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MEMÓRIAS DO TURISMO EM NATAL/RN: DESCARTE, DESVALORIZAÇÃO, ESQUECIMENTO Andrea de Albuquerque Vianna 1 A cidade do Natal/RN, segundo a historiografia local, não foi vila e já nasceu cidade. Ao longo do tempo recebeu diversos epítetos: Noiva do Sol, ar mais puro das Américas, Cidade do Sol, “Caes da Europa”, e figura hoje como destino turístico de destaque no mercado nacional e internacional. Tendo como comportamento habitual a busca pela modernidade, Natal desconsidera o passado como riqueza, abrindo mão destes elementos como atrativos diferenciados. Em sua trajetória figuram momentos memoráveis à espera de serem resgatados. Ao priorizar atividades direcionadas aos atrativos naturais, passa ao largo de eventos e monumentos significativos da sua história, como é o caso da sua relação com o Hotel Internacional dos Reis Magos, marco do desenvolvimento urbano e turístico do estado, que, destituído de sua importância histórica pelo trade turístico, pelas elites locais, e, por consequência, por grande parte da população, encontra-se abandonado e ameaçado de demolição. Trabalha-se, então, a partir do conceito de dialética da memória, presente nas relações de preservação seletiva, ressaltando-se a existência de três valores significativos: valor de uso, de troca e valor simbólico. Os dois primeiros procedem da teoria marxista e representam: a utilidade que um objeto ou bem venha a ter; e o poder de compra que este bem detenha ou represente. O terceiro valor é o simbólico e nos remete à relação daquele bem com a identidade e a memória coletiva ou individual. Percebe-se que valorização simbólica interfere na produção do espaço e cria, por meio da relação uso/troca, novos produtos, o que promove a desvalorização e o esquecimento de locais que não atendam aos interesses do mercado. Assim, pode-se aferir que valorização e esquecimento também se aplicam a momentos, monumentos, pessoas, etc. 1 Andrea de Albuquerque Vianna Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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MEMÓRIAS DO TURISMO EM NATAL/RN: DESCARTE, DESVALORIZAÇÃO,

ESQUECIMENTO

Andrea de Albuquerque Vianna1

A cidade do Natal/RN, segundo a historiografia local, não foi vila e já nasceu cidade.

Ao longo do tempo recebeu diversos epítetos: Noiva do Sol, ar mais puro das Américas,

Cidade do Sol, “Caes da Europa”, e figura hoje como destino turístico de destaque no

mercado nacional e internacional. Tendo como comportamento habitual a busca pela

modernidade, Natal desconsidera o passado como riqueza, abrindo mão destes elementos

como atrativos diferenciados. Em sua trajetória figuram momentos memoráveis à espera de

serem resgatados.

Ao priorizar atividades direcionadas aos atrativos naturais, passa ao largo de eventos e

monumentos significativos da sua história, como é o caso da sua relação com o Hotel

Internacional dos Reis Magos, marco do desenvolvimento urbano e turístico do estado, que,

destituído de sua importância histórica pelo trade turístico, pelas elites locais, e, por

consequência, por grande parte da população, encontra-se abandonado e ameaçado de

demolição.

Trabalha-se, então, a partir do conceito de dialética da memória, presente nas relações

de preservação seletiva, ressaltando-se a existência de três valores significativos: valor de uso,

de troca e valor simbólico. Os dois primeiros procedem da teoria marxista e representam: a

utilidade que um objeto ou bem venha a ter; e o poder de compra que este bem detenha ou

represente. O terceiro valor é o simbólico e nos remete à relação daquele bem com a

identidade e a memória coletiva ou individual.

Percebe-se que valorização simbólica interfere na produção do espaço e cria, por meio

da relação uso/troca, novos produtos, o que promove a desvalorização e o esquecimento de

locais que não atendam aos interesses do mercado. Assim, pode-se aferir que valorização e

esquecimento também se aplicam a momentos, monumentos, pessoas, etc.

1 Andrea de Albuquerque Vianna – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Toma-se como exemplo o Hotel Copacabana Palace (ver figuras 1 e 2), ícone do

turismo e da arquitetura do Rio de Janeiro, inaugurado na década de 1920, a partir da qual se

tornou uma referência não apenas para o referido bairro, mas para toda a cidade do Rio de

Janeiro e, posteriormente, para a atividade turística no Brasil. No entanto, nem mesmo todo

seu histórico, sua imponência arquitetônica ou sua importância para o desenvolvimento do

bairro e da própria cidade do Rio de Janeiro enquanto destino turístico foram suficientes para

impedir que se aventasse tal possibilidade. Na década de 1980, o hotel, marco de uma época

ficou sob risco de demolição.

Com projeto do arquiteto francês Joseph Gire, inspirado nos hotéis da Riviera

Francesa, o Copacabana Palace, concebido para atender à demanda da Exposição do

Centenário da Independência do Brasil, evento de grande porte a ser realizado em 1922,

tomou forma contando sempre com o que havia de melhor em material construtivo,

importado, como cimento da Alemanha, mármores de Carrara, e cristais da Boêmia, o que

inviabilizaria sua finalização dentro do tempo estimado. O hotel só foi inaugurado no ano

seguinte, em 1923. (MAURÍCIO, 2012).

A transferência da capital federal para Brasília, nos anos 1960, impactou

significativamente o hotel, contribuindo para sua entrada num período de decadência. A

década seguinte agravou esse quadro, com a construção de hotéis mais modernos e de capital

internacional, projetados para outro tipo de público, que já não dispunha das mesmas

condições de disponibilidade de tempo e financeira necessárias para se hospedar no

Copacabana Palace. Ainda assim, a população, por meio da AMAC – Associação dos amigos

e moradores de Copacabana, apropriando-se de sua história, reagiu, protestou e entrou com

ações judiciais para suspender o projeto de demolição, evitando, assim, a perda deste

patrimônio. Não é possível, porém, afirmar que, sem a pressão popular, este tivesse sido

poupado pela especulação imobiliária. O governador do Rio de Janeiro à época, Antônio de

Pádua Chagas Freitas, cuja gestão se deu de 1979 a 1983, deu entrada no pedido de

tombamento do imóvel em nível federal (IPHAN), estadual (INEPAC) e municipal

(SEDREPAHC), o que impediu que o referido hotel viesse a ser demolido. A partir destas

medidas, a família Guinle, proprietária do hotel, sem condições de mantê-lo como empresa

competitiva no novo mercado turístico que se estruturava naquele momento, vendeu-o ao

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empresário americano James Blair Sherwood, que o reformou, de acordo com orientações dos

órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio, restituindo ao hotel o luxo e o glamour

pelo qual sempre fora conhecido (ver Figura 3). (MAURÍCIO, 2012)

Figura 1 – O recém-inaugurado Hotel Copacabana Palace e seu entorno.

Fonte: https://umpostalpordia.files.wordpress.com/2012/08/copa-1a.jpg

Figura 2 – Hotel Copacabana Palace em 1923

Fonte: http://oriodeantigamente.blogspot.com.br/2011/12/copacabana.html?spref=pi

Figura 3 – Hotel Copacabana Palace - 2010

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Fonte: https://i.yomyomf.com/wp-content/uploads/2010/11/copacabana-palace11.jpg

O caso de Natal/RN, até então, tem sido diferente. Desvalorização e esquecimento

integram a cultura natalense quanto a seus lugares de memória, o que se evidencia ao se

observar o conceito da dialética da construção destrutiva (COSTA, 2010), referente à

contradição entre mercantilização e preservação. Este indicativo nos conduz à desconstrução

da história dos lugares, desconstrução congruente com os movimentos do capital e que

apresenta um vislumbre das ações que norteiam as questões de valorização-esquecimento na

cidade. Busca-se, a partir disto, compreender de que maneira memória e história se

estabelecem na relação entre a cidade e seu passado.

Le Goff (1990, p. 63) aponta que, desde a Grécia Antiga, estes dois conceitos

(memória e história) se aliam a questões políticas. E ao se tratar de memória, trata-se também

da ‘não-memória’, ou do esquecimento, lembrando que esta “nasce do interesse das famílias

nobres”, e que a história é arma política.

O autor aponta o assenhoramento da memória pelas classes dominantes, e salienta que

a história só existe devido aos documentos – o que sobrevive do passado não é o que existiu,

mas o que os historiadores escolheram estudar. Esta afirmação nos remete à sua observação

sobre memória, definida como elemento essencial do que se costuma chamar de identidade,

individual ou coletiva. E que a memória coletiva, muito mais que uma conquista, é um

instrumento de poder.

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Costa (2015) chama a atenção para a dialética da memória, explícita nas relações de

preservação seletiva. Ressalta a existência de três valores relevantes e que regem este

processo: valor de uso, valor de troca e o valor simbólico.

Considerando que esta relação dialética (uso e troca) tem na valorização simbólica um

meio de intervir na produção do espaço, propiciando a criação de novos produtos a partir da

distinção de lugares, assim também o faz ao promover a desvalorização e o esquecimento de

locais que já não atendam aos novos interesses econômicos.

Esta relação de desvalorização e esquecimento tão presente na cultura natalense

quanto aos seus lugares de memória, fica mais clara quando se observa o conceito da dialética

da construção destrutiva. Esta se refere à contradição existente entre preservação e

mercantilização – “a busca da democratização e da ‘elitização’ do patrimônio urbano, de

forma ampla, e das destinações turísticas, particularmente” (COSTA, 2015, p.47).

Este vislumbre nos coloca diante da desconstrução da história dos lugares, relacionada

aos movimentos do capital. De certa forma, justificam-se, então, os movimentos de

valorização-esquecimento que permeiam a história da cidade do Natal, reconhecida e

verbalizada nas expressões populares: Natal, a cidade do ‘já teve’. Natal, cidade sem

memória. Natal, cidade do esquecimento.

A BUSCA PELA MODERNIDADE

A cidade do Natal do início do século XX já se apresentava como uma cidade em

busca pela renovação: o sentimento e a visão futurista dos intelectuais da época e das décadas

anteriores refletiam os anseios das classes dominantes, que buscavam uma alternativa para a

vida morna e monótona de então. Era preciso se distanciar do passado, do velho, do

tradicional. Era preciso reinventar. Havia, então, a cidade antiga e a nova cidade, a Natal

progressista, na qual intelectuais do início do século se empenhavam para implantar as

novidades trazidas pela modernidade, nos costumes, na arquitetura, no uso do automóvel, da

aviação comercial, enfim, o que fosse possível para que a cidade perdesse o aspecto de

província e se assemelhasse aos centros culturais adotados como referência na época –

Europa, Rio de Janeiro e Recife. (CASCUDO, 2011)

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Essa disposição pelo novo, pelo moderno, deixa à mostra um desejo de ruptura com o

passado, porém, Le Goff (1990, p.166) alerta que há que se considerar que “o passado só é

rejeitado quando a inovação é considerada inevitável e socialmente desejável. E questiona:

quando e como as palavras “novo” e “revolucionário” se tornaram sinônimas de “melhor” e

“mais desejável”? (op. Cit., p.203)

Costa (2015, p.116), citando Hennig (2007) destaca que: [...]se o patrimônio serve

como instrumento para rememoração de determinada cultura ou momento histórico, a sua

ausência deliberada contribui também para a amnésia coletiva, num procedimento (...) de

proscrição do que não se quer perpetuar. ”

Será esta a realidade que se apresenta em Natal? A justificativa para desvalorização de

elementos significativos para a história local? A desvalorização de monumentos, escolas,

residências, fatos históricos, e até bairros? Muitos são os exemplos, mas vamos nos deter

naqueles estreitamente relacionados à atividade turística e, como não poderia deixar de ser, à

aviação comercial que propiciou o desenvolvimento do turismo no Rio Grande do Norte.

Nessa perspectiva, é importante destacar a construção dos aeródromos – desde a

década de 1920 - para voos comerciais, por empresas alemãs, francesas e italianas, antes da

Segunda Guerra e da chegada dos soldados norte-americanos, cujas estruturas existentes

foram desapropriadas pelo Governo brasileiro e adaptadas para atender às necessidades de

defesa durante o conflito.

AVIAÇÃO COMERCIAL E HOTÉIS EM NATAL: RETRATOS DO

DESENVOLVIMENTO

Aviões e hidroaviões começaram a fazer parte da vida da cidade do Natal desde o

início do século XX. Cascudo (2010, p. 537) aponta para a frequência dos pousos na cidade

(de americanos, portugueses, franceses, alemães e italianos), desmistificando, inclusive, a

ideia de que a cidade só começou a se desenvolver após se tornar base militar durante a

Segunda Guerra Mundial. Os ares de modernidade já sopravam pela capital potiguar antes

desse período, prevalecendo aqui a influência europeia, o que se constata, tanto pela

quantidade de voos, considerando a época quanto por sua origem (ver tabela 1).

Tabela 1: Aviação comercial em Natal/RN

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DATA AERONAVE COMANDANTE/TRIPULAÇÃO

21/12/1922 Sampaio Correia II Euclides Pinto Martins

11/07/1926 Buenos Aires Bernardo Duggan

24/02/1927 Santa Maria Francesco Pinedo

18/03/1924 Argos Sarmento de Beires, Jorge de Castilhos, Manuel

Antônio Gouveia.

20/03/1924 03 biplanos

americanos

Herbert A. Dargue

14/05/1924 Jaú Ribeiro Barros, Newton Braga, João Negrão, Vasco

Cinquini

18/07/1924 Breguete da

Latécoère

Paul Vachet, Deley e Fayard

14/10/1924 Nungesser-et-Coli Costes, Le Brix

20/11/1927 Laté-25 Pivot, Pichard e Gaffe

14/06/1928 Potiguar (Sindicato

Condor)

Putz, Paschen

05/07/1928 Savoia-64 Arturo Ferrarin, e Carlo del Prete

Fonte: CASCUDO, 2010. Organização: Andrea Vianna, 2016

Juvenal Lamartine, então governador, contribuiu para trazer a aviação comercial para

o Estado – fundou, em 1928, juntamente com Fernando Pedroza o Aero Clube do Rio Grande

do Norte, com escola de pilotagem. Construiu, ainda, 25 campos de pouso no RN.

(CASCUDO, 2010), (OLIVEIRA, 2014)

Em 1930, as empresas CGA (Compaigne Generale Aeropostale) cuja rota pode ser

observada na figura 3; a NYRBA S.A. do Brasil (New York-Rio-Buenos Aires)2,; Sindicato

Condor Ltda; CAB – Companhia Aeronáutica Brasileira atuavam regularmente nos campos

de pouso de Natal. (CASCUDO, 2010), (OLIVEIRA, 2014)

Havia, ainda: a Hidrobase do Refoles no Alecrim, as oficinas de montagem na Praia

Limpa (Rocas), e o atracadouro de hidroaviões no Passo da Pátria. E a infraestrutura do

campo de pouso de Parnamirim,onde posteriormente viria a se instalar a base aérea americana

2 A NYRBA S.A. do Brasil foi incorporada pela PAN AM e se transformou na Panair do Brasil, que funcionou de 1930 a 1965, quando teve a concessão de suas linhas suspensa pelo presidente Castelo Branco.

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durante a Segunda Guerra, construída pela francesa Latecoére, (Air France) e pela italiana Ala

Litoria (LATI), (OLIVEIRA, 2014, P.81)

Figura 3: Rota da Compagnie Générale Aéropostale (CGA)

Fonte: http://tokdehistoria.com.br/tag/latecoere-28/

A história da aviação em Natal caminha lado a lado com o crescimento da atividade

hoteleira na cidade. A intensa movimentação vivenciada durante aquele período, faz surgir,

primeiro a insatisfação com os inúmeros hotéis existentes na cidade, considerados

ultrapassados; e a premência da construção de um hotel mais moderno, solicitação das elites

locais e encampada pelo poder público, resultando na construção do Grande Hotel em 1939

(Figura 4), centro das atividades sociais e políticas mais importantes.

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Figura 4: Grande Hotel

Fonte: Acervo do HCURB-PPGAU/UFRN

Figura 5: Soldados americanos no terraço do Grande Hotel

Fonte: http://potiguarte.blogspot.com.br/2014_02_01_archive.html

Durante o período que antecede a construção do Grande Hotel, registra-se a existência de

muitos outros hotéis classificados como de alto nível, situados no bairro da Ribeira, local da

elite natalense, no período em que as ruas deste bairro representavam o que havia de melhor e

mais elegante na sociedade local, e que também foram relegados ao esquecimento. A

existência destes hotéis foi verificada a partir de publicações de anúncios em jornais do

Estado, e de citações em artigos e livros.

Arrais (2008), cita que, de acordo com crônicas publicadas no jornal A República, no ano

de 1906, a cidade havia crescido consideravelmente, alcançando o número de 18.000

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habitantes, e já contava com iluminação pública a gás e também com jardins e “ótimos

hotéis”. Era uma cidade com os olhos voltados para o futuro, e em clara expansão.

Compartilhando desse espírito, o Governador Alberto Maranhão (1900 a 1904) partiu para

ações que concretizassem o sonho das elites locais. Assim, nesse período, houve a construção

do teatro Carlos Gomes, a reforma do porto, calçamento das ruas e a construção do primeiro

bairro planejado da cidade, a Cidade Nova (MARINHO, 2009).

Destacam-se os seguintes hotéis, jornais e datas de publicação (Figuras 6 e 7): Hotel

Londres (O Nortista, 1892), Hotel Viterbino (Diário de Natal, 1895), Hotel Brazil (Diário de

Natal, 1896), Hotel do Commercio (Diário de Natal, 1897), Hotel Tyrol (A República, 1916).

Foram encontradas também referências aos hotéis Internacional, dos Leões e Avenida, “todos

na Ribeira como sendo os melhores e mais luxuosos da cidade” (LYRA, 2009),

(NASCIMENTO, 2015).

Figura 6: Hotel Brazil

Fonte: Diário de Natal,1 de janeiro de 1896

Figura 7: Hotel Viterbino

Fonte: Diário do Natal, 07 de setembro de 1895.

Assim como o desejo pela modernização da cidade alcançou os hotéis da época, a

história se repete em relação ao Grande Hotel: no pós-guerra, em 1946 tem-se a reivindicação

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de empresas aéreas internacionais para a construção de um hotel que atendesse às novas

demandas do mercado, sendo o governo interpelado pelas companhias British South

American Airways e KLM Royal Dutch Airlines que apresentavam propostas de voos entre

Europa, África, América do Sul e Caribe. Tal hotel veio a ser construído em 1965, no governo

Aluísio Alves, tendo como cenário político a ditadura militar, sendo o primeiro equipamento

hoteleiro internacional local, voltado para o mar, um marco para o turismo, além de gerador

de mudanças significativas no uso e expansão da cidade.

Segundo Farias e Ferreira (2006),

O ano de 1965 anunciou o começo do fim para o Grande Hotel. Em

setembro daquele ano, inaugurava-se o Hotel dos Reis Magos, símbolo de

uma nova tendência da hotelaria na cidade: o movimento em direção ao

litoral. O governo do Rio Grande do Norte, estado carente de

industrialização, viu no turismo a fonte de recursos necessária para garantir

sua prosperidade econômica. Com o incentivo à produção de

empreendimentos turísticos que aproveitavam-se da paisagem natural das

praias como o maior ponto de atração para visitantes de outras partes do país

e do mundo, o Grande Hotel tornava-se, obsoleto enquanto equipamento de

turismo. (FARIAS, FERREIRA, 2006 s/p).

Construção de estilo modernista o HIRM é responsável pela projeção de Natal no

cenário turístico internacional, contexto estimulado pelas políticas de desenvolvimento

implementadas no período. Mais que isso, impulsionou o fluxo de pessoas e o comércio na

orla, melhorou o acesso ao aeroporto de Parnamirim, o que gerou melhorias na infraestrutura

urbana, valorização do solo, além de um incremento à economia do estado (VELOSO;

BENTES SOBRINHA,2002). Projetado pelo arquiteto francês George Munier, o mesmo que

projetou o Grande Hotel, o HIRM foi um marco para a cidade, o primeiro hotel da orla, foi

referência de tempos de beleza à beira-mar, sucesso e hospitalidade. A despeito disso, Natal

se voltou para o turismo desenvolvido a partir da implantação do parque hoteleiro da Via

Costeira, desde os anos de 1980, abandonando não só o antigo hotel, mas toda uma área da

cidade que foi seu maior atrativo e reconhecido cartão-postal.

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Figura 9: Hotel Internacional Reis Magos

Fonte:abandonada.blogspot.com.br/2013/11/hotel-reis-magos-natal.html

Figura 10: Hotel Reis Magos em estado de abandono.

Fonte: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/pesquisa-sobre-hotel-reis-magos-e-entregue-ao-

ministerio-publico/277554

O resgate da história da aviação em Natal tem muitas promessas, porém, pouca ação

efetiva. Dos antigos hotéis citados neste artigo pouco se sabe. Apenas o Grande Hotel se

mantém de pé, com outro uso e diversas alterações em sua construção. O Hotel Internacional

Reis Magos, que assim como o Copacabana Palace, contribuiu para o desenvolvimento da

atividade turística e da urbanização local, ainda resiste, apesar de sem uso, e sob ameaça

constante de demolição. A luta pela sua preservação e tombamento enquanto exemplar da

arquitetura modernista e de singular importância para a cidade é encampada por poucos e

ainda está em curso. É a história que se perde em meio a interesses diversos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas histórias, espaços de convivência e lazer, dias de progresso e modernização

que sucumbiram ao abandono, negligência e negação. Como se explica que momentos

importantes se percam no tempo e no espaço? O que faz de Natal uma cidade sem apego, sem

envolvimento ao seu passado, suas memórias? Será suficiente lançar mão da dialética da

construção destrutiva para compreender o que permeia a relação do natalense com seu espaço,

sua identidade? Voltemos, então, à discussão acerca de valorização e esquecimento,

lembrando que, como sugere Costa (op. cit) esta vem acompanhada de elementos

contraditórios que ordenam os territórios, como preservação e mercantilização, valorização e

precarização, uso e troca. Em Natal não foi e não é diferente: todo esse movimento está na

base das frequentes substituições e abandono de seus referenciais históricos, transformando-a

em uma cidade que pouco preserva e cuja identidade pouco se dá a conhecer.

Este artigo buscou refletir sobre o desdém da população por sua história – seja por

desconhecimento ou depreciação -, curiosamente valorizada quando se trata dos atrativos

turísticos europeus. Natal, então, assume seu papel na história como cidade do esquecimento.

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