MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL

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MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL 1 Chico Bicudo MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL JULHO 2014

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Livro de memórias do professor e jornalista Chico Bicudo no período da Copa do Mundo no Brasil 2014

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MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL 1

Chico Bicudo

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL

JULHO 2014

Ilustração da capa e abertura:

Cristiano Siqueira

Projeto Gráfico:

Ivan HP

“Em vez de dizer que o Brasil se faz reconhecer pelo seu po-derio futebolístico, mas não pelas coisas de fato importan-tes, é o caso de reconhecer que talvez seja difícil alguma coisa ‘de fato importante’ acontecer se não formos sequer capazes de compreender o sentido da importância que o fu-tebol ganhou no Brasil”.

(José Miguel Wisnik, livro “Veneno Remédio - O futebol e o Brasil”,

editora Companhia das Letras, 2008).

Para Elisa, Luiza e Daniel, titulares e

camisas 10 da minha Seleção. Sempre.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL6 7

54 27 de junho - O pé frio

57 28 de junho - Sufoco. E era uma vez um fantasma

60 29 de junho - A seleção brasileira no divã

65 30 de junho - Que Copa é essa?

69 1 de julho - Os deuses do futebol abençoaram Brasil e Argentina

72 2 de julho - Aos incríveis manos boleiros

75 3 de julho - Trilha sonora para a véspera da decisão

79 4 de julho - Futebol de rituais. Neymar, moleque... Obrigado!

82 5 de julho - Neymar Jr. Seleção, jogai por ele

87 6 de julho - Ira divina

91 7 de julho - Felipão recebe uma ligação

96 8 de julho - O que a gente faz quando o sonho de criança cai por terra?

100 9 de julho - Juntando os cacos

105 1 0 de julho - Os argentinos que me desculpem, mas torcer pela Alemanha é fundamental

109 11 de julho - Marin, Del Nero e cia, peçam para sair!

112 12 de julho - Felipãozinho vermelho, um conto de fadas

117   13 de julho - Capítulo final. Decime que se siente ahora...

9 Pré-copa - 64 jogos

11 Pré-copa - Sem ingresso

13 A véspera - É tempo de Copa

16 12 de junho - Bola rolando no Brasil

17 13 de junho - Rumo a Fortaleza

19 14 de junho - Castelazo

21 15 de junho - Quanto está o jogo da França?

24 16 de junho - O bolão do Daniel

27 17 de junho - Futebol moleque. Seleção burocrática

30 18 de junho - Que fúria?

32 19 de junho - Duas bolas, dois gols. Luis Suárez

35 20 de junho - Santástica Costa Rica

37 21 de junho - Lionel Messi. Eu vi

39 22 de junho - Cristiano Ronaldo ainda não esteve aqui

42 23 de junho - O cai-cai é artilheiro da Copa

45 24 de junho - Beijinho no ombro do zagueiro italiano

48 25 de junho - A Copa na Argentina me ensinou o que é ditadura

51 26 de junho - Luisito dá adeus à Copa

SUMÁRIO

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL8 9

Como fazer? Porque faltam oito dias para a Copa do Mundo, o que era dis-

tante expectativa já assumiu ares de ‘agora é para valer e vai começar de

verdade’, hoje tem jogo do Brasil, amistoso contra o Panamá, bem no meio da

tarde, vai ser televisionado, claro, mas devo estar em trânsito pela cidade. Cá es-

tou, angustiado, queimando neurônios e tentando desenhar essa agenda. Copa

do Mundo para mim é também a arte de se virar do avesso para conseguir ver

todos os jogos. Isso mesmo, meu projeto copístico, desde outros mundiais, quase

missão cívica, é assistir às 64 partidas, seja nos estádios (agora pela primeira

vez), nas transmissões ao vivo ou, no limite, quando não tem jeito mesmo, úl-

timo recurso possível, sem o mesmo gosto saboroso, sem a graça da surpresa

e já sabendo resultados, em reprises das pelejas. É preciso colocar nessa conta

também as outras tantas horas vividas na frente da telinha ou com o radinho

(vale celular também) grudado no ouvido, acompanhando as intermináveis me-

sas-redondas, os bate-bolas, os pré-jogos, os terceiros tempos, para desespero

daqueles que tentam me tirar de um quase estado de transe, sem piscar ou fazer

o mínimo movimento corpóreo que possa deixar escapar qualquer comentário,

análise, previsão ou palpite. Putz, olha lá, o PVC falou um negócio que não con-

segui entender. Perdi. Que droga! Não é fácil, reconheço, dar conta desse desafio

dos 64 jogos e muito mais. Em 1982, a primeira Copa que me bate viva na me-

mória, saía cedo do colégio nos dias de jogo do Brasil. Como os compromissos

escolares ainda não eram tão rigorosos - tinha apenas dez anos -, não foi lá tão

complicado deixar a TV ligada durante praticamente todo o dia, todos os dias da-

PRÉ-COPA 64 JOGOS

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL10 11

quele Mundial (mesmo depois da doloridíssima desclassificação do Brasil para

a Itália). Quatro anos depois, em 86, na oitava série, cheio de responsabilidades

e cobranças, começando a me preparar para os vestibulinhos de colegial, me vi

às voltas com a obrigação de conciliar o estudo para as provas com as partidas

da Copa - que, evidentemente, eram prioridade. Tantos anos depois, posso con-

fessar - algumas delas eu vi escondido, à revelia dos meus pais, garantindo a eles

(trabalhavam fora, mas ligavam com frequência para ter notícias da nossa rotina)

que estava firme e forte, na companhia inseparável dos cadernos e livros, quando

na verdade estava torcendo pelo Paraguai contra a Inglaterra. No Mundial da Itá-

lia, em 1990, vivia o tudo de bom e tudo é novidade bacana do primeiro ano da

faculdade, já trabalhando na área. O jeito foi fazer do velho radinho de pilha de

guerra e de tantas outras emoções futebolísticas o companheiro de mais algu-

mas horas. Inventei também trabalhos acadêmicos que tivessem estreita relação

com a Copa. Aí já era necessidade, questão intelectual. Argumento irrefutável.

Era preciso ver os jogos. Em 94, a Copa, imaginem vocês, concorreu com o Tra-

balho de Conclusão de Curso. O Brasil foi tetra, realizei o sonho de ser jornalista.

Para não perder as partidas da Copa da França, recorri a vários estratagemas -

um pedacinho do jogo na televisão do restaurante na hora do almoço, continua

no radinho, vê mais um tanto na TV instalada na sala de cursos do Sindicato dos

Professores (onde eu trabalhava). Valia até, antes de pegar ônibus ou metrô, pa-

rar nos pontos de táxi que tinham televisão - com direito à participação, óbvio,

em acaloradas e populares mesas-redondas que surgiam espontaneamente, im-

provisadas. Até os motoristas davam pitacos e esqueciam dos passageiros que,

aflitos, solicitavam corridas. A de 2002 foi especial - Luiza era recém-nascida,

acordava durante a madrugada para mamar, precisava ser trocada. Era o álibi

que eu precisava para ver todos os jogos - de certa forma, ela viu comigo. Até com

Tunísia x Japão nos divertimos! Nos dois Mundiais seguintes, ralei duro para com-

binar os jogos com a responsabilidade das correções de provas e o fechamento

do semestre letivo. É a situação agora novamente (re)vivida - quando a Copa co-

meçar, estarei justamente em semana de vista das avaliações e, em seguida, de

realização das substitutivas e dos exames. Já sentei como Daniel para analisar a

tabela e montar o nosso cronograma. Está tudo milimetricamente calculado. Va-

mos ver os 64 jogos. Antes disso, caramba, meu dilema imediato: o jogo de hoje

do Brasil. Como encrenca pouca é bobagem, terça-feira ainda é dia de rodízio.

Estou pensando em sair de casa pouco antes das quatro da tarde, carregando

o celular que tem televisão. Minúscula, mas quebra o galho. Preciso lembrar de

carregar a bateria. Posso recorrer ao rádio do carro também. Primeiro tempo re-

solvido. Em condições normais de temperatura e pressão, chego na universidade a

tempo de ver inteirinho, pela TV, o segundo tempo. A aula começa só às 19h. Só não

vai dar para participar das conversinhas depois do jogo. Fica faltando um pedaço.

Se bem que tem programa esportivo começando entre onze e meia-noite, quando

estou de volta em casa. Posso acompanhar - enquanto acesso o site da FIFA, na

tentativa de comprar ingressos para jogos da Copa em São Paulo. Vai dar certo.

Onze e cinquenta e oito. O site da FIFA pôde finalmente ser acessado. Avi-

sei o grupo. “Entrei”. Imediatamente acusei o golpe e fiz a ressalva. “Caí

numa tal sala de espera virtual. É assim mesmo?”. “Sim,”, confirmaram os que

já tinha se aventurado a tentar comprar os ingressos para os jogos da Copa. A

página da toda-poderosa que manda e desmanda no futebol mundial -e, agora,

até mesmo nas minhas poucas horas de sono - era até bastante educada. Agra-

decia a preferência e o meu desejo de participar de um dos maiores espetáculos

PRÉ-COPA SEM

INGRESSO

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL12 13

do planeta. Avisava que a demanda era grande. Pedia paciência. E perguntava se

eu queria ser avisado por um alarme quando fosse finalmente possível disputar

os bilhetes que ainda restassem. Cliquei no tal botão sonoro, concordando e so-

licitando o apito. Não achei bom presságio. Alertar quando der para comprar?

Sinal de que a espera seria longa. “Alguém conseguiu?”. Ninguém. Todos aguar-

dando confortavelmente na mesma sala de espera. Padrão FIFA. Tudo o que apa-

recia na tela do computador era uma bolinha que ficava irritantemente girando,

girando, girando, girando, girando e girando, sem parar. Quase fui hipnotizado.

Era o sono batendo forte mesmo. Liguei a televisão, ao menos para fazer barulho,

sei lá, é preciso buscar distração. Porque aquela bolinha maldita em looping era

de enlouquecer. Ainda deu tempo de ver metade do segundo tempo de Bósnia 1

x 0 México. Alguém lá no grupo, que teve a mesma ideia televisiva-futebolística,

brincou. “A Bósnia vai ser a surpresa da Copa”. Se for mesmo, lindo. Porque os

bósnios estão no grupo da Argentina. Toda derrota hermana será comemorada.

Meia hora. Comecei a desconfiar, levemente, que éramos todos uns trouxas, que

jamais conseguiríamos mísero ingresso, nem do setor mais barato. Foi quando

começaram a pipocar nas redes as mensagens animadoras. “Sem chances, não

há mais entradas para São Paulo e Rio de Janeiro”. “Acabou para a abertura”. “Só

tem para jogo peba”. A gente começou a fazer profundas avaliações filosóficas

sobre esses informes. Que intenções esconderiam? O amigo virtual estaria fa-

lando a verdade? Ou blefando, como num jogo de pôquer, só para derrubar e fa-

zer desistir um potencial adversário que, desanimado, clicaria no “fechar janela”?

Bom, mas já é uma da manhã. Esperei até agora. Não vou largar no meio do cam-

inho. A sensação é ambígua mesmo. Como sou amigo do zorro, estou perdendo

preciosas horas de sono. Certo. Mas não vai demorar tanto mais. Não é possível.

E já que vim até aqui, vou segurar até o final. Me contento com um jogo. Um jo-

guinho em São Paulo. Nem precisa ser a abertura, vá lá. Pode ser Inglaterra x

Uruguai. Ou Chile x Holanda. “Só saio daqui com ingresso da abertura”, mandou

um, fazendo troça lá no grupo. “Senhores, boa sorte. Vou dormir”, respondeu ou-

tro. Acabou o jogo da Bósnia. Acabou o Sportscenter. Deu tempo de ler trinta pá-

ginas do livro. Comi batata cozida cortadinha com azeite e sal. A bolinha da FIFA

continua a atormentar meus nervos. “Vou dormir também”, sentenciou mais um

guerreiro, depois de hora e quarenta de batalha. Veio a raiva. Porque começaram

a explodir nas redes babacas mostrando comprovantes impressos dos ingressos

e escrevendo ‘caraca, véio, fiz a rapa, nem sei o que comprei, fui clicando, tenho

um monte de jogos e agora vou revender pelo dobro do preço”. Cambistas vir-

tuais. Padrão FIFA, sempre. Eu? Cada vez mais amigo do zorro. Com raiva dessa

minha estupidez - mas sem forças ou coragem para refugar. Sei lá, vai que sobra

um. Uma hora e cinquenta e cinco minutos depois, o celular registrou a hora,

um iluminado do grupo anunciou. “Entrei nos ingressos!”. E aí? Sobrou alguma

coisa? “Não tem porra nenhuma”. Compartilhou a foto das sobras sortidas. Só

jogos em Natal, Manaus, Cuiabá. Cidades lindas, legais. Adoraria conhecê-las.

Mas falta tempo. E aquele tempo chamado grana também. Diante do argumento

irrefutável, das provas cabais, da concretude imagética do desastre, acabei me

rendendo. Não havia mais o que fazer. Desliguei o computador. Ajustei o alarme

- não o de alerta da FIFA, mas o que me arrancaria da cama. O cretino ainda teve

a petulância de lembrar que eu dormiria irrisórias três horas e quarenta e cinco

minutos. Deitei. Sem os ingressos para jogos em São Paulo.

Pintou quadradinho amarelo na tela. Média disponibilidade. “A gente vai con-

seguir? Finalmente? Vai dar certo? Por favor...”. O pai continuou em silêncio.

A VÉSPERA É TEMPO DE COPA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL14 15

Queria muito, mas não dependia só dele. Olhou só de relance para a expressão

aflita do filho, fração de segundo. Cantinho do olho. Deu uma vontade danada de

pegar o moleque no colo, dar um abraço nele, dizer bem baixinho “vai dar certo”.

Mas não podia mentir. Quem dera pudesse decidir. Fixou novamente as atenções

no computador, aquela máquina que insistia em guardar a sete chaves as tão

sonhadas entradas. Tentou se concentrar apenas nos movimentos dos dedos,

nos cliques no mouse e nas caixinhas que iam sendo abertas, solicitando mil

e uma informações. Já tinham tentado outras vezes, sempre sem sucesso. Na

fase de sorteio, duas vezes, receberam e-mail agradecendo a participação. “In-

felizmente, você não foi contemplado. Mas não desista. Em breve novos lotes de

bilhetes serão colocados à venda”. O filho chorou, decepcionado. Frustrado. “É

a abertura. Eu quero, pai. É a primeira Copa que eu vou ver de verdade”. “Eu sei,

filho, eu sei. É a minha décima. Porque da de 74 eu não me lembro. Mas essa é es-

pecial mesmo”. Foco. Rápido. Quadradinho amarelo. Média disponibilidade. Setor

3. Indique a quantidade de ingressos. Três. “Sua irmã também vai”. Processando.

Produto adicionado ao seu carrinho de compras. Ficará reservado para você por

quinze minutos. Avançar para o próximo passo. Dados do solicitante. OK. Nomes

dos convidados. OK. Doze minutos. Tudo na ponta dos dedos. Mínimos cuidados.

O garoto entendeu o significado do momento solene. Calou-se. Nem respirava.

“Vai, pai, vai, pai, vai, pai...”, torcia, por dentro, mordendo os lábios, mexendo as

pernas sem parar. Dados do pagamento. O cartão de crédito da esposa estava

ao lado da impressora havia dias (ele não tem essas facilidades modernosas ca-

pitalistas, é ponto fora da curva. Das antigas, dinossauro, diz que só consegue

gastar o que está na conta. Se deixassem, guardaria o dinheiro do mês todinho

no colchão). Número do cartão digitado. Nove minutos. O moleque começou a

pular. O pai também já não se continha. Estavam muito perto. Quase lá. Duzentos

batimentos cardíacos por minuto. Boca seca. Mãos tremendo, levemente. Certa

sensação de que a garota tão durona, tão difícil e tão desejada finalmente ia sorrir

e dizer ‘sim, eu aceito’. O filho não se aguentava mais. Começou a cantarolar “vou

ver Neymar, vou ver Neymar”. O pai imaginava o estádio cheio. A emoção que só

um jogo de futebol no campo é capaz de proporcionar. O drible. O toque de trivela.

Três dedos. A tabelinha. Não está mais comigo. A falta cobrada por cima da ba-

rreira. O chute de longe, no ângulo. Ninho da coruja. A defesa de mão trocada do

goleiro. A bola no meio das pernas. Olé! O zagueiro adversário incrédulo, bunda

no chão. O pulo, socando o ar. Aquele grito que nem é ensaiado, mas vem de uma

vez só, do fundo da alma. Gol! Tinha esperado 43 anos por aquele jogo (certo, ele

tem só 42, mas é que gosta de futebol desde antes de nascer). Cinco minutos.

Senha do cartão. Concluir compra. Clicou. Um, dois, três segundos. Nem pai nem

filho se mexiam. OPERAÇÃO NÃO REALIZADA. “Pai”! O grito do filho foi gutural.

“Tenta, tenta de novo, aperta o confirmar”. O pai apertou. Uma vez. Mais forte.

Começou a esmurrar o teclado. A mensagem não desaparecia. “Não é possível,

fizemos tudo certinho. Caiu o sistema? Alguém comprou antes? O que aconte-

ceu? Calma filho, não chora. Vem cá. Vem.. Filho...”. O moleque estava no quarto.

Tinha desabado na cama. Chorava descontroladamente. “Não é justo. Estava lá...”.

Era tudo o que conseguia dizer. As lágrimas pulavam dos olhos, aos borbotões.

“Filho, olha para mim. Não sei o que aconteceu. Não dá para saber. É tudo pelo

site. Não tem com quem falar. Escute, claro que a gente queria estar no estádio na

abertura. Mas vai ser um grande barato. Uma festa bacana. É Copa do Mundo. No

Brasil. Talvez você veja outra. Eu não. Estaremos no campo em outros jogos. Jun-

tos. Combinado? Paciência. Não deu a abertura. Não deu para conseguir o Brasil.

Mas já tem um monte de torcedor de outras seleções perambulando pela cidade.

Bem divertido. Vamos passear na Paulista amanhã?”. O pai tentava também se

convencer. Tão perto... Que merda! Que grande merda! O moleque ainda chorava.

Tentou falar. A voz a-in-da sai-iu-aos-so-qui-nhos. Soluçava. Parou. “Pai, por-fa-

vor-me-dá-dez-mi-nu-tos-já-vou-pa-ra-a-sa-la”. Foram vinte minutos, na verdade.

Mas o garoto apareceu sem chorar. “Estou muito triste”. O pai concordou com os

olhos. “A gente vai no jogo da Argentina?” O pai balançou a cabeça, confirmando.

“Vamos ver todos as partidas pela televisão?” O pai ergueu o dedo polegar, quase

sorrindo. “Vamos fazer buzinaço nos jogos do Brasil?” Claro!, berrou o pai. “Pro-

mete?” Com todo o meu coração, respondeu o pai, que lançou então o convite:

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL16 17

“vamos enfeitar o carro? Pegue ali as bandeirinhas, por favor”. Pela primeira vez

depois da tragédia dos ingressos para a abertura da Copa quase comprados e

repentinamente evaporados nalguma nuvem virtual, o filho esboçou sorriso. De

leve. Levinho. “Então vai ter Copa?”, mandou. “Claro que vai!”. Caíram na gargal-

hada. Pegaram a chave do carro. Abriram a porta. O filho saiu. O pai o seguiu. Cha-

maram o elevador. “Pai...É... Sei lá... Deixa o computador logado no site da Fifa. A

abertura é só amanhã. Vai que...”.

Esperei 42 anos. A Copa começou. A avenida Paulista estava tinindo de bacana,

torre de babel à paulista - muito verde e amarelo (sem constrangimentos ou

vergonhas, sem pedir licença ou desculpas, ainda bem), torcedores e bandeiras

da Croácia, do México, da Bélgica, da Itália, da Colômbia, do Chile, da Argentina,

da Costa Rica, do Equador, da Inglaterra. Tinha japonês vestido de samurai. A

festa de abertura foi fraquinha mesmo - mas também, confesso, não presto muita

atenção nelas. E sinceramente não me lembro de abertura de Copa (Olimpíada

são outros quinhentos) que tenha sido arrebatadora. São Paulo vaia. O Itaquerão

não vaiou. O hino à capela foi bonito demais. A Seleção começou perdendo - uma

infelicidade do Marcelo - e mostrou cabeça no lugar e poder de reação. Oscar jo-

gou vinte minutos de futebol amador. Irritante. Pífio. No restante da partida, foi

um dos caras. O outro cara foi ele - Neymar. Quando o Brasil precisou, o camisa

10 pegou a bola e disse “deixem comigo”. Não foi exuberante. Mas foi decisivo. Vi

12 DE JUNHO BOLA

ROLANDO NO BRASIL

o moleque fazer muito disso no Santos. Mas, claro, vão sempre aparecer aqueles

iluminados que gritarão “quero ver fazer isso contra seleção grande, de ponta”.

Paciência. Gelol custa barato na farmácia. Faz bem para cotovelos doloridos.

David Luiz e Luiz Gustavo também fizeram uma partidaça. Hulk não entrou em

campo. Paulinho está longe de ser aquele dos tempos de Corinthians. Os laterais

deram calafrios. Thiago Silva não comprometeu, mas também não passou perto

da sombra do melhor zagueiro do mundo. A bola não chegou para Fred. Não foi

pênalti mesmo. Errou o juiz - feio. Erro grotesco. Daí a dizer que a Copa está com-

prada vai uma distância de anos-luz. Só falta garantir que foram os petralhas que

acertaram antecipadamente o resultado do jogo. E chamar o Joaquinzão para dar

voz de prisão ao árbitro. Ou expulsá-lo de campo. Os panacas que vaiaram Dilma

são os mesmos que vão reeleger o Geraldinho em outubro. Então... Aliás, alguém

esperava outra coisa, considerando a plateia que, majoritariamente, esteve hoje

no estádio? A polícia do Geraldo? Continua a mesma. Vexame atrás de vexame.

Por falar nisso, depois da partida, os jogadores croatas detonaram o vestiário do

Itaquerão. Comportamento padrão primeiro mundo. Imaginem na Copa! Culpa

da Dilma? E agora vou dormir. Porque amanhã é dia de desembarcar em Forta-

leza. Mandarei notícias. Abraços e beijos para todos.

O taxista queria conversar sobre a vitória da Seleção. Está desconfiado. Acha

que o Brasil não jogou bem. Aeroporto de Cumbica movimentado. Logo

13 DE JUNHO RUMO A

FORTALEZA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL18 19

cedo. De novo, festa das camisas de seleções. Vi até uma do Panamá. Vinte mi-

nutos para fazer o check-in. Pânico! Imagina na Copa! Cara de sorte que sou,

a temida máquina que detecta metais acusou um canivete na minha mochila.

Eu ri. Ainda bem que não descobriram minhas armas de destruição em massa,

bem escondidinhas. O fato é que não adiantou argumentar. Reviraram tudo. Uma

zona. O vilão era o carregador de celular. Tinha cambista vendendo ingresso na

fila! Na caruda! Um sujeito comprou três para Espanha x Holanda. Cadê o Blat-

ter? O voo saiu na horinha marcada. Só no Brasil mesmo. E pousou em Fortaleza

duas da tarde em ponto, como previsto. Padrão FIFA. Quinze minutos na fila do

táxi, meio bagunçada mesmo. Dei sorte de novo - o motorista arretado já saiu

cantando pneu. Fez a primeira curva, fechadíssima, a oitenta por hora. Na ave-

nida, um retão, velocímetro já marcava 105. O México marcou três. Só um valeu.

Complô, apito amigo! Socorro, Joaquim Barbosa! Só você pode salvar essa Copa

do Mundo. Regime fechado para esses árbitros! O importante é que cravei cinco

pontos no bolão da família. A Holanda bailou em Salvador. Van Persie parou no ar,

em tarde de Dadá Maravilha. Peixinho perfeito. Clássico. Pode mandar enquadrar.

Robben fez fila na grande área. Outra pintura. A Espanha querendo voltar mais

cedo para casa. E teve pênalti mandrake para os espanhóis também. Joaquim,

Joaquim, onde estás que não respondes? A péssima arbitragem é culpa da Dilma.

Só pode. Por falar nela, cretinos fundamentais vaiaram hoje o Diego Costa. Imbe-

cis. O hino chileno cantado a plenos pulmões no Pantanal foi de arrepiar. Os bai-

xinhos de vermelho mandaram bem. Até Valdivia Havaianas guardou o dele. Mais

cinco no meu bolão, por favor. Trinta graus em Fortaleza. Aqui tem mais alvinegro

que tricolor. Caminhei pelo Centro, bastante simpático. Espero agora a chegada

de Eryx Pereira. Estaremos amanhã no Castelão, para ver a Celeste. Relevem os

erros, por favor. Escrevo no celular. Bom descanso para todos.

Castelazo. Eu vi. Manhã de sol infernal. A placa, seta para a esquerda, indi-

cava a Praia de Iracema. Em inglês, padrão FIFA, Praia de Iracema Beach.

Não é piada. Uruguaios já faziam festa danada, aos cantos de ‘vai, Celeste’, ban-

deiras tremulando à beira mar. Com direito até a acampamento improvisado.

Cruzamos com dois torcedores do Peñarol. Vocês são fregueses. Pelé e Neymar.

Duas Libertadores. Lembram? Memórias devidamente refrescadas. Na sacada

de um dos prédios, contei bandeiras do Brasil (muitas, claro) e também do Mé-

xico, da Colômbia, dos Estados Unidos, da Itália, da Inglaterra. Da Celeste. Todas

juntas. Deve ser a tal da globalização mega planetária que elimina fronteiras e

aproxima arretados afetos e emoções, como diria Gilberto Gil. Ou não. Aquele

abraço. Os torcedores da Costa Rica também marcavam presença. O azul do mar

de Fortaleza chega a ser maravilhosamente estúpido. O taxista quase atropela o

motociclista. Corre para o hotel. Para ver o primeiro tempo da Colômbia. E os co-

rais sul-americanos continuam afinadíssimos. Show. O hino colombiano cantado

pelo Mineirão foi de encher os olhos. Mais uma vez. Com menos de dez minutos,

veio o impagável Armeretion. Pode gravar no DVD dos melhores momentos da

Copa. Intervalo. Destino - Castelão. Tínhamos notícias da Colômbia pelas mensa-

gens via celular enviadas por irmão, esposa, primos, filhos, amigos. Narração em

rede. Padrão FIFA. Sempre. Até que o taxista entendeu nosso desespero e ligou

o rádio. Descemos no limite do primeiro bloqueio. Caminhada de uns dois quilô-

metros. Parada estratégica para uma coca-cola com chocolate. Vimos o terceiro

14 DE JUNHO

CASTELAZO

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL20 21

da Colômbia num arremedo de televisão de um quiosque. Nos limites do está-

dio, uma senhora perguntava ‘posso orar por você’? Se fosse capaz de adivinhar

o que viria, teria pedido uma oração braba. Para os uruguaios. Fila para entrar

no Castelão. Até que organizada. Uns vinte minutos. Sim, teve espertoman e es-

pertawoman que quiseram furar a fila. Sim, eu, um chato, não deixei e mandei

os dois... para o final da fila. Passei na revista. Não levei. Lugar marcado respei-

tado. Ok. Desviaram grana. Roubaram. Atrasaram. Desapropriaram. Expulsaram.

Muita coisa errada. Sem perder olhar crítico. Mas o estádio é lindo; meu lugar,

privilegiado. Dali, de muito perto, verei os quatro gols. Chorei com a entrada dos

times e os hinos. Foi bonito demais, camarada Mujica. Sonho de criança final-

mente realizado. Respeitando a história, comecei torcendo para o Uruguai, que

saiu na frente. Pênalti. A torcida foi ao delírio. ‘Celeste, cada dia te quiero mas’.

Aos poucos, o clima mudou. A Costa Rica tomou conta do jogo. Uruguaios cala-

dos. Tensos. Camisas vermelhas pulando e cantando. Empate. Uruguaios passam

a hostilizar, xingar e até ameaçam agredir quem torcia para a Costa Rica. Joga-

ram cerveja em vários. Prometiam porrada na rua. Princípio de tumulto. Me irritei.

Resolvi dançar o tango. Troquei de camisa. Copa do Mundo é assim, vale mudar

de repente. Porque a Costa Rica jogava bola. De verdade. O Uruguai jogava com

o nome. Sem vontade. Comemorei a virada. E festejei muito mais o terceiro gol,

para desespero dos uruguaios. Detalhe - a Costa Rica está treinando em templo

sagrado do futebol. Vila Belmiro. Faz sentido. Saiu aplaudida de campo. Caste-

lazo. Alunos disseram que vinguei a alma do goleiro Barbosa. Mais dois quilôme-

tros de caminhada. Demora para conseguir táxi. Corre para a praia de Iracema

Beach, vendo o jogo da Itália na micro TV do carango. Não tem lugar para comer

em Iracema. Estou varado de fome. Não almocei. Só café da manhã, às nove da

matina. São sete da noite. Nem pensar em comida no estádio. Filas gigantescas.

Bagunça. Passei o dia com chocolates e refrigerantes. Alimentação padrão FIFA.

Fifíssima, diria. Voltamos para um restaurante perto do hotel. Final do jogo da

Itália. Ah, a Azurra, diria Fernando Vanucci. Filé com fritas, finalmente. E cerveja

gelada com o mano, claro. Voamos para o hotel. Ar condicionado no talo. E está

só fresquinho. Achei que Santos fosse o centro do aquecimento global. Errei. É

Fortaleza. Estamos nos divertindo com Japão x Costa do Marfim. Aliás, só bons

jogos até aqui nessa Copa. Aécio foi oficializado candidato? Azar de quem vai vo-

tar nele. O Jornal Nacional deu dez minutos para o cara? Agora a novidade... Mais

maluco que eu, Eryx Pereira segue na madrugada para Porto Alegre. Vai ver a

França. Volto amanhã para São Paulo. A saga continua. Desconsiderem erros, por

favor. Celular. Voltamos a nos falar em breve. Bom descanso para todos.

Domingo dedicado a treinos regenerativos. Descanso merecido. Estava que-

brado. Passei a manhã na cama, na frente da TV. Conversinhas de futebol.

Treino do Brasil. Hulk machucou. Preocupa, dizem os repórteres. Na entrevista

coletiva, o atacante diz que foi só susto. Precaução. Garante que joga contra o

México. Vai ver que os comentaristas esportivos estão inspirados pela temporada

de festas juninas. Olha a cobra! É mentira! Olha a chuva! Já passou! Estou mais

vermelho que um pimentão. Paulista branquelo que acha que consegue encarar

o sol do Nordeste. Toma, papudo. Ainda bem que não está ardendo. Por falar em

calor, italianos e ingleses se arrastavam em campo ao final do segundo tempo

ontem, em Manaus. Esgotados. Faz parte. Paciência. O Brasil também já preci-

sou atuar debaixo do sol do meio-dia em Dallas, na Copa dos Estados Unidos,

em 1994. Padrão tio Sam. Lá, como cá. O taxista que me leva ao aeroporto sonha

15 DE JUNHO

QUANTO ESTÁ O JOGO DA FRANÇA?

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL22 23

com uma final contra a Argentina. Grandioso. Desde que o Brasil ganhe. Check-in

em três minutos. Isso mesmo, três. Assim não dá, presidenta. Está errado. O que

vão dizer dessa Copa depois? Cadê o caos aéreo anunciado, cantado em verso e

prosa? Tome providências, por favor. Com urgência. Mar de sombreiros e camisas

verdes. Mexicanos chegando empolgados. Camisas celestes quase desbotadas.

Uruguaios partindo cabisbaixos. Preocupados com o fantasma. Não o de 1950. O

de uma possível volta antecipada para casa. Jogam no Itaquerão na quinta contra

a Inglaterra. Quem perder... Estarei lá. Estou deixando Fortaleza. Valeu! A Seleção

Brasileira está chegando. Cocei a cabeça. Se arrumar ingresso para a partida do

Brasil no Castelão, estico a reserva no hotel. Fico até terça. Vontade não falta.

Mas não dá. Semana de vista de provas na universidade. O dever chama. A loja

oficial da FIFA no aeroporto é impraticável. Assalto. O produto mais barato que

vi por lá custa 49 reais. Um chaveiro que é réplica da taça. Minúsculo. 49 reais.

Quem pode? Por falar em exclusão, vi poucos negros no Castelão. Pouquíssimos.

Salva de palmas para a democracia racial brasileira, maximizada pelos preços

populares dos ingressos cobrados pela dona FIFA. Vi Suíça x Equador almoçando.

Primeiro tempo truncado. Segundo tempo melhor, mas sem grandes emoções.

A temperatura ferveu no finalzinho. Eletrizante. Times atirados. Atacando. O jo-

gador do Equador perdeu gol feito. No contra-ataque, último minuto, virada da

Suíça. Ouvi uns gritos de comemoração no aeroporto. Passadinha rápida na li-

vraria, para ver as manchetes dos jornais. Dois dias sem ler as edições impres-

sas. Síndrome de abstinência. Dessa vez, não me pararam por carregar canivetes

escondidos. Que bom. Talvez eu não tenha então cara de terrorista. O avião de-

colou na horinha marcada. Cravado. Pode isso, Dilma? Fica difícil assim. Imagina

na Olimpíada! A moçoila da poltrona da frente usava tranquilamente o celular.

Apesar dos insistentes e categórico “a partir de agora, todos os aparelhos ele-

trônicos devem ser desligados”. Muito civilizada. O avião deu umas chacoalhadas

esquisitas na primeira hora de viagem - 2345 quilômetros separam Fortaleza de

São Paulo. Dica que sempre me deram - olhar para a comissária de bordo. Foi o

que fiz. Ela continuava andando, preparando o lanche. Tudo bem. Me acalmei.

Tenho medo de avião. Não levanto para ir ao banheiro. Não durmo. Leio um tanto

de “O professor”, do Cristovão Tezza. Vai escrever bem assim lá no “Filho eterno”.

Livraço. Livraços. A televisãozinha de bordo mostrava gols de Copas passadas. A

máquina laranja da Holanda em 1974. A Copa da ditadura na Argentina. O fute-

bol arte do escrete do Telê em 1982. La mano de dios em 1986. A França de Pla-

tini. Bacana. Divertido passa tempo. Caraca, mas eu estava mesmo era querendo

saber quanto estava o jogo da França contra Honduras, em Porto Alegre. Que

angústia. Não poder ver ao vivo um jogo da Copa. Goleada? Outra zebra? Eryx Pe-

reira, que estava no Beira Rio, prometeu gravar A Marselhesa. Allons enfants de la

Patrie. O hino mais bonito do mundo. Fiquei sabendo depois que não tocaram os

hinos. Deu pau. Problema técnico. Já vi a cena. Fiasco. Os times perfilados. Nada.

Que feio, Blatter. Que padrão FIFA é esse? Lembram quando, na Copa do México,

tocaram o Hino da Independência? Doutor Sócrates ficou fulo. O avião pousou

também no horário certinho. É. Estou achando que monsieur Blatter não vai mais

querer fazer Copa no Brasil. Nunca mais. Minha agonia terminou assim que pude

religar o celular. Mais de 40 mensagens num grupo do uatzap praticamente na-

rravam a partida da França inteirinha. Várias vozes, a mesma peleja. Saboroso.

Vivas ao mundo virtual! 3 x 0 França. Com direito a uso de tecnologia num deles.

Vou ver o VT em casa. Todinho. Deve passar na madrugada. Projeto assistir na

íntegra a todos os 64 jogos da Copa. Vai dar. Pego de relance o primeiro gol - con-

tra - da Argentina no saguão de desembarque. Táxi em menos de cinco minutos.

O senhor pode por favor ligar o rádio? Para ouvir a Argentina. O motorista não

pestaneja. Fico imaginando os lances. Partida morna, sem emoção. Chego em

casa a tempo de ver o segundo tempo. Antes, muitos abraços apertados e bei-

jos carinhosos da Elisa Marconi, da Luiza e do Daniel. Não há lugar como o lar.

Sentamos para ver juntos o segundo tempo. Apelidamos nosso sofá de Arena Es-

távamos Todos Com Saudades. Padrão mais que FIFA. Jogo continua sem graça.

Mas o Maraca estava bonito, pintado de azul e branco. Foi quando apareceu o

craque. Para fazer valer o ingresso. Messi. E um pequeno pollo - certo, Lisandra de

Moura? - do goleiro hermano no final. O resultado ajudou a manter a espetacular

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL24 25

média de 3,3 gols por jogo até aqui na Copa no Brasil (37 tentos em 11 partidas).

Maravilha. Um brinde ao futebol. Imagine na Olimpíada! Minha coluna dói. Três

hérnias de disco. Minha alma sorri. Feliz. Final de semana especial. Inesquecível.

Trinta graus em Fortaleza. Dezoito graus em São Paulo. Já separei o cobertor. Vou

cair na cama. Mereço. Amanhã tem jogão. Alemanha x Portugal. Conversamos.

Ótima semana para todos.

Final de semestre letivo. Aplica prova. Corrige prova. Lança nota. Prepara

substitutiva. Começa a pensar nas novas disciplinas. A organização da Copa,

no entanto, foi generosa. Tabela padrão FIFA. A semana é curta. Vem aí mais um

feriadão. Uruguaios e ingleses prometem tomar conta das ruas de São Paulo. A

Vila Madalena vai ferver. Mais ainda. Lá se vai quase uma semana. Ainda não me

conformei com as estúpidas ofensas dirigidas à presidenta Dilma na abertura.

Típico comportamento dos ressentidos e raivosos, alimentados pelos relinchos

de Reinaldos e Rodrigos. O aprendiz de blogueiro do panfleto da Abril, aliás, deto-

nou hoje o “2014” em vermelho que aparece no logo oficial do Mundial. Garante

que é mensagem subliminar do PT. O vermelho dos comunistas comedores de

criancinhas. Precisa ser internado. E levar com ele todos os insanos leitores. Saiu

a primeira parcial do bolão da família. São 24 participantes - além do núcleo es-

pecífico Marconi Bicudo, irmãos, pais, cunhado, cunhadas, primos, namoradas

dos primos, tios, sobrinhos. Diversão que já tem muitas Copas. Tradição. Daniel é

16 DE JUNHO

O BOLÃO DO DANIEL

a revelação de 2014. Vice-líder. Um só ponto atrás do primeiro colocado. Cravou

vários resultados. Menino boleiro colocando medo em gente grande. O pequeno

ficou entusiasmadíssimo. Adora uma competição. Ainda mais futebolística. Às

vezes exagera. Ontem, no jogo da Argentina, comemorou o gol da Bósnia como se

fosse do Santos. Ele tinha 2 x 1; eu, 2 x 0. Matou dois coelhos com um tento só. Ti-

rou o doce da boca do pai - aliás, torceu abertamente contra mim, sem qualquer

constrangimento. E avançou firme na tabela de classificação. Saiu correndo pela

sala. Parecia o coelhinho das pilhas duracell. Não parava. Estou bem no bolão,

estou bem no bolão, cantava. Ria à toa. Tirava sarro. No almoço, hoje, volta da es-

cola, entrou pela porta da sala como um furacão. Nem tirou a mochila das costas.

Quanto está o jogo de Portugal? Estou fazendo pontos no bolão? Já estava 1 x 0

para a Alemanha, gol de pênalti, logo no comecinho. Era duelo de uma seleção

de um homem só (Portugal de Cristiano Ronaldo, apagadíssimo na Fonte Nova)

contra uma legião de craques (Khedira, Lahm, Özil, Kroos, Götze e Müller - que

meio/ataque é esse? Covardia). No banco alemão, Miroslav Klose. Torço muito

para ele entrar. Marcar dois gols. E arrancar do oportunista Ronaldo global ae-

cista a marca de maior artilheiro das Copas. Daniel senta ao meu lado. Pai, tenho

2 x 0. Estou no jogo. E você? Dei 3 x 1, respondo. Ele faz piada. Xi, dançou. Portugal

não vai marcar hoje. A previsão parece se confirmar quando o brucutu Pepe dá

um tapão e uma cabeçada no atacante alemão. Expulso. Com justiça. Com um a

menos, vem o massacre. O primeiro tempo termina 3 x 0. Alemanha baila. Aula de

futebol. Apresentação de favorita. O moleque fica tenso. Já não dá mais para ele

cravar. Torço por um gol dos patrícios. Pai, será que alguém tem 3 x 0? Vão me

passar? Vou perder a vice-liderança? Que porcaria! Quarto gol da Alemanha no

final do segundo tempo. Ele comemora. Boa! Duvido que alguém tenha goleada!

Ninguém vai acertar o resultado! Tudo vai ficar igual! Sai gargalhando. Prepara as

escalações. E vai jogar mais uma partida de Copa do Mundo de bexiga no quarto.

Ouço no rádio que o comércio no entorno do Itaquerão triplicou no dia da aber-

tura. A expectativa é vender e lucrar mais ainda nas próximas partidas. Índice de

atraso dos voos é de apenas 4%. Oficialmente. Menos que a média internacional.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL26 27

Padrão para além da FIFA. Imagina na Olimpíada. No Rio, a beleza da festa dos

argentinos no Maracanã concorreu com a brutalidade da polícia militar nas ruas

próximas. Tiro, porrada e bomba. A PM de Cabral/Pezão imita a PM de Geraldo.

E vice-versa. Não sabem como lidar com protestos. A população de São Paulo

está com medo da água retirada do volume morto do sistema Cantareira. Mas

continua votando no Geraldo. O democrata Aécio persegue e censura jornalistas.

Nos gramados, o Mundial é um sucesso. Correspondentes estrangeiros sugerem

que é a melhor Copa desde a de 1982, na Espanha. Nas redes sociais, 70% das

manifestações na semana passada eram contrárias ao torneio; hoje, 70% são

favoráveis. Serve como termômetro de narrativas. Partidas muito boas, seleções

ofensivas, baita média de gols. Irã x Nigéria - a exceção a confirmar a regra. So-

frível. De doer. Sono. Mas é Copa. Não desliga a televisão. Trombadas, furadas,

empurrões, caneladas, bicudas para a arquibancada. Daniel não perde a chance.

Essa Nigéria horrível não faz gol. Vai ferrar o meu bolão. Porcaria de time. Não

sabem jogar. Segundo tempo foi no rádio. A brincadeira era narrar em iraniano e

em nigeriano, arriscando sotaques de tribos diferentes. Era o que dava para fa-

zer. Já no final, o narrador mandou um “se tirarem as traves, ninguém vai sentir

falta”. A peleja foi medonha até o fim. Já vi coisas bem melhores nas areias do

José Menino, em Santos. Consegui chegar na universidade a tempo de ver o gol

relâmpago dos Estados Unidos contra Gana. Trinta e dois segundos. Um dos mais

rápidos da história das Copas. Daniel no telefone. Ferrou, ferrou. Vou zerar. Dei

vitória de Gana. Estou ferrado. Consegui imaginar o tamanho da tromba. Ouvi - e

entendi - os resmungos. Mandei segurar a onda. É só brincadeira. Diversão. Sem

estresses. Mais provas (rescaldo da greve dos metroviários na semana passada).

Corrigidas. Notas lançadas. Gana foi melhor o jogo inteiro. Pressionou. Mas sem

chutar. Ainda marcou belo gol de empate. O zagueirão, últimos minutos, achou

que era legal brincar na defesa. Em jogo de Copa. Cedeu escanteio tolo. 2 x 1 Es-

tados Unidos. Esse fui eu que cravei! Cinco pontos no bolão. Assumi a liderança.

Daniel está agora em quarto, três atrás de mim. Tudo embolado. Emocionante

disputa. Amanhã estreiam duas seleções que prometem fazer boa Copa - Bélgica

e Rússia. Acompanharemos. Tem o segundo jogo do Brasil. Daniel quer saber os

palpites do meu bolão. Vai secar, claro. Vou lá começar a concentração.

Vai, Chico. Vem tirar a bola de mim. Vem aqui. Olé! Agora eu sou o goleiro.

Você chuta. Pode mandar. Vou defender. Tomo distância. Ele toma posição.

Ameaço uma vez. Finjo de novo. Ele abre os braços. Passo o pé por cima da bola.

Pedalo. Brinco. Dou risada. Ele fica impaciente. Vai logo! Não enrola! Três passos

para trás. Começo a correr. Aponto o canto. Dou um toque bem de leve, na es-

querda dele, que se atira. Faz a defesa. Rola. Levanta com a bola como se fosse

um troféu. Orgulhoso, me encara. Desafia. Viu só? Não disse que eu ia defender?

O saguão do primeiro andar da universidade estava quase vazio. Ritmo de férias.

Aproveitamos. Fizemos daquele espaço uma muito aconchegante arena. Quase

padrão FIFA. Eu e o Henrique, seis anos, filho da professora Claudia. Mandamos

ver. Clássico movimentado, disputadíssimo. A pelota era minúscula. Quase bol-

inha de ping-pong, um pouco mais pesada. Tinha o distintivo do Palmeiras des-

enhado. Para o menino, era a brazuca oficial. A camisa dele estava molhadinha

de suor. Os cabelos loiros estavam desgrenhados. Mãos pretas de tanta sujeira.

Felicidade estampada no rosto. Não para, Chico. Estou ganhando. Soltou a bol-

inha no ar. Meteu o pé nela. Sem deixar cair no chão. Verdadeiro sem-pulo. Que

17 DE JUNHO FUTEBOL

MOLEQUE. SELEÇÃO

BUROCRÁTICA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL28 29

explodiu no ombro de uma mocinha que ousara invadir o campo, sem avisar. A in-

vasora riu. Foi sem querer. Desculpa, moça, mandou o Henrique. E continuou co-

rrendo com a redonda. Quando eu tinha a idade dele, também transformava em

campo qualquer metro quadrado disponível. Podia ser a sala do apartamento (a

janela era o gol). O corredor ao lado da sala de aula. O tanque de areia da escola.

Um pedaço da calçada em frente ao prédio. Qualquer coisa que fosse chutável

fazia as vezes de bola. Uma tampinha de garrafa. Copinho de danone. Potinho

de yakult. Garrafinha de água. Mais resistente, latinha de refrigerante era objeto

de máximo desejo. Tínhamos, os boleiros, um compromisso de honra: não pisar

nas pelotas improvisadas. Em hipótese alguma. Jamais. Nunquinha. Porque se

fossem amassadas, o jogo terminava. Nem pensar. Eram partidas épicas. Memo-

ráveis. Verdadeiras decisões de campeonato. Nervos à flor da pele. Rivalidades.

Quem queria perder para a outra classe? Cada racha... As meninas ficavam tor-

cendo. A gente se empolgava. Disputávamos cada bola. Comemorávamos cada

gol. O garoto responsável pelo tento da vitória não raro saía carregado. Aplaudido.

Herói. Os uniformes sofriam. Terminavam o dia imundos. Rasgados. As mães da-

vam broncas. Homéricas. Assim não dá. Agora vai usar essa camisa até o final

do ano. Não vou comprar outra. Azar o seu. Depois, solidárias, adotavam medida

de emergência. Mandavam o sapateiro colocar nos joelhos e cotovelos aqueles

remendos ovais de couro. Da mesma cor, de preferência. Horrorosos. Mas efi-

cientes. Garantiam sobrevida às calças e blusões. Jogando com o Henrique, voltei

aos meus sete, oito anos. A manhã passou mais rápido. Ajudou a descarregar a

tensão. Exorcizar demônios. Estava precisando. A bola, essa desde sempre minha

amiga de todas as horas. Qualquer que seja o formato dela. O tamanho. O peso.

Paixão antiga. Que nasceu quando eu ainda era óvulo e espermatozoide. Um,

dois, três. Respira. Concentra. Tem Seleção em campo de novo logo mais. Contra

o encardido e bem arrumado México. Segunda rodada do grupo. Valeu, Henrique!

Demos boas risadas. Agora preciso ir embora. Chico, outro dia a gente joga de

novo? Fechado. E bom jogo do Brasil para você. Era o que sinceramente eu es-

perava. Mais uma vitória convincente do time de Felipão. Gols. Show de Neymar.

Quem sabe até garantíssemos a classificação antecipada. Estava tudo pronto.

Castelão lotado. Clima de festa em Fortaleza. A cidade está tomada pelo verde

e amarelo. Hino à capela. Apita o árbitro. A bola do Brasil? Não apareceu. So-

fremos pressão. Passamos apuros. Erramos passes. Vimos a pelota passar bem

perto da trave de Julio Cesar algumas vezes. Fomos burocráticos. Criatividade

zero. Improviso menos dez. Não, não falo de arrogância, salto alto. Os jogadores

correram. Dividiram, se esforçaram. Mas foi só. A Seleção jogou mal. Verdade que

o goleiro mexicano foi um dos destaques da peleja. Salvou uma cabeçada de Ne-

ymar em cima da linha, no primeiro tempo. Defendeu cabeçada de Thiago Silva

à queima-roupa, finalzinho do jogo. E ainda abafou chute de Neymar, também no

segundo tempo. A torcida ficou preocupada. O desempenho dos nossos boleiros

ficou bem aquém daquilo que são capazes. Todos? Não. Tiro Luis Gustavo dessa

conta. Disputou mais uma partida soberba. Impecável. É discreto. Brilhante. Joga

de cabeça erguida. Marca firme, sem fazer falta. Não erra passes. Tem excepcio-

nal senso de cobertura. Toma conta de todos os espaços. É um volante clássico,

das antigas. Ele foi o ponto fora da curva. Numa rodada que foi, no conjunto, bem

modorrenta. A mais fraca até aqui. A Bélgica decepcionou. Bateu cabeça para

virar o jogo contra a Argélia. A Rússia começou perdendo. Só conseguiu empatar

com a Coreia do Sul. Para além dos gramados, os números são alvissareiros. Em

cinco dias, São Paulo recebeu 64 mil turistas. Dez mil deles são estrangeiros. Na

véspera da abertura da Copa, duas mil pessoas visitaram o Museu do Futebol.

Copa do Mundo é também tempo de saborear as crônicas de Luis Fernando Ve-

ríssimo. Hoje ele escreveu sobre o carinho com que o volante italiano Pirlo trata

a gorduchinha. Recomendo. No bolão da família, nenhuma mudança. Terminei

a terça-feira na liderança. Daniel continua na parte de cima da tabela, brigando

com os grandes. Aflito. Querendo saber os palpites de todos os demais partici-

pantes. Aguardo com ansiedade o Espanha x Chile de amanhã. Promete. Imper-

dível. Primeira surpresa da Copa? Será que o Henrique gostou do jogo do Brasil?

Boa noite. Bom descanso.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL30 31

A campeã voltou. Mais cedo para casa. Dois jogos, duas derrotas. Sete gols

sofridos. Um só anotado. De pênalti - bem mandrake. A Fúria comprou a

Copa! Está na cara! Esquema Reino de Castela! Será? Maracanã e Espanha defini-

tivamente não combinam. Não ornam. A atual campeã do mundo chegou falando

grosso. Confiança de quem tinha papado tudo nos últimos anos. Vai terminar a

Copa sussurrando fininho, enfrentando a Austrália num vale-nada. Já pensou

perder para os cangurus boleiros e terminar em último do grupo? Acho que os

jogadores espanhois queriam mesmo era retornar a tempo de ver o novo rei ser

coroado. Por qué no te callas, Chico? Vai começar a temporada de caça às bruxas.

Não era tudo isso mesmo. Ganharam por acaso em 2010. Espanha não tem ca-

misa. Não tem história. O futebol está entrando nos eixos. Voltando ao normal. Foi

só ventinho passageiro. A convocação do Diego Costa rachou o time. Subiram no

salto. Empáfia. Pode ser tudo isso e mais um pouco. Mas o fato, meus profetas do

apocalipse, é que não se ganha dois títulos europeus de seleções e uma Copa do

Mundo por sorte. Obra do acaso. Iniesta e Xavi têm lugar de destaque no altar dos

craques de todos os tempos. O Chile foi grande. Estupendo. Não deu chances. A

começar pelas arquibancadas. Contagiantes. Que o la tumba serás de los libres

o el asilo contra la opresión. Allende, meu camarada, el pueblo unido. Cantando.

Festejando. Bonito. O vermelho tomou conta do estádio. Propaganda subliminar

encomendada pelo PT. Aposto. Cretina foi a invasão da sala de imprensa por al-

guns torcedores trogloditas sem ingresso. Babaquice completa foi novamente a

histeria de xingamentos contra o atacante Diego Costa. Quem ofende é a mesma

18 DE JUNHO

QUE FÚRIA?

torcidinha de balada que acha que o suprassumo do máximo num jogo de Copa

do Mundo é dar tchauzinho para o telão. Fazer coraçãozinho juntando as mãos.

E entoar a plenos pulmões o “com muito orgulho, com muito amor”. Paspalhos.

Ouvi o primeiro tempo no rádio, no carro. Um tantinho, até o primeiro gol, cra-

vadinho, junto com a Luiza e o Daniel. Depois, até os trinta do segundo tempo, a

caminho da universidade. Fatura garantida. Os quinze minutos finais consegui ver

na Arena Sala dos Professores. Temperatura e umidade relativa do ar bastante

agradáveis. Arquibancadas e gerais completamente lotadas, setores 1, 2, 3... Tor-

cida docente cerrando fileiras com os bravos e hábeis baixinhos chilenos. O jogo

nem tinha acabado e o nosso terceiro tempo já estava a todo vapor. Éramos todos

espectadores-palpiteiros. Comentaristas padrão FIFA. “A metrópole não está se

dando bem mesmo. Portugal vai logo também. Nunca vi um time correr tanto.

Muito bom esse zagueiro central. A Espanha não renovou, trouxe uma geração

envelhecida. Não dá para deixar o Xavi no banco. Esse técnico é louco. Valdivia

entrou. Mas já pediu substituição. Sentiu fisgada na coxa. Prefere ser poupado”. A

encrenca, torcida brasileira, é que esse bom time do Chile pode em breve cruzar

o caminho do Brasil. Ou talvez seja a temida Holanda, que fez hoje um ótimo jogo

bumerangue contra os cangurus australianos. Saiu na frente. Tomou a virada. Re-

virou a partida. 3 x 2. Vem chumbo grosso por aí. Antes, claro, o Brasil precisa

confirmar no campo a classificação para as oitavas. Dormi mal a noite passada.

Ressaca. Sono agitado, quebrado. Levantei várias vezes. Meio dormindo, meio

desperto, aquele estado de vigília entorpecida, comecei a pensar no que faria se

fosse o Felipão. Primeiro, carcada geral. Depois, conversinhas aos pés de ouvi-

dos. Dirigidas. Paulinho, guri, esqueceu o futebol em Yokohama? Marcelo, bah,

deixe de se jogar na área. Bernard, os milicianos ucranianos roubaram a alegria

de suas pernas? Daniel Alves, comer a banana foi genial. Mas dá para jogar um

pouquinho de bola também? Oscar, quero um jogo bom, outro também. Fred,

tem muito neguinho aí que colocou você no bolão como artilheiro da Copa! Honre

esse compromisso! Neymar, tu é craque. Mas solta a bola de vez em quando,

combinado? Estou nervoso. Imagina na noite de domingo. Imagina na Olimpíada.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL32 33

Imagina quando o árbitro apitar o início do jogo contra Camarões - que hoje, com

um a menos, foi massacrado pela Croácia. Falta muito para segunda-feira? Os no-

bres vereadores paulistanos rejeitaram o projeto que decretava feriado no dia do

jogo. Sábios. Será volta de feriadão. Tem Chile x Holanda no Itaquerão, começo da

tarde. E todo mundo saindo cedo do trabalho para ver o Brasil. Promessa de for-

tes emoções. São Paulo vai travar. Perdi a liderança no bolão da família. Amanhã

estarei no Itaquerão. Uruguai ou Inglaterra? Quem vai acompanhar a Espanha?

Para estufar esse filó como eu sonhei. Só se eu fosse o Rei. Para tirar efeito

igual ao jogador. Qual compositor. Para aplicar uma firula exata. Que pintor.

Parabéns pelos 70, meu xará Chico Buarque. Nada mais digno que um Uruguai

x Inglaterra em Copa do Mundo para te homenagear. O inglês passou a catraca

do metrô com bilhete único. Deve ter sido comprado pela prefeitura petista para

fazer propaganda. Hello, nice to meet you. Hola, que tal? O trem partiu da es-

tação República no embalo dos cantos dos uruguaios. “Sooooooy Celeste!”. Es-

tava cheio, bem cheio. Sem superlotação. Tranquilo para quem encara Sé durante

a semana, seis da tarde. Subiu cheiro azedo. Podre. Alguém matou feijoada no

almoço. E não fez a digestão direito. Desagradável. Uma senhorinha, uns setenta

anos, entra correndo. Abraça os netos. Vó, a senhora vai ver jogo de Copa! O pri-

19 DE JUNHO

DUAS BOLAS, DOIS GOLS.

LUIS SUÁREZ

meiro tempo de Colômbia e Costa do Marfim termina zero a zero. Zona Leste pin-

tada de verde e amarelo. Trinta minutos. Artur Alvim station. Na rampa de saída,

um figura segura um cartaz. “Buy tickets”. Os ingleses tomaram conta dos bares

ao redor. Bebem pouco. Quase nada. Tudo bem sinalizado. Voluntários reforçam o

caminho para o estádio. Eu e Luiz Paulo Montes andamos com a massa mais uns

trinta minutinhos. Rumo ao setor oeste. Quando chegamos perto, tiro da sacola

os sapos que vieram comigo. Para enterrá-los no Itaquerão. O estádio é bonito.

Belíssimo. Suntuoso. Caminhos de mármore. A arquibancada provisória é bem

provisória mesmo. Tem goteiras. Remendos à vista. O Castelão é mais caldeirão.

Encontro um santista com uns três metros de altura por quatro de largura. Ver-

dadeiro armário. “É nóis, peixe. Se precisar de alguma coisa é só me chamar”.

Estou sossegado. Segurança particular. De respeito. Lugares numerados também

respeitados. Visão bacana, ligeiramente prejudicada por uma grade de ferro. Nos

lances mais próximos do escanteio, preciso esticar o pescoço. Esforço mínimo

para quem está acostumado a ver jogos na Vila Belmiro, onde há festival de pon-

tos cegos. O frio é um capítulo à parte. De rachar. Cortante. Venta. A sensação

térmica é de oito graus. Não sinto mais a ponta do nariz. As mãos estão roxas.

Mas tem inglês com bermuda e camiseta regata. E uma coleção de copos de cer-

veja. Deu até para encarar a fila da lanchonete. Sanduíche de peito de peru com

coca-cola. Dezoito mangos. DEZOITO. Preço padrão FIFA. Estamos atrás do gol

onde Luis Suárez vai resolver o jogo, onde a torcida do Uruguai é maioria. Times

em campo. “Soooooooy Celeste! Soooooooy Celeste!”. Bom. Temos uma torcida

de futebol. Os ingleses respondem e urram. “England”! Bom também. Temos

duas torcidas de futebol. A moçada começa a bater os pés no chão. “Está ba-

lançando, vai cair”. Hinos cantados a plenos pulmões. Os colombianos, que ven-

ceram a Costa do Marfim por 2 x 1, já tinham dado mais um show. Quando são os

irmãos da América, é espetacular. E é mesmo. Maravilhoso. Brasileiros cantando

à capela? É brega. Patriotada. Nelson, por favor, afasta da gente esse complexo

de vira-latas. Rooney cobra falta que raspa a trave. Cabeceia bola que bate na

quina da trave. Cavani cruza com capricho, gentil. Perfeito. Preciso. Na cabeça de

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL34 35

Luis Suárez. Rede. Artilheiro. Que decide. Três degraus acima da gente, um inglês

vestido de cavaleiro templário xinga. Mas xinga muito. Falta do uruguaio. Fuck!

Juiz não dá lateral para a Inglaterra. Fuck! Bandeira marca impedimento. Fuck!

No final do primeiro tempo, ele senta. Abaixa a cabeça. Cruza as mãos, como se

estivesse rezando. Protegido pela armadura da fé, parece conversar com deus.

Pede gols. Pelo menos dois. Intervalo. Tempo para um xixizinho padrão FIFA. A

fila do banheiro foi a maior que pegamos - quinze minutos. Uruguai volta melhor.

Perde muitos gols. O templário volta a xingar. Fuck! Fuck! Fuck! Inglaterra equili-

bra. Toma conta do jogo. Muslera faz milagre. Rooney empata. O templário entra

em transe. Grita. Pula. Abraça todos os brasileiros que estavam ao lado dele. Gol!

O Santo Graal! Agora ele não pára de gritar “England”. Ao lado, o maluco manda:

“se terminar empatado, tem prorrogação e pênalti”. Falava sério. Ficou decepcio-

nado quando dissemos que não seria bem assim. Na nossa frente, um sósia do

português José Mourinho. Acho que vou entrevistá-lo. E mandar o texto para a

Folha. E para O Globo. Publicam. Certeza. Ainda que a contragosto, fazendo bei-

cinho, o jornal dos Frias reconheceu hoje que a Copa vai bem, obrigado. “A Copa

faz uma semana hoje com uma coleção de pequenos problemas de organização,

mas, até esse momento, nada capaz de provocar grandes danos à imagem do

país. O bordão “imagina na Copa”, repetido antes do Mundial como premonição

de uma crise na infraestrutura e de possível fracasso do evento, não se concreti-

zou”. Jornais de hoje noticiam também que as Forças Armadas brasileiras negam

que abusos tenham ocorrido em instalações militares durante a ditadura. Não

foram abusos mesmo. Foram torturas. Assassinatos. Desaparecimentos. Apesar

de você, amanhã há de ser outro dia. A gente quer ter voz ativa, no nosso destino

mandar. Em campo, o Uruguai renasce. Uma bola estourada por Muslera. O za-

gueiro inglês salta. Não alcança. Suárez filma o lance. Parte. Ganha na corrida.

Balaço de direita. “Soooooooy Celeste”! O artilheiro uruguaio pegou pouquíssi-

mas vezes na bola. Resolveu a parada. O cavaleiro templário desabou. Ficou ca-

lado, até o final do jogo. Quando o juiz apitou, a festa uruguaia no gramado e

nas arquibancadas foi emocionante. Procurei o templário. Não estava mais lá.

Tinha sumido. Naquele setor, era a única cadeira vazia. “Soooooooooy Celeste!

Sooooooooy Celeste”!

Templo de Pelé. Palco de Robinho. Casa de Neymar. Onde aprendi a ver fute-

bol. A viver futebol. Lá, tenho cadeira cativa, que foi de meu avô. Saudades.

Urbano Caldeira. Estádio da Vila Belmiro. Não é arena. Mas tem história. Quanta

história. Transpira história. Nelson Rodrigues talvez escrevesse: na Vila, há uma

abundância de história. É onde está treinando a seleção da Costa Rica. Ousadia e

alegria. Não é coincidência. Certo, Rogério Zé? Os deuses santásticos abraçaram

com muito carinho os hermanos da América Central. Abençoaram aquelas cami-

sas vermelhas. Como se fossem alvinegras praianas. Que hoje fizeram história em

Recife. Derrubaram mais um campeão do mundo - a Itália. 1 x 0. De quebra, man-

daram de volta para casa a também campeã Inglaterra. Topo do Olimpo futebolís-

tico, carimbaram a vaga nas oitavas-de-final da Copa. Poderemos ver o duelo das

Costas - Rica x Do Marfim. Como é agradável ver a Costa Rica em campo. Já no

Castelão, em Fortaleza, contra o Uruguai, tinham saciado meu exigente padrão

DNA ofensivo. A Celeste tentou fazer valer o nome; os chicos jogaram futebol.

De gente muito grande. Equipe disciplinada, bem treinada. Defesa bem montada.

Atacantes insinuantes. Habilidosos. Com gana enorme de vencer. Sem retrancas.

Atacando. Havia sido assim no estádio, aconteceu da mesma forma hoje, no sofá

da sala de casa - nos minutos derradeiros, me peguei torcendo. Como se fosse o

20 DE JUNHO

SANTÁSTICA COSTA RICA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL36 37

Santos em campo. E não era o Santos, que treina na Vila Belmiro? Bem, a direto-

ria do Peixe bem que poderia contratar o centroavante Campbell. Baita camisa 9.

Infinitamente melhor que o Leandro Damião. A Itália segue o tradicional roteiro

em mundiais. A classificação só virá com muito sofrimento. Conseguem imaginar

o que vai ser o Uruguai x Itália em Natal na próxima terça-feira, uma da tarde? A

garra e o oportunismo de Luis Suárez contra a elegância e a maestria de Andrea

Pirlo? O almoço vai ficar para mais tarde. Para não perder um lance sequer. Das

quatro seleções até aqui classificadas, três são da Pátria Grande América - além

da Costa Rica, Chile e Colômbia. A intrusa Holanda fecha a lista. Colonizados re-

escrevem a história. Expulsam colonizadores. Aqui? Não vem que não tem. Salve,

Simón Bolívar! Viva José Martí! Ernesto Guevara, presente! Obrigado, Copa do

Mundo. Como você é linda. Eu e Daniel saímos correndo para ver o jogo da França

na festa do Vale do Anhangabaú. Pai, essa moça do metrô anuncia as estações

só em inglês. Não deveria falar também em espanhol? Certamente. Ainda mais

com esse brilho da nossa América. Minha relação com a França é de admiração.

Herança também do meu avô, desde sempre encantado pela história das guil-

hotinas que cortaram cabeçorras reais. Democracia moderna. No futebol, senti-

mento ambíguo. Reverência e temor. Minha lembrança de menino diz que abracei

os bleus na Copa de 1982, depois da eliminação do time de Telê. Os franceses, na

minha percepção quase adolescente, jogavam o futebol mais próximo daquele

praticado pelos brasileiros. Técnica refinada. Dribles. Sempre em busca do gol.

Sofri com a desclassificação deles na semi-final, em dramática cobrança de pê-

naltis, para a cerebral Alemanha, depois de épico empate no tempo normal. Três

a três. Abracei os da igualdade, liberdade e fraternidade. Mas chorei com a se-

quência de derrotas. 1986, a arte de Platini. 1998, a arte de Zidane. 2006, a arte

de Zidane. De novo. Somos fregueses. E, vamos combinar, a Marselhesa é o hino

mais lindo do mundo. Hoje, no Anhangabaú, pude finalmente ouvi-lo. E acompan-

hamos mais uma apresentação de gala dos franceses. Com direito a desperdiçar

pênalti. Duas vezes. Na cobrança, defesa do goleiro. E no rebote que explodiu no

travessão. Precisava? Fizeram cinco. Com facilidade. Desfilando em campo. Gar-

bosos. Destroçando o temido ferrolho suíço. Que não leva gols. Não levava. Cho-

colate. Os azuis ainda se deram ao luxo de tomar dois. No Anhangabaú paulistano

de todas as torcidas, a língua oficial era o sevirol. Todo mundo se virava. Um tan-

tinho de português. Uma pitada de espanhol. Portunhol. Umas palavras em in-

glês. Portunholglês. Gestos. Mímica. Aponta no livrinho. Mostra a foto. Faz cara de

paisagem. No final, todos se entendem. Pausa para um sublime pastel de queijo.

Na volta, Daniel descobriu a rua Marconi. Meu sobrenome, pai! Raízes. Em casa,

assistimos à virada do Equador - 2 x 1 contra Honduras. Mais um sul-americano

que mantém chances de classificação. Soy loco por ti, América! Amanhã, a Costa

Rica volta a treinar na Vila. Vai longe. Ah, sim... Balotelli, agora você já sabe quem

é Keylor Navas. O goleiro da Costa Rica. Protegido por Gilmar, Cejas, Rodolfo Ro-

dríguez e Rafael. Orgulho que nem todos podem ter. Aquele abraço. Amanhã, des-

embarcamos no Mineirão. Hasta la vista.

Tem um esporte chamado futebol. E tem um futebol que só o argentino Lionel

Messi joga. Depois de 91 minutos de jogo e de sofrimento hermano, o craque

achou por bem que estava na hora de ligar a chavinha. Decidiu. Golaço. Saímos de

casa cedinho. Pai, a viagem demora muito? Estou nervoso. Daniel, meu fiel escu-

deiro. É a estreia dele nos estádios da Copa. No aeroporto, a diversão do moleque

era fazer o inventário das camisas de seleções. Achou até uma do Peru. Lamento

se sou repetitivo, mas, imaginem na Copa, foi de novo tudo padrão FIFA. Embar-

21 DE JUNHO

LIONEL MESSI. EU VI

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL38 39

que, decolagem, chegada, táxi. No avião, Daniel se divertiu com gibi do Recruta

Zero. Guto Bicudo já nos esperava em BH. Intensa troca de mensagens. Celulares

funcionando freneticamente. Estamos indo para o hotel. Encontramos você aí.

Só para deixar a mochila. Beleza. Já estou pronto. O taxista pisou fundo. O senhor

me desculpe. Se não for assim, não vão chegar. Onze e quinze da manhã. O sen-

hor vê, todas essas avenidas e viadutos foram inaugurados agorinha. São novin-

hos. É o que a Copa vai deixar para a cidade. Pergunto da festa dos colombianos

no domingo passado. O senhor vê, foi bonito. São muito educados. O trânsito

travou. Não anda. Onze e quarenta. Moço, estamos perto do Mineirão? Ah, deixo o

senhor ali na esquina. Bem pertinho. Celular. Guto, não vai dar tempo. Vem direto

para o Mineirão. Vou achar um ponto de encontro. Te aviso. A gente se encontra

lá. Os ingressos estão com ele. Frio em São Paulo. Calor em Belo Horizonte. Troco

a roupa do Dani no táxi. A mochila vai para o estádio, nas costas. Mochileiro da

Copa. Guto, perto da tropa de choque, a partir do ponto por onde só passa quem

tem ingresso. Mais quinze minutos. Estamos juntos. Vinte minutos de caminhada.

Meio-dia e quarenta e cinco. Messi, cá estamos nós. Quando a bola rolou, abracei

o Dani. Te amo, filho. Obrigado. Ganho um beijo. Um sorriso. Em pé nas cadei-

ras, ele não tira os olhos do campo. Foi a primeira retranca da Copa. Muito bem

montada. O Irã foi guerreiro. Valente. Comeram grama. Aplicadíssimos. Mas bem

limitados. A Argentina tinha posse de bola. Mas nada de volume de jogo. Pouco

produzia. Teve pênalti para o Irã, confirmei agora na TV. Juiz não deu. Os bravos

iranianos assustaram. O goleiro hermano pegou três bolas difíceis. Durante uns

vinte minutos no segundo tempo, o Irã foi melhor. Ousado. Sonhou com a vitória.

A torcida empurrava. Iranianos e brasileiros. Eu procurava ver os dois jogos. O da

Argentina e o de Messi. E dizia para o Dani - olhos sempre no Messi. A fanática

torcida hermana não parou de cantar. Erro de passe. Vamos, vamos, Argentina.

Chute longe do gol. Soy argentino. Bola perigosa do Irã. Maradona é melhor que

o Pelé. Caldeirão azul e branco. Camisas tremulando. Prenúncio de tragédia. No-

venta e um minutos. Foi quando Messi decidiu que era hora de acabar com aquele

tango. Grudou a bola no pé. Cortou para a esquerda. Espaço mínimo. Bateu. Com

curva. Vi de frente. Cena de cinema. Quadro aberto. O goleiro pulou. Quase tocou.

Não deu. A pelota estufou a rede. Explosão no Mineirão. Loucura. Argentinos co-

rrendo. Pulando. Gritando. Abraçando. Cantando. Rodando as camisas. Virou Mo-

numental de Nuñes. Buenos Aires. Belôs Aires. Mi Buenos Aires querido. Por una

cabeza. Eu vi gol de Messi. Guto Bicudo festejou. Presente de aniversário dele.

Daniel abriu sorriso. Vai contar para os netos dele. Não foi justo. Não foi mesmo.

Mas quem disse que há justiça no futebol? Só falta agora o Klose marcar para a

Alemanha. Marcou! Ronaldo, o oportunista, não está mais sozinho na artilharia

das Copas. Estamos voltando para São Paulo.

Fim da segunda rodada. Mais um domingo para recuperar as forças, depois do

bate e volta a Belôs Aires. Messi! Fico sabendo que foram várias as confusões

entre argentinos e brasileiros na cidade. Brigas e garrafadas. Quanta ignorância,

Batman. Acompanhei a rodada pela telinha. Alguém viu Cristiano Ronaldo? Por-

que ele, indicadores apontando para o gramado, depois de bater no peito, cos-

tuma dizer “eu estou aqui”. Até agora... nada. Não esteve. Sei não. Pode ser que eu

queime a língua. No entanto, a participação do melhor boleiro do mundo nos dois

primeiros jogos de Portugal foi pífia. Melancólica. Abaixo da crítica. Piaba na es-

treia contra a Alemanha. O gajo sumido. Sufoco contra o Tio Sam hoje. Empate no

22 DE JUNHO

CRISTIANO RONALDO AINDA

NÃO ESTEVE AQUI

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL40 41

último minuto. Bacia das almas. E o moço dos cabelos impecáveis apagado em

campo. Não teve telão que desse jeito. Verdade que o passe para o segundo gol

foi dele. CR7. Mas é pouco. Bem pouco. Vá lá, os patrícios ainda respiram. Por apa-

relhos. Já tiveram umas três paradas cardiorrespiratórias. O atestado de óbito

estava sendo assinado. O médico quase carimbou. Doutor, doutor, ainda há espe-

rança. Foram reanimados. Mas o quadro é crítico. Precisam vencer Gana. Por boa

diferença de gols. E torcer por derrota dos EUA para a Alemanha. Também por

razoável diferença de gols. Milagre de Nossa Senhora de Fátima. Seria a terceira

profecia? É angústia portuguesa. Com certeza. Camarada Saramago, a vingança

contra as metrópoles continua. Ensaio sobre a cegueira. E a Bélgica, hein? Che-

gou com pompa e circunstância. Seleção revelação. Melhor geração de todos os

tempos. Decepção. Que futebolzinho sem graça. Apático. Teve torcedor dormindo

nas arquibancadas no primeiro tempo do jogo de hoje, contra a Rússia, no Ma-

raca. Também se safaram nos minutos finais, num lampejo - único - do habilidoso

Hazard. Foi só. Estão classificados para as oitavas. Com um futebolzinho... sono-

lento. Bem sonolento. Vou lá tirar um cochilo. Volto já. Às avessas, aquela que se

anunciava como partida para deixar de lado mostrou-se uma bela diversão. Seis

gols. Argélia 4 x 2 Coreia do Sul. Para manter a média. Fazer jus a um Mundial

que tem privilegiado posturas ofensivas. A Copa das agradáveis surpresas ainda

não tem favoritos. O Brasil estreou bem. Rateou contra o México. Ah, a Holanda.

Destruiu a Espanha. Quase perdeu da Austrália. O time a ser batido é a Alemanha.

Quase foi mesmo, por Gana, depois de ter feito picadinho de Portugal. Quem?

Espanha? Deixa para lá. Uruguai? Salve, Costa Rica! Não sei porque colocam a

Inglaterra na lista dos favoritos. A relação dos súditos da rainha com o futebol

se encerra na invenção do esporte. E um título bastante questionável. Só. A Itália

convenceu contra os ingleses. E não viu a cor da bola contra os costarriquen-

hos. Se não fosse o Messi, a Argentina estaria em apuros. Sim, a França chama

a atenção. A Colômbia agrada. O Chile mostra muita força, futebol que encanta.

Convence. Os chicos da Costa Rica honram a tradição de DNA ofensivo santista.

Mas, todos eles, penso, ainda não despontaram com pinta de favoritos. A terceira

e decisiva rodada da fase de grupos promete fortes emoções. A encrenca é que

chegamos àquele momento em que dois jogos acontecerão ao mesmo tempo.

Copa comprada! O Brasil vai jogar já conhecendo resultados. Podendo escolher

adversário! Chile ou Holanda? Que perrengue, cara pálida. Vai comprar mal assim

lá em Amsterdã. Ou em Santiago. Imagina na Copa... Meu coração está apertado.

Chegamos à metade do Mundial. Só faltam 32 jogos. Ai... Ronaldo, o oportunista

que não é mais o único maior artilheiro das Copas, disse que o torneio seria um

fracasso. Que a Espanha seria campeã. Ainda bem que ele está apoiando Aécio

Neves. Dilma foi oficializada ontem candidata à reeleição. Promete mudanças. Uia.

Mas o governo não está no rumo certo? Não há fronteiras para a imbecilidade

humana. Uruguaios limpinhos que estiveram no Itaquerão no jogo contra a Ingla-

terra, área vip, mandaram palavrões para o presidente Mujica. Papagaios imbecis.

Nem originalidade têm. A FIFA serviu comida estragada para funcionários e vo-

luntários na Arena Pernambuco. Nojento. Que tal servir essa mesma alimentação

padrão FIFA nos camarotes dos estádios? Fica a dica. Passei o dia matutando. No

ano passado, esperava-se que a Copa das Confederações fosse uma grande festa.

A colocar em evidência um país que faz também da bola elemento constituinte de

sua identidade. Explodiram as jornadas de junho. O evento quase foi cancelado,

em plena disputa. Em 2014, a histeria coletiva ranheta, inflada pelas narrativas mi-

diáticas movidas por propósitos politiqueiros rastaqueras, previa uma hecatombe

de proporções incomensuráveis. Um fiasco. Eis aqui um país incapaz de organi-

zar um evento como a Copa do Mundo. Antes do final da primeira fase do Mun-

dial, marcado por jogos sensacionais, resgate do futebol ofensivo, não é pequeno

o coro que pede, simbolicamente, que todas as Copas sejam agora realizadas por

aqui. O Brasil não é para amadores. Amanhã tem Seleção em campo. Antes, Chile

x Holanda no Itaquerão. Lá estarei. Aliás, ao final do Mundial, poderei dizer, sobre o

estádio do Corinthians: “eu estive aqui. Duas vezes”. Abraços, CR7.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL42 43

“Se você é argentino. Diga lá como é que é. Ter apenas duas Copas. Uma a me-

nos que Pelé”. Aí sim. Mandaram avisar que essa seria a música que daria o

tom nas arquibancadas em Brasília, no jogo contra Camarões. Não ouvi. Alguém

faltou no ensaio. Ou então, como diria o Mané, estrela solitária, esqueceram de

combinar com os torcedores que lá estavam. Ao menos deixaram de lado o me-

loso “com muito orgulho”. Já estava dando engulhos. Náuseas. O grito que ecoou

na arena que leva o nome do gênio das pernas tortas (sim, dona FIFA, Estádio

Nacional Mané Garrincha) foi “o campeão voltou”. Melhor. No embalo da galera,

a Seleção começou bem. Marcando no campo de ataque. Abriu o placar. Neymar

Jr. Empurra mesmo, amigo camaronês. Derruba o moleque em cima dos cinegra-

fistas. Nas placas. Que ele vai para cima. É assim que ele gosta de jogar. Quantas

vezes vi esse filme. O gol acomodou o time. Veio sufoco. Avenida Daniel Alves.

Não precisava nem pagar pedágio. Para desespero do Geraldo, que já estava

pensando em privatizar por aquelas bandas também. Para aumentar a tarifa.

Trânsito livre. Só faltou estender tapete vermelho. Por favor, passem. À vontade.

Passaram. Pressionaram. Empataram. No banco de reservas, olhares atônitos.

Preocupados. Que sufoco é esse, pai? Não está bom, filho. No meio-de-campo

havia um buraco. A Seleção abusou das ligações diretas entre defesa e ataque no

primeiro tempo. Balão vai. Balão volta. Lançamentos longos. Irritantes. Até que

um deles finalmente deu certo. Água mole... Preciso, David Luis achou Marcelo

23 DE JUNHO

O CAI-CAI É ARTILHEIRO

DA COPA

livre na esquerda. Ao matar, o lateral já fez o passe. O dez entrou na diagonal.

Deixou a bola correr. Não tocou nela. Perto da linha da área, cortou o zagueiro,

para a direita. Ajeitou, de leve. Mais um toquinho. Sutil. Só para deixar no jeito. Ba-

teu. Rasante. Por baixo das pernas do adversário. No contrapé do goleiro. Caixa. A

corrida de braços abertos. O salto para comemorar. Socando o ar, de baixo para

cima. Por um trisco de segundo, congelei a imagem. Voltei a fita. O uniforme fi-

cou todo branco. Manto sagrado. O número nas costas era o 11. O palco, o Paca-

embu. Arquibancadas laranjas. No dia 22 de junho de 2011. Há três anos. O tri da

Libertadores. Neymar Jr. O cai-cai. Que, a cada jogo, cala-cala a boca dos críticos

ressentidos. Tubos de gelol a granel. O cara que é só marketing foi decisivo. Disse

“se ele não está, eu estou aqui. Vivendo esse momento lindo. Contem comigo”.

Assumiu a artilharia do Mundial. A Seleção respirou. E fez, no segundo tempo, sua

melhor apresentação até aqui nesta Copa do Mundo. Sem sustos. Tocando bola.

Felipão, o que o Fernandinho estava mesmo fazendo no banco? Paulinho, meu

caro, te acho baita jogador. Sério mesmo. Queria você no meu time. Mas os ares

da Inglaterra não te fizeram bem. Andas triste. Macambúzio. Acabrunhado. Sem

confiança. Fernandinho entrou e tomou conta do meio. Deu passe para o terceiro

gol. Fred bigodón! . Desencantou. Se o Brasil for campeão, deixo o mesmo bigode.

Palavra. O volante do City fez o quarto. Sem teimosias, Scolari. A família é grande.

Sempre cabe mais um. Fernandinho ganhou vaga no time titular. Combinado? Sá-

bado, uma da tarde, no Mineirão, contra o Chile. Se o blogueiro mirim do panfleto

da Abril passou hoje perto do Itaquerão, teve uma síncope. Era um mar vermelho.

Invasão comunista. A revolução em marcha! Chamem os milicos! A CIA! As tropas

do general Olímpio Mourão! Calma, Rodriguinho. Eram só os torcedores chilenos.

Uns vinte mil. Fazendo ecoar no expresso que leva à ponta da zona leste o “Chi-

Chi-Chi-Le-Le-Le”. Dezenove minutos, sem paradas. Luiza já foi cantando junto.

Era alegria que não cabia nela. Hoje foi a vez dela estrear em estádios de Copa.

Os maravilhosos olhos de jabuticaba procuravam registrar todas as cenas. Para

mim, mais uma emoção. O fundão da Copa, cultivado com muito esmero, me-

ses de frilas e de economias, permitiu ver um jogo com cada filho, além dos dois

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL44 45

‘avulsos’. Cruzando a Radial, trombamos com mais dois malucos mandando ver

no “vai pra cima deles, Santos!”. Engrossamos o coro. O sujeito não se conteve.

“Mais santistas por aqui”. Somos maioria, respondi. La Roja jogou menos do que

eu esperava. Apesar do caldeirão que bradava “soy chileno. Esta tarde tenemos

que ganhar”. Bem, houve um momento em que pediram Valdivia. Será que passa

o Campeonato Brasileiro na terra de Allende e Bachelet? Pai, a Holanda está sa-

tisfeita com o empate. Escapa do Brasil. Talvez. Mas Robben é um azougue. Perna

esquerda enfeitiçada. Corre mais que o Usain Bolt. Quase marcou o gol da Copa,

numa arrancada que começou na intermediária da Holanda. Deixou quatro chi-

lenos a ver caravelas holandesas. Até Mauricio de Nassau tentou pará-lo, só para

pedir autógrafo. “É para meu filho. É seu fã”. Foi ignorado pelo carequinha com

orelhas de doutor Spock. O camisa 11 seguiu viagem na Star Treck. Bateu cru-

zado. Passou triscando a trave. Deu passe fenomenal para o segundo gol laranja.

Foi o dono do jogo. O chileno que estava na nossa frente não concorda. Para ele,

o melhor em campo foi o Vidal. É... mas o volante da Roja não jogou. Tudo bem,

o torcedor também não viu a peleja. Dormiu durante noventa minutos. Sono pe-

sado. Só interrompido pela zoação de um corinthiano que, de sacanagem, gritava

na orelha do compañero – “gol, de Chile!”. O chileno acordava, assustado. Mirava

o placar. Confirmava que não tinha saído gol algum. E voltava a roncar. Encontrei

primo no estádio. Encontrei ex-aluna no metrô, na volta. Encontrei colegas pro-

fessores no mesmo metrô. Pai, adorei. Eu também, Lui. Obrigado. Te amo. Dos

nove classificados até aqui, seis são das Américas. Brasil, México, Chile, Colôm-

bia, Costa Rica e Argentina. El condor pasa. Ainda estou tentando ingressos para

as oitavas. Aceito doações. Crowdfunding. Venda a preços módicos. Quem sabe.

No Rio, Cesar Maia vai com Pezão. Romário, com Lindbergh. E eu reclamando

aqui em São Paulo. Já preparei as provas substitutivas. Notas devidamente lança-

das. Hora do descanso. Preciso me preparar para Itália x Uruguai.

Um historieta começou a ser contata à boca pequena hoje em Montevidéu.

Discretamente sussurrada, é verdade. Como manda o manual das boas

maneiras. Para não desestabilizar o elenco que, depois de estreia desastrada,

parece ter entrado nos eixos. Dizem os uruguaios que, na última folga da Ce-

leste, que treina em Sete Lagoas, Minas Gerais, Luis Suárez caiu na balada. Foi

na Savassi, bairro nobre e tradicional reduto festeiro de Belo Horizonte, capital

mineira. Esbaldou-se. Esbórnia até o sol raiar. Encantou-se por uma canção que

“desejava a todas inimigas vida longa. Pra que elas vejam cada dia mais nossa

vitória”. Mandava deixar de recalque. O atacante voltou à concentração fissurado

por um nome. Valeska Popozuda, Valeska Popozuda, repetia aos companheiros

de time, que faziam cara de ponto de interrogação. Ficou tão fascinado pela moça

dos longos cabelos loiros que resolveu homenageá-la na partida contra a Itália,

em Natal. Decisão da segunda vaga do grupo D do Mundial. Num lance na área,

sem que o zagueiro da Azzurra pudesse imaginar, Luisito surpreendeu e partiu

decidido para cima do camisa três italiano. Avançou direto na jugular. Mordeu!

Mordeu!, gritava Chiellini. Mostrava as marcas da agressão para o árbitro. Sen-

tado no gramado, Suárez massageava os lábios. Tentava explicar. Mordida? Mor-

dida? No, no. Fue um besito em el hombro. Solo besito em el hombro! Si, si, besito.

O juiz mexicano, também fã confesso de tiro, porrada e bomba, achou por bem

24 DE JUNHO

BEIJINHO NO OMBRO DO ZAGUEIRO ITALIANO

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL46 47

não expulsar o uruguaio. Para desespero dos italianos, que àquela altura já jo-

gavam com um a menos. Marchisio tinha sido expulso aos quinze do segundo

tempo, por entrada dura em Arévalos Rios. Amarelo? Vermelho. Discutível. Chu-

veiro. Evidente que a Copa foi comprada pela Celeste. Esquema Mujica. Operação

Comuna-Mercosul. Com um a menos, sol das duas da tarde na capital do Rio

Grande do Norte, a Itália abriu o bico. Godin, zagueiro dos gols decisivos, colocou

o Uruguai nas oitavas. Crise na Azzurra. Técnico Cesare Prandelli pede demis-

são. No bairro do Bixiga, em São Paulo, as cantinas não abriram agora à noite.

Nada de macarronada da mamma. Vai ser um jogão, né, pai? Promete, filho. Fui

buscar o Daniel mais cedo na escola. Para todos os efeitos legais e pedagógicos,

ele tinha aula à tarde. Já quase em férias, provas feitas, última semana, pediu

para ver Itália x Uruguai. Justo. Mata-mata já na fase de grupos. Luiza veio tam-

bém correndo do colégio, rádio da perua escolar ligado. Não queria perder lance

algum. Expectativas frustradas. Para ser bondoso, o primeiro tempo foi morno.

Chato, né, pai? Teve amigo que mandou mensagem admitindo: dormi. Italianos

administrando o empate. Pouco interessados. Uruguaios sem potência para che-

gar ao gol. No segundo, principalmente depois da expulsão de Marchisio, tivemos

mais emoção. Empolgou. Entrega e vontade. Mas não exatamente bom futebol.

Buffon terminou a partida como centroavante, na área adversária. Mais um cam-

peão – tetra – do mundo que se vai precocemente. Arriverdeci. “Sooooooooooy

Celeste! O fantasma ainda vaga por aí. Sábado, pegam a Colômbia no Maracanã.

Maracanazo às avessas? Porque o time de camisas amarelas e calções brancos

que goleou o Japão parecia o Brasil dos velhos tempos. Que futebol bonito! Que

camisa 10 vistoso, habilidoso. Três vitórias. Nove pontos. Nove gols marcados.

Primeiro lugar do grupo C. Com folga. Sobrando. Vou procurar a narração da par-

tida de hoje em alguma rádio colombiana. Essa tem sido outra de minhas diver-

sões nessa Copa da América Latina de sangue e suor. Me deliciar com as vozes

e sotaques de argentinos, uruguaios, chilenos e outros hermanos narrando os

tentos de suas seleções. Catarses, explosões de metáforas, gritos épicos, odes

a feitos heroicos, elogios, fígados desopilados. Festival de palavrões. Despudo-

radamente. Saborosamente. Narradores-torcedores. De arrepiar. Recomendo.

Foi de deixar quase sem fôlego também a decisão da segunda vaga do grupo

C. Vi na Arena Sala dos Professores da universidade. Vamos jantar, Chico. Só no

intervalo do jogo. Os deuses gregos deram o ar da graça. Entraram em campo.

Porque só mesmo com empurrãozinho de Zeus e companhia para a Grécia, time

humanamente limitadíssimo, alcançar as oitavas. Pois o Olimpo se fez presente

no Castelão, em Fortaleza. Com todos os requintes de crueldade de um drama

de Copa do Mundo. Tragédia grega. Foi de pênalti. Invenção divina? Aos 48 do se-

gundo tempo. Para cravar lanças nos corações dos aguerridos marfinenses. Já se

preparavam para o embate contra a outra Costa. No domingo, Recife vai mesmo

ver é Costa Rica x Grécia. Os chicos têm grandes chances de fazer ainda mais

história. E de beliscar vaga nas quartas. Sensacional. Vai, santástica Costa Rica!

Sarney desistiu da reeleição ao Senado. Imagina depois da Copa! A prefeitura

de São Paulo agilizou operação de emergência para dar conta da multidão que

invade a Vila Madalena durante e depois dos jogos. Banheiros químicos. Efetivo

policial. Azaração. Ambulantes. Telões. Imagina depois da Copa! Não espalhem, é

segredo. Luisito Suárez já confidenciou aos mais íntimos que, se for excluído da

Copa pela dona FIFA, punido pelo besito, vai desembarcar de mala e cuia na Vila

Madá. Quer muito conhecer a boemia do bairro. Besitos en el hombro. Beijinho no

ombrrrro. Com sotaque bem paulistano.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL48 49

No Ita-querão, chilenos

e holandeses deci-diram o adversário

do Brasil nas oitavas

Com a Lui, vi Robben e Alexis

Sánchez. E um tor-cedor chileno que

dormiu o jogo inteirinho

Com o Dani, no Mi-

neirão, vi o gênio Messi. Maradona

es más grande que Pelé. Certeza,

hermanos?

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL50 51

Castelão? Foi Castelazo

mesmo!

Foi uma luta. Mas estive

em quatro jogos, três estádios

diferentes.

O uruguaio Cavani bateu o pênalti bem na minha frente.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL52 53

A vitória dos Ticos contra os

uruguaios foi sensacional.

“A arena sendo preparada

para receber os boleiros-artistas.

“Uruguai x Inglaterra,

Itaquerão. Viu como o meio deve

ser ocupado, Felipão?

Chilenos fizeram lindas festas e co-

loriram os estádios de vermelho. Chi-

chi-chi-lê-lê-lê.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL54 55

Começo dizendo um sincero e sonoro muito obrigado. O amigão que fechou

a tabela da Copa do Mundo do Brasil não poderia ter sido mais parceiro.

Parece até que fui consultado. E que pude palpitar, ajeitar aqui, ajustar acolá. Bo-

nito. Não posso reclamar. Só comemorar. O Mundial começou numa quinta-feira.

Para escapar da sexta, 13. No jogo de estreia, feriado na cidade de São Paulo.

Como manda o bom senso, atributo que depois se revelaria artigo de luxo para

vereadores paulistanos. Sexta-feira não dou aulas. Tranquilo. Segue o jogo. Veio o

final de semana. Que beleza! Em Fortaleza, vi todas as partidas. Na segunda, 16,

começou a semana de vista de provas na universidade. Agora eu me consagro.

Calendário acadêmico. Rotina mais leve, suave, já reduzindo a marcha e desace-

lerando. Terça, dia 16, Brasil x México. Não tivemos atividades no período noturno.

Semana curta. Novo feriado prolongado, a partir de quinta. A bola ficou pedindo

me chuta. Ele encheu o pé. Quatro dias de overdose televisiva de Copa. A regra

doméstica, inscrita em nossas tábuas sagradas de aliança, manda que o aparel-

hinho da NET fique permanentemente ligado na ESPN Brasil. Sem intervalos co-

merciais. A partir de segunda, 23, semana de substitutivas e exames. Para você,

para mais ninguém. Terapia indicada - futebol na veia, em doses cavalares. Várias

vezes ao dia. Terceiro jogo do Brasil. No final de semana começam as oitavas. No

dia 30, próxima segunda, entramos em férias. Recesso na universidade e fase

25 DE JUNHO

A COPA NA ARGENTINA ME ENSINOU O QUE

É DITADURA

decisiva do Mundial. Romeu e Julieta. Pelé e Coutinho. Casamento perfeito. Re-

gime de dedicação exclusiva à Copa. Por obra e graça do bondoso e perspicaz

organizador da tabela, ficou mais fácil dar cabo de meu projeto “ver os 64 jogos

do Mundial”. Promessa até aqui cumprida. Ainda que algumas pelejas eu resgate

nos corujões da madrugada. Chico, olha a sua cara, você está com sono. Bingo.

Muito sono. Rotina puxada. É por uma boa causa. Porque também tem o pré-

jogo, o show do intervalo, o bate-bola, a linha de passe, o terceiro tempo, a zona

mista, os programas especiais, as entrevistas coletivas, os treinos, as crônicas do

Veríssimo e do Prata. Conversinha de futebol. Por favor, alguém tem os contatos

do cara que vai organizar a tabela da Copa da Rússia? E-mail? Celular? Face?

WhatsApp? Preciso falar com ele, com urgência. Sim, é importante. Não adianta

deixar recado. É para acertar os ponteiros. Tem a questão do fuso horário. É bom

combinar com antecedência. Fico no aguardo. Depois de corrigir as substitutivas

de hoje, lá estava eu no camarote da Arena Marconi Bicudo, setor 2, portão Z,

fila VV, cadeira 5, para ver Argentina e Nigéria. Nem bem tinha me acomodado

e pimba! Messi abriu o placar para os sul-americanos. Sempre ele. Olhei para o

lado. Quase perdi o gol de empate da Nigéria. Cinco minutos iniciais empolgan-

tes. Tsunami. Que foi aos poucos se transformando em brisa fraca. Jogo mais

estudado. No final, falta cobrada com maestria. Messi. Quarto dele no torneio.

Está agora empatado com Neymar na artilharia. Vai ver os times combinaram no

vestiário que o roteiro se repetiria no segundo tempo. Empate da Nigéria. Terceiro

da Argentina. Não foi do Messi! Cinco minutos da segunda etapa. Aí foi só admi-

nistrar. Hermanos classificados em primeiro. Primeira seleção africana a garantir

vaga nas oitavas. Cem mil argentinos colocaram em prática o projeto Ocuppy

Wall Street/Porto Alegre. O Beira-Rio ficou azul. Para desespero dos colorados.

Por provocação do primo Luiz Paulo Castro Montes, fico aqui imaginando o que

seria uma final Brasil x Argentina. Seleções invictas. Messi e Neymar empatados

na artilharia da competição. Disputando, chapéu a chapéu, trivela a trivela, ca-

neta a caneta a honraria de melhor jogador do torneio. Maracanã lotado. Sonho.

Ou pesadelo? A Copa merece essa final. De minha parte, por via das dúvidas, já

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL56 57

reservei leito na UTI do Instituto do Coração. Esse jogo eu vejo lá. Monitorado por

aparelhos. Cercado por cuidados médicos. Mais prudente. Sou fã da Argentina.

Apaixonado pelo aconchego hipnotizante de Buenos Aires. Salve, Borges; salve,

Pérez Esquivel; salve, madres de Mayo. Mas... futebol é caso à parte. Faço coro

com o amigo Fabio de Castro - não quero ver os hermanos levantarem a taça em

gramados brasileiros. Rivalidade futebolística é coisa séria. Maradona no es mas

grande que Pelé. Aliás, caros amigos argentinos, me digam aí como é que é ter

uma Copa a menos que o Pelé. Obrigado. Cedinho, no banho, que é onde a gente

tem boas ideias, estava recordando que minha relação com o binômio futebol-

Argentina é antiga. Tinha seis anos. Copa de 1978 - a da horrenda ditadura san-

grenta no país vizinho. É a primeira de que me lembro. Engraçado, tenho flashes

bem marcados. Nítidos. O gol anulado contra a Suécia, quando a bola já viajava

para a área adversária, na cobrança de escanteio do Zico. A bola que o Amaral

salvou na linha contra a Espanha. A classificação suada contra a Áustria, gol do

Dinamite. A batalha de Rosário contra a ... Argentina. Aquela estranha goleada

deles em cima do Peru, que tirou o Brasil da final. Campeões morais. Grande bu-

dega. A taça ficou com quem mesmo? Naquela Copa, aprendi o que é ditadura.

Depois da vitória da Seleção contra a Polônia, saí com minha tia pelas ruas do

centro de São Bernardo, terra das greves metalúrgicas, para fazer buzinaço. Fus-

quinha verde. Estacionamos o carro. Resolvemos andar com a multidão. Rojões

estouravam. Peguei minha bandeira do Brasil e fiz menção de amassá-la. Para

conseguir carregá-la. Era enorme, um bandeirão; eu, menino franzino. Um policial

com cara de pouquíssimos amigos começou a andar em nossa direção. Nervoso.

Consigo sentir agorinha o frio que percorreu minha espinha. Gelei. O PM acelerou

o passo. Tem alguma coisa errada, fiz bobagem. Mas não sei o que é. Minha tia

deu um pulo. Foi falando bem alto ‘vamos abrir a bandeira, você segura aqui, eu

pego a outra ponta. Bem esticada’. O policial, que estava uns cinco passos dis-

tante da gente, fez meia volta e tomou posição na fileira de origem. Capacetes.

Escudos. Cassetetes. Cavalos. Cachorros. Carrego na memória e em cada célula

minha aquela cena. Paúra. Mais tarde, minha tia explicou - tem um jeito certo

de dobrar a bandeira. Não pode amarfanhar. Símbolo pátrio deve ser respeitado.

Ofensa, Inocência de criança. Cretinice de milico. Só queria comemorar a vitória.

Até hoje, quando lembro, sinto calafrios. Muito medo. Ditadura civil-militar brasi-

leira, muito prazer. Trinta e seis anos depois, o Mundial voltou à América do Sul.

Os argentinos estão chegando. São Paulo é a próxima cidade a ser ocupada pelos

hermanos. Jogam aqui na terça, primeiro de julho. no Itaquerão, contra a Suíça.

Imagina a Vila Madalena. No bolão da família, sigo aos trancos e barrancos. Ainda

na parte de cima da tabela de classificação. Imagina depois da Copa. Amanhã

acaba a fase de grupos. Sexta-feira não tem jogo.Vazio existencial. Tremedeira.

Síndrome de abstinência. O que fazer? Nem o camarada Lênin sabe. O cara que

organizou a tabela diz que o intervalo foi friamente calculado. Descanso não ape-

nas para boleiros, mas também para torcedores. Vinte e quatro horas para recu-

perar energias. Respirar. Preparar os nervos. Fortes emoções estão a caminho.

Luisito, Luisito... És craque. Mas desequilibrado. Reincidente. Que tonteria. A

mordida saiu cara, meu caro. Nove jogos de suspensão em torneios dispu-

tados pela Celeste. Adiós, Copa. Quatro meses sem poder atuar pelo Liverpool

(ou pelo Barcelona, pelo Real Madrid. Qualquer time). Multa de cem mil francos

(cerca de 250 mil reais). A Copa perde muito com tua ausência. Muito mesmo.

Lamento. Futebol não é parque de diversões, brincadeira de roda. Verdade. Mas

também não é vale tudo. Não pode dar cotovelada. Não pode quebrar o adversá-

26 DE JUNHO

LUISITO DÁ ADEUS À

COPA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL58 59

rio. Não pode esmurrar. Não vale cusparada. Não pode morder. Simples assim.

As imagens são cabais. Correram o mundo. Você agrediu o italiano. Não adianta

negar. Sem essa de alegar que foi o ombro do Chiellini que procurou seus dentes.

Fica feio. Já deu. Mereces punição. Aceites. Esse é o ponto. Não podia passar em

brancas nuvens. A encrenca é que a tal da dona FIFA aproveitou para jogar para

a galera e quis ser exemplar. Como se tivesse moral para ser exemplo para qual-

quer coisa. Sim, ao arrancar a tua credencial, o que te impede de permanecer

com a delegação uruguaia, a toda-poderosa pesou a mão. Foi autoritária. Decisão

padrão FIFA. Estúpida. Com pitadas de jurisprudência de Joaquim Barbosa. Vão

recolher também as credenciais dos dirigentes da entidade envolvidos em casos

de corrupção? Remédio em dose cavalar vira veneno. Esdrúxula cretinice. Qual-

quer tirania deve ser repudiada. Banimento? Escolta policial? Não. Absurdos.

Vamos lá, camarada Mujica, confio em sua sensatez. Faça uma gentileza: avisa

lá para o pessoal da Celeste que essa ladainha do “todos nos odeiam e estão

contra a gente” é tosca. Bobice. Vitimização que não cola. Devem ter ouvido os

últimos discursos do ex-presidente Lula. Fato é que os brios dos nossos vizinhos

estão mexidos. Cutucaram a onça. Estejam todos certos e preparados – a raça

uruguaia não será só fantasma no Maracanã, no próximo sábado. Um por todos,

todos por Luisito. Mosqueteiros latinos. Vão comer ainda mais grama contra a

Colômbia. Por falar no país do genial García Márquez, onde estavam os olheiros e

gerentes de futebol remunerados dos clubes brasileiros, incapazes de rastrear e

trazer para cá o talentoso James Rodríguez, antes que ele batesse asas para a Eu-

ropa? Crônica anunciada da perda de craques. O futebol nos tempos do negócio.

Relato de vários náufragos. Notícias de alguns sequestros. De nossos boleiros.

Cem anos de exportação. O habilidoso camisa 10 colombiano, bola refinadís-

sima, de encher os olhos, jogou nas categorias de base da seleção, no Envigado

(clube local) e no Banfield, da Argentina, até zarpar para o Porto. E desembarcar

no Monaco, da França. Ninguém prestou atenção nele. Santos, São Paulo, Co-

rinthians, Palmeiras, Flamengo, Cruzeiro, Inter... Ninguém. Gênios da lâmpada!

Shazam! Adoramos repatriar jogadores em fim de carreira, salários exorbitan-

tes. Porque têm experiência europeia. Ignoramos solenemente as promessas

de nosso continente. Síndrome dos colonizados. Espelho do próspero. Viramos

ainda as costas para os bons jogadores que despontam nos diferentes países

africanos. E são muitos. Celeiros de bons boleiros. O mesmo raciocínio vale para

os técnicos. Desde que o Santos demitiu Muricy Ramalho, defendo a contratação

de um treinador estrangeiro. Que tal um Marcelo Bielsa, um Jorge Sampaoli, um

Jose Pekerman? Sensacional. Para chacoalhar os poxetos arcaicos dos nossos

supervalorizados pofexores. Chega dessa balela de que aqui estão os melhores.

Besta reserva de mercado. Amadorismo. Nacionalismo juvenil. Corporativismo

medieval. Aplausos para a diretoria do Palmeiras, que ousou romper com essa

lenga-lenga. Torço muito para que o trabalho de Ricardo Gareca dê muito certo.

Sucesso, querido! Na rodada de hoje, Tio Sam e Alemanha poderiam ter feito jogo

de compadres. O primeiro tempo até deixou cheirinho de acordo de cavalheiros.

Quase fedeu. O segundo dissipou a nuvem. Boa peleja. Klose em campo. Torci

pelo décimo sexto gol em Copas do alemão. Ainda não veio. Vai sair. A sua hora

vai chegar, Ronaldo Oportunista. Aguarde. Outro Ronaldo, o Cristiano, não perdeu

o lugar de melhor do mundo. Mas voltou mais cedo para Portugal. Vá lá, a des-

pedida foi digna. Vitória sobre Gana, 2 x 1, com um gol do gajo. CR7 está visivel-

mente baleado. Sem joelho. Atuou no sacrifício. Os companheiros de seleção não

ajudam. Bem limitados. Mas essa era a Copa dele. 2018? Sei não. A idade chega

para todos. Pesa. Amigo rádio de guerra mais uma vez requisitado, a caminho da

universidade. Por fração de segundo, veio a sensação de que ouviria a Interna-

cional Socialista. Bem unidos façamos. Nesta luta final. Uma terra sem amos. A

Internacional. Mas o Muro já caiu. E o hino da Rússia, justiça seja feita, é belíssimo

também. Parei no posto só para abastecer o carro. Dei de cara com uma televisão

enorme, imagem de alta definição, transmitindo a partida. Pedi para verificar o

óleo. A água. Calibrar pneus. Limpar os vidros. Puxei papo mole com o frentista.

Consegui ver os dez minutos finais do primeiro tempo. Voei para a Arena Sala

dos Professores. Segundo tempo. Os boleiros organizadores do próximo Mundial

jogaram um futebolzinho bem meia-boca. Foram eliminados, com toda a justiça,

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL60 61

pelos bravos argelinos, liderados pelo também habilidoso Feghouli, do Valência

da Espanha. Em tempos de Stálin, os camaradas seriam imediatamente enviados

para a Sibéria, ao pousar de volta em Moscou. Festa nas ruas de Argel. Mais uma

seleção africana classificada para as oitavas. Por aqui, governos de colorações

partidárias distintas, tucanos e petistas, insistem em criminalizar movimentos

sociais. Prisões arbitrárias. Padrão FIFA. “Não é mais momento de protestar. Du-

rante o torneio, as pessoas querem ver as partidas. É natural”. A fala não é minha.

É da candidata do PSOL à presidência da República, Luciana Genro. Esquerdas gi-

rando em falso. Feito baratas tontas. Dando cabeçadas. Sem discurso. Sem pro-

jeto. Perdidinhas da silva. Partidos imaginando que ainda possuem o monopólio

da representação das insatisfações populares. Enquanto isso, a conservadora re-

vista britânica The Economist anuncia que a Copa é um sucesso. Apita o árbitro.

Ergue o braço. Fim do período de provas. Férias à vista. Está encerrada a fase de

grupos do Mundial. As oitavas começam no sábado. Brasil x Chile. Colômbia x

Uruguai. França x Nigéria. Alemanha x Argélia (revanche da marmelada de 1982,

para depois derrubar a ex-metrópole?). Holanda x México. Costa Rica x Grécia.

Argentina x Suíça. Bélgica x Estados Unidos. Sete latinos. Pulsam as veias aber-

tas da América Latina. Dois africanos. Mama África. Seis europeus. Os coloniza-

dores. E o Tio Sam. O Império. Vamos continuar aproveitando. Faltam só 16 jogos.

Dá uma raiva danada. Daquelas de querer chutar a quina da mesa, com força.

E nem sentir dor no dedinho. Porque é batata – chega como quem não quer

27 DE JUNHO

O PÉ FRIO

nada. Senta do seu lado. Puxa conversa. Faz dois ou três comentários. É até sim-

pático. E daí? No jogo difícil, apertado, decisivo, sai rapidinho gol do adversário.

Cacetada! Não há Stephen Hawking ou Miguel Nicolelis que expliquem. Não dá

para aferir em acelerador de partículas. Não cabe método científico. A culpa é

das estrelas. São energias negativas, concebidas em outras dimensões. Multi-

versos. Forças ocultas. Sem mais delongas - é o famoso PÉ FRIO. Não adianta

negar. Eles existem. Não são poucos. Tenho certeza que você conhece ao menos

um. Unzinho. Alguns, até. Muitos? Pense bem. Lembrou, né? Fácil. Tem uma tia

da minha mãe, irmã do meu avô, que era graduada, especialista, mestre, doutora

e pós-doutora na arte da secação futebolística. Nem o Santos de Coutinho, Pelé

e Pepe escapava. Mesmo que fosse contra adversário bem mais fraco. Era de-

rrota. Na certa. Imagine o Santos das vacas magras! Meu avô e a irmã eram muito

próximos, bem amigos. Ela tinha o costume de almoçar na casa dele todo final de

semana, em geral aos sábados. Mas havia um código de ética, pacto de sangue.

Irrevogável. Sem direito a recurso. Ela telefonava toda sexta-feira. Para saber a

tabela do campeonato. Eryx, tem jogo do Santos amanhã? Tem, Aísa. Venha no

domingo. Amanhã não! Ela respeitava. Sem pestanejar. Eu não era nascido, mas

a historinha virou caso de família. Relembrada em mesas de muitas festas. Na

Copa do Mundo de 1970, meu avô estava na Europa. Mas essa mesma tia resol-

veu ver Brasil x Uruguai, semifinal, na casa dele, que chamávamos de chácara, em

São Bernardo. Não sei o que deu na cabeça da minha mãe e dos meus tios para

autorizar tal presença. A fama de seca pimenteira já era conhecidíssima. Mas lá

estava ela. Nada de sair gol. Angústia. Tensão. E, pqp, gol da Celeste. Fantasma

de 50. Maracanazo. Ela resolveu dar uma voltinha no terraço. Adivinhem? Gol do

Brasil! Empate! Clodoaldo! O pessoal que lá estava caiu na real. Não tiveram dú-

vida: trancaram portas e janelas da chácara. A senhora ficou o resto do jogo do

lado de fora. Com frio de junho. Providência bastante sensata, sem sombra de dú-

vidas. Resultado final: virada canarinho. 3 x 1. Vaga na final. O pé frio dela era tão

poderoso que, na família, o nome dessa tia passou a ser sinônimo de neguinho

que seca o time do outro. Baita xingamento. Seu Aísa!, manda um, quando o ad-

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL62 63

versário marca. Pé da Sibéria. Verdadeiro iceberg. Ainda não acreditam? Pois tem

um conhecido meu, não chega a ser amigo, gente boa, que acho que nunca viu

o Santos ganhar no estádio. Tremendo pé frio. Quando toca o celular em dia de

Peixe em campo e vejo o número dele, tenho calafrios. Digo sempre que não vou

ao jogo, gaguejo, invento desculpa. Não adianta. Lá está o cara, nas arquibanca-

das. É impressionante. O Santos perde mesmo. Na final da Libertadores, 2011, o

maluco teve imprevisto. Na última hora, não pôde ver a decisão contra o Peñarol,

no Pacaembu. Beliscamos o tri. Inesquecível. Também não conseguiu ir ao Mo-

rumbi, Brasileiro de 2002, nem a São José do Rio Preto, 2004. Santos bicampeão.

Em compensação, contra a minha vontade, o sujeito esteve nas finais do Paulista

de 2009 (derrota para o Corinthians), de 2013 (de novo perdemos para o Co-

rinthians) e de 2014 (Ituano!). Tirem vocês as conclusões. Aqui em casa, dizemos

que a mãe de um amiguinho do Daniel está invicta. Jamais viu o time da escola

dos meninos ganhar. Quando ela vai, os pequenos jogam mal, avoados, dispersos,

tomam viradas mirabolantes, nada dá certo. Sem ela nas arquibancadas, belas

jogadas, golaços e até títulos. Não tentem me convencer. Não é só coincidência.

É pé frio mesmo. Não há meia de lã que dê jeito. Na final da Copa do Mundo de

2002, no Japão e na Coreia, meu primo, sem noção do perigo, resolveu levar uma

namorada para ver Brasil x Alemanha na casa dos meus pais. Maluco, como as-

sim, não tinha vindo até agora e vem justo na decisão? Vai dar porcaria, meu ca-

pitão. Quem mandou inventar moda? Nada de sair gols. São Marcos defendendo

tudo. Um olha daqui, outro olha dali. De repente, a moçoila decidiu ir ao banheiro.

Não é piada: gol do Brasil! Foi a senha. Pelos olhares, combinamos de trancar a

senhorita no lavabo. Só deixamos que ela saísse porque demorou um tanto por

lá e o segundo gol veio logo em seguida. Ainda não está convencido? Perguntem

aos corinthianos sobre o goleiro Carlos, que começou a carreira na Ponte Preta.

Baita pé frio! Talvez o maior de todos. Sujeito simpático, inteligente. Boa praça.

Bom goleiro. Mesmo. Mas pé frio. Fazer o quê. A pessoa não escolhe ser pé frio.

Ela nasce pé frio. Paciência. No Paulistão de 1988, Carlão machucou-se na fase fi-

nal. Foi substituído por Ronaldo, que foi muito bem e jogou as duas partidas deci-

sivas contra o Guarani. Carlão não saiu na foto do título! Seleção Brasileira, Copa

de 1986, no México, disputa de pênaltis nas quartas. A cobrança do zagueiro

Julio Cesar explodiu na trave. E saiu. O francês Bellone chutou na trave. Mas a

bola voltou nas costas do Carlos, caído, esticado. E entrou. Gol. França na semi.

Brasil desclassificado. Posso ainda refrescar a memória dos palmeirenses. Jor-

ginho. Meia-atacante. Fez parte dos esquadrões do Verdão na época da fila dos

dezessete anos. Ficou sempre no ‘quase’. Esteve em campo na final do Paulistão

de 1986, contra a Inter de Limeira. Não por acaso, era carinhosamente chamado

pelos palestrinos de... Jorginho Pé Frio! Amigos, poderia usar mais uma dezena

de exemplos. Ficaria até cansativo. É a mais pura realidade. Os pés frios estão

por aí. São de carne e osso. Tudo bem. Você é cético. Acha que não faz sentido. É

tudo tolice. Crendice. Bobagem minha. Respeito. Futebol não tem racionalidade

mesmo. Mas, pelo sim, pelo não, só para garantir, medida de segurança, vamos

tomar cuidado. Prestar bem atenção. Pé de coelho. Mangalô. Três batidinhas na

madeira. Folhinha de arruda na orelha. E muita distância dos pés frios amanhã.

Longe. Bem longe deles. Porque tem Brasil em campo contra o Chile. E é mata-

mata. Combinado?

Cresci ouvindo uma historinha que dizia assim: era uma vez um fantasma.

Trajava camisa azul. Garboso. Calou o Brasil num 16 de julho de 1950. Es-

28 DE JUNHO

SUFOCO. E ERA UMA

VEZ UM FANTASMA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL64 65

tádio do Maracanã. 200 mil torcedores. O mais longo minuto de silêncio já visto

numa Copa do Mundo. A tragédia que reforçou nos brasileiros o maldito com-

plexo de vira-latas. Estamos fadados à derrota. Jamais. Imaginem na Copa de

2014, saíram de lá dizendo nossos avós. Choro. Celeste. Raça. Schiaffino. Ghiggia.

Barbosa crucificado. Jogadores condenados ao panteão dos fracassados. Vice-

campeonato em casa. Maracanazo. Toda vez que a gente jogava contra o Uruguai,

lá vinha a assombração atormentar. Ganhamos muitas vezes. Em Eliminatórias,

em Montevidéu, no Centenário. Goleando. Em amistosos. Na Copa das Confede-

rações. Em Copa América. Em final de Copa América, num mesmo 16 de julho,

em 1989. Romário. Até em semifinal de Mundial. México. Não adiantava. O canto

ecoava. Maracanazo. Maracanazo. Maracanazo. Reverencio a história da Celeste.

Faz parte do Olimpo do futebol. São gigantes. Mas... Sessenta e quatro anos de-

pois, diziam que o tal fantasma tinha voltado. Para escrever mais um capítulo

desse livro, agora versão adulta. Ainda mais assustador. Implacável. Ouvi dizer

que já tinha até comprado ingresso para a final, 13 de julho, no mesmo (ou não)

Maraca. Estaria sentadinho na cadeira 28, fileira A, portão M, setor 1. Bem atrás

do gol onde Ghiggia marcou. Assento reservado. Boatos fortíssimos de que, dali,

veria o gol do terceiro título. No cantinho esquerdo baixo do goleiro. Tri. Maraca-

nazo. Em Fortaleza, na estreia da equipe do camarada Mujica, cantavam “seremos

campeões como da última vez”. Maracanazo. Lá, o que vi foi Castelazo. Exibição

de gala da Costa Rica. Quis o destino, esse brincalhão caça-assombrações, que

o Uruguai voltasse ao Maracanã, numa Copa, para enfrentar um escrete de ca-

misas amarelas e calções brancos. Com um 10 que é o maestro máximo desse

torneio. Mata no peito estufado, com estilo. Gira o corpo. Olha. A pelota vai caindo

lentamente. Ao alcance de um sem pulo de esquerda. Petardo. José Silvério na-

rraria “ela ficou pedindo me chuta, me chuta... Ele encheu o pé”. Muslera voa.

Trisca. A bola estufa as redes. ângulo. Que maravilha! Golaço. Mais um. James

Rodríguez já tinha anotado tento lindíssimo contra o Japão. Com todo mérito, é

agora o artilheiro da Copa. Cinco goles. De craque. No Maracanazo às avessas,

teve mais um gol. Da Colômbia. É a Seleção que encanta. Alegria e ousadia. Cua-

drado. Armero. Zuñiga. Ospina. Alguém viu o fantasma por aí? Dizem que saiu de

fininho, sem fazer alarde, disfarçado, antes de a partida terminar. Não viu a festa

colombiana. A essa hora, deve estar desembarcando em Montevidéu. Para nunca

mais voltar. Depois do mimimi do “complô contra a Celeste”, os uruguaios foram

bravos. Mais uma vez. Chega um tempo de Copa, porém, em que, diante de fu-

tebol vistoso e bem treinado, só raça não basta. Adiós. Outros fantasmas? Estão

por aí. Ariscos. Sorrateiros. Dissimulados. Dementadores. Comensais da morte.

O futebol os adora, flerta com eles a cada passe. Cada dividida. Cada decisão por

pênaltis. O do Maracanazo, no entanto, foi-se. O último capítulo de um dos livros

da minha infância foi escrito hoje. Página infeliz da nossa história. Agora virada.

Maracanazo. Estou vivo. Os pênaltis? Vi abraçado ao Daniel, cabeça apoiada no

ombro dele. Respirando aceleradamente. Só nós dois. Pai, estou com medo. Gri-

tamos no do David Luiz. Mais alto ainda no primeiro defendido pelo Julio Cesar.

Soltamos palavrões para o Willian. Trememos no primeiro convertido pelo Chile.

Ficamos aliviados com o do Marcelo. Bateu na mão do goleiro. E daí? O que vale

é que entrou. Explodimos na segunda defesa do Julio. No cantinho! Mandamos o

Hulk à merda. Pai, estou com medo. Apertou minha mão. Estávamos de joelhos.

Só nós dois. Também senti medo no quarto dos chilenos. Gol deles. Foi isso? Sei

lá. Perdi as contas. Nossos corações quase pararam no do Neymar. Valeu, Mole-

que! Atordoado, só vi a quinta cobrança chilena explodindo na trave. Achei que

tinha sido na direita. Acabei de ver que foi na esquerda. A imagem ficou turva.

Ainda consegui mirar os jogadores brasileiros correndo para pular no Julio Cesar.

Abracei o Daniel. Pulamos, pulamos, pulamos. Como se não houvesse amanhã.

Descarga de adrenalina. Abraçamos meu pai. Minha mãe. E desabei. Fiquei caído

no chão. Meia hora depois, a pressão despencou. Sal na língua. Tudo sob controle

agora. Ainda escrevo com o corpo todo moído. Dores nos braços e nas pernas.

Como se um caminhão na ladeira tivesse me atropelado. Daniel, fiel escudeiro pé

quente. Luiza, minha princesa da sorte, ligou. Corrente de comemoração. Men-

sagens trocadas com irmãos, primos. amigos. Preciso de uma boa noite de sono.

Vou dormir aliviado. Mas preocupado. O Brasil teve lampejos de bom futebol nos

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL66 67

trinta minutos iniciais do primeiro tempo. Vacilou em lance amador. Gol do Chile.

Apagão. O segundo tempo foi show de horrores. A Seleção foi dominada. Neymar

sumiu. Uma das piores jornadas da carreira dele. E que se reconheça que o Chile

jogou bem. Sampaoli estudou o Brasil. Neutralizou nossas virtudes. E mostrou

boa coleção de atributos futebolísticos - jogo coletivo, troca rápida de passes,

volantes habilidosos, atacantes perigosíssimos. Belíssima geração de boleiros

chilenos. Dilma e Lula, que compraram a Copa para o Brasil, esqueceram de

apresentar o recibo para o árbitro. Sua senhoria anulou gol legítimo de Hulk. Não

foi mão nem no Mineirão, nem Lagoa da Pampulha, nem no aeroporto de Conf-

ins. Peito. Quem disputa aquelas peladas de final de semana sabe bem que, pela

trajetória da bola, foi matada no peito. Como manda o manual do bom futebol.

Nota lamentável: imbecis nas arquibancadas do Mineirão vaiaram o hino chileno.

Boçais. Beócios. Em campo, a Seleção avançou. Aos trancos e barrancos. Com

esse futebol, ficamos na Colômbia. Arruma esse time, Felipão! Já passou da hora.

Enquanto o técnico da Seleção quebra a cabeça e vira a madrugada matutando

o jogo de sexta-feira, quarta-de-final, coloco ponto final e vou descansar. Com as

luzes apagadas. Porque não tem mais fantasma uruguaio vagando por aqui.

As manchetes já estavam prontas. Faltava só apertar o ENTER. Copa cada

vez mais América. Holanda amarela de novo. Holanda joga como nunca,

29 DE JUNHO

A SELEÇÃO BRASILEIRA

NO DIVÃ

perde como sempre. O caminho da Argentina para a final cada vez mais fácil. Her-

manos podem comprar passagens para o Maracanã, 13 de julho. Como diria o

sábio Mané das pernas tortas, faltou combinar com os holandeses. Uma bola es-

pirrada, aos 43 do segundo tempo. Balaço do Sneijder. Não tem deus asteca,

Montezuma ou Ochoa (já tinha feito milagre) que pegue um petardo daqueles.

Seis minutos de acréscimo. Deram espaço para o carequinha da perna esquerda

que é especialista em cem metros rasos entrar na área. Corta para lá, não deixa

escapar pela linha de fundo. Pelota grudada na canhota. Que lance infantil, Rafa

Márquez. Que desagradável. O Robben valorizou, é verdade, pulou, fez cena. Ro-

lou, se contorceu. Ator padrão FIFA. Imagina se fosse o Neymar. Apesar da ce-

ninha patética, foi pênalti. Bola na marca da cal. Huntelaar em dia de Aloísio Boi

Bandido faz e sai dando voadora na bandeira de escanteio. Virada e classificação

da Holanda. Nos minutos derradeiros. Magia de uma Copa do Mundo que só faz

confirmar que jogo de futebol é sempre uma caixinha de surpresas e que só ter-

mina quando o juiz apita. Peço desculpas pelos clichês. Quem mandou abrir mão

do jogo, México? O torcedor laranja que saiu antes do estádio, triste, decepcio-

nado, se arrependeu. Voltou correndo enrolado na bandeira para participar da

festa. Editores saíram pelas redações gritando ‘atenção, cuidado, cuidado, muda

essa manchete, corrige. Não dá enter! Não dá enter. Nada de Mario Sergio Conti!”.

Elisa aproveitou o domingão preguiçoso, que começou quente e foi ficando frioz-

inho, para brincar com os meninos na festa junina da pracinha que fica perto de

casa. Feliz coincidência, encontraram por lá a Vania Ferreira, o Bruno Vergueiro, a

Marcia Midori, o Mauricio Rigatto. Amigos queridos. Porque a vida só tem graça

com eles. A condição do Daniel foi explícita: a gente sai três da tarde. Se não tiver

prorrogação e pênalti no jogo da Holanda. E volta antes das cinco, para ver a

Costa Rica. Garoto esperto. Teve quentão. Forró. Fogueira. Refuguei. Abri mão da

quadrilha. Defendo que se acrescente à Declaração Universal dos Direitos Huma-

nos um artigo a estabelecer que todo domingo será usado para ficar morgando

em casa, sem compromisso, cultivando a arte da preguiça. Ócio criativo. Aprovei-

tei o tempo livre para organizar pastas e envelopes com provas e listas de assina-

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL68 69

turas, acertar últimos detalhes de diários. Material que será todinho entregue

amanhã, na universidade. Que rufem os tambores e comecem as férias. Na soli-

dão, aconchego do lar, o diabinho cutuca. Vem sempre uma ideia. Ou muitas. E lá

se foram meus neurônios, a elucubrar sobre a Seleção Brasileira. Sem a tensão

dramática dos pênaltis. Com a preocupação de quem reviu o jogo contra o Chile

inteirinho na madrugada. Maluco total. Não vou apedrejar o time de Felipão. Fácil.

São apenas angústias ao vento. Torcedor. Até porque é um bom time, com quali-

dade. O fato é - o Brasil não está jogando bem. Não há saída de bola. Falta meio de

campo. A equipe não tem quem pare a bola e pense o jogo. James Rodríguez ves-

tiu uma camisa amarela e saiu por aí, desfilando sua elegância sutil pelos grama-

dos nacionais. Mas não é Bobô. Não é brasileiro. Pena. Cairia como uma luva.

Felipão deve ter passado as últimas madrugadas em claro. Ponteiros do relógio

rodando, ele divagando. Porque muitos dos boleiros de confiança dele e que fize-

ram boa Copa das Confederações não estão jogando bem agora. Daniel Alves,

Marcelo, Paulinho, Oscar, Fred. Todos podem jogar muito mais. Restam Julio Ce-

sar, Thiago Silva, David Luiz, Luis Gustavo e Neymar. É pouco. Sobretudo quando

o craque brasileiro não joga. Aí fica duríssimo. Os reservas, pontualmente, estão

entrando bem. Sem brilho, no entanto. Sem conseguir resgatar o equilíbrio e a

estabilidade que a equipe tinha. O que torna o caldo mais confuso ainda. Há que

se reconhecer a qualidade de nossos adversários. Nem sempre a gente lembra

disso. O México foi muito competente. O Chile é um time muito organizado, com

eficiência coletiva e talentos individuais. Verdade também que as outras seleções

aprenderam a jogar contra o Brasil do gaúcho de bigodes. Nas Confederações, o

Brasil era franco atirador, escrete em formação. Havia o elemento surpresa. Mar-

cação sob pressão no ataque, Neymar livre, Oscar e Hulk caindo pelas pontas,

laterais atacando, volante cão de guarda. Ficou previsível. Aí é que precisa entrar

o dedo do técnico. E algo chamado treino. O que, não me parece, seja a rotina

dessa Seleção. Jogo ontem. Folga hoje. Reapresentação no final da noite do do-

mingo. Treino leve na segunda. Jogadores cansados. Não vamos forçar. Para não

estourar. Na terça, atividade mais forte, específica, pensando já na Colômbia. Na

quarta, viagem para Fortaleza. Treino de reconhecimento no Castelão na quinta.

Jogo de quarta-de-final na sexta. É muito pouco. Quando a gente era moleque,

sempre aparecia um técnico que distribuía bolas e fazia ficar chutando a pelota,

de primeira, na parede. O famoso paredão. Com a direita! Agora com a esquerda!

Bate forte! De lado! De peito! De três dedos! Agora quero a bola aqui! (e apontava

um círculo na parede, no alto). Tínhamos depois que treinar passes. Corridas com

a bola dominada. Cobranças de faltas. Mata e toca! Só dois toques! E tudo isso

era muito mais por brincadeira, nada sério. No máximo final de um campeonato

interno, torneio inter-clubes, competição entre escolas. Imagina numa Copa do

Mundo. Precisa treinar, Felipão. Para aperfeiçoar e corrigir, com a repetição. Para

ensaiar jogadas. Para usar a bola parada. Para aprender a sair de marcação sob

pressão. Para pensar em variações táticas. Para sonhar em ganhar a Copa do

Mundo. Do lado de cá da cerca da Granja Comary, arrisco palpite: esse é o nó

gordo da Seleção. Muito mais que a instabilidade emocional - que existe, mas que

vem sendo agora cantada em verso e prosa como vetor inexorável de possível

fiasco. A Seleção é jovem. Os que lá estão, no entanto, não são novatos inexpe-

rientes. Já jogaram finais de Champions, de Libertadores, de Mundiais. São cas-

cudos. Mas eles choram quando o hino toca, quando estão no túnel de acesso ao

gramado, antes de bater pênaltis. Eu também. E daí? Seres humanos que são,

extravasam emoções. Sentem. Não deve ser fácil mesmo jogar Copa em casa

própria, num país acostumado a ganhar e onde o segundo lugar vale nada. Ima-

gina ser desclassificado nas oitavas. Baita pressão. Ah, eles sabiam disso. Ver-

dade. Mas o bicho pega mesmo quando a bola rola lá nas tais arenas. Até então, é

tudo só expectativa e vontade. A perna treme mesmo. Ainda que não se queira,

que se tente controlar. Quem aí não teve tremedeira no pezinho esquerdo, bem o

da embreagem, quando foi fazer exame de auto-escola, dezoito anos recém-fei-

tos? O carro morreu. Era só carta de motorista. Então. Jogadores de futebol não

são máquinas infalíveis inovadoras da Apple de Steve Jobs. Chico, eles ganham

muito bem para fazer o que deles se espera. É obrigação. Não é. Ganham rios de

dinheiro, ninguém nega. Quem quer ser um milionário da bola? Mas não me

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL70 71

consta que nos contratos deles esteja escrito que estão obrigados por alguma

determinação divina a levantar o caneco. Se não for assim, queimarão nas foguei-

ras da inquisição, labaredas acesas pela tal opinião pública futebolística. OK,

também fiquei ressabiado quando vi o capitão Thiago Silva sentado na bola, linha

lateral, a mirar o infinito, abatido, quando a prorrogação terminou no Mineirão. O

que passa, capitão? Não acabou. Que apatia é essa? Aí apareceu o Paulinho para,

na roda final, bater no peito de cada jogador e chamar os caras para cima, em bom

português boleiro. Foi quando o David Luiz disse ‘bato o primeiro’. Foi quando o

Neymar chamou o Felipão e mandou: ‘O último é meu’. Concordo, é preciso tomar

cuidado com o tom. Não pode chegar ao volume máximo. A emoção não pode

atrapalhar desempenho em campo. O time não pode virar exército napoleônico,

esmurrando escudos e urrando de vontade de invadir a Rússia. Até porque pode

aparecer um general inverno no meio do caminho. Ou um bom time colombiano.

Pode dar bobagem, meu capitão. O desafio do Felipão, conhecido por ser exímio

motivador, é buscar inspiração no grego Arquimedes e achar exatamente esse

ponto de equilíbrio, para alavancar o desempenho da Seleção. Sinceramente: da-

qui, de fora, não vou apontar o dedo e condenar os caras por não esconderem a

dimensão humana que caracteriza a nossa espécie - razão e sensibilidade. Me

parece cruel demais. Vou insistir nesse segredo, Felipão, não espalhe, não conte

para ninguém. Treino e terapia em grupo. Coloque essa moçada para suar. Muito.

Depois tranque a porta, puxe o divã e diga “vamos falar sobre isso”. Freud, Lacan,

Piaget... Sei lá. Aí é com você, comandante. Vai que é sua. Já falei demais. Viram

só? Divagações futebolísticas numa tarde de domingo. Teve neguinho que escre-

veu no face que Costa Rica x Grécia fez sentir saudades dos jogos do Paulistão.

Será? É, foi chatinho. Emoção mesmo só no finalzinho, para variar, com o empate

dos deuses do Olimpo (de novo) e a prorrogação. Vi as penalidades passando

manteiga no sanduíche do Daniel. Pênaltis nos olhos dos outros é refresco. Me

empolguei com Navas. Como lembrou o Rogério Zé, um só Ruiz já ajudaria bas-

tante o time do Santos. Estão por lá mesmo. Gostaram tanto da Vila Belmiro. Vixi,

o pão torrou no forninho. Vou lá fazer outro. O moleque está com fome.

Eu já estava esfregando as mãos e me preparando para a versão brasileira

futebolística da Batalha de Argel. Foi por um trisquinho. Não deu. O novo

Maraca vai ser mesmo palco da antiga rivalidade franco-alemã. Em disputa, os

dois países sabem disso, muito, mas muito mais que o controle das minas de

ferro e de carvão da Alsácia-Lorena. Esqueçam o Tratado de Versalhes. Vale vaga

na semifinal da Copa do Mundo, meu povo. Recomendo fortemente cancelar to-

dos os compromissos da sexta à tarde, por favor. Questão de juízo. Já fiz isso. A

peleja é imperdível. Na sequência, Brasil x Colômbia no Castelão. Demora muito

para chegar sexta? Quando essa encrenca toda começou, com a divulgação da

tabela do Mundial lá no já longínquo começo de dezembro de 2013, achei, um

tanto desolado, vá lá, resignado, que veria mesmo os jogos pela TV. Tudo bem,

compro uma maior, tela plana, altíssima definição, função futebol. Um monte de

penduricalhos. Mas seria sempre televisão, pombas. Paciência. Sem fazer alarde,

apareceu um ingresso para Argentina x Irã. Já me dava por satisfeito, confesso.

Numa manobra ousada, a considerar período de aulas, preços de passagens,

quase um bate e volta, carimbei passaporte para Fortaleza. Uruguai x Costa Rica.

Muito bom. Quando menos esperava, mensagens desbragadamente trocadas

por celular, decisão em tempo recorde, segura aí, não deixa vender, só vou fa-

zer as contas, cravei mais dois ingressos. Itaquerão. Uruguai x Inglaterra. Chile

x Holanda. Quase o jardim do Éden, se ele existe. Foi uma espécie de mini Copa

América particular. A inenarrável sensação de ver um jogo de Copa com o Daniel;

30 DE JUNHO

QUE COPA É ESSA?

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL72 73

outro, com a Luiza. Pensem num pai explodindo de felicidade. Transbordando sa-

tisfação. Esse cara sou eu. Não deu para as oitavas. Ainda não desisti das quartas.

Nem da semi. Muito menos da final. Numa dessas... Estamos aí. Certo? O escritor

colombiano (três batidas na madeira) Gabriel García Márquez dizia que somos

aquilo que lembramos. Memórias. As de junho/julho de 2014 vou carregar sem-

pre comigo. Ainda que, bem velhinho, talvez numa casa de repouso, as inevitáveis

falhas de comunicação entre neurônios exaustos se manifestem. Não importa.

As cenas continuarão lá, bem guardadinhas. Numa caixinha especial do cérebro.

Num cantinho privilegiado da alma. Ainda que eu já não mais consiga expressá-

las. Serão minhas. Uma Copa é feita de várias copas singulares. São enredos cos-

turados para além dos lindos lances, gols e defesas que estamos vendo nas tais

arenas. Um Mundial que não acontece em campo. Em Belo Horizonte, conheci

um taxista que estava encantado com a festa feita pelos colombianos (batam

de novo na madeira). “Adoraram a caipirinha, ficaram loucos com a bebida. Não

conheciam”, divertia-se. Foi o mesmo motorista que se ofereceu para, depois de

me deixar no Mineirão, porque o relógio andava mas o trânsito não, deixar minha

mochila na portaria do hotel. Em Fortaleza, foi também um taxista quem muito

gentilmente nos alertou, ao nos deixar numa avenida onde iríamos procurar lugar

para matar a fome, para depois seguir para o hotel: “muito cuidado. Não andem

sozinhos pelos lados de cá. É barra pesada. Para lá, tudo livre e sossegado”. Na

saída do estádio, depois do Castelazo uruguaio, dois amigos costarriquenhos de-

vidamente uniformizados se abraçavam e ajoelhavam. Dei parabéns a eles. Só

conseguiam dizer “gracias, gracias, gracias”. Sem parar. Estavam em transe. Ti-

ramos até fotos juntos. Não sei se lembram. O metrô de São Paulo foi alçado à

condição de atração obrigatória. A gente nem se importa com os vagões lotados.

Ao contrário - torcemos incrivelmente mesmo para que estejam bem cheios. De

sotaques de todos os timbres, cores de todas as bandeiras. No dia da abertura,

os croatas desenharam a Paulista em vermelho e branco. Caixas e caixas de cer-

veja empilhadas nos bares. Vi os franceses cantando a Marselhesa a plenos pul-

mões no Vale do Anhangabaú. Em casa, os últimos vinte dias foram marcados

por acaloradas mesas-redondas domésticas. Pai, o Felipão não deveria ter es-

calado o Hulk. Foi pênalti, sim. O meio da França é muito bom. O da Alemanha é

melhor. A Bélgica está decepcionando. Luiza e Daniel assumiram ares de Paulo

Vinicius Coelho, Paulo Calçade, Antero Greco. Eu, amigão, e Elisa, my friend, atua-

mos como modestos moderadores. O bate-bola esteve sempre com eles. Linha

de passe. O aparelhinho da TV esteve permanentemente sintonizado na ESPN

Brasil. Será assim até a final. No bolão da família, continuo na briga. Terceiro lu-

gar. O Dani foi perdendo fôlego. Não se conforma. Promete reagir nessa reta final.

Meu celular acabou se transformado numa Central da Copa. Dispara mensagens.

Recebe mensagens. No Itaquerão, passei um frio de rachar. E um calor de derre-

ter. Vi inglês trajado de cavaleiro templário falando palavrões em sequência inter-

minável. Código Da Vinci. Robert Langdon não perdoaria o sujeito. Vi chileno que

dormiu o jogo inteiro contra a Holanda. Não podia ser ressaca de balada. Era um

senhorzinho! Provavelmente exausto por conta da maratona copística. A mesma

peregrinação que parece jamais cansar os argentinos. Os hermanos fizeram onda

azul e branca no Rio de Janeiro. Transformaram BH em Belôs Aires. Invadiram

Porto Alegre. Estão tomando conta de São Paulo. Os caras são fanáticos. Têm

meu respeito. Marcam presença mesmo. Tem neguinho que foi para a capital mi-

neira de carro. Li hoje na Folha a história de dois estudantes, uma garota e um

rapaz, que saíram de San Isidro, perto de Buenos Aires, com trezentos dólares

nos bolsos. Só viajaram de carona. Na boléia de caminhões. Estão dormindo em

sofás solidários. Li também que os jogadores gregos doaram o prêmio da classi-

ficação para as oitavas para a construção de um centro de treinamentos para a

seleção deles. Golaço. De placa. Pode colocar no DVD dos melhores momentos

do Mundial. Ontem, durante o jogo da Costa Rica, país que não tem exército e

não sabe o que é golpe de Estado, grudei um olho na TV e outro no twitter do

presidente costarriquenho, Luis Guillermo Solís. “Estamos com vocês! As mel-

hores vibrações para Keylor Navas! Somos gigantes! Passamos! É a história!”,

foi narrando. Só em Copa do Mundo mesmo. No Maraca, o mano Guto Bicudo

viu os colombianos (madeira mais uma vez) nas arquibancadas torcerem para o

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL74 75

Brasil, na disputa de pênaltis. Vídeo que está circulando nas redes sociais mos-

tra os jogadores alemães Podolski e Schweinsteiger festejando a classificação do

Brasil. Quase fazendo um poropopó com os funcionários do hotel onde os germâ-

nicos estão concentrados, em Santa Cruz de Cabrália. Vai ver que é por essas e

por tantas outras que 38,5% dos jornalistas estrangeiros afirmam, em enquete

feita pelo insuspeito UOL, que essa é a melhor Copa que já cobriram. Batemos

de longe a Alemanha, 2006 (19,7%), a África do Sul (5,1%), os Estados Unidos

(4,3%), a Itália (3,4%), a França (também 3,4%), o Japão e a Coreia (os mesmís-

simos 3,4%), o México, 86 (1,7%), o México, 70 (também 1,7%) e a Alemanha,

versão 74 (0,9%). Para desespero dos profetas do apocalipse, que já começam a

bradar imagina depois da Copa! Imagina nas eleições! Imagina nas Olimpíadas!

Imagina! Imagina! Imagina! Imagina que participar dessa festa não é sinônimo de

alienação, de analfabetismo político. Continuamos de olho nas nossas profundas

injustiças sociais, no autoritarismo e no cinismo dos nossos governos. Protes-

tando. Ocupando as ruas. Com consciência. Sem abrir mão de viver esse evento

de perto. Dentro das quatro linhas, a Copa nos brindou hoje com as exibições

fantásticas da Argélia e da Nigéria. Mama África aplaude, orgulhosa. Dignidade e

futebol vistoso. Dois grandes goleiros, no torneio que é também o dos arqueiros.

Um ingresso para Argentina x Suíça chegou a passar bem pertinho das minhas

mãos. Mas voou. Ideia da Luiza, imediatamente aceita, vamos ver os hermanos

amanhã na telona do cinema. Mais uma experiência inédita nesse Mundial de

tantas novidades. Conto depois. Aguardem.

Quando os confrontos das oitavas de final foram definidos, os deuses do

futebol convocaram reunião secreta de emergência. Os convites foram fei-

tos pelas redes sociais dos céus e aléns, com perfis fakes e códigos indecifráveis,

conhecidos apenas pelos participantes do convescote, obviamente. O encontro

deu-se no Everest, Himalaia, a quase nove mil metros de altitude. Campo neutro,

já que não há mais seleções asiáticas na disputa. E deuses não sofrem com falta

de ar. Para chegar até lá, percorreram rotas alternativas, para despistar. Evitaram

viajar de avião. Até porque, em tempos de Copa do Mundo, os preços das pas-

sagens estão nas alturas. Proibitivos. Padrão FIFA ao quadrado. Pediram auxílio

a dragões voadores. Chegaram disfarçados, discretamente. Eram entidades sa-

gradas tupis, astecas, nagôs, iorubás, incas, além de javés, jesuses, alás, shivas,

thores, apolos, afrodites, sekhmets e tantos outros. Eram muitos. Diálogo ecumê-

nico. Em comum, a paixão pela santa bola. A primeira determinação saiu por

consenso: avançarão todas as seleções que terminaram em primeiro lugar em

seus grupos. Justiça divina. Não se discute. Cumpra-se. Até Joaquim Barbosa,

que hoje se despediu do Supremo Tribunal Federal, disse amém. O debate que

se seguiu foi acalorado. Forrobodó. Mas serão jogos fáceis ou com sofrimento?

Goleadas? Discute de lá, palpita de cá, puxa o texto-base, verifica quórum, pede

questão de ordem, cinco minutos de recesso, princípio de balbúrdia, conchavos,

1 DE JULHO

OS DEUSES DO FUTEBOL

ABENÇOARAM BRASIL E

ARGENTINA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL76 77

apresenta emenda aglutinativa. Até que estabeleceram o veredito. A Holanda

vai suar quase sangue sob o sol de Fortaleza. Segue. No finalzinho. O careca da

perna esquerda é bom jogador. Bom ator também. Aprovado. A Costa Rica me-

rece também. Bonita campanha. Destroçou o grupo da morte. Nos pênaltis. Para

mexer com os brios dos ticos. Carimbado. A Colômbia vai desfilar, exuberante. No

ritmo da habilidade do camisa 10. Feito histórico. Os argelinos e nigerianos vão

sufocar, pressionar, apertar, ameaçar. Os de Argel até levarão a decisão para a

prorrogação. Para dar friozinho na espinha dos germânicos. Troco pela armação

da Copa de 1982. França e Alemanha, no entanto, seguirão. Camisas de mais tra-

dição e títulos mundiais. Será bom vê-las frente a frente, cem anos depois da I

Guerra Mundial. Num campo de futebol, que fique bem claro. Tudo bem. A Bél-

gica chegou como promessa. Ainda não engrenou. Vamos dar chance derradeira.

Numa prorrogação kamikaze contra o Império. Assinado. Bem, faltam Brasil e

Argentina, fez lembrar um desavisado. Burburinho, disse-que-disse, cochichos.

Vão sofrer muito, decretou finalmente o presidente da reunião ecumênica. Choro.

Taquicardia. Prorrogações. Pênaltis para os brasileiros. Para osdois, vamos cuidar

especialmente das traves. Entenderam? Estejam atentos às traves. Não percam

a concentração, jamais. Olhos vivos. Bolas decisivas devem explodir no traves-

são, no pé da trave direita, no meio da esquerda. Estamos combinados? No final,

avançam. Os dois. Brasil e Argentina. Essa Copa está lindíssima. Messi e Neymar

não merecem sair da festa. Não ainda. Não tão cedo. Todos balançaram a cabeça

positivamente, concordando. A ata foi escrita pelo secretário-geral e assinada

por todos os deuses presentes. Despediram-se. Antes de partir (apenas alguns

moram por lá), deixaram marcado: entre quarta e quinta-feira, voltaremos a nos

reunir. Para debater as quartas. Aqui na terra, bem longe do Tibete, estávamos

sozinhos - eu, Luiza e Daniel - na sala de cinema do Eldorado até o começo do

jogo da Argentina. A arena escura era só nossa. Prometi logo que chegamos - se

der Suíça, saio correndo até a tela para comemorar. A imagem é linda; o som, per-

feito. O único porém: transmissão da Globo. Não dá para ser na ESPN Brasil não?

Chegaram três hermanos - pai, mãe e filho, este com a camisa da Argentina. Sen-

taram na nossa fileira, umas dez cadeiras para a direita. Arquibancadas divididas.

Meio a meio. Com dez minutos, já éramos maioria. Desembarcaram atrasados

por lá mais uns seis gatos pingados, todos brasileiros fanáticos torcedores da

seleção do país do chocolate, das contas secretas e da neutralidade em guerras.

A partida corria em banho-maria. O conhecido ferrolho suíço na defesa. E uma

Argentina inoperante, sem brilho. Provavelmente contando com mais um lance

genial dele. Passei o jogo inteirinho dizendo não deixa o Messi dominar sozinho,

trava a perna esquerda dele, dobra a marcação. A vantagem ali é que a gente po-

dia gritar, comentar, soltar o tradicional “Uh!”. Ninguém reclamava. Ao contrário

- engrossavam o coro. Experiência insólita, divertidíssima - fazer de uma sala de

cinema originalmente silenciosa uma vibrante arquibancada de estádio em Copa

do Mundo. Mais uma para guardar. Quando o atacante suíço chutou sozinho para

defesa do goleiro argentino, deixei escapar um “bate no canto, cara!”. Alguns mi-

nutos depois, outro vermelhinho saiu sozinho, na cara do gol. Quis tocar de ca-

vadinha. “Animal!”, gritei. Luiza e Daniel caíram na gargalhada. O segundo tempo

foi modorrento também. Mesmíssimo roteiro. Como determina a boa mandinga,

continuei secando a canhota do Messi. Quando os hermanos em campo fize-

ram menção de tentar definir a parada, Cleber Machado mandou um “Argentina

volta à carga”. Daniel entendeu “Argentina volta a cagar”. Não. Ainda não, filho.

Tomara. Rimos muito, de novo. Os três. Prorrogação. Intervalo para um xixizinho,

num banheiro quase padrão FIFA. O companheiro que estava na fileira abaixo da

nossa alertou. “O argentino vai bater na gente. Está ficando bravo”. Pois tomara

que ele termine o jogo mais bravo ainda, respondi. Mais risadas. O tempo extra foi

tenso. Luiza fecha os olhos nos lances perigosos contra os vermelhos. Sento na

pontinha da cadeira, mãos em concha, apoiando o rosto. Não abandonei minha

obsessão: marquem o Messi. Marquem o Messi. A Argentina é ele. Pois lembram-

se do relato sobre os pés frios? Pois então. No finalzinho do segundo tempo da

prorrogação, Cleber Machado decreta que Messi estava apagado, sem participar

do jogo. Não me contenho. “Não fala, fica quieto”. Suíço perde uma bola besta, na

linha lateral. Contra-ataque. A pelota vai caprichosamente parar no pé esquerdo

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL78 79

dele, do jeito que o craque gosta. Ele arranca. “Vai, marca, não deixa avançar.

Marca!”. Dois ficam para trás. Olhares desesperados dos defensores que restam.

Toque mortal, na ponta direita, para Di María. Tapa de esquerda. Caixa. Lembrei

imediatamente da jogada do Ronaldinho Gaúcho em 2002, contra a Inglaterra, no

primeiro gol brasileiro, o do Rivaldo. O hermano quase derrubou o cinema. “Gole!

Messi! Ole! Gole!”. Calma, hermano. Não acabou ainda. Falta para a Suíça. O go-

leirão vai para a área e tenta de bicicleta! Cacete! Outra bola cruzada na área da

Argentina. Veio do fundo das entranhas. O cinema jamais vai ouvir novamente be-

rro como aquele. “GOL! GOL! NÃO! PUTA MERDA!”. A cabeçada do suíço explodiu

no pé da trave. Voltou no pé dele. E saiu pela linha de fundo. Fim de jogo. Argentina

classificada. Os deuses do futebol fizeram valer suas vontades. Há quem diga

que, no sábado, comecinho de noite, era possível ouvir animada roda de samba

no topo do Himalaia. Hoje, o tango de Carlos Gardel deve embalar a festa. Volume

baixo. Discretamente. Divinamente.

Ainda estou tentando entender melhor que sensação é essa. Fazia quatro

anos não vivia algo parecido. Angústia que deixa inquieto. Irrequieto. Sem

parada. Nostalgia. Saudade. Expectativa. Leve (ainda) tensão. Lembrar o que já

foi. Imaginar o que está por vir. Pensando bem, é melhor que seja assim. Esses

dias sem jogos funcionam para nos avisar que, sim, não tem jeito, não há o que

2 DE JULHO

AOS INCRÍVEIS MANOS

BOLEIROS

fazer, está acabando. Preparem os espíritos. O Brasileirão vai recomeçar. É es-

pécie de alerta para processar e acostumar. Sinal amarelo. Atenção. Porque se

tivéssemos jogos todos os dias, todos os dias, todos os dias, ininterruptamente,

a quebra seria brusca, dramática, e o baque, muito maior na segunda, 14 de julho,

quando as luzes do Maracanã já estarão apagadas. Queda da Bastilha. Sei lá. Vai

ver estou sendo poliana mesmo, tentando enxergar o copo ainda meio cheio,

quando ele já está quase vazio. Para não sofrer muito com a abstinência, fico ol-

hando da janela do quinto andar o Daniel jogando bola com os amiguinhos no pá-

tio do prédio. Quase um Holanda x Espanha! Bravo! Nesse silêncio de Copa, peço

licença quase poética para falar de dois caras que são fantásticos. E que têm tudo

a ver com Copa do Mundo. Com essa linda Copa do Mundo, em especial. Home-

nagem. Um é santista, da velha guarda. Foi meu ombro solidário e camarada nos

anos das vacas magras do alvinegro praiano. Aproveitou comigo a mágica era

Neymar. Futebolisticamente falando, vai do céu ao inferno em fração de segundo.

Manda vender todos os jogadores do time, quando o jogo vai mal, como diria meu

avô. Basta sair um golzinho, de canela que seja, que passa a gritar que o campeão

voltou. E que torcedor não é assim? É das coisas mais divertidas acompanhar as

cornetadas dele nas redes sociais. Narração alternativa dos jogos. Baita zagueiro.

Daqueles que não perdem o tempo de bola, que sabe a hora certinha de dar o

bote ou de sair na cobertura, que não dá espaço nem cai nas manhas e salama-

leques de atacantes experientes. Bom passe. Sai jogando. Fácil. Sem afobação.

Não deixa de chegar junto e de encarar divididas mais ríspidas, se for preciso

dizer ‘aqui não’. Sem violência. Raçudo. Conhece futebol como poucos. Advogado

de primeira linha, marrento, não confunde sistemas táticos e sabe com precisão

estabelecer a diferença entre justiça e vingança. O outro é são-paulino. Torce para

a Seleção Brasileira, mas não esconde de ninguém a quedona pela Argentina,

por Maradona e Messi. A gente discorda. Mas nos respeitamos muito.Corneteiro

de mão cheia também. O Luis Fabiano que o diga. Coitado do Pato. Acompanha

campeonatos do mundo inteiro. Meia-atacante habilidosíssimo. Joga de cabeça

erguida. Pensa o jogo. Dribla bem. Chega na frente para definir. Sem firulas. O fino

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL80 81

da bola. Apaixonado professor de Educação Física, milongueiro, guerreiro trans-

formador que rejeita rótulos e preconceitos, a atuar nas periferias e franjas da ci-

dade. Como ocupamos, os três, posições diferentes - gosto de fazer um segundo

volante/meia -, crescemos jogando muitas vezes juntos, nos mesmos times. Es-

quadrões, a desfilar pelos mais diferentes palcos. O quintal íngreme da casa da

Cristiano Viana, debaixo do viaduto da João Moura, na calçada da Lisboa, no pátio

do prédio do amigo, na quadra da escola, nos campinhos de areia e de society,

nos campos oficiais de grama, no clube, nos amistosos, nos contras, em torneios

oficiais, campeonatos, fases de grupos e finais. Era perrengue ganhar da gente.

Não somos craques, nada de estrelas galáticas. Bobagem. Mas a gente era crica.

Tentávamos e corríamos até o último minuto. Mesmo quando o placar marcava

10 x 0 contra. Quem sabe a gente ainda vira. Não tem jogo perdido. Quando nos

encontramos fora das nossas arenas particulares, senta que lá vem historinha

de futebol. Inevitável. Se deixar, viramos madrugada. Se tiver cerveja gelada en-

tão... A gente sempre curtiu Copa do Mundo. Muito. A gente sempre sonhou com

um Mundial no Brasil. Pacto de honra, de sangue - quando acontecer, vamos ser

protagonistas anônimos da festa. Deu muito certo. Verdade que quase entramos

na esparrela da fracassomania, vai ser uma porcaria, vamos passar vergonha, os

gringos vão rir do Brasil, não dá. Espera aí... por que só o Brasil não tem con-

dições de organizar uma Copa do Mundo? Que ladainha é essa? Discursinho mais

besta. Caiu a ficha. A gente esperou tanto tempo por isso e logo agora vamos

refugar? Aos ingressos! Fui para Fortaleza com o Eryx. Futebol, Celeste, Ticos,

praia, cerveja. Bom papo. Com o Guto, estive em Belo Horizonte. Era o dia se-

guinte do aniversário dele. Ganhou de presente um gol do Messi. Merece. A nossa

Copa não foi (opa, está sendo, não acabou...) só de estádios. Foi nas ruas, nas

fan fests. Nos telões. Nos monitores minúsculos de televisão. Nos radinhos. Nos

aviões. Nos metrôs. Nos bares. Nos bolões. Nas brincadeiras e nas conversas sé-

rias. Nas redes sociais. Nas mensagens de celulares. Nos abraços. Nos sorrisos.

Nas comemorações. Nos desesperos. Nos telefonemas. Nos choros também -

sim, a gente não tem vergonha alguma de chorar. Obrigado. Cabe aqui também

agradecer esposas, que nos apoiaram e sobretudo nos suportaram nos últimos

vinte dias. Vai passar, acreditem. A Copa está terminando. Nossa hermana ca-

maradagem não tem fim. Carinhos. Afetos. Lembranças dos nossos tempos de

criança. Empolgação com os projetos de adultos. Desejos comuns - um outro

mundo possível. Sobrinhos maravilhosos e queridos. Divergências e até brigas,

algumas duras, pois sem elas não há parceria honesta e verdadeira. Parças. O

jornalista que deseja democratizar informações, o advogado que briga pelos dire-

itos humanos, o professor que ensina a beleza da diversidade e dos esportes. Três

patetas. Mosqueteiros. Zagueiro, meia, atacante. Trio de ouro. Obrigado, meus

dois irmãos. Sem vocês, essa Copa teria muito menos graça. A vida seria mais

sisuda. Cinzenta. Amo vocês. A propósito, e até para não perder a oportunidade:

vamos começar a pensar no projeto “estaremos na Eurocopa em 2016”? Ou já dá

para encarar um “Copa América 2015, aí vamos nós”? Tudo bem. “Rússia 2018”

é muita viagem?

Viver numa cidade bucólica e sossegada como São Paulo é poder acordar

preguiçosamente, ritmo de férias, bem devagar, ouvindo sinfonia afinada

de sabiás e o vento batendo de leve nas copas das árvores. #SQN. Sete da ma-

tina. Pulo da cama com um barulho insuportável feito por bate-estaca, ferro con-

3 DE JULHO TRILHA

SONORA PARA A VÉSPERA DA

DECISÃO

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL82 83

tra ferro, entrando pela janela do quarto. Mais um mega empreendimento

imobiliário que está subindo aqui no bairro. Derrubaram cinco casas no quar-

teirão. Comecei então e logo cedinho a matutar o texto de hoje. O que temos para

essa quinta-feira também sem bola rolando na Copa? Escrever esses relatos tem

sido uma experiência danada de instigante, aprendizado contínuo. Penso num

tema, não vale, não rende, troco, jogo fora, ideias vão surgindo e sumindo, bro-

tando aos borbotões, corta, edita, anota, não esquece, pesquisa, concentra, pode

ser sobre aquilo outro também. Até que finalmente bato o martelo. Invariavel-

mente, o que é publicado não guarda qualquer relação com o arremedo de escrita

do início do processo. Nessa viagem narrativa, tempo (ou texto) final é necessa-

riamente diferente do tempo (texto) inicial. É a Física Literária. A FLIC - Física Li-

terária que Inspira o Chico. Interdisciplinaridade. O Ministério da Educação vai

ficar feliz. Pois a inspiração de hoje veio de um post da querida Lisandra de Moura

no face. Escreveu ela que “penso nesse nosso jeito de criticar tanto, tanto e mais

um tanto. De querer perfeição. Porque se é frio, não tem amor à camisa e só pensa

em grana. Se ganha, não vale porque não jogou bonito. Se marca muitos gols, é

porque o adversário era fraco. Não vi argentino reclamando do 1 a 0 contra o Irã e

estou aprendendo muito com os ticos da firma, que estão lá, sempre, com maior

otimismo e sem complexo de vira lata”. Querem saber? Ela está coberta de razão.

Somos uns ranzinzas. Reclamões. Eu sou reclamão nato, de carteirinha e cadeira

cativa. 100% corneteiro. Instigado por ela, desatei num rápido exercício de auto-

crítica. Minha suspeita é que fomos acometidos por grave enfermidade. Somos

filhotes e prisioneiros da Síndrome Adversativa da F(a)olha de São Paulo. Explico

o diagnóstico: o jornal dos Frias, sobretudo quando trata do governo federal, tem

sempre um “mas” a impor. Emprego cresce, mas... Inflação está sob controle,

mas... Dilma cresce na pesquisa Datafolha, mas... Transportamos essa patologia

quase crônica para a relação que estabelecemos com a Seleção Brasileira. O time

de 82 era mágico, mas parou na eficiência tática da Itália. O do Parreira em 94 foi

tetra, mas dependia do Bebeto e do Romário. Seleção de 2002, 100% Jardim

Irene, garantiu o penta, mas foi favorecida pela arbitragem contra a Turquia e a

Bélgica. Em 2006, formamos o quarteto fantástico, mas eram incorrigíveis bala-

deiros que não honraram a camisa. Quatro anos depois, o Dunga resgatou o or-

gulho de atuar com a amarelinha, mas exagerou na dose e formou quase um

exército, legião romana. Essa de 2014, de novo do Felipão, tem excelentes jogado-

res e um craque, mas é muito jovem, não aguenta pressão. E os moleques cho-

ram! Sinceramente, já deu essa conversinha de jogadores brasileiros com

problemas emocionais. Psicologês quase de botequim. Emissoras de TV e de rá-

dio, jornais e portais só falam nisso. A questão de fato é: precisam treinar. Se ti-

vermos saída de bola, meio de campo e troca de passes, podem chorar os 90

minutos. Não me importo. Vixi, olha eu aqui resmungando de novo. Mas, porém,

contudo, entretanto, todavia, não obstante. Há sempre uma ressalva, invariavel-

mente depreciativa, pejorativa. Detona tudo. Entramos numas de cobrar per-

feição idealizada, aquela que não existe no mundo nosso de cada dia. Nada está

bom. Não fizemos por merecer. Negativismo permanente, incapaz de reconhecer

também virtudes, alegrias, melhoras. Nuances. Como se essa Síndrome da Ad-

versativa Folhesca fosse expressão máxima de consciência crítica. Apartida-

rismo. Não pachequismo. De rabo preso com o leitor. #SQN. O mundo complexo

já não cabe mais (aliás, nunca coube) nessa caixinha do tem isso, mas aquilo...

São tantos os poréns. São tantas as emoções. Entre o preto e o branco, há pelo

menos cinquenta tons de cinza. A doença é grave. Mas tem cura. A primeira pro-

vidência clínica, receitada por cem em cada cem médicos especialistas e pós-

graduados em enfermidades da informação, é tirar a F(a)olha do pedestal da

infalibilidade. Desmonta. Baliza. Desconfia. Sempre. Nos embalos futebolísticos

da Lisandra, decidi fazer diferente. Experimentar outro caminho. Não vou recla-

mar. É véspera de decisão, de quarta-de-final de Copa do Mundo. Palavras moti-

vacionais. Chico Bicudo Scolari, o motivador. Cumpro tal tarefa sugerindo aos

boleiros da Seleção trilha sonora para essa quinta-feira tensa. Música alimenta,

anima, empolga, diverte, joga para cima. Espanta males. Toca a alma. Julio César,

Thiago Silva, David Luiz, Paulinho, Oscar, Neymar, Fred e demais membros da fa-

mília Felipão... ouçam por favor essas canções indicadas. No saguão do hotel, no

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL84 85

refeitório, nos quartos, no ônibus a caminho do estádio, no vestiário, até na bica

do túnel para entrar em campo. Comecem com “Pais e Filhos”, do Legião Urbana.

Quero colo. Vou fugir de casa. Posso dormir aqui com vocês? Estou com medo,

tive um pesadelo. Só vou voltar depois das três. Porque todos nós, seres huma-

nos normais, carne e osso, temos medos e pesadelos. Precisamos de colo. Ca-

tarse. Podem continuar com a poesia de Renato Russo. “Tempo Perdido”. Todos

os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito

tempo. Temos todo o tempo do mundo. O tempo da Seleção é amanhã. Noventa

minutos. Sem sofrimento, por favor. Tem ainda uma canção que foi hino de uma

geração e deve tocar hoje também. “Pra não dizer que não falei das flores”. Ge-

raldo Vandré. Vem vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora,

não espera acontecer. Sonhos e utopias. Sim, nós podemos. Ousar lutar, ousar

vencer. O Ivan Lins faz parte desse time. “Desesperar jamais”. Afinal de contas,

não tem cabimento, entregar o jogo no primeiro tempo. Nada de correr da raia.

Nada de morrer na praia. Até porque nossas traves, já sabemos, estão abençoa-

das e protegidas pelos deuses do futebol. Sobe o tom. Sobe o som. Tira o pé do

chão. Vai rolar a festa. Deixa a vida nos levar. Alegria e ousadia. Chegou a hora

dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Brasil, esquentai vossos pandeiros, ilu-

minai os terreiros que nós queremos sambar. “Brasil Pandeiro”. Novos Baianos.

Amanhã é dia de sambar com a bola no pé. Ginga e aplicação. Roda de samba no

Castelão. Ajuda aí, camarada Gonzaguinha. Puxa o coro. A gente quer valer o

nosso amor. A gente quer valer nosso suor. A gente quer valer o nosso humor. A

gente quer do bom e do melhor. A gente quer carinho e atenção. A gente quer ca-

lor no coração. A gente quer suar, mas de prazer. A gente quer é ter muita saúde.

A gente quer viver a liberdade. A gente quer viver felicidade. “É!”. Até porque não

estamos com a bunda na janela para colombiano passar a mão nela, certo? Po-

dem fechar a seleta com o mestre. Chico Buarque é obrigatório. Para Mané, para

Didi, para Mané, Mané para Didi, para Mané, para Didi, para Pagão, para Pelé e

Canhoteiro. “O Futebol”. Com sua permissão, querido xará, hoje podemos cantar

para Paulinho, para Neymar, para Paulinho, Paulinho para Neymar, para Paulinho,

para Neymar, para Oscar, para Neymar e Fred. Terminou? Rodem de novo. E de

novo. Mais uma vez. Sem parar. E aí, caros leitores? Alguma outra sugestão musi-

cal para compor esse set list? Do Himalaia, os deuses do futebol mandam avisar

que a ata das quartas de final já foi discutida, redigida, assinada e devidamente

registrada em cartório divino. O documento foi cuidadosamente guardado no

fundo de um pote de barro, com areia por cima, e enterrado numa das cavernas

da montanha. Só será divulgado no sábado à noite. Tentei jogar um verde, apurar.

Só uma dica, pedi aos deuses. Quase implorei. Usei aquela tática que a gente uti-

liza com pai e mãe quando é criança, para descobrir os presentes de natal, ‘só eu

vou saber, não vou contar para ninguém, vai, conta...”. #SQN. As entidades são

honestíssimas. Oniscientes, onipresentes e onipotentes. Não deram pista al-

guma. Sigilo absoluto. Até para evitar jogatinas e casas de apostas. Bolões. Que

nervoso. Vai, Brasil!

Sai da cama apoiando no chão primeiro o pé direito. Abre a janela. Caminha

lentamente. Abre o armário. Com a mão direita. Tira a camisa amarela da

gaveta. Com muito cuidado. Reverência. É a de todos os jogos. A da sorte. Es-

tica o manto na cama, escudo à mostra. Não pode ficar um amassadinho. Impe-

4 DE JULHO FUTEBOL

DE RITUAIS. NEYMAR,

MOLEQUE... OBRIGADO!

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL86 87

cável. Um beijo em cada estrela. São cinco. Por enquanto. Toma café na caneca

do Santos. Liga o computador. Breve passeada nas redes sociais. Senta para ler

os jornais. Primeiro os cadernos de Esportes. Antes ainda a crônica do Veríssimo.

Na sequência, nessa ordem, colunas do Paulo Vinicius Coelho, do Juca Kfouri, do

Antero Greco. Como nos outros jogos. Liga a televisão. ESPN Brasil. Não mudem

de canal. Senta na ponta esquerda do sofá. Lugar cativo. Sportscenter. Bate-Bola.

Contas a pagar. Na volta do banco - foi com o uniforme reserva -, passa no mer-

cado. Cervejas geladas. Skol. Sorte. Faz a barba. Estava sem nos outros jogos.

Chuveirada. Lembra da vitória contra os Estados Unidos, na campanha de 1994,

num 4 de julho. Tetra. Começa a ficar mais quieto. Passa a ouvir quase nada.

Veste cuidadosamente a amarelinha que tinha sido preparada com tanto esmero.

Não pode amassar. Começa a disparar mensagens via celular. Corrente positiva.

Jogo da França. Da Alemanha. Pré-jogo. Batimentos cardíacos começam a acele-

rar. Concentra. Silêncio. Anda pela casa. Da sala para o quarto. Do quarto para a

sala. Para a cozinha. Para a sala. Para o quarto. Começa tudo de novo. O mesmo

percurso. Dezenas de vezes. Os meninos só observam. Quando passa pelo corre-

dor, na ida, olha o nome de cada livro, na prateleira das biografias. Na volta, olha o

nome de cada livro, na prateleira dos romances. Três coçadinhas na mini-réplica

da Taça Libertadores. Segura firme a miniatura do Cavaleiro da Triste Figura. Dom

Quixote. Funciona sempre. Agora está mudo. Transe. Já não ouve mais. Demora

a entender o que os filhos estão dizendo. As vozes estão distantes. Emboladas.

Mira fixamente a televisão. Não vê homens voando. Nem com rabos. Na esca-

lação da Colômbia, não há Buendías. Nada de realismo fantástico. Quatro e meia.

Em ponto. No relógio de pulso, que é o que vale. Mensagens para a esposa, para

os irmãos, para os pais, para os amigos mais próximos. Bom jogo. Vai, Brasil! É o

que escreve desde a estreia contra a Croácia. Já está gravado. Desliga o computa-

dor. Fecha a porta da sala-corredor. Abre a primeira cerveja. Fecha a porta da coz-

inha. Assume de novo o posto que lhe cabe na Arena da Sala dos Marconi Bicudo.

Extrema esquerda. Luiza ao lado direito. Daniel no chão, apoiado na almofada. No

banco de madeira, bem ao alcance da mão esquerda, coloca a latinha de Skol. O

celular vai para o modo silencioso. Aparelho apoiado no braço do sofá, na diago-

nal. Sobe o som da TV. Times em campo. Respira fundo. De novo. Mais uma vez.

Mão direita no escudo da camisa da sorte. Tem uma outra, branca, verde e ama-

rela, que está na casa dos pais. Para marcar presença lá também. Sorte. O árbitro

apita o começo do jogo. Três batidas na parte de trás do controle remoto, aper-

tado na mão direita. Será assim durante toda a partida. Beijo na cabeça do Daniel.

Bom jogo para a gente, filho. Beijo na cabeça e na mão direita da Luiza. Abraço

apertado. Bom jogo para a gente, filha. Explosão de alegria no gol do Thiago Silva.

Poropopó na sala. Risos. Capitão, pode chorar. Os abutres acabaram de se escon-

der. Aqui é Brasil. Aqui é Brasil. Abre a segunda cerveja. A latinha fica no mesmo

lugar. Primeiro tempo sob controle. Bem diferente do jogo contra o Chile. Pombo

sem asa do David Luiz. Quase uma folha seca. Pode pular de novo, Ospina. Não

vai alcançar. Relaxou. Só um pouquinho. Nem deu tempo. Pênalti. Foi mesmo. Gol

da Colômbia. Batimentos cardíacos voltam a subir. Tensão máxima. Não conse-

gue mais ficar sentado. Virou arquibancada da Vila Belmiro. Sai, sai, sai. Tira essa

bola. Opa, impedimento. É nossa. Olha a entrada criminosa no Neymar! Não deu

nem amarelo. Machucou, quebrou mesmo. Juiz, você não deu nem amarelo? O

que é isso? Marca, não deixa passar. Junta de novo. Olha o meio. O meio. Tem que

ser nosso. Sem estourão. Vamos trocar passes. Não dá bicão! O controle remoto

não sai da mão direita. Cinco minutos de acréscimo. Está quase dentro do apare-

lho de televisão. Acaba. Apita. Chega. Já deu. Isso, segura a bola aí, na bandeirinha

de escanteio. Não sai daí. Cava a falta. Tem de acabar aí. Acabou! Acabou! Semi-

final! Sai correndo. Os meninos saem correndo. O telefone começa a tocar. O ce-

lular começa a vibrar. Gritos na janela. Buzinas. Fogos. Cornetas. Abraços, muitos

abraços nos filhos, que choram. Terça-feira vai ser assim. Tudo de novo. Alemanha.

Futebol de rituais. Cabeça e corpo voltando ao normal. Vou lá tirar a amarelinha da

sorte e descansar. Os deuses do futebol mandaram avisar que não vai ser fácil. E

foi até agora? Neymar, moleque. Quando você caiu, pulei. Gritei daqui. Saquei na

hora que era sério. Te conheço. Você não foge de jogo. Nunca tinha te visto chorar

daquele jeito. Você é craque. Gênio. Fica bem. Se cuida. E muito, muito obrigado.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL88 89

Neymar Jr estreou pelo profissional do Santos num sábado à noite, 7 de

março de 2009, no Pacaembu, pelo Campeonato Paulista, contra o Oeste

de Itápolis. Dezessete anos. Entrou no segundo tempo, jogou poucos minutos.

Incendiou a partida. Meteu bola na trave. No domingo seguinte, 15 de março, no

mesmo Pacaembu, entrou jogando como titular pela primeira vez. Primeiro gol.

Comemorou socando o ar, como Pelé. Eu, meu irmão Eryx e o Daniel (que ainda

não tinha três anos) estávamos lá. Encantados. Boquiabertos. A gente tinha

acompanhado o menino, sabíamos que havia uma joia rara na base do clube, tín-

hamos visto atuações dele em campeonatos de juniores. Mas ali, ao vivo, disputa

de gente grande, fomos privilegiados ao poder constatar que o moleque era

mesmo diferenciado. Era ainda magrinho, franzino, canelas finas, quase careca.

Cara de menino mesmo. Diferente. Especial, As matadas de bola, as arrancadas,

os toques de efeito, as assistências, os dribles, os passes milimétricos, os mortais

chutes cruzados (quase tacadas de sinuca), a capacidade de inverter a passada

e a direção, em movimento - tudo era soberbo. Coisa que eu, macaco velho de

estádio, nunca tinha visto. Não daquele jeito. Muitas virtudes num só cara, reper-

tório futebolístico único, infinito. Tínhamos um craque de novo no time. Craque

mesmo, não só bom jogador. De encher os olhos. Orgulho. Em quatro anos no

Santos, fez de tudo. Projetou de novo o time, tão maltratado nos anos 1990, no

cenário internacional. Os adversários voltaram a temer o Santos. Libertadores,

5 DE JULHO NEYMAR JR.

SELEÇÃO, JOGAI POR ELE

Copa do Brasil, tri Paulista, Recopa. Partidas épicas, memoráveis, como aquela

no Brasileirão de 2012, quando foi aplaudido no Independência pela torcida do

Cruzeiro. Gols inesquecíveis - o ápice foi o anotado contra o Flamengo, na Vila,

Brasileiro de 2011, que garantiu ao menino o Prêmio Puskas da FIFA de tento mais

bonito do mundo no ano. Pintura. Magia. Impossível não lembrar do gol da final da

Libertadores. Sou capaz de contar nos dedos de uma mão os jogos que não con-

segui ver com o Neymar vestindo a camisa do Santos. Não me perdoava. Um bom

tanto deles vi nos estádios. Cresci ouvindo meu avô narrar as diabruras de Pelé.

Vou contar aos meus netos as peripécias de Neymar. Meninos, eu vi. O moleque

prodígio disputou 229 partidas pelo Santos. Marcou 138 gols. É o maior artilheiro

do time depois da era Pelé, o décimo terceiro da história da nossa fantástica fá-

brica de gols. Arrematou prêmios atrás de prêmios - revelação, destaque, artil-

heiro, melhor do certame. Ganhou duas Bolas de Prata, outra de Ouro, um título

de hors concours (“fora da disputa”), honraria até então exclusivamente ofere-

cida ao Rei do Futebol, em eleições organizadas pela ESPN/Revista Placar. Acho

sempre questionáveis, difíceis essas comparações entre jogadores. Servem mais

para alimentar papos futebolísticos intermináveis de botequim. Mas, vamos lá,

entrando na dança - Messi está um degrau acima do brasileiro. Ainda. Sincera-

mente, penso que não por muito tempo. Messi é mais razão, cerebral, dá impres-

são de carregar um computador de última geração com ele, calcula com

antecedência as jogadas, avalia possibilidades do jogo. Faz as contas e combi-

nações. E resolve. É mortal. Genial. Neymar é mais coração, alegria, criatividade,

improviso. Imprevisível. Quando ninguém espera, lá vem mais um novo drible.

Quem não lembra do chapéu usando a sola da chuteira, aplicado no centroavante

Nunes, do Botafogo de Ribeirão Preto, na Vila? Artista da bola. Mágico. Obvia-

mente há no argentino marcas de Leonardo da Vinci e de Pablo Picasso, assim

como há pitadas de Charles Darwin e Albert Einstein em Neymar. Falo do que

mais se destaca e salta aos olhos em cada um deles. Identidades. DNAs. Messi é

metodologia científica. Neymar é arte em estado puro. Na Copa, o brasileiro foi o

destaque da Seleção nas três partidas da fase de grupos. Chamou a responsabi-

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL90 91

lidade na estreia e foi responsável direto pela virada contra a Croácia. Dois gols.

No empate sem gols com o México, foi novamente eleito o melhor em campo.

Autor de uma cabeçada linda, que o ótimo goleiro Ochoa defendeu em cima da

linha. Contra Camarões, fez a sua melhor partida no Mundial. Exibição de gala. O

zagueiro camaronês resolveu empurrá-lo contra as placas de publicidade. Ele

respondeu com dois gols. Durante curto período de tempo, foi o artilheiro do

Mundial. E o que foi aquela jogada que começa na lateral do campo com um cha-

péu, passa por outro meio-chapéu, tabela com Oscar, passe com efeito, de cos-

tas, na área, que terminou com Hulk perdendo o gol? Se o tento tivesse saído,

seria antológico. Contra o Chile, nas oitavas, não foi bem. Tomou pancada durís-

sima na coxa logo no começo do jogo. Sumiu. Ainda assim, pediu para bater o

quinto pênalti. Amigos, era o decisivo, aquele que acabou botando pressão no

derradeiro cobrador chileno. Nessa hora, vários saem de fininho, assobiando, não

é comigo. O moleque foi lá e fez. Não eram poucos os urubus sobrevoando sorri-

dentemente o Mineirão, loucos para que ele desperdiçasse a cobrança. Viram só?

Avisamos. Amarelão. Invenção da mídia. Cai-cai. Pois essa expressão maldita tem

o dom de me tirar do sério. A vítima vira culpado. Neymar sofre com as botinadas

e coices de adversários desde que se tornou um astro do futebol. Por cretinice,

inveja, cotovelos ardentes ou qualquer outro motivo, a estupidez humano-futebo-

lística conseguiu colar nele o rótulo. Sim, houve ocasiões em que ele cavou faltas.

Várias. Muito mais quando começou a jogar. Nos últimos tempos, mais maduro,

fazia todo o esforço do mundo para ficar em pé, mesmo quando a cacetada era

violenta. Em várias ocasiões, pulou para não ser literalmente quebrado. Curioso

lembrar como muitos que aplaudem as simulações e mergulhos de Robben, para

ficar num só exemplo, são os mesmos que vociferam contra Neymar. O holandês

é genial, sabe usar a esperteza, decidiu para a Holanda. Neymar é mau caráter,

quer apitaR o jogo e quer sempre enganar o juiz. Eterna viralatice. Compreendo

saudáveis rivalidades clubísticas, brincadeiras que fazem parte do futebol, sarros

e piadas que dão o tempero do esporte. Não entra na minha cabeça que torcedor

de quem quer que seja defenda abertamente o “entra nele e quebra, para ence-

rrar a carreira mesmo”. Quantas vezes ouvi essa bobagem. Meninos, eu ouvi. A

estupidez é incomensurável. Reclamamos dia sim, outro também do baixo nível

dos campeonatos nacionais, da ausência de craques. Quando um gênio da bola

aparece por aqui, muitos tratam imediatamente de trucidá-lo, com requintes de

crueldade, até conseguir expulsá-lo para a Espanha. Repita uma mentira cem ve-

zes e ela se transformará em verdade. Máxima da comunicação nazista. Os imbe-

cis faziam questão de ignorar que as chances de título do Brasil na Copa passavam

necessariamente pelos pés habilidosos de Neymar. Tolos. Mas, no Barcelona, lá

longe, incrível, ele passa a ser craque. Viralatice sem fim. Tom Jobim já alertava:

“no Brasil, fazer sucesso é ofensa pessoal”. Ontem, no jogo contra a Colômbia,

Neymar não teve tempo de pular. Caiu. Desabou. Dor. A porrada veio nas costas.

Sorrateira. Não esperava um movimento como aquele. Resgatemos a cena. Co-

rram lá nos vídeos, nas imagens do google. Observem onde está a bola. Em se-

guida, atenção ao jogador da Colômbia. Zuñiga só está de olho em Neymar. Desde

o início do lance, quando o escanteio foi cobrado. Nada de bola, bem longe dele.

O joelho vai deslealmente, violentamente na lombar do craque brasileiro. Fratura

da terceira vértebra. Não sou profissional, nunca fui. Mas sou peladeiro. Bato bola

desde antes de nascer. Aprendi, na prática, a diferenciar uma dividida de jogo,

muitas vezes até forte, de uma entrada que nada tem a ver com o jogo. Não ten-

tem me convencer do contrário. O lateral colombiano, aliás, já tinha quase que-

brado o joelho do Hulk no primeiro tempo. Ficou por isso mesmo. Não estou

dizendo que Zuñiga tenha pensado racionalmente “vou tirar Neymar da Copa. É

agora”. Mas entrou para dar aquele recado, para machucar. Aos relativistas de

plantão, sinto muito, não vou contemporizar. Não foi disputa de jogo. Aquilo pode

ser vale tudo. Mas não é futebol. Reprovo com a toda a força da minha alma tam-

bém as ofensas racistas dirigidas ao colombiano em seguida, nas redes sociais.

Quem agiu dessa maneira é criminoso. Neymar fora da Copa. Por responsabili-

dade de um juiz que deixou, desde o início, o pau comer solto em campo, dos dois

lados. Um banana. Palhaço. Omisso. Ruim demais. Que parece ter seguido as ne-

fastas orientações da dona FIFA - não dar cartões, para não estragar as semifi-

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL92 93

nais. Tivessem zerado os cartões antes. Manés. O que causa ainda mais

indignação é que esse padrão FIFA de arbitragem privilegia cada vez mais os bru-

cutus. Machuca os craques. Neymar foi ainda, indiretamente, vítima de um dis-

cursinho safado e mentiroso reproduzido por ressentidos nas esquinas que dizia

que a “Copa está comprada para o Brasil”. Os árbitros passaram a entrar em

campo já dispostos a mostrar que o Mundial não, não estava comprado. Ontem,

o fraquíssimo espanhol sequer parou o jogo quando Neymar foi atingido. Deu

vantagem! Mandou o jogo seguir. Marcelo precisou gritar, desesperado, já enten-

dendo que o estado do camisa 10 era grave. Zuñiga não levou amarelo. Sequer foi

advertido verbalmente. Porque, afinal, o árbitro tinha de mostrar que era ‘neutro’.

Não escondo - Neymar exagera nas relações com patrocinadores, na exposição

de vida privada, é produto da sociedade do espetáculo, recebe milhões de dólares

enquanto professores recebem salários de fome, fala muita besteira, ainda não

entendi as contas da transferência para o Barça. Tudo isso e mais um pouco. Pro-

blemas dele. Falo aqui de bola. E a Copa fica mais triste sem um de seus astros.

Fato, o Brasil ainda pode ser campeão. Tem chances reais. Tirou toneladas das

costas. Virou franco atirador. A Alemanha morre de medo da Seleção. Foge da

gente, como fez em 1974. O Felipão certamente vai usar a ausência do Neymar

para provocar e estimular os jogadores brasileiros. Provável que se tornem leões

em campo. Uma bola cruzada na área, uma falta cobrada pelo David Luiz... (que

linda, a de ontem). Vai ter pressão brasileira nos bastidores. A onda pode virar - e

os juízes, quem sabe, decidam mostrar que não estão contra o Brasil. Mas o muito

triste é que o Neymar não estará em campo na final, se ela vier. E isso me dói. No

fundo do coração. Ontem, mesmo com a vitória, o sentimento era de luto. Baque.

Fiquei derrubado mesmo. Pelas relações de afeto que tenho com o 10 da Seleção,

o 11 do Santos, embora ele não me conheça. Eterna gratidão. Admiração. Mas

principalmente porque essa Copa era o sonho dele. O moleque se preparou espe-

cialmente para ela. Era o Mundial do esplendor da juventude, a possibilidade de

rivalizar com os gigantes do futebol, como Messi, Cristiano Ronaldo, Robben e

Pirlo. Como ele vinha fazendo. Ele queria ser campeão do mundo no Brasil. Levan-

tar a taça no templo do Maracanã. Garoto, uns onze, doze anos, quando ainda

fazia estragos nas defesas adversárias no futebol de salão em Santos, ele respon-

dia em entrevistas, largo sorriso no rosto. “Meu sonho é ser campeão do mundo

no Brasil”. Esse sonho foi brutalmente interrompido por uma violenta joelhada

nas costas. Não me conformo. Seleção, jogai por Neymar. Que essa estupidez

sirva ao menos para que se possa refletir sobre o futebol que queremos - o dos

brucutus que distribuem pontapés ou o dos craques que nos alimentam com dri-

bles e belos gols. Eu fico com a pureza e a inocência do futebol arte. Paro por aqui.

Ouço a torcida na Fonte Nova cantando “olê, olê, olê, olê, Neymar, Neymar!”. Os

olhos estão de novo ficando cheios d’água.

Deu forrobodó dos mais brabos nas alturas divinas do Himalaia. Briga feia. A

ata veredito das quartas-de-final foi divulgada, tornada pública. Tive acesso

ao documento. Tomo a liberdade de transcrever os trechos mais relevantes,

aqueles que representam as vontades ecumênicas dos deuses do futebol. Vamos

lá. “Declaro aberto o encontro. Tomem todos seus lugares, por gentileza. Sejamos

breves e objetivos, sem papinhos furados. Passemos à ordem do dia. Comece-

mos pela partida que resgata ancestrais e explosivas rivalidades. Os meios de

campo são equilibradíssimos. Os dois melhores da Copa. A Alemanha é mais en-

corpada, mais cascuda. Vem de um vice-campeonato e de duas eliminações se-

guidas em semifinais, uma delas atuando diante da própria torcida. A França é

ainda jovem, caminhando começando, tem gordura para queimar. Está usando o

6 DE JULHO

IRA DIVINA

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL94 95

Mundial como laboratório para a Euro de 2016, que vai sediar. O técnico francês

já reconheceu que o lugar dos Bleus é entre os oito melhores. Se ele está falando...

que se cumpra a vontade de Didier Deschamps. Ponto dois da pauta. O clássico

sul-americano. Bem, a Colômbia já cumpriu campanha lindíssima. Histórica. Está

nos anais. Anunciou para o mundo o craque James Rodríguez. Mas futebol é tam-

bém história. Embora os dois times joguem de amarelo, a camisa do Brasil é mais

pesada. O escrete de Felipão também flertou muito de perto com o inferno. So-

breviveu. Renasceu. Muito mais forte. David Luiz, o gigante da cabeleira dos ca-

chos esvoaçantes, é até aqui o melhor boleiro da Copa. Registrem aí: marcará um

golaço de falta. Dos mais estupendos do torneio. Por merecimento, James deixará

sua marca de artilheiro. Thiago Silva dará contornos finais ao placar. Para ente-

rrar de uma vez por todas essa tolice do desequilíbrio emocional e para confirmar

que o choro é humano - e que o futebol que o capitão brasileiro joga é manjar dos

deuses. Fechamos a sexta-feira, certo? Tópico terceiro. Perfeitamente. Argentina

e Bélgica. Os hermanos vão atuar como vêm fazendo desde o início da Copa - de

forma fria a calculista, pragmática, robótica, sem arroubos de encantamento. Es-

tão obcecados pela ideia de ultrapassar as quartas, depois de longuíssimos e do-

loridos vinte e quatro anos. A pressão é enorme. Ficam satisfeitos com a contagem

mínima. E não reclamem, meus nobres conselheiros - a Espanha, com a nossa

proteção, foi campeã em 2010 exatamente fazendo valer esse raciocínio. Um a

zero era goleada. E tome tic-taca. Dessa vez, Messi aparecerá pouco. Vai até per-

der gol feito, no final da peleja. Para que fique bem claro qual é o lugar que cabe a

ele nesse latifúndio terreno dos gramados. É gênio. Craque. Dos gigantes da his-

tória. Mas não é deus. E como humano, erra. Já Higuaín vai desencantar. Os bra-

sileiros ficarão felizes, achando que Fred talvez também consiga dizer a que veio

na Copa. O centroavante argentino será responsável ainda por uma quase queda

do técnico da seleção celeste e branca, depois de uma bola que morrerá no tra-

vessão. A Bélgica não fará por merecer. Chegou anunciada por clarins e tubas dos

especialistas, confetes e serpentinas, como a zebra capaz de assustar os bichos

papões. Tudo o que conseguiu fazer, no entanto, foi ficar alçando bolas na área,

para grandalhões cabecearem. Muito pouco. Além do mais, sejamos sensatos,

chega um momento numa Copa em que só os gigantes sobrevivem. Os peque-

nos, os mais fracos? Lembrem-se: a justiça futebolística é diferente de outras

justiças divinas. Às vezes, os não favoritos até vencem. Mas só às vezes. Não

agora. Argentina segue, um a zero. Peço só mais um instante de paciência. Esta-

mos terminando. Notem, acho que a mesma lógica subjetiva que acabamos de

estabelecer deve ser aplicada à Holanda e Costa Rica. Os laranjas estão batendo

na trave faz tempo. Refugam na última pernada. Três vice-campeonatos. Derra-

deira chance. Sim, concordamos todos, o técnico deles é um arrogante dos infer-

nos. Perdão pela palavra demoníaca. Só que o sujeito é mega competente, tipo

assim, está muito longe de ser um looser. Onde aprendi essas palavras modernin-

has? Ando navegando com mais frequência pelas redes sociais dos céus. Tudo

bem, prometo controlar meu vocabulário. Formalidades da linguagem. Voltemos

ao ponto principal. Foco. A Holanda vai se lançar ao ataque. Mas os empolgados e

bravos Ticos da Costa Rica merecem mais que os apáticos e resignados belgas.

Levarão a disputa para a decisão por pênaltis. O goleiro Keylor Navas vai ser mais

uma vez a estrela da festa, defesas monumentais, que serão incluídas depois nos

melhores lances da Copa. Nas penalidades, a artimanha do professor holandês

dará contornos finais à disputa. Ele usará a terceira substituição para colocar em

campo, aos 14 minutos do segundo tempo extra, o goleiro reserva do Carrossel. O

segundo arqueiro será protagonista da festa laranja. Os costarriquenhos vão fa-

zer festa também. Muita alegria. Serão aplaudidos pelos empolgados torcedores,

com muita justiça. Voltarão para casa como heróis de uma nação que, vale lem-

brar, não tem exército. Não gostam de guerras. Tudo certo. Ah, sim, por favor, há

uma recomendação final que preciso passar a todos. É muito importante. Nas

oitavas, abençoamos as traves. Nas quartas, dedicaremos atenções especiais

aos craques. Protejam os tornozelos, as canelas, os joelhos e as lombares deles.

Nada de contusões. Essa Copa, tão sensacional, não merece ficar sem suas es-

trelas de primeira grandeza, em sua fase derradeira. Messi, Robben, Neymar e

Schweinsteiger estarão em campo nas semifinais. Redobrem, tripliquem as

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL96 97

atenções. Dediquem-se a acompanhar especialmente os quatro citados. Esta-

mos acertados? (fez-se silêncio. Conselheiros imóveis. O chefinho entendeu

como concordância). Pois bem. Ficamos por aqui. Bom retorno para todos. E que

as deliberações aqui adotadas sejam rigorosamente cumpridas. Conto com o

empenho de todos”. A ata foi novamente assinada por todos os presentes e devi-

damente registrada no cartório dos céus. Detalhe não menos relevante: as de-

cisões foram todas tomadas por consenso. Unanimidade. No sábado, seis horas

e quarenta minutos da tarde, horário de Brasília, perto dos quarenta minutos do

segundo tempo de Brasil e Colômbia, ouviu-se em alguns cantos do planeta um

urro gutural vindo do topo do Himalaia. Foi assustador. O presidente do conselho

dos deuses do futebol, um senhorzinho barbudo atarracado, mas muito forte,

misto de entidade maia com deus iorubá, alguns traços humanoides, estava pa-

rado na frente do telão, atônito. Estarrecido. Transtornado. Não tirava os olhos

das imagens que repetiam à exaustão a violentíssima joelhada do lateral colom-

biano Zuñiga nas costas do camisa 10 brasileiro. Gritava “levanta, Neymar! Le-

vanta, Neymar! É uma ordem. Eu te protejo”. Mas sentia que forças estranhas

obscuras e nefastas estavam a agir naquele momento também. Não conseguia

ter controle da situação, por mais que tentasse. Quando a fratura na terceira vér-

tebra do moleque foi confirmada, bateu com o cajado no chão, com toda a ira que

conseguiu reunir. Teve um ataque histérico. Sem perder mais um minuto, classifi-

cação brasileira carimbada, começou a disparar pelas redes sociais divinas men-

sagens para todos os membros do conselho que tinham participado da reunião

no dia anterior. O que vocês fizeram? Que sacanagem é essa? Combinamos que

todos os craques estariam protegidos. Todos. E Neymar está fora da Copa. Justo

ele. Estúpidos! Cretinos! Traíras! Já viram assembleia do PT sem discurso do

Lula? Já viram reunião do ministério brasileiro sem bronca da Dilma? Já viram

cédula eleitoral ou urna eletrônica em São Paulo sem os sobrenomes Serra ou

Alckmin? Já viram fala da Marina Silva onde não apareça com destaque a expres-

são desenvolvimento sustentável? Já viram uma edição da revista Veja (e aqui ele

fez questão de em seguida limpar a boca) sem acusações contra o movimento

comunista internacional que quer tomar o poder no Brasil? Já viram novela do

Manoel Carlos sem uma Helena chorona? Como é que vocês podem conceber ou

querer uma Copa do Mundo no Brasil sem o Neymar? Não existe. Que tragédia.

Lamentável. Quando ele estava lá caído, no gramado, tentei reverter a situação.

Não consegui. Forças muito poderosas agiam em sentido contrário. Alguém que-

ria vê-lo seriamente machucado. É grave. Temos um traidor entre nós. Já abri

sindicância. Uma comissão de notáveis, todas entidades da minha mais estreita

confiança, já está investigando o caso. Exijo conclusões rápidas. Rito sumário.

Quero todos aqui para uma reunião extraordinária na próxima segunda-feira. To-

dos. O debate sobre as semifinais acontecerá somente depois que essa porcaria

tiver sido esclarecida. E me liguem com o Felipão, por favor. Agora. Preciso con-

versar com o gaúcho de bigode. Imediatamente. Papo confidencial”. O próximo

conclave no Himalaia promete ser bastante tenso.

O técnico da Seleção Brasileira tinha acabado de chegar ao vestiário. Um por

um, foi abraçando os jogadores, testa com testa, olho no olho, palavras de

agradecimento pela entrega e dedicação durante a partida. Investiu tempo espe-

cial com Thiago Silva e David Luiz, autores dos gols. Estava eufórico com a vitória

sobre a Colômbia, que garantiu a classificação para as semifinais da Copa. Mas

transtornado e preocupadíssimo com a contusão de Neymar. As primeiras infor-

7 DE JULHO FELIPÃO

RECEBE UMA LIGAÇÃO

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL98 99

mações que chegavam do hospital onde exames de tomografia e de ressonância

magnética tinham sido realizados eram ainda desencontradas. O cheirinho não

era bom. Talvez o camisa 10 estivesse fora do Mundial. Entre cumprimentos e ta-

pinhas nas costas, Felipão procurava os médicos. Queria notícias. Precisas. Sem

especulações. Foi quando tocou o celular conhecido por poucos, pouquíssimos,

quase o telefone vermelho do Batman, usado apenas em situações especialíssi-

mas. Tirou o aparelho do bolso esquerdo da calça do agasalho. O visor não indi-

cava o número. Mostrava apenas ‘chamada privada’. Felipão sabia bem quem era.

Atendeu já empinando a carrocinha. Pés no peito.

- Bah, mas o que foi que tu fizeste!? Que palhaçada é essa?

- Felipão...

- Deixar machucar o Neymar?

- Felipão, é o presidente do conselho dos deuses do futebol...

- Porra, sei bem quem é, guri. E sei bem o que aconteceu hoje aqui no Castelão

também. Você tinha prometido, craques de todas as seleções nas finais. Conver-

samos reservadamente quando estive na igreja de Nossa Senhora do Caravaggio,

antes da convocação. Tu me garantiu. O que eu faço agora?

- Felipão, me deixa explicar...

- Não tem explicação. Passou do limite. Mudei, passei a ser mais educado. Mas

não tem jeito, são só facadas pelas costas. Vou precisar ser de novo o velho Fe-

lipão. Você conhece bem meu estilo. Se não gostar, paciência. Azar. O Neymar,

che? Não podia ser o Jô? O Fred? Eu até entenderia...

- Ei! Pode parar por aí! Agora falo eu. Quem convocou Fred e Jô foi você. Os deuses

não têm nada a ver com essa família 2014 que você montou. Tínhamos inclusive

divergências. Nossa lista era outra. Mas respeitamos. Nossa responsabilidade era

proteger os atletas. As opções foram suas. Só suas.

- Pois é, já me arrependi. Tu nunca ficaste arrependido? Nunca erraste? Se pu-

desse, trocava hoje mesmo um dos que chamei.

- Quem?

- Você sabe melhor do que eu. Não me obrigue a dar nomes. Lá sou gaúcho de

bigode de oferecer cabeças dos meus comandados?

- Tem gente ouvindo a conversa? Você está sozinho? Por favor, ninguém deve

saber que somos confidentes. Não pode vazar. O Murtosa desconfia de alguma

coisa? Nem ele, Felipão. Nem ele.

- Ninguém sabe nem vai saber. Estou só, numa salinha escondida. Não enrole,

guri. Tu me deve explicações. Convincentes.

- Fomos traídos. A reunião do conselho que discutiu as quartas deliberou, por

unanimidade, que os craques estariam sob proteção divina especial. Do jeitinho

que acertamos. Foram explicitamente citados Messi, Robben, Schweinsteiger e

Neymar. Saímos daqui com esse combinado. Alguém roeu a corda. Atuou em sen-

tido contrário. Mobilizou energias divinas ocultas para machucar o dez brasileiro.

Já determinei investigação. Punição severa. Estou desconfiado de que alguém

por aqui torce com entusiasmo por uma imagem da Dilma entregando a taça

para os argentinos, no Maracanã. Por razões não exatamente desportivas.

- Porra, guri, tu fala das minhas convocações... mas que raios de comandante é

você, que não consegue controlar seus subordinados? Não há hierarquia nessa

família do Himalaia?

- Talvez alguma entidade esteja com ciúmes do seu sucesso. Sabe como é, se-

gundo título mundial. Provoca melindres mesmo. Tem gente que não lida bem

com o sucesso dos outros, tem ressentimento. Pote até aqui de mágoas.

- Deuses lá têm ciúmes, raivas, invejas, ressentimentos?

- Deuses são sempre um pouco humanos. Falíveis. Pecadores. Não tem jeito.

- Ciúmes de homem? Pô, mas está errado. Muito errado. Ciúmes de mulher, vá lá,

até entendo. Mas ciúmes de homem?

- Felipão, o fato é que o Neymar não vai mais poder jogar. Não adianta agora ficar

divagando sobre que tipo de ciúme é aceitável ou chorando o leite derramado.

- Ah, vá... agora conta outra. E o que você me sugere, sabichão?

- Bem, estou tentando raciocinar. Situação parecida com essa só tínhamos vivido

em 1962. Só que lá foi por descuido mesmo. Não achamos que seria necessário

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL100 101

fechar o corpo dos boleiros. Erramos. Equívoco de avaliação. Pelé se machucou.

Essa é outra diferença - ninguém quebrou o Rei. Ele se contundiu sozinho. Medida

de emergência, forjamos Amarildo, o Possesso.

- Tu quer me dizer que basta encontrar novo Amarildo?

- É isso.

- Guri, tu sabe bem que o responsável por aquele título foi o Garrincha, que jogou

por dois. Por três. Pelo time inteiro. Fez gol, cruzou, driblou, marcou no campo de

defesa. Fez chover. Não preciso de um Amarildo. Me diga, com sua sobrenatural e

onipresente inteligência divina, onde raios eu acho agora outro Garrincha...

- Bernard?

- Ele tem alegria nas pernas. Mas não tem as pernas tortas. Nem é a alegria do

povo. Jogou em alvinegro. Mas não era o Botafogo. Não sabe fazer fila de joões.

Próximo.

- Difícil.

- Se fosse fácil, tu imagina que eu estaria nessa aflição? Acho que vou convidar

uns jornalistas amigos para uma conversa. Preciso me aconselhar, ouvir outras

opiniões.

- Não recomendo. Já deu encrenca.

- Ciúmes de homem de novo? Tem jornalistas de quem gosto mais, com quem me

dou melhor, ué. Qual o problema? Vou continuar falando com eles. Não gostou?

Vá para o inferno.

- Felipão, tome tento. Olha o palavreado.

- Me desculpe. Estou nervoso. Você não sabe o que é comandar essa Seleção fa-

voritaça numa Copa no Brasil. Muita, muita pressão, guri. Até ingressos os caras

querem que eu arrume. Por acaso sou o Lamine Fofana? E aposto que a FIFA não

quer ver o Brasil hexa. Está jogando contra.

- Entendo. Mas você também não faz a menor ideia do que seja administrar espi-

ritualmente um torneio de futebol dessa envergadura. Exige muito. É extenuante.

Estamos no limite das nossas forças divinas. As entidades todas se mostram

muito cansadas. Não é simples conciliar interesses e egos. E agora, para piorar,

ainda tem essa história da traição. Quer trocar de lugar comigo?

- Não, guri.

- Tudo bem. Pode ao menos emprestar por algumas horas a Regina Brandão? O

pessoal aqui em cima anda meio abalado. Alguns choram muito.

- Empresto. Mas devolve rápido. Ela já marcou um papo com o pessoal na Granja.

Seja discreto. Porque essa imprensa daqui me enche o saco. Não entende que

essa é a programação normal, que já estava acertado, que tem um cronograma

de atividades. Vivem espalhando boatos, interpretam da maneira que bem enten-

dem. Não tem jeito. Aí entro distribuindo bordoadas mesmo.

- Sejamos práticos. Não temos muito tempo. Cuida do corpo. Eu me encarrego

dos espíritos.

- Na prática....

- Deixa os jogadores curtirem um pouco o luto. É fundamental. Rito de passagem.

Faz o Neymar dormir essa noite na Granja. É importante. Ele precisa falar, cho-

rar, os companheiros precisam chorar, concretizar essa perda. Desde já, levanta

o moral dos caras. Motiva. Lembra que agora o Brasil é aventureiro, franco ati-

rador. Tira o peso das costas deles. Apresenta outras situações onde o favorito

perdeu. Você sabe fazer isso como poucos. Agora, treina também. Muito. Como

se não houvesse amanhã. Trabalha situações diferentes. Willian, Ramires, Paul-

inho, Hernanes, Bernard... 4-4-2, 4-3-2-1, 4-3-3, 5-3-2. Sei lá. Despista o técnico

da Alemanha.

- Bonito, guri. Bem bacana. Mas até aqui, só eu estou trabalhando. Qual a parte

que te cabe?

- Vamos redobrar os cuidados. Prometo. Dessa vez, sem deslizes. Energias positi-

vas, bençãos e mandingas de todas as naturezas com generosidade especial para

a Seleção Brasileira. É situação de exceção. Para ao menos amenizar a besteira

que permitimos acontecer. Igualar de novo a disputa. É justo. Dever ético divino.

Sai o craque. Entra o Sobrenatural de Almeida.

- Bah. Vão dizer que a Copa foi comprada pelo Brasil.

- Te dei recibo?

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL102 103

- Não.

- E, sem querer ofender, mas tem babaca que vai dizer essa sandice de qualquer

jeito, em qualquer situação. Os profetas da fracassomania ainda não se confor-

maram. Paciência.

- Vou confiar.

- Corre lá para o vestiário. Estão te procurando. E não esqueça - não conte para

ninguém que conversamos. Nem para a dona Olga Scolari.

- Dona Olga nem de longe imagina que tenho livre acesso ao Himalaia.

- Até.

- Abraços.

- Felipão....

- Diga, guri. Rápido.

- EU ACREDITO!

Cursava aquilo que a gente chamava de oitava série, a última do ginásio. Ca-

torze anos. A voz começava a engrossar. Primeiros fios de barba. Orgulho.

Paixões adolescentes, efêmeras - aquela que um dia era, no seguinte já não era

mais. Amor mesmo, de verdade, fidelidade acima de qualquer suspeita, tinha pela

8 DE JULHO

O QUE A GENTE FAZ QUANDO O SONHO DE CRIANÇA CAI POR TERRA?

bola. Jogava como titular no time de salão da escola, categoria mirim. No clube

também, futebol de campo, torneios internos. Sem contar as peladas e brinca-

deiras nos quintais dos amigos. Cada dia na casa de um. Brincávamos em praças

também. Às vezes até nas ruas, quando ainda era possível. Valia qualquer metro

quadrado. Se deixassem, jogava bola 24 horas por dia, sete dias por semana. No

meu universo adolescente, sonhos e esperanças a granel, ainda recheado de ino-

cências, sem a casca grossa que só a vida adulta é capaz de nos oferecer, referên-

cias e modelos ainda sendo construídos, tinha outro time da escola, moleques

um ano mais velho que eu, categoria infantil, que era um verdadeiro esquadrão.

Máquina de craques, um para cada posição da linha. Um baita goleiro. Exemplo

a ser seguido. Para mim, imbatível. Quando eles treinavam, eu ficava sentado

na arquibancada, apreciando. Comportamento de admirador mesmo. Torcedor.

Aprendiz. Queria ver como eles faziam, quem sabe me apropriar, por osmose

ou por repetição, das habilidades de cada um deles. Pelo menos um pouquinho.

No mundo pequenino e mais próximo, sem contar o futebol profissional, que eu

também acompanhava (adorava ver Zico e Careca em campo, por exemplo), mas

era distante, aqueles meninos da escola eram tudo o que eu queria ser quando

crescesse. Naquele ano, 1986, o time deles foi inscrito para participar do Torneio

Jovem Pan de futebol de salão. Era o máximo, o sonho de todo garoto boleiro. Tal-

vez fosse a copa mais importante da modalidade. A partida final tinha até trans-

missão pela televisão. Comemorei junto com eles. Estive por perto durante toda

a preparação. Na minha lembrança, foram umas três semanas. Que demoraram

uns três anos para passar. Até que o grande dia chegou. A estreia foi contra o Co-

légio São Judas, no ginásio Pelezão, no bairro da Lapa. Estava lotado. Nosso téc-

nico tinha avisado que o time dos caras era excelente. Pedia cuidado, dedicação.

Muito empenho. Eles tinham vários federados - moleques que jogavam também

campeonatos organizados pela federação da modalidade. Espécie de profissio-

nais juvenis da bola. Máxima alegria, consegui uma vaguinha na perua da escola.

Fui para o jogo com eles. Estava louco para ver o duelo. No vestiário, até a entrada

em quadra, tudo era animação. Empolgação. Orientações finais do treinador, re-

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL104 105

forçando o que havia sido combinado, qual seria o sistema de jogo, quais as tare-

fas de cada um, defesa, ataque. Sorte derradeira do destino, pude ficar no banco

de reservas. Um moleque do time tinha faltado. Lá fui eu, com uniforme e tudo.

Não lembro qual era o número da camisa. Mas não poderia entrar, claro, nem

tinha sido inscrito. Não tinha idade. Era só figuração. Ainda assim, me senti im-

portante. Estava ali, junto com os caras que de alguma forma eram meus ídolos.

Confesso - quando o juiz apitou, achei que estivesse vendo outro esporte. Nosso

time não via a cor da bola. Os caras do São Judas rodavam, giravam, trocavam

de posição, toques de primeira, não está mais comigo, vai buscar lá com o outro.

Carrossel. Estratégia precisa, bem definida. Treinamento. Quase perfeição. Con-

tra, e só então fui entender, de maneira dolorida, um agrupamento de voluntários

da bola. De repente, um deles aparecia sozinho na cara do nosso goleiro. Caixa.

Não erravam passes. Não erravam lançamentos. Tinham repertório inesgotável

de jogadas ensaiadas. Dribles. Lances de efeito. O moleque que era minha maior

referência tomou um chapéu espetacular. Escorregou. Ficou estatelado em qua-

dra. Cena de cinema. Deu dó. Sofrimento. Meus amigos pareciam baratas tontas.

Corriam, conversavam, corriam, gritavam, corriam, tentavam, corriam, voltavam,

corriam, suavam para acertar posicionamentos. Não viam a cor da bola. Impo-

tência. Sempre aparecia um adversário para botar para dentro do gol e sair co-

memorando. Teve gol de tudo quanto foi jeito - de falta, de tabelinha, de perto, de

longe, com bola e tudo. O primeiro tempo terminou sete a zero. Sem dó. Eu não

acreditava. Lembro de ter olhado para o técnico, atônito, perdido, sentado calado

na ponta do banco, sem saber o que fazer. Imagino que, como eu, ele só torcia

para o árbitro apitar e acabar o mais rápido possível com aquele martírio. Mas-

sacre. No intervalo, no vestiário, silêncio ensurdecedor. Nem se olhavam. Tudo o

que o professor conseguiu dizer foi “vamos, vamos. Dignidade. Joguem com digni-

dade. Façam o que for possível”. No segundo tempo, o show de horrores só não foi

ainda mais cruel porque o adversário tirou o pé. Administrou o resultado. Tiveram

pena da gente. Entraram os reservas. Conseguimos ao menos dar dois chutes a

gol, lembro direitinho. Um passou raspando a trave. O outro o goleiro defendeu,

com facilidade. Foi tudo o que conseguimos fazer. Eles marcaram mais quatro. O

jogo terminou onze a zero. Você não leu errado. Onze a zero. Dá para esquecer e

começar de novo, fazer diferente? A volta de perua foi uma das experiências mais

tenebrosas daquela minha até então curta-longa experiência futebolística. Veló-

rio. Vi alguns chorando. Ninguém falava. Até ameacei abrir a boca, sei lá, soltar um

‘tudo bem, os caras eram melhores mesmo, tem mais jogo na semana que vem’.

Recuei. Fica quieto, Chico. Quer apanhar? Continuamos a ouvir o ronco do motor.

Só. Nos dias seguintes, via os moleques andando de cabeça baixa pela escola.

Muito envergonhados. Evitavam comentar, falar sobre o jogo. A história do vexame

correu os quatro cantos do colégio. Os caras se formaram, eu mudei de escola.

A vida seguiu. Passou. Cicatrizes. 42 anos. Mas o trauma me marcou profunda-

mente. Tanto é que me recordo até hoje com razoáveis detalhes daquela fatídica

noite. Tudo bem. Ao menos é assim que lembro dela. Vai ver nem foi tão assim.

Memórias são traiçoeiras. Devaneios.. O fato é que foi esse o tenebroso filme que

passou em cores horrendamente muito nítidas na minha cabeça na tarde de hoje.

Com a não pequena nem sutil diferença que, no Mineirão, jogava a Seleção Bra-

sileira, pentacampeã do mundo. Profissionais. E era semifinal de Copa do Mundo.

O hexa em disputa. Tragédia elevada à enésima potência. Vergonha. Vexame. Hu-

milhação. Derrota acachapante. O que mais? Listem aí. Difícil mesmo foi consolar

(e dava?) Luiza e Daniel, depois do terceiro gol. Choravam copiosamente. “Pai, é

a primeira Copa que estou vendo de verdade. Queria tanto ver o Brasil campeão.

Não acredito. O que está acontecendo? O que é isso? Você acha que ainda dá para

empatar? O que o Felipão vai fazer? Quem pode entrar? E agora, pai?”. Eu não

tinha condições de falar. Dizer o quê? Mentir? Não. Acabou. Estava anestesiado.

Pasmo. Entendi que a dor deles era infinitamente mais dolorida que a minha. Frus-

tração de crianças. Inocências e sonhos sendo arrancados, em minutos. O mundo

deles desabando. Terra arrasada. Em seis minutos. Travei minhas emoções. Botei

os dois no colo. Carinhos, apertos e abraços. Depois de muito tempo, metade do

segundo tempo, consegui finalmente que estivessem mais calmos. Já sem cho-

rar. Elisa ligou, preocupada. Sim, tudo sob controle. Sei lá. Eu continuava mudo.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL106 107

Quando o juiz apitou o final da partida, quem desabou no choro fui eu. Não deu

para segurar. Apertei os olhos. Com força. E soltei a tensão. Raiva. Os dois peque-

nos levantaram do sofá na hora. Passaram as mãos no meu rosto. E me abraça-

ram. Muito forte. Carinhosamente. Alguns minutos. Choramos juntos.

Quando a volta de Vocês Sabem Quem era iminente e os sinais de proximi-

dade da batalha final se acumulavam no embalo dos ‘avada kedavra’, o pro-

fessor Alvo Dumbledore lustrava as varinhas mágicas, preparava os feitiços e

sabiamente já alertava: “Harry, serão tempos difíceis”. A hecatombe vivida ontem

no Mineirão mandou recado cristalino como as águas que um dia existiram no

sistema Cantareira: se já não estava fácil, o futebol brasileiro vai viver tempos

ainda mais difíceis. Conturbados. A ferida está purulenta. Arde. Dói. Sangra. Esta-

mos chafurdando no volume morto. Dumbledore, no entanto, tentou antes de sua

morte mostrar a Harry e seus amigos que Lord Voldemort, embora expressão

máxima de um mundo triste e obscuro, não andava sozinho. Vivia acompanhado

de professores das trevas, dementadores, comensais da morte, bruxos que não

sabiam muito bem se estavam lá ou cá, seguidores permeados por dúvidas,

agentes dissimulados. Como sou fã confesso do diretor da Escola de Magia e Fei-

tiçaria de Hogwarts, nos acertos, desvios e contradições que ele sempre carre-

gou, não esperem de mim porradas nos jogadores. Não vou apontar dedo para

culpados. Não vou demonizá-los. Não vou queimar uma geração que, se não é

espetacular, é bem boa. Se a ideia é reconstruir, refundar, resgatar o verdadeiro

9 DE JULHO

JUNTANDO OS CACOS

futebol brasileiro, e não só detonar, esse processo passa necessariamente por

Thiago Silva, David Luiz, Marcelo, Luis Gustavo, Oscar, Neymar, Willian....Não vou

ajudar a forjar novos Barbosas. Ainda no campo, ontem, disposto a terceirizar

responsabilidades, Felipão chegou a passar a mão no celular secretíssimo. Fez

menção de ligar para o presidente do conselho dos deuses do futebol. Queria es-

pinafrar a divindade, que havia prometido proteção extra para a Seleção Brasi-

leira na semifinal. O gaúcho de bigode recuou quando acessou, via celular, um

e-mail que havia chegado do Himalaia. Urgente, cravava a mensagem. Resumida-

mente, tom lacônico, distante, sem a intimidade verificada em papos anteriores,

dizia “nem tente nos culpar. Por sua conta e risco, você resolveu mandar a campo

um time que jamais havia treinado junto. Que temeridade. Depois do segundo gol

da Alemanha, crônica de uma massacre anunciado, meio de campo completa-

mente entregue aos panzers germânicos, você sentou no banco de reservas. Imó-

vel. Impávido colosso. De lá só saiu quando o jogo terminou. Converse com o seu

amigo Muricy. Pergunte a ele quais as lembranças que tem daquele passeio que

levou do Barcelona, quando dirigia o Santos, na final do Mundial Interclubes de

2011. Será que você viu aquela decisão? Será que você acompanhou os jogos da

Alemanha nos últimos quatro anos? Vá se catar. É a nossa vez de te mandar para

o inferno. Há coisas na vida que são bem mundanas mesmo, resultado de escol-

has feitas por seres humanos. Não há como os deuses possamos interferir. Ação

e reação. Benevolentes que somos, perdoamos. Mas a bobagem não volta atrás.

Só para dar retorno: concluímos a nossa investigação sobre quem daqui de cima

poderia ter facilitado a contusão do Neymar. Faço mea culpa. Deuses também

falham. Imaginei que pudesse ter sido algum deus milongueiro admirador do fu-

tebol argentino, apreciador de um trágico tango, a aprontar estrepolias e facilitar

o caminho dos hermanos na final. Nada disso. O que aconteceu naquele final de

tarde de sexta-feira foi uma raríssima tempestade de radiação solar, fenômeno

que libera cargas eletromagnéticas muito intensas. A conexão do Himalaia com o

mundo profano foi interrompida por alguns breves minutos. Por mais que tentás-

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL108 109

semos, nossas mandingas não chegavam até vocês. O bloqueio foi muito forte.

Foi o tempo suficiente para deixar Neymar com o corpo aberto. Paciência. A mãe

natureza é soberana. Contra ela, nem os deuses podemos. Respeitamos. Obede-

cemos. Bom jogo para você na disputa do terceiro lugar. Abraço e não me liga”. Nó

na garganta. Ressaca pior que a de mistura de dez caipirinhas com uma dúzia de

latinhas de cerveja. Insônia que resistia até mesmo à contagem de carneirinhos.

Arrisquei então durante a longuíssima madrugada, ponteiros do relógio que se

arrastavam, tentar contato com o presidente do conselho divino. Foi solícito, ape-

sar do adiantado da hora. Deuses não dormem. Consegui entrevistá-lo. Fiquem

sossegados - era ele mesmo, não um sósia. Chequei. Não aceitei só cartão de vi-

sitas. Pedi até as digitais. Exame de DNA. Pois vossa senhoria, a entidade máxima

espiritual da bola, me garantiu que os deuses do ludopédio estão dispostos a ge-

nerosamente nos oferecer, sem custos adicionais de qualquer espécie, um con-

junto de ideias para a refundação do futebol brasileiro. Ele diz que, se os cartolas

da CBF tivessem um pingo de vergonha na cara - e ele sabe que não têm -, assina-

riam ainda hoje contrato com o Guardiola. Renunciariam em seguida. A gente

topa? Banca? Vamos encarar de frente e defenestrar a famiglia? Engolir esse or-

gulhinho besta e infundado, enterrar de vez a tosca aversão a técnicos estrangei-

ros? Vai ver a gente merece mesmo o Del Nero sucedendo o Marin. O opositor era

o Andres Sanchez. Corram para as montanhas. Tite vem aí. Novo salvador da pá-

tria. Cordeirinho. 1 x 0 é goleada. O Gallo, quem sabe. É queridinho do esquemão.

O pofexô Vanderley está livre, leve e solto, sem compromissos, é sempre uma

opção para comandar poxetos mirabolantes. Que tal o Muricybol? Tudo mais do

mesmo. Meu interlocutor lembrou que, após a Copa, o Brasil faz amistoso no dia

5 de setembro, provavelmente contra a Colômbia, enfrentando o Equador quatro

dias depois. Sabem onde? Nova Jersei, Estados Unidos. São esses os vínculos

que desejam estabelecer com a torcida? Pois, sugere, que se jogue numa dessas

tantas arenas que foram construídas para a Copa. Uma peleja em Manaus, outra

em Curitiba. Para começar. A partir daí, uma partida por mês, viajando pelos qua-

tro cantos desse país. Para que entre em campo não só a Seleção Brasileira. Mas

a Seleção do Brasil. Ingressos a preços populares. Sem precisar pedir ajuda para

os Lamines Fofanas ou Raymonds Whelans da vida. Para lotar os estádios. Voltar

a ter o futebol como símbolo da nossa cultura, expressão da vontade do povo,

pelo povo, para o povo. Retomarei esse assunto, nas crônicas derradeiras desta

Copa. Treinamento vai ser prioridade. Não só nos jogos. Um time competente e

vencedor é bem mais que um agrupamento de jogadores com boas intenções.

Motivar é preciso - treinar é imprescindível. Em sua estadia no Brasil, para a dis-

puta da Copa, a Alemanha teve só um dia de folga. Precisa desenhar? Intercâm-

bios. Viagens. Estudos. Táticas. Esquemas alternativos. O calendário será

reformulado. Clubes com dívidas serão proibidos de participar de competições

oficiais. Todos os times deverão ter sempre em campo ao menos três jogadores

com entre 18 e 20 anos, formados nas categorias de base. Novos talentos. Sem

apelação. Bônus e recompensas polpudas para quem revelar armadores, não só

volantes. Em busca daquele clássico camisa 10 que tanto nos fez falta nesse

Mundial. Uma Liga, para além dos desmandos da CBF, será responsável por orga-

nizar as competições. O vespeiro de contratos de exibição de jogos será revirado

do avesso. Caixa preta. Sem monopólios. A viabilizar horários sensatos de início

das partidas - e não “bem amigos da Rede Globo” só depois do final do capítulo

da novela. Um jogo não pode acabar quando a torcida já não tem mais metrô ou

ônibus para retornar para casa. Bom Senso Futebol Clube. Reviravolta nas estru-

turas e métodos. Revolução de mentalidades. Entranhas. Humildade. Gostei do

que o presidente do conselho dos deuses me disse. Vamos pensar juntos? Con-

vite feito. O futebol brasileiro - aquele que ficou perdido em algum lugar do pas-

sado - agradece. Mirem-se no exemplo daqueles boleiros de Berlim. De minha

parte, vaias em alto e bom som para os que queimaram a bandeira do Brasil na

Vila Madalena. Vocês são lamentáveis. Vaias ainda mais fortes para os que usam

o tsunami do Mineirão para comemorar suposta vitória do país da honestidade e

do trabalho sério contra o país do jeitinho, da vagabundagem e das bolsas para

meliantes. Vocês são crápulas. Sanguessugas. Vaias múltiplas para os que escre-

vem desbragadamente nas redes sociais que o governo da Dilma é tão incompe-

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL110 111

tente que gastou bilhões de dólares para ter a Copa, e a Seleção não foi nem capaz

de ganhar a taça. Culpa da Dilma, óbvio. Como queriam demonstrar. Aliás, espe-

rem aí um segundinho, deixem ver se entendi. Queriam então que o Brasil, por ser

sede, comprasse mesmo a Copa? Oras, mas não eram vocês, arautos da ética,

exemplos de conduta ilibada, com muito orgulho e com muito amor, que batiam no

peito para condenar o torneio que já tinha sido comprado pelo Brasil? E agora vêm

a público para lamentar que tudo não estivesse mesmo previamente arranjado?

Compra ou não compra? Que contradição é essa? Decidam-se, por gentileza. Que-

rem saber? Vocês são hipócritas. Heróis sem nenhum caráter. Por fim, vaias en-

surdecedoras para quem comemora a derrota da Seleção, acreditando que por

conta dela poderá colher dividendos eleitorais. Vocês são desprezíveis. Imagine na

Olimpíada. Imagine na próxima Copa no Brasil. Ronaldo, o Oportunista, o Klose te

manda 16 abraços. Quem foi o mané que disse que a Copa acabou ontem? Acabei

de ver Argentina e Holanda comendo pipoca. No sábado, vou torcer para o Brasil

beliscar o terceiro lugar. E no domingo tem os hermanos, que jogam a vida por

uma bola de Messi, o gênio, contra o timaço da Alemanha. Imperdível.

Adoro Buenos Aires, cidade aconchegante, antiga e moderna, intensa em

suas belezas naturais e construções humanas, que sempre me recebeu

muito bem quando estive por lá. As livrarias em cada esquina, a imensidão da

Nove de Julho, o estádio de La Bombonera, os artistas na rua, o tango, o museu

de Carlos Gardel, os parques de Palermo, a pulsante Praça de Maio com seus pro-

testos, manifestações políticas e andanças das avós e mães de desaparecidos

políticos, os cafés onde se pode sentar e passar a tarde inteira, apenas para ler

um jornal ou um livro, sem ser incomodado. Moraria fácil na capital argentina. A

literatura deles contempla esplendor único de letras e de narrativas. Ernesto Sa-

bato, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia. Precisa dizer mais? Merce-

des Sosa. Gracias a la vida. Volver a los 17. Ernesto Guevara. É admirável, exemplo

a ser seguido por outras nações, o esforço da sociedade argentina em não permi-

tir que sejam esquecidas as atrocidades cometidas pela ditadura militar que lá se

instalou nos anos 1970. Arquivos foram abertos, torturadores - incluindo o ex-

presidente da República Jorge Videla - foram julgados. Condenados à prisão. Sou

fã confesso das iniciativas argentinas que pretendem democratizar o acesso à

informação e colocar ponto final aos monopólios midiáticos. Adoro a altivez com

10 DE JULHO

OS ARGENTINOS QUE ME

DESCULPEM, MAS TORCER PELA ALEMANHA É

FUNDAMENTAL

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL112 113

que negociam com os abutres do mercado financeiro internacional, sem dobrar a

espinha. Brasil e Argentina sofreram com a exploração colonial de Portugal e Es-

panha, respectivamente. São parceiros de Mercosul. Messi é gênio da bola. Foi

um privilégio poder vê-lo ao vivo, no Mineirão, contra o Irã. E ser brindado com um

golaço dele. Pois então. Dito tudo isso, anuncio em alto e bom som a quem possa

interessar que vou torcer na final da Copa do Mundo pela... Alemanha. Sim, isso

mesmo, pela Alemanha. Porque, para além de todas as teias apaixonantes que

nos conectam aos hermanos (com respeito, sem tom pejorativo), existe algo es-

pecífico que nos afasta de forma inexorável. Chama-se rivalidade futebolística. É

sério. Muito mais forte que eu. Não há quem me convença do contrário. Não se

trata de construção nossa. Os argentinos também reconhecem e fazem uso

dessa rivalidade. É via de mão dupla. E antes que pedras comecem a ser atiradas,

puxa, você entra nessa esparrela, mais serenidade e menos violência, falo aqui de

saudável e civilizado sentimento que move adversários (não inimigos) de ludopé-

dio que torcem e defendem cores e bandeiras diferentes. Apenas isso. Nada da

cadeiradas, garrafadas, socos, tiros. Essa selvageria fica colocada em outro plano.

Longe, bem longe de ufanismos nacionalistas. Não quero saber de preconceitos

ou exclusões xenofóbicas. Falo de uma disputa que se resume às quatro linhas.

Só. Combinado? Os argentinos ocuparam as ruas de São Paulo, do Rio de Janeiro,

de Porto Alegre, de Brasília... Por onde passaram, cantaram o ‘Decime qué se

siente. Maradona és mas grande que Pelé’. Pois quero solidariamente continuar

respondendo com o ‘diz aí como é que é ter somente duas Copas, uma a menos

que Pelé’. Eles vão lembrar do Caniggia e do Maradona em 1990. Eu vou mostrar

recortes dos jornais de 1982, quando levaram um passeio do esquadrão de Telê

na Espanha. Vão responder que, naquele ano, não levantamos o caneco. Verdade.

Mas temos cinco. Eles, só dois. O mesmo que o Uruguai. Unzinho mais que a

França, a Espanha, a Inglaterra. Amigos, os caras estão na fila faz 21 anos - con-

quistaram a Copa América em 1993. De lá para cá, nenhum torneio de peso. O

último Mundial deles é o de 1986. Eu era um menino, tinha 14 anos. A Argentina

está vinte e oito anos na seca de Copas! E agora vou torcer para que o volume

morto do Cantareira acabe com essa estiagem? Desejar que eles recebam o ca-

neco em pleno Maracanã, templo do futebol mundial? Para ouvi-los cantando no

Mario Filho que ‘Maradona és mas grande que Pelé’? Sinto muito. Não contem

comigo. Sou movido por forças ocultas implacáveis, que me dominaram, toma-

ram conta dos meus atos e pensamentos. Vesti a camisa alemã e saí por aí. Mas

você vai torcer por um europeu? Como fica a solidariedade sul-americana? Sou

latino de carteirinha. Sem imperialismos. Louco por ti, América. A aceitar esse

argumento, no entanto, teria de concordar também com o Galvão Bueno e seus

arroubos de “time tal é o Brasil na Libertadores”. Sinceramente, a não ser que

minha memória esteja fraquejando, não me recordo de ter encontrado nas arqui-

bancadas do Pacaembu, na final de 2011, corinthianos, são-paulinos e palmeiren-

ses torcendo pelo Santos, contra o Peñarol. Colorados não foram às carreatas

das vitórias do Grêmio na competição continental, em 1983 e 1995. Gremistas

não cantaram o hino do Inter em 2010. Corinthianos não usaram a camisa do Pal-

meiras, em 1999. Não vi palestrinos dizendo “fazemos parte do bando de loucos”

em 2012. Santistas, torcemos todos para o São Paulo em 1992, 1993 e 2005, não

é verdade? Aposto e ganho que vascaínos tiveram alterações de humor quando o

Flamengo venceu a Liberta de 1981. Rabugices rubro-negras se fizeram sentir

quando o clube cruz-maltino venceu o torneio, em 1998. Não me consta que atle-

ticanos e cruzeirenses tenham festejado juntos nas ruas de Belo Horizonte as

duas conquistas do Cruzeiro e o feito sul-americano mais recente do Atlético.

Perguntem aos tricolores cariocas e aos botafoguenses o que acham de serem os

únicos grandes a não ter estrela da Libertadores no peito. Mas não somos todos

brasileiros? Por que então não torcemos para os brasileiros? Tem sigla e nome,

amigos. SRMB - Saudável Rivalidade que Move os Boleiros. Volto ao início - Argen-

tina, encantos mil. Mas futebol é outra história. Combinado? Nessa final em espe-

cial, minha torcida não se dá apenas contra os argentinos. É também a favor da

Alemanha. A simpatia contagiante de Schweinsteiger e companhia me cativou. O

futebol jogado pela esquadra alemã me encantou. O meio de campo germânico

me arrebatou - Khedira, Schweinsteiger, Kross, Özil e Müller. De encher os olhos

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL114 115

de qualquer ser humano que preze a arte da bola. Sem contar o Klose, que teve a

hombridade de ultrapassar Ronaldo, o Oportunista, na artilharia das Copas. Na

final, o 11 da Alemanha pode ampliar essa vantagem. Quem sabe o Müller chegue

mais perto também. Sensacional. A dignidade alemã na vitória contra o Brasil no

Mineirão me fascinou. Os alemães merecem - muito - ser premiados pelos ser-

viços inestimáveis prestados ao futebol nos últimos quinze anos, para arredon-

dar. O quarto título mundial serviria para coroar esse trabalho. Para resumir:

depois da desclassificação na primeira fase da Eurocopa de 2000 e da derrota na

final da Copa de 2002, os alemães entenderam que o futebol que estavam jo-

gando tinha se tornado obsoleto e ultrapassado. Cortaram na carne. Julgaram e

prenderam dirigentes corruptos. Criaram centros de treinamento para revelar jo-

vens talentos. Bancaram escolinhas de futebol para crianças, espalhadas pelo

país inteiro. Recusaram-se a vender seus principais clubes para magnatas russos

ou árabes. Preços dos ingressos para os jogos do campeonato nacional foram

mantidos em padrões razoáveis para o torcedor médio alemão, sem elitizar o es-

porte. A média de público da Bundesliga é a mais alta do mundo - 45 mil por par-

tida. A Seleção é um mosaico de nacionalidades, ajudando a combater o racismo

e a xenofobia que ainda contaminam setores significativos da sociedade germâ-

nica. Soco no estômago dos neonazistas. Özil é de família turca. Khedira é da Tu-

nísia. Podolski e Klose nasceram na Polônia. A família de Boateng vive em Gana. A

Alemanha, se vitoriosa no domingo, poderá cumprir um papel que não pôde infe-

lizmente ser desempenhado pela Seleção do Telê, em 1982, porque derrotada

naquela oportunidade: escancarar que o futebol bonito, bem jogado, com pince-

ladas de arte, pode ao mesmo tempo ser eficiente. Vencedor. Razão e sensibili-

dade. Dribles e treinamento. Um goleiro que é um monstro. Defesa sólida, técnica

e forte. O melhor meio de campo do futebol atual. E artilheiros com fome de gols.

Amigos que vão torcer pela Argentina, respeito todos vocês. Muito. Mas essa se-

leção da Alemanha me representa. É para ela que vou torcer na grande final. Sim,

sei que essa opção pode suscitar os instintos mais primitivos de alguns. É só fu-

tebol. Certo? Abraços a todos. E bom jogo.

São Paulo, 11 de julho de 2014

À Confederação Brasileira de Futebol,

A/C Sr. José Maria Marin

Prezados,

não tenho procuração de quem quer que seja para escrever. Tampouco pretendo

colocar à mesa planos infalíveis do Cebolinha, capazes de convidar o Cascão para

dar nó nas orelhas do coelhinho da Mônica ou de enfrentar o pesadelo futebolís-

tico em que vossa senhoria e sua turma nos mergulharam. Acho, no entanto, que

expresso de alguma maneira os sentimentos de boa parte dos torcedores brasi-

leiros. Mistura de perplexidade com raiva. Talvez os senhores ainda não tenham

tomado pé do tamanho e da gravidade do que aconteceu no Mineirão, na tarde

da última terça-feira. Até entendo. Não é para mim, não é do meu perfil (nem

para a minha modesta conta bancária), não é do meu gosto, mas deve ser bacana

mesmo viver em salões suntuosos, comendo e bebendo do bom e do melhor,

em reuniões com executivos e patrocinadores graúdos, sobrenomes que abrem

várias portas, em viagens ao exterior, andando de lá para cá em iates luxuosos,

jatinhos particulares ou em helicópteros de aliados, participando de negociações

11 DE JULHO

MARIN, DEL NERO E CIA

PEÇAM PARA SAIR!

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL116 117

que envolvem contratos polpudos. Minha modesta percepção, no entanto, sugere

que esse estilo de vida e de administração deve em algum momento ter feito com

que perdessem qualquer conexão com a realidade mundana, cotidiana. Fincaram

raízes num mundo paralelo, onde tudo é lindo e maravilhoso, mar de bolas rosas,

sem conflitos ou dificuldades. Nesse planeta virtual de vocês, o Brasil continua a

ser o país do futebol, temos os melhores jogadores e técnicos do planeta, toda a

preparação foi muito bem feita, obrigado, e podem todos ficar sossegados, por-

que já estamos com as duas mãos na taça da Copa de 2018. Somos favoritaços

para trazer o próximo caneco! Preparem-se, o hexa vem aí. Já encomendaram

até algumas novas versões de “mostra sua força, Brasil e amarra o amor na chu-

teira”, para embalar a cantoria da torcida na Rússia. Sem abandonar, claro, o de-

licioso “com muito orgulho, com muito amor”. Não esqueçam de dizer para esse

pessoal já encomendar os ingressos com um tal de Raymond Whelan. Faz preço

camarada, entrega em casa. Sigilo absoluto. Se apertar, ele foge. Oportunidade

única. Por falar em único, talvez os deuses do futebol, com quem conversei tanto

durante essa Copa no Brasil, estejam nos oferecendo a derradeira chance de mu-

dar esse estado das coisas. Último bonde apitando na estação. Desçam imedia-

tamente desse pedestal que os faz intocáveis, meus senhores. Está carcomido,

desgastado, caindo de tão podre. Não se sustenta mais. Himalaia é só para as

divindades mesmo. Engulam por gentileza essa conversinha mole do “foram só

seis minutos de apagão”. Não nos tratem como imbecis. A crise de energia do fu-

tebol brasileiro é antiquíssima. Não começou com o esgotamento das águas do

sistema Cantareira. Não entenderam? O Geraldo pode explicar com mais detal-

hes. Já está no volume morto. Mas tem desconto para quem gastar menos água.

Bonito. Nos gramados, essa crise tem outro nome. Chama-se futebol de improvi-

sos. Motivacional. Muito prazer. Podem chamar também de Futebol Ostentação

- não porque desfila dribles e golaços em campo, mas porque se preocupa muito

mais com marketing e receitas publicitárias. A força da grana que ergue e des-

trói coisas belas. Aparências e imagens. Simulacros. Discursos vazios. Slogans

e logotipos. Marcas. Como perguntar não ofende, vamos lá: quantos patrocina-

dores tem mesmo a CBF? Quanto arrecada por ano? Quantos são os compro-

missos contratuais espetaculares que precisam ser rigorosamente cumpridos?

Até quando fornecedores de material esportivo vão continuar definindo nossa

agenda de amistosos? Até quando emissoras televisivas vão interromper treinos

para garantir mais cinco minutos de fama e holofotes para seus apresentadores

paspalhos e seus caldeirões de imbecilidades? Até quando jornalistas que fazem

perguntas que ‘incomodam’ serão tratados a pão e água? Até quando entrevis-

tas coletivas serão espetáculos circenses? Acho que já deu para entender qual

é a raiz mais profunda da encrenca. Não? Estrutura. E me desculpe, Dona Lúcia,

com todo o respeito que lhe devo, sua carta foi mesmo muito elegante, mas não

está tudo bem. Perder de sete da Alemanha numa semifinal de Copa do Mundo

não é algo natural, normal. É inaceitável. Vocês, senhores gestores (adoro essa

palavra!), estão jogando na lata do lixo a linda história do futebol brasileiro. Vira-

mos motivo de chacotas, no mundo todo. Até o Taiti resolveu desafiar a Seleção

para uma pelada. Vá lá, para quem só consegue mesmo enxergar cifrões, talvez

seja difícil, bem complicado compreender a importância que a Seleção tem para

o povo brasileiro (e uso essa expressão de propósito mesmo, com consciência),

o papel que a canarinho cumpre como um dos elementos constituintes de nossa

identidade cultural. Nunca antes na história desse país. Precisamos de uma re-

viravolta de métodos, revolução de mentalidades. E essas mudanças, profundas,

doloridas, demoradas, difíceis, que serão marcadas por idas e vindas, não pas-

sam por vocês, burocratas da Confederação. Ao contrário - queremos que este-

jam bem longe. Não atrapalhem. Não temos fórmulas prontas. Mas carregamos

conosco todos os sonhos do mundo. O Bom Senso Futebol Clube precisa ser ou-

vido. Seriamente. Que as ideias de Paulo Andre, Alex, Dida e outros boleiros se-

jam transformadas em iniciativas concretas. Os feitos da Alemanha devem nos

servir como inspiração. Não para copiá-los, mas para traduzi-los para a nossa

realidade específica. Só um detalhe, não pode passar batido: dos 23 jogadores

convocados pelo técnico Joachim Löw, 16 atuam em clubes germânicos. Dos 23

convocados por Felipão, apenas quatro jogam em times brasileiros. Essa é uma

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL118 119

das chaves para desatar o nó. Boas propostas não faltam. Precisamos de gente

séria para reuni-las e implementá-las. Humildade e serenidade para reconhecer

que paramos no tempo. Não são poucas as seleções que assumiram papel de

protagonistas, estão na nossa frente, praticam futebol muito mais moderno. A

torcida - aquela das arquibancadas de cimento, não a de balada - vai precisar ter

paciência. Apoiar. Estamos falando em algo para daqui uns dez anos. Mas é pre-

ciso dar a largada imediatamente. Por tudo isso, senhores Marin, Del Nero e de-

mais dirigentes e membros da cúpula da CBF, nos façam uma enorme gentileza...

Sem querer ofender, como diz o Daniel... Respeitosamente... Vazem! Caiam fora!

Sumam! Peguem seus bonés (ou cartolas)! Peçam para sair! Levem com vocês

o Felipão, o Murtosa, o Parreira, o Mano, o Tite, o Muricy, o Gallo, o Luxemburgo.

Não aceitamos mais do mesmo. Vão aproveitar seus mundos nababescos de son-

hos. E nos permitam, apaixonados de verdade pelo futebol, reconstruir aquilo que

verdadeiramente nos pertence. Obrigado.

Em tempo - se não servir para mais nada, o texto terá ao menos me permitido

desabafar. Estava precisando...

Os jogadores tinham acabado de almoçar na Granja Comary. Estavam tran-

cados em seus quartos, isolados, descansando. Extenuados. Rotina esta-

12 DE JULHO

FELIPÃOZINHO VERMELHO, UM

CONTO DE FADAS

fante. Muitos treinos. Felipão saiu da mesa no restaurante disposto a dar uma

volta pela concentração. Preciso espairecer, arejar a cabeça, anunciou. Tempo

nublado, frio, garoa. O técnico da Seleção se agasalhou e vestiu uma capa verme-

lha, com chapéu. Bem vistosa, cor viva. A marca do patrocinador estampada no

peito. Vou dar um passeio no bosque. Pela estrada afora, quero ir bem sozinho. O

conselheiro Parreira, fazendo as vezes de uma mãe cuidadosa, sempre a postos

para ajudar, preparou imediatamente uma pequena cesta com comes e bebes.

Doces, salgados e sucos. Na tampa, a marca de outro patrocinador. Leve, meu

amigo. Você mal tocou na comida. Deixou o prato quase cheio. Pode ser que sinta

fome no meio do caminho.Vai te fazer bem. O fiel escudeiro deixou ainda um

alerta: Felipão, cuidado, prefira a trilha que fica à esquerda dos campos de treina-

mento. Não vá pelo caminho do rio. Passe longe dali. É perigoso. Recebi um rela-

tório ultra secreto e muito detalhado, feito pelo Gallo e pelo Roque Junior, que

revela que há muitos jornalistas que fazem perguntas indiscretas acampados ali.

São abutres esperando as presas. São lobos maus em pele de carneirinho. São

comunistas que comem criancinhas, mulheres grávidas batidas no liquidificador

e técnicos de futebol como sobremesa. Fique bem atento, meu amigo. Se proteja.

À tardinha, ao sol poente, mais leve e bem contente, esteja de volta. O gaúcho de

bigode não fez questão de esconder a contrariedade. Saiu bufando, batendo os

pés. Esses caras acham que não sei o que é melhor? O que é adequado? Eu de-

cido. Vou caminhar por onde eu quiser. Quem manda aqui sou eu. Aos diabos com

esses relatórios. Estou farto deles. Escolho o Bernard. A escalação é minha. A

responsabilidade é minha. Foi só uma pane. Foi repetindo várias vezes as mesmas

falas. Parecia tentar se convencer do que dizia. Guerra de narrativas. Puxou um

pouco mais o capuz vermelho, para proteger o rosto dos pingos gelados. Não fez

questão de desviar das poças. O chão de terra estava escorregadio, muitos gal-

hos de árvore caídos. Levou sete tombos. Nada sério. Só acidentes de percurso.

Apagão. Ligeiro. Equilibrou-se. O horizonte estava cinzento. Triste. Amuado. Feli-

pão desobedeceu Parreira. Foi margeando o rio, atirando pedrinhas na água, ob-

servando os círculos que elas provocavam. Passou uma hora naquela brincadeira.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL120 121

Já cansado, pernas doendo, não se incomodou de sentar no barro, próximo da

margem. Sentiu pontada no estômago. Fome. Mandou ver num sanduíche de

queijo e presunto. Suco de acerola com abacaxi. Fez cara feia. Não tinha de la-

ranja? Olhar parado, sem expressão, mirava o infinito. Não mexia um músculo do

rosto. O silêncio foi bruscamente interrompido por burburinho que vinha do outro

lado da cerca, na cabeceira do rio. Felipão, Felipão, vem cá, chega mais aqui, por

favor. Eram os jornalistas. O técnico da Seleção olhou para eles. Tinham orelhas,

olhos e narizes enormes. Mãos peludas. Garras. Rabos compridos. Caninos afia-

díssimos. Babavam. Levou uns sete segundos pensando. Concluiu: o Parreira não

manda em mim. Lá vou eu. Levantou-se e aproximou-se da cerca. Eram sete re-

pórteres, mais precisamente. Por um instante, Felipão teve a impressão de que

vestiam camisas rubro-negras. Chacoalhou a cabeça. Estava tendo alucinações.

A primeira pergunta foi um direto no estômago dele. Sentiu-se engolido. Felipão,

por que você escalou o Bernard? A responsabilidade é minha. Eu escalei o time.

Não podia abrir antes para vocês. Felipão, vocês já conversaram sobre a derrota?

Eu assumo, foi uma tragédia. Não vou esquecer. Foi um apagão. Uma pane. Nada

deu certo. Foi uma pane. Acontece. A responsabilidade é minha. Felipão, a rotina

de treinos foi adequada? O trabalho foi bem feito. Planejamento nota dez. Não

posso achar que é o fim do mundo só por uma derrota. Foi uma pane. Acontece.

Mas quatro gols em seis minutos, Felipão? Veja, nos dez primeiros minutos do

segundo tempo, tivemos quatro chances. Não marcamos. Já pensaram se a gente

tivesse feito os quatro? Virava outro jogo. É coisa de maluco. Nem em dez mil

anos... Mas e o Bernard, Felipão? Por quê? Ele já sabia o que fazer. Tinha sido

orientado. A escolha foi minha. Eu assumo a responsabilidade. Não deu certo. Só

isso. Foi uma pane, um apagão. Acontece. Acontece. Felipão! Felipão! Não eram os

jornalistas-lobos maus. O técnico da Seleção virou-se para o lado oposto. Lá

vinha a mamãe Parreira, descendo a ladeira. Estava acompanhado pelo caçador

Murtosa, que chegou mudo e saiu calado. Meu amigo, que teimosia. Eu avisei.

Não deveria ter vindo aqui. Ainda bem que o Gallo e o Roque Junior me avisaram.

Esses caras são insuportáveis. Estão satisfeitos? Pois vão ficar contentes em sa-

ber que tenho aqui mais um e-mail da Dona Lúcia. Acabei de receber. Ela reforça

a confiança no nosso trabalho, diz que viveu alguns dos dias mais felizes da vida

dela e deseja muita sorte na disputa do terceiro lugar contra a Holanda. Agradece

ainda a leitura da primeira carta, na coletiva. Diz que se sentiu honrada. Lison-

jeada. E vocês, abutres da imprensa, podem ficar sossegados. O trabalho para

2018 já começou. Está sendo perfeito. Nenhum deslize. Nada. Somos favoritos. Já

estamos com a mão na taça. O hexa é nosso. Agora venha, meu amigo. Vamos

voltar. Já está quase na hora do treino, que hoje vai ser duro, longo. Terá sete mi-

nutos. De volta à concentração, sempre protegido por Parreira, Felipão foi ava-

liado pela equipe médica. Sete doutores. Sentia náuseas, dor de cabeça, leve

tremedeira. Recomendaram afastamento de todas as atividades. Repouso abso-

luto. O gaúcho de bigode está emocionalmente abalado, aparvalhado. Babeta.

Não fala coisa com coisa. Construiu realidade paralela. Vive um conto de fadas.

Você sabia, doutor? Foi só um apagão, só uma pane, repetia, à exaustão, olhando

assustado para os médicos. Sem tirar a capa vermelha com chapéu. É sério. Ele

precisa se cuidar. Descansar. Desejo pronta recuperação. Torço para que esse

afastamento de qualquer trabalho relacionado à Seleção dure pelo menos mais

uns doze anos. Teimoso, o gaúcho de bigode decidiu ainda comandar o time na

disputa do terceiro lugar contra a Holanda. Ninguém manda em mim. Estou bem.

Eu decido. Eu escalo. Cá entre nós, é certamente a partida mais sem graça da

Copa. Vale nada. É como aquele relatório anual de prestação de contas da firma

que você faz, com urgência, por ordem do chefe, powerpoint bonito, já sabendo

que é apenas medida burocrática, só para executivo ver. O texto vai mesmo é pa-

rar no arquivo morto - ou numa lata de lixo. Em campo, a Seleção que protagoni-

zou o maior vexame do futebol mundial nos últimos tempos contra a eterna

promessa de “agora vai, chegou a nossa vez” das Copas. Em 2014, a Holanda jo-

gou como nunca - e ficou de fora, como sempre. Impressionante. Enviei ofício

consultivo aos deuses do Himalaia, para confirmar se há algum decreto ou me-

dida provisória divina que impeça terminantemente a equipe laranja de ser cam-

peã do mundo. Aproveitei e perguntei por que o Vasco é sempre vice. Ainda não

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL122 123

me responderam. Estão reclusos, recolhidos. Em silêncio. Desde o e-mail que

mandaram ao Felipão, depois do Minerazo, não deram mais sinal de vida. Ali, já

avisavam: “beijo e não liga”. Hoje, aqui em casa, nem os tradicionais rituais fute-

bolísticos marcaram presença. Teve cerveja. Sem tensão. Luiza foi ao cinema

com a amiga. Daniel mandou um ‘nem estou nervoso’. Resmungou. Chorou, in-

conformado, logo no começo. Depois foi brincar no celular. Felipão resolveu ocu-

par o meio de campo. Agora, cara pálida? É o chamado ‘futebol Rubinho’. Sempre

atrasado. Gol da Holanda aos dois. Gol da Holanda aos dezesseis. Não são só seis

minutos. O desespero continua. Pesadelo sem fim. Amontoado de jogadores

aparvalhados em campo. Na beira do gramado, Felipão não perde a pose. Vamos,

vamos. É só uma pane. O trabalho é bom. Não podemos esquecer que o trabalho

é bom. A defesa brasileira mais vazada da história das Copas. A torcida de balada

no Mané nem se importa. Está feliz. Fazem ola. Dão gritinhos. Tiram self. Com

muito orgulho. Com muito amor. Pois eu já estava comemorando a invencibili-

dade da zaga brasileira no segundo tempo! No finalzinho, veio o terceiro. Apagão

mais demorado esse. Já comecei a ver na televisão chamadas para o retorno do

Brasileirão. O Santos enfrenta o Palmeiras na próxima quinta-feira. Aranha, Vic-

tor Ferraz, David Braz, Bruno Uvini e Mena; Arouca, Souza e Lucas Lima; Geuvâ-

nio, Gabriel e Rildo. Sei não. Estou achando até bom. Opa, ideia melhor ainda: vou

ler Chapeuzinho Vermelho com o Daniel. Pela estrada afora, eu vou bem sozinho.

Foi só uma pane. O trabalho é bom. Somos os melhores. Já peguei o livro da me-

nininha que vai visitar a vovozinha. O mundo dos contos de fadas é bem mais

gostoso. Delicioso. Fantasias. Ilusões. Dá tudo certo no final, sempre feliz. Né não,

Felipão?

Em tempo - o texto foi postado antes da coletiva pós-quarto lugar. O conto de

fadas assumiu ares de cinismo. Mau-caratismo.

Quando o árbitro apitou o fim do jogo, Alejandro Sabella, técnico da Argen-

tina, olhou para Joachim Löw, treinador da Alemanha, e deixou escapar um

sonoro “que meleca!”. Tensão para mais de cem minutos. Schürrle arranca pela

esquerda. Rente à linha lateral. Deixa o marcador argentino para trás. Eu levanto

da cadeira. O atacante alemão olha para o meio da área. Percebe a jogada. Cruza.

Götze mata no peito estufado. A bola vai caindo mansinha. Já estou quase dentro

da televisão. O camisa 19 bate com a perna esquerda esticada. Chute cruzado,

colocado, maroto, canto esquerdo do goleiro. Puffff. Fim da invencibilidade do

arqueiro Romero. Doze minutos do segundo tempo da prorrogação. A maioria da

torcida explode no Maracanã. Angela Merkel aplaude nas tribunas do estádio. Os

índios pataxós comemoram em Santa Cruz de Cabrália. Berlim e Munique pulam

e começam a festa. Eu grito pela janela da casa dos meus pais. Alemanha campeã

do mundo. Tetracampeã. Teve até dança indígena e pajelança no círculo central

do templo do futebol mundial. Merecido. Quando a presidenta Dilma entregou a

taça, vi de relance, bem rapidinho, atrás do ombro dela, o presidente do conselho

dos deuses do futebol. Estava feliz. Fez sinal de positivo. Justiça divina. Desapa-

receu sem deixar rastros. Torci. Não escondi. Sem ódios. Sem desprezar infinitas

afinidades e canções latino-americanas. Adoro e respeito profundamente a Ar-

gentina. O povo argentino. Mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obs-

13 DE JULHO

CAPÍTULO FINAL. DECIME QUE SE SIENTE

AHORA...

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL124 125

tante... Que me desculpem os hermanos, como já escrevi por aqui, mas torcer

na final pela Alemanha era fundamental. Rivalidades futebolísticas que movem

boleiros. A Argentina foi guerreira, taticamente quase perfeita. Defesa muito bem

montada, fechando espaços, ocupando o meio. Viu como funciona, Felipão? Jo-

garam por uma bola. Um lampejo de genialidade de Messi, quem sabe. Tiveram

chances. Três - com o camisa 10, com Higuaín e com Agüero. Desperdiçaram.

Paciência. Venceu o melhor. Levou a taça quem esteve se preparando para essa

Copa pelo menos desde 2002. Projeto de longo prazo. Oxigênio renovado de ca-

beças e mentalidades. Estilo de jogo. Treinamento. Pararam em duas semifinais

nos últimos dois Mundiais. Beliscaram o terceiro lugar em ambos. Estava na hora.

Um brinde ao futebol da Seleção da Alemanha, capaz de resgatar a arte do toque

de bola para combiná-la com a eficiência de um esquema tático moderno. Os ger-

mânicos atuaram embalados pelas defesas de Neuer, o melhor goleiro do planeta

bola. A versatilidade de Lahm. A exuberância técnica de Boateng - que partida

fez esse príncipe negro hoje. Schweinsteiger foi boleiro incansável, presente em

todos os cantos do campo. Kröos é um senhor maestro, a reger a orquestra. Na

frente, Klose e Müller têm faro de gol. E Götze foi iluminado. Como é só futebol,

tudo é brincadeira, tenho certeza que os argentinos, mesmo amuados, vão levar

na boa. Até porque entoaram a canção nas arquibancadas de todos os estádios

por onde passaram. Aprendemos. Reinventamos. Sei lá, não me sai da cabeça

essa nova versão. Ando pela sala de casa a cantá-la. Argentina, me diz como se

sente. Ver de longe cinco estrelas a brilhar. Te juro, ainda que os anos passem.

Você nunca vai me alcançar. Cinco Copas, só eu tenho. E sem trapacear. Mi ‘papá’

não se dopou para jogar. Uma coisa mais te digo. Pra nunca mais esquecer. O Pelé

tem mais Copas que você! Tudo na paz. Só sarro. Na boa. Lamento. Aqui, não. Mais

quatro anos na fila. Pelo menos. Pai, todas as seleções sul-americanas jogaram

no Maracanã. Menos o Brasil. Sábio Daniel. Pois é. Felipão insiste em ser persona-

gem de realidade paralela. Saga trágica e cômica. A gente chora e ri. De raiva. Usa

a piada para processar a dor. É deprimente ver o treinador num tal vídeo que teria

sido vazado por sabe-se lá quem. As imagens mostram o técnico da Seleção mais

uma vez insistindo na ladainha do fizemos nosso papel e vivemos seis minutos

de pane. Armação pura. Felipão gosta bem delas. Aposta nelas. A CBF é também

mestra nessas arapucas. Tudo de caso pensado. Showzinho estapafúrdio. Recu-

samos o papel de bobos da corte. Na coletiva de ontem, após a derrota para a

Holanda, o treinador escorregou perigosamente no exercício do mau-caratismo.

A empáfia e a arrogância atingiram níveis insuportáveis. Recusa-se terminante-

mente a assumir os erros. Hora de pedir o boné. Reconheço virtudes do Felipão.

Mas parou no tempo. Só para lembrar: jabuti não sabe subir na árvore. Quando

chega ao topo, é porque alguém o colocou lá. Estrutura. Tem algo maior, chamado

Confederação Brasileira de Futebol, entidade autoritária e intocável. É mais do

que tempo de defenestrar essa corja. Não é por seis minutos. É por dignidade.

História. É preciso condenar também com veemência o que aconteceu hoje no

Rio de Janeiro, fora do estádio. Não há democracia com prisões arbitrárias. Não

há democracia que possa conviver com proibição de manifestações e protestos.

Basta. Basta. Não tem mais relato? Acabou? Sério? Foi maravilhoso enquanto

durou. Vou sentir saudade. Nasceu como quem nada queria. Prosperou, abraçado

pela generosidade dos amigos leitores. A minha Copa do Mundo. Singular. Sonho

de criança. Vivido intensamente, muito de perto, espaços variados. Personagens

múltiplos. A nossa Copa do Mundo. Foram trinta e cinco textos. São falas de um

torcedor. Nada de especialista. Nem tenho cacife para tanto. Naveguei nos ma-

res de fortes emoções. Fotografei, com palavras, momentos inesquecíveis. Como

dizia Nelson Rodrigues, sem paixão não se chupa nem um chicabon. Há erros e

acertos. Para todos os lados. Contradições? Muitas. Lá e cá, aqui e acolá. Sempre.

Que bom. Somos todos humanos. O mais bacana foi ter a companhia de vocês. A

gente se vê na Rússia, em 2018.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL126 127

Chico Bicudo é paulistano e tem 42 anos. Tor-cedor de quatro costados do Santos Fute-

bol Clube, na alegria e na tristeza, é apaixonado desde antes de nascer pelas belezas do futebol. Acompanha todas as partidas, torneios e me-sas-redondas que possam caber nas 24 horas de um dia – séries A, B e C do Brasileirão, dis-putas estaduais, campeonatos inglês, espanhol, italiano, alemão, francês, português, argentino, russo, mexicano, Liga dos Campeões, Liberta-dores da América... Adorava até o extinto Desa-fio ao Galo (só os idosos vão lembrar). Também jogou bola – atualmente, a coluna e os joelhos limitam participação nas peladas. É a idade. Ama Copas do Mundo, com todas as forças do coração. É mestre em Ciências da Comunicação (Jornalismo) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), pós-graduado em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1996) e graduado em Jornalismo, tam-bém pela ECA/USP (1994). Autor dos livros “Ca-ros Amigos e o resgate da imprensa alternativa no Brasil”, lançado pela editora Annablume, selo “Universidade”, em junho de 2004; e “Saúde – Exercício da Vida”, lançado pela editora Sale-siana, em abril de 2009. Professor universitário há quase quinze anos. Mantém o Blog do Chico – www.oblogdochico.blogspot.com. Pretende narrar as aventuras da Copa da Rússia, em 1918.

MEMÓRIAS DE UMA COPA NO BRASIL

Chico Bicudo

“Os bravos iranianos assustaram. O goleiro hermano pegou três bolas difíceis. Durante uns vinte minutos no segundo tempo, o Irã foi melhor. Ousado. Sonhou com a vitória. A torcida empurrava. Iranianos e brasileiros. Eu procurava ver os dois jogos. O da Argentina e o de Messi. E dizia para o Dani - olhos sempre no Messi. A fanática torcida hermana não parou de cantar. Erro de passe. Vamos, vamos, Argentina. Chute longe do gol. Soy argentino. Bola perigosa do Irã. Maradona é melhor que o Pelé. Caldeirão azul e branco. Camisas tremulando. Prenúncio de tragédia. Noventa e um minutos. Foi quando Messi decidiu que era hora de acabar com aquele tango. Grudou a bola no pé. Cortou para a esquerda. Espaço mínimo. Bateu. Com curva. Vi de frente. Cena de cinema. Quadro aberto. O goleiro pulou. Quase tocou. Não deu. A pelota estufou a rede. Explosão no Mineirão” (...) “O escritor colombiano Gabriel García Márquez dizia que somos aquilo que lembramos. Memórias. As de junho/julho de 2014 vou carregar para sempre comigo”.