médicos e especialistas do INES para iniciar o trabalho.

Porém, como lembram e narram o que fizeram para crescer em qualidade e numericamente?

O conhecimento de anatomia, do funcionamento do sistema nervoso, das doenças e

outros agentes causadores da surdez, dentre os muitos aspectos das ciências médicas,

possibilitava algum conhecimento sobre esses novos alunos sem, entretanto, formá-las para a

prática educacional especializada. Portanto, era necessário um conhecimento pedagógico

próprio, criado por elas com base nos novos conhecimentos médicos, para educar crianças

surdas em escolas públicas, diferentes das escolas especializadas, modalidade quase

exclusiva, até então. Como trabalhar com os surdos nas escolas concebidas para ouvintes?

O centro de estudos passou a ser uma atividade valorizada para a composição de toda a

Educação Especial carioca. Durante sua realização eram discutidas as novidades e

confrontadas as práticas. As diferentes áreas de atendimento auxiliavam umas às outras com

o aprofundamento de alguns conhecimentos. Além do Centro de Estudos geral, cada uma das

áreas de atendimento fazia, com os professores de sua responsabilidade, um centro de

estudos mensal e visitas periódicas às turmas para observar se o professor estava aplicando,

em suas práticas cotidianas, o que havia sido estudado nos cursos e nos centros de estudo.

Nas narrativas de Maria Helena de Noronha, de Marila Brandão Werneck e Olímpia

Saldanha Marinho, aparece, com destaque, a construção de recursos para a formação do

professor e para o trabalho direto com os alunos. Mas, parece, deixar indícios de que a partir

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da solidariedade os materiais puderam ser produzidos. Assim, trabalhavam além dos

horários devidos, aos sábados e domingos, em suas próprias casas e com suas famílias. O

trabalho, mesmo sendo profissional, parecia apresentar características missionárias. Olímpia

comenta que conseguiu, mesmo que com a censura do marido, conversar com o diretor do

banco em que ele trabalhava e pedir uma sala emprestada para uma exposição desses

materiais muito bem-sucedida.

“Fizemos 15 dias de exposição, de material didático. Foi (o) secretário de educação [...] Foi para a imprensa, porque nós queríamos divulgar. Era tudo feito à mão. Nós não tínhamos poder aquisitivo, para ter aquelas coisas [...] importadas, de madeira. Não tínhamos, então nós, fabricávamos. Nós pegávamos papel cartão e pintávamos papel cartão com tinta esmalte, para ele ficar mais resistente (sic) (Olímpia Saldanha Marinho de Araújo, 2007).

As necessidades dos alunos surdos, dos seus professores, das escolas e as

particularidades da administração do sistema exigiam uma qualidade diferente de

envolvimento com o trabalho. Traduzir o que aprendiam sobre as questões de saúde, e de

desenvolvimento infantil, em novas formas de ensinar e aprender os conteúdos escolares

previstos para os demais já seria, em si, uma dificuldade para os especialistas. Mas, ainda

havia os aspectos das habilidades a serem desenvolvidas com cada uma das crianças surdas.

Como fazer? Como dar conta da tarefa a não ser pela experiência inicial discutida,

realimentada por cada um dos casos com que se enfrentavam, com cada nova criança para a

qual não tinham nenhuma informação? Tardif e Lessard (2012), apontam o caminho ao

afirmar que “somente o contexto do trabalho cotidiano permite compreender as

características cognitivas particulares da docência [...]”(p 32-33). Acrescento, ainda, que essa

é uma docência incomum. Suas protagonistas traziam para a escola os alunos que haviam

sido rejeitados por características individuais que confirmavam a inelegibilidade prevista nos

regulamentos. Esse trabalho tratava de um tipo particular de docência onde a permeabilidade

do cotidiano ainda se fazia mais necessária à análise.

A constituição de conhecimentos que legitimavam o especialista ainda estava em

disputas e, dentre elas, a que contrapunha o oralismo à Língua de Sinais, ainda não

reconhecida oficialmente7. Maria Helena de Noronha optou pelo oralismo porque:

O que me preocupava muito nos surdos era a falta de comunicação [...]. A falta de integração deles, até com a família [...] A criança ficava meio jogada. [...]se nós fôssemos passar para ensinar só essa parte de gestos, de linguagem gestual, nós não conseguiríamos integrar aquelas crianças,

7 A Língua Brasileira de Sinais – Libras − só foi reconhecida em 2002

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totalmente nas turmas... nas escolas e na família. (Maria Helena de Noronha, 2007).

Foi nos estudos das realidades de outros países que Maria Helena de Noronha se

respaldou para sua escolha “E a maior alegria dos pais era quando o surdo, chegava e falava

em casa” (2007). Nega a metodologia alemã por ser radical na oralização mesmo que

considerada muito eficiente. Não chegariam ao ponto de amarrar as crianças, como diz ser

feito na Alemanha, porque as culturas latinas completam a comunicação com gestos, "Eu vou

por ali! Eu vou pela direita. Eu vou pela esquerda! Você, ajuda com as mãos”, segundo ela.

Sua justificativa para a escolha também acontece na atualização de suas memórias

quando afirma que “[...] a fala inclui o surdo. Há inclusão, há integração; como eu usava o

termo: integração do surdo na sociedade; no meio dele, na família dele; porque ele está

falando” (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007). A palavras “inclusão” e “inclui”, utilizadas

nesse recorte, parecem servir para dar maior força a argumentação.

Portanto, a produção de material técnico para embasamento dos professores seguia a

diretriz da oralização. Apostilas e materiais pedagógicos foram construídos com essa

finalidade. Entretanto, Maria Helena de Noronha diz ter-se dado conta que os vários livros

estrangeiros, principalmente em castelhano, não auxiliavam adequadamente à formação dos

professores pelas diferenças fonéticas. Um livro brasileiro, segundo ela o primeiro, foi escrito

a quatro mãos com Maria Helena Rodrigues e muitas ajudas.

O Deficiente da Audição e a Educação Especial, da José Olympio Editora, foi lançado

em 1973, quando Maria Helena de Noronha e Maria Helena Rodrigues se despediam da

Educação Especial carioca. Entretanto, a orientação sobre a emissão e classificação dos

fonemas foi sendo experimentada e trabalhada com os professores por meio das apostilas.

Para essa produção, Maria Helena conta que:

[...] nós fizemos um estudo de como, cada fonema era produzido na pessoa. E aí, partindo daí, [...] fizemos esse livro, que todos os professores tinham. E eles faziam com as crianças, essas aulas todinhas aqui, mostrando a eles, que cada fonema: "á-á-á....", o som, aonde saía. A onde vibrava: "í-í-í..." Ele, sentia na cabeça. Então, a gente foi fazendo, outras coisas, que a pessoa... o lábios. Como é que fica o lábio? E fizemos esse quadrinho aqui, olha aqui: esse se quiser, pode levar, mas está tão velhinho. Está vendo? Com todos os fonemas (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).

Ao comentar sobre o livro do qual foi coautora, Maria Helena de Noronha relata um

episódio junto à editora que a fez interrogar sobre um possível plágio. Afirma que ao

retornar, o material que havia sido encaminhado para um perito pela própria editora, trazia

uma folha esquecida, que comprovava terem feito cópia dos desenhos que representavam a

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colocação adequada do fonema. O fato era grave e as autoras cobraram respostas do editor.

Entretanto, o que faz com que o episódio apareça neste arquivo é a permanência, nos

guardados de Maria Helena de Noronha, do papelzinho dobrado. Sua preservação parece

legitimar o ineditismo e a beleza do trabalho que fizeram. Em diálogo com Mignot (2006)

percebo uma possibilidade de resposta quando afirma que

Guardar é diferente de esconder. Guardar consiste em proteger um bem da corrosão temporal para melhor partilhar; é preservar e tornar vivo o que, pela passagem do tempo, deveria ser consumido, esquecido, destruído, virado lixo. [...] (MIGNOT, 2006, p.41).

A narradora, não só arquivou, mas, parece, fez questão de mostrar à entrevistadora o

que considera a prova, não do delito, mas da qualidade de seu trabalho. A multiplicação do

“arquivamento do eu” por meio da gravação da narrativa faz pensar sobre a importância dada

por ela para a autoria do livro e de sua trajetória profissional.

Mas, a vivência curricular do aluno surdo imerso na aprendizagem da palavra oral e

escrita, era ampliada pelos conteúdos desenvolvidos com os demais. Marila Brandão

Werneck também narra a imperiosa necessidade de “fazer tudo”. Trabalhavam nas turmas,

davam aulas nos cursos para os professores iniciantes, preparavam o material, visitavam

escolas para a “triagem grosseira” e realização dos encaminhamentos. E, com a experiência

dos anos posteriores ela acrescenta: “porque não tinha [...] nenhuma máquina; naquela época

era máquina de escrever, catando milho, para fazer todas as publicações” (sic) (2006). Seu

destaque a essa experiência vai sendo aprofundado, talvez porque as lembranças das

dificuldades minimizadas pelas tecnologias atuais a fizessem recordar de que, mesmo que

médicos especialistas trouxessem um conhecimento que consideravam indispensável e

mesmo diferenciador do professor comum, a pedagogia estava a cargo delas. Eram elas as

responsáveis por formar professores especialistas por meio das reflexões sobre suas próprias

experiências e com o estudo sobre o que era feito nas escolas segregadas e em outras partes

do mundo.

Marila Brandão Werneck enfatiza a coesão do grupo e a importância da liderança

quando afirma que as líderes exigiam muito delas, mas estudavam junto, pesquisavam para

elas (Marila Brandão Werneck, 2006). A ideia da coesão aparece no comentário sobre a

participação de todos e é traduzido nos recortes dos fatos com a utilização dos lemas “um por

todos e todos por um” e "juntos venceremos". A narradora concluiu dizendo que é verdade

que o grupo tem muito mais força do que uma pessoa sozinha. O vínculo à equipe e ao

trabalho estimulava àqueles que, novos, aventuravam-se na tarefa da qual, mesmo que

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formados, ainda precisam aprender as manhas, o olhar acurado e a satisfação do

envolvimento com a coisa pública. Goodson (2007) chama atenção para o descaso das novas

políticas educacionais com os velhos profissionais, aqueles que formavam os novos por meio

das relações cotidianas. Sobre essa característica, acrescenta que a relação estabelecida com o

profissional experiente forma mais do que instrui nas técnicas e “significa uma visão de

ensino onde o profissionalismo é expresso e experimentado como mais do que meramente

um emprego, mas como uma vocação afetiva” (GOODSON, 2007, p 28).

Esse envolvimento afetivo, observado por Goodson (2007), aparece nas duplas

jornadas de trabalho, na confecção de materiais pedagógicos, no envolvimento de familiares

nas tarefas, dentre outras formas solidárias de ação e valorizadas pela liderança de Maria

Helena de Noronha. Esse saber que foram construindo com cuidado e respeitosamente de

maneira coletiva era a fórmula de constituir mentores, isso é, aquelas que não só

informavam, mas principalmente formavam profissionais competentes e envolvidos com a

transformação.

Goodson (2007) e Tardiff e Lessard (2012) auxiliam na compreensão desse cenário

formador. Goodson (2007), em suas pesquisas com histórias de vida, diz que tem se

“familiarizado com a ecologia dos serviços públicos, com a maneira através da qual as

pessoas conduzem suas vidas profissionais e criam, por esses meios, significados e missões

profissionais e pessoais” (GOODSON, 2007, p. 14). Essa imbricação do aspecto pessoal e

profissional resulta na constituição de profissionais que denomina de “corações e mentes da

instituição”. Entendo que esses “corações e mentes” envolvem os que chegam e, na bagagem

da história da instituição que trazem, e dividem com os iniciantes, multiplicam os “corações e

mentes” que ajudam a constituir as novas gerações. Ou seria o contrário? São envolvidos

pelos iniciantes que precisam dos órgãos vitais do corpo profissional? A instituição se torna

mais sólida ao amalgamar o velho e o novo. Tardif e Lessard (2012) introduzem uma questão

que me permite refletir sobre esse passado quando apresentam um cenário de transformação

na longa pergunta:

Pode-se imaginar num futuro próximo uma escola em que os professores não consagrassem todo o seu tempo aos alunos mas tivessem um tempo para si mesmos e para projetos coletivos, pesquisas, debates e práticas inovadoras? (TARDIF; LESSARD, 2012, p. 279)

O envolvimento afetivo, possibilitado por um grupo de pertencimento, ultrapassava as

fronteiras do pessoal e incluía até mesmo as famílias e suas residências, como afirmaram.

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Depois, pelo que apresentam nas narrativas, foram sendo incorporados outros espaços de

trabalho para o grupo que precisou enfrentar novos desafios.

A vertente filantrópica do atendimento ao surdo

O grupo precisava lidar com a questão do limite de 12 anos para a obrigatoriedade

escolar. Aos 13 anos, como afirma Maria Helena de Noronha, os alunos eram desligados da

escola. A preocupação com a parcela de pessoas consideradas mais necessitadas volta a

aparecer na continuidade da narrativa.

Só, que por exemplo, quando chegava aos treze anos, a criança tinha que sair da escola [...]. E eles saíam, sem estar preparados para a vida. Sem ainda, falar direito, porque não tinha dado tempo, eles entraram tarde para a escola. Então, nós começamos a ficar muito angustiadas com isso. Eu e o meu grupo. E já estava com as professoras trabalhando. Elas também queriam ajudar. Tem Regina... aí, têm várias, que se propuseram a dar aulas para a gente, sem ganhar nada (Maria Helena de Noronha, 2007)

O viés da solidariedade é retomado em seu discurso junto com o olhar profissional.

Nessa seção, outras pessoas, as professoras de surdos, parecem ser atraídas ao trabalho

voluntário. Os alunos que chegavam tarde à escola, ainda não haviam desenvolvido as

habilidades consideradas, por elas, como indispensáveis à vida. Entretanto, a legislação não

assegurava o direito de permanência dos alunos com mais de 12 anos, independente da

certificação ou nível de escolaridade. A narradora não comenta sobre estratégias ou diálogos

com autoridades para desfazer esse ordenamento. A saída é a solidariedade que, nesse

momento, irá contar com outras pessoas que não vão “ganhar nada”. Entretanto, essa

estratégia não é exclusiva desse grupo. A solução prevista e organizada é legitimada pelas

inúmeras instituições espalhadas pelo país e pelo mundo no que diz respeito às pessoas com

deficiência. A luta pela educação não se caracteriza pela igualdade de direitos, mas pela

necessidade de minimizar as sequelas adquiridas com a deficiência, individualmente, e pela

necessidade de tornar cada uma dessas pessoas em cidadão produtivo e integrado à

sociedade pelos esforços empreendidos como necessários para a sua aceitação ou seu

assujeitamento.

Maria Helena de Noronha funda, então, a Associação de Pais e Amigos de Surdos

(APAS), com o pagamento de mensalidade dos associados para poder pagar o aluguel de uma

sala, no bairro da Tijuca, na Rua General Roca, 826. Ela “amparava” essas crianças que eram

desligadas da escola pela idade. Crianças, adolescentes e jovens que não tiveram

oportunidade de escolarização no tempo considerado adequado e que eram expulsos antes da

escolarização pretendida e. estão, possível para cada um deles. É importante, porém,

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observar o termo “ampara” proferido por ela. O verbo amparar é usado com o sentido de

proteger ou defender da sociedade para a qual não estavam, ainda preparados.

Para essa empreitada, diz ter contado com a ajuda de Erica Maria Maestri, que

trabalhava com crianças surdas no Paraná e ter seguido a orientação e o modelo trazido por

ela que visitou o Rio de Janeiro várias vezes.

A vinculação do aluguel da sala ao pagamento de mensalidades pelos sócios, entretanto, não surtiu o efeito esperado por ela porque, “depois, os cinco reais, não (não chegavam) para o aluguel. E eu fiquei muito desesperada. E fiquei até, doente [...]. Porque, eu não sabia o que, que eu ia fazer com aquelas crianças (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).

A adequação do dinheiro do associado à moeda atual parece traduzir a realidade que

Maria Helena quer imprimir em sua narrativa. Não há como saber, para esse artigo, a quantia

encaminhada por cada um dos sócios, o número de sócios, de alunos e de professores

participantes dessa associação. O desespero a que se refere é focalizado na necessidade do

atendimento das crianças. Maria Helena de Noronha não faz comentários sobre contrair uma

dívida e sentir o peso da consequência do não pagamento. Seu desespero e doença se

restringem ao não saber como fazer para dar continuidade ao atendimento.

Com a colaboração de outra família, a associação foi transferida para a Rua Ipiranga,

em Laranjeiras, e lá permaneceu por 10 anos, segundo sua informação. Essa fase de sua

narrativa é envolvida de certa melancolia. Deixando-se narrar, até então, pelos fatos e versões

de que se orgulhava, Maria Helena de Noronha precisou falar do encerramento do trabalho

na associação pela imposição de um novo presidente que, inclusive, “a aparelhagem, que

estava lá, ficou jogada. Ele não deu para ninguém” (2007).

A tristeza de informação sobre o fim do trabalho na associação é seguida da explicação

sobre sua saída da Educação Especial municipal. A narrativa, nesse momento, toma outro

rumo e outras questões aparecem. A insatisfação ausente nos demais depoimentos, torna-se

um lamento sobre o que não mais conseguiu fazer. Mesmo lendo, sem ter o áudio ou vídeo

que permitissem observar seu comportamento e suas expressões, é possível perceber a

tristeza e a desesperança que ela guarda na memória.

A narradora, dando continuidade a seu discurso, agora triste, comenta:

[...] eu também, quando chegou em 73, eu fui ficando assim, com várias decepções: de pedir as coisas; de querer fazer as coisas; de querer melhorar o ensino; de dar uma atenção maior aos professores, que atendiam essas crianças; e não se conseguia nada. [...] a gente ia para a secretaria; subia, ia para o secretário, andava, andava... A minha vida era quase que uma peregrinação, pelos órgãos. Aí você era reconhecida: a assembleia te dava "a

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mulher do ano"; "personalidade do ano". Essas coisas, eu tenho. Mas e as coisas? (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007)

A pergunta que deixa no ar diz muito sobre os recursos de que precisava, sobre as

mudanças políticas que precisavam ser feitas, sobre os apoios governamentais inexistentes. A

continuidade de sua narrativa fala da luta “[...] junto ao deputado Paulo Duque8 [...] para

colocar aparelhagem nas classes de surdos das escolas [...]”. O trabalho com o oralismo, como

concebido por ela, prevê aparelhos coletivos de amplificação sonora para auxiliar na

estimulação auditiva. O fechamento da associação e a descontinuidade do apoio

governamental para o trabalho nas escolas públicas motivam Maria Helena de Noronha a

mudar. Em 1973, ela fez concurso para professora do ensino normal e assume em 1974.

Mas, como uma fênix, ao final da entrevista, Maria Helena de Noronha volta a falar do

livro, da nova edição que pretende fazer e do convite para retornar à associação de surdos

comentando que: “Outro dia, a Léa me ligou. Foi a que me chamou, que me levou para lá:

‘Você, precisa voltar para lá!’ E eu digo: ‘Um dia, eu penso em voltar’” (Maria Helena de

Noronha, 2007).

Retomando a palavra

Tornar a ler a narrativa de Maria Helena de Noronha me possibilitou ver com outras

lentes a sua trajetória de vida e trabalho. Sendo mãe de 5 filhos e interrompido sua carreira

para acompanhar o trabalho do marido, esta mulher conta sobre lutas e envolvimentos

significativos com a educação e, particularmente, com a educação de surdos.

Retornando aos lugares de memória, Maria Helena de Noronha parece refazer o

caminho trilhado enfatizando a solidariedade como o fio condutor da coerência de sua

trajetória de vida. Suas memórias trazem detalhes do período que implantou e desenvolveu a

educação de surdos nas escolas públicas. São memórias consequentes, como observa Kotre

(1997), lembranças nítidas e duradouras de experiências passadas no período em que

reiniciou sua carreira de professora da rede pública de sua cidade. Experiências que

possibilitaram a continuidade de sua carreira. Maria Helena de Noronha narra memórias de

um passado em que foi valorizada, recebeu prêmios e condecorações, em que teve seguidores

e escreveu um livro por uma editora consagrada que distribuía seus volumes por todo o país.

8 Foi deputado estadual durante oito mandatos, dois pelo Estado da Guanabara e seis pelo novo estado do Rio, surgido com a fusão, em 1975, sendo um dos representantes do chaguismo, corrente política dentro do antigo MDB comandada pelo ex-governador Chagas Freitas. Chegou a ser candidato a vice-governador na chapa de Amaral Netto nas eleições de 1965, obtendo o 3.º lugar. Na Constituinte Estadual de 1989 atuou como relator.

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Em sua narrativa autobiográfica, Maria Helena de Noronha parece reavaliar o que

realizou durante sua experiência com a educação de surdos e, talvez amalgamando suas

opções com os valores católicos com que foi educada, tinge sua narrativa com as cores da

solidariedade presente nas ações filantrópicas e na fé que professa. Maria Helena narra a vida

que se mescla com a educação especial carioca nos anos de 1960 e início dos anos 1070, em

sua ascensão e declínio institucional.

A professora Maria Helena de Noronha, com seu depoimento, permite reafirmar que

retornar aos lugares de memória... “têm como razão de ser fundamental, parar o tempo,

bloquear o trabalho do esquecimento, imortalizar a morte, materializar o imaterial, fechar o

máximo de sentido no mínimo de signos” (NORA, 1984, p. 35 apud MIGNOT, 2002, p. 51).

Referências

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NORONHA, Maria Helena de; RODRIGUES, Maria Helena. O Deficiente da Audição e a Educação Especial. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1973. TARDIF, Maurice ; LESSARD, Claude. O Trabalho Docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2012.