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Miguel Figueira dafne editora opúsculo 10 —   Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura —  a minha casa em montemor

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Miguel Figueira

dafne editora

opúsculo 10 —  Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura  — 

a minha casa em montemor

N. do E. — Haverá melhor crítico de arquitectura que o próprio habitante? Neste caso particular, uma obra em que valores artesanais da construção a transformaram num laboratório experimental  ao  longo de vários anos, o crítico  teve a oportunidade de crescer na companhia da casa. Este opúsculo é construído pelas imagens produzidas pelo arquitecto, por uma análise da Maria e por um desenho da Marta.

opúsculo 10  *  dafne editora,  Porto, Janeiro 2008  *  edição  André Tavares, Dulcineia das Neves & Pedro Bandeira * fotografia Miguel Figueira (pág. 5–21) & João Armando Ribeiro (pág. 23)  *  desenho Marta Figueira (pág. 22)  *  design  Manuel Granja Monteiro  *  issn 1646–5253  *  d.l.  246357/06  *  www.dafne.com.pt

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a minha casa em montemor

Por Maria Figueira

Em 1995, dia 3 de Agosto nasci eu, uns dias antes o meu pai tinha com-prado uma casa em Montemor-o-Velho. Essa casa era um antigo celeiro, já tinha ardido e era enorme. Depois de viver uns dias em Coimbra, fui para a casa da minha bisavó na Figueira da Foz. Nessa casa morei dois anos. Antes de fazer três anos mudámos de casa, fomos para um apartamento na rua de Cabo Verde, n.º 1, 2.º C. Passados uns meses a minha irmã Marta nasceu, no dia 3 de Maio de 1998. Fui para uma cre-che em Montemor. Desde esse tempo o meu pai tem-nos posto, a mim e à minha irmã, nas escolas de Montemor.

Quando  a  casa  estava  em  obras  o  meu  pai  teve  muitos  amigos  a trabalharem com ele. Além da planta, o meu pai também quis cons-truir a sua casa, até teve um ajudante do Uzebequistão, com um dente de ouro, o Fáseli. Havia também o Joaquim, que é pai de uma amiga minha e o Carlos, pedreiros. Um amigo do meu pai, o Careca, vinha ajudar quando era preciso. Nas madeiras vieram o Sr. José, o filho e o genro, que também é Carlos. O Sr. Vitor, electricista, trouxe o terceiro e último Carlos que por lá passou. O canalizador, o Sr. Sequeira, vinha com um ajudante, o Tiago, que toca numa banda de garagem à noite e estuda viola de dia. O Sr. Fernando dos ferros e o Vasco da cozinha, que é pai de um colega da Marta na escola primária, também ajudaram.

A  minha  casa  tinha  uma  porta  no  andar  de  cima,  que  agora  é uma  grande  janela  voltada  para  o  Castelo.  No  sítio  onde  agora  é  a porta principal, havia uma parede muito grossa que teve de ser par-

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tida à marretada. A casa tinha, e tem, um grande quintal que, em vez de  relva,  tinha  terra  e  muita  pedra,  três  laranjeiras  que  continuam no mesmo sítio e a nogueira  também, mas agora num espaço mais pequeno (numa espécie de rectângulo que não é bem um rectângulo), e também a garagem. Há um telheiro com um chão de cimento ao pé da lavandaria. É ali que almoçamos no Verão e também no Inverno, quando não está muito frio. À entrada do telheiro, do lado direito, está a mini oficina do meu pai. 

A casa por dentro é assim: entra-se e do lado esquerdo temos a cozi-nha, passamos a cozinha e temos a sala com a mesa de jantar, na sala temos «dentro da parede» a biblioteca com a secretária da minha mãe. Depois  saímos da  sala por outra porta, que é mesmo ao  lado da de saída da cozinha para a sala, e à nossa esquerda temos a despensa e a casa de banho pequena. Em frente fica a escada que vai dar ao segundo andar, é feita de madeira e tem muitos degraus (para aí uns onze, acho que  são mesmo onze) e  foi muito difícil de  fazer porque é  toda em pedaços de madeira colada, que sobraram das obras. Lá em cima, do lado direito está o quarto dos meus pais, quando se sai do quarto deles e se vai em frente vai-se ter ao meu quarto e mesmo ao lado é o da minha  irmã.  Temos  uma  passagem  entre  os  quartos,  mas  é  só  para os da casa. Ao  lado da porta de entrada para o quarto da Marta é a entrada da casa de banho e no meio, à saída de todos os quartos, é a sala de cima, com uma secretária de auxílio que o meu pai fez com o resto da madeira da biblioteca.

A minha casa tem três grande janelas com mais de dois metros vira-das para o sol, por isso de manhã nos dias de inverno o sol aquece-a. Tem portadas e é toda em madeira, mas daquela que é plantada em sítios  próprios  para  depois  ser  cortada;  e  é  feita  de  cal  e  pintada  de branco  também com  cal. No  Inverno é  quente  e  no  Verão  é  fresca. A minha casa é ecológica e eu gosto disso, porque sou muito amiga do ambiente. Também gosto de ver o Casal Novo do Rio, as pessoas que entram e saem da minha casa e o quarto dos meus pais, a partir da janela da banheira, mas a minha irmã ainda não consegue ver nada, só vê os azulejos. Pode ser que daqui a um ou dois anos ela já consiga.

No  quintal,  eu  e  a  minha  irmã  aprendemos  a  andar  de  patins  na ladeira  e  também  a  jogar  badminton.  Agora  estamos  a  aprender  a andar de skate. Esqueci-me de dizer que a minha mãe sempre pediu ao meu pai um canteiro para ela plantar os tomates cereja, o basílico e o 

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mais importante, os girassóis. Conseguiu o canteiro, mas os girassóis, o basílico e os tomates cerejas nem vê-los, só crescem ervas daninhas, algumas flores campestres e muita, mas muita salsa.

Enquanto  a  casa  estava  em  obras  e  eu  e  a  minha  irmã  lá  íamos, inventávamos brincadeiras, fazíamos cozinhados com a terra, as plan-tas e outras porcarias das obras. Durante a semana dos meus nove anos 

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viemos acampar dentro da sala. A casa já estava quase pronta, só falta-vam as madeiras para o chão do piso de cima, para a tal janela grande que era uma porta, para a biblioteca e para as escadas. Também faltava o chão em ardósia e a cozinha. No dia dos meus anos pusemos duas piscinas na terra e uma mesa com o bolo e uns petiscos no telheiro. Ao pé das laranjeiras estavam os jogos, o dos balões que se tinham que rebentar para deixar cair os doces, o do alguidar com a farinha para apanhar com a boca os rebuçados escondidos e mais alguns jogos. 

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No início do quinto ano ainda não vivia na casa de Montemor, só mais  ou  menos  em  Novembro  é  que  mudei  de  casa.  Em  princípio, no início do meu quinto ano já devíamos estar em Montemor, mas o homem das madeiras enganou-se nas medidas e elas tiveram de voltar para trás. Mas a melhor parte é que passámos lá o Natal. Normalmente nós  fazemos um grande presépio, mas naquele ano fizemos só uma árvore de natal e enfeitámos a casa toda, incluindo o bidé da parede.

Quando estávamos a  fazer as mudanças eu espetei-me num para-fuso quando estava a montar a casa das barbies, que já estava completa e era assim: tinha no rés do chão a sala de jantar com duas mesas e uma 

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entrada para a cozinha; no primeiro piso tinha o quarto dos donos, a casa de banho e o quarto das crianças; no segundo e último piso tinha a sala com o bar e o escritório; ao nível do primeiro piso tinha um jardim e o veterinário, por baixo estava a garagem com dois carros, duas bici-cletas e uma mota de água. Quando o meu pai fez a casa das barbies tinha um grande telhado vermelho, mas depois tirámos, porque assim dá mais arrumação para os livros.

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Há mais ou menos um ano e meio nasceram, numa casa meia em ruínas ao lado da nossa, quatro cães muito bonitos, debaixo de umas tábuas. Foi a nossa vizinha que nos avisou, a nós e a outras raparigas que moram aqui ao lado. Nesse dia íamos para a Figueira e os cães já tinham nascido há algum tempo, nós pedimos à nossa mãe para ficarmos com um, mas ela não deixou e logo nesse dia, a seguir à nossa partida para a 

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Figueira, o «nosso cão» arranjou dona. As nossas amigas ficaram com outro e os outros dois acabaram por ficar com duas pessoas da vila. 

A  seguir ao nascimento dos cães nasceram uns gatos, mas a mãe deles morreu, estava doente, era tão magra, havia quatro gatos bran-cos,  um  malhado  e  um  siamês.  Também  pedimos  um  à  nossa  mãe mas, para variar, ela não deixou.

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Só havia um gato que se chegava ao pé de nós, era branco e tinha olhos azuis. Como esse era o menos medricas e o mais meigo, tínha-mos de ter cuidado para ele não ir atrás de alguém que lhe fizesse mal. Uma vez, quando chegávamos de férias, ele arrancou o terere à Marta e ela ficou triste, mas depois passou-lhe. Um dia aconteceu uma coisa terrível, o gato  foi atropelado e morreu, a partir desse dia deixámos de ligar aos gatos porque já nenhum vinha ter conosco. E nunca mais 

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nasceram mais cães ou gatos porque a casa abandonada foi comprada e está a ser recuperada...

No dia de anos da minha avó materna apareceu no meu quintal um periquito fêmea, azul e branca. Nós arranjámos uma caixa com bura-cos, daquelas que se desmontam, para ela viver enquanto não arranjá-vamos gaiola. Fomos à mercearia, que é mesmo aqui ao lado, comprar 

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alpista e com um cesto de lado fizemos-lhe uma bela cama. Passados alguns dias o meu avô trouxe-nos uma gaiola velha que lá tinha e depois deram-nos um periquito macho verde. Mais tarde ofereceram-nos uma espécie de ninho para eles porem ovos, mas até agora nada.

Há uns dias apareceu cá em casa uma rola bebé e nós fizemos-lhe uma casa, mas ela só cá passou a noite, comeu tudo e depois no dia seguinte foi-se embora.

  —  Um desenho da Marta  —  

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Miguel Figueira (Coimbra, 1969) arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Uni-versidade do Porto (1993) foi profissional liberal em Lisboa (1993–1997) e coordenou o Gabinete Técnico Local de Montemor-o-Velho (1997–2002). Actualmente é arquitecto em Montemor-o-Velho.

  —  Maria na obra —  

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José Capela

Pedro Gadanho

Godofredo Pereira

André Tavares

Rui Ramos

Luis Urbano

Inês Moreira

Susana Ventura

Guilherme Wisnik

Miguel Figueira

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utilidade da arquitectura: 0+6 possibilidades

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