Miguel Real

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TodosOs Nomes » nm #837 » entrevista 32 » noticiasmagazine 15.JUN.2008 Miguel Real Escritor,especialista em Cultura Portuguesa,o seu assunto central é Portugal,tema para ele infinito,desdobrando-se pelos vários géneros que abraça, parecendo estar à vontade em todos eles.Diz que não pensava ser escritor,que escrevia confissões para si próprio,que não mandava para nenhum editor.Parece satisfeito,ainda um pouco aturdido com o imponderável sucesso,mas grato,luminoso,cheio de futuro.Sente-se nele uma tranquila inquietação,diariamente exposta ao mar dasAzenhas de Sintra,no qual podemos vê-lo colher o sopro singular que faz dele um autor poderoso. TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Pedro Azevedo No texto que introduz o livro Memórias de Bran- ca Dias, refere-se a dado passo ao «encanta- mento que só a literatura concede». Fale-me desse encantamento. A literatura sofre o processo da arte, que é conseguir transmitir a uma vida normal um suplemento de delírio suficiente para dar sentido a essa vida. A literatura, como toda a arte, não é um produto como outro qual- quer, como por exemplo sabonetes ou piz- zas. A literatura é algo mais sagrado do que isso. Escrever uma página por dia é como ir à missa todos os dias. Acreditando-se num deus que não existe, que é o deus da literatu- ra. Em que os santos são os escritores. O Pa- dre António Vieira fez anos no outro dia, e fez-se uma santificação da obra dele, uma sacralização. O encanto que a literatura traz é dar um sentido, unificado, harmónico e be- lo, à vida de uma pessoa que é igual a todas as outras. Como eu, que sou professor, sou pai, sou amigo, sou sintrense, tal como mi- lhares de outras pessoas, que são professo- ras, pais ou mães, amigas, sintrenses. Encon- trei na literatura, sobretudo no ensaio e no romance, essa unificação das partes avulsas da minha vida. Digamos que eu seria um ho- mem extremamente fragmentado e dotado apenas de uma felicidade medíocre – que é a felicidade normal do cidadão. Sim, a felici- dadezinha (o O’Neill diria «a vidinha») En- contro na literatura esse quid, esse patamar superior que me dá grata felicidade. E dá-me tanto mais quanto eu não quis (nem quero) fazer carreira de escritor, nunca pensei ser escritor, e as coisas foram acontecendo to- talmente por acaso, muito suscitadas por si- nais, e pressões exteriores, mais do que por grandes vontades interiores. Mas a partir da Voz da Terra, em 2005, comecei efectiva- mente a ter uma disciplina muito grande. Em que consiste, em termos práticos, essa dis- ciplina do «seu» escritor? Levanto-me às seis da manhã para escrever. Mas escrevo a qualquer hora do dia ou da noi- te, em qualquer sítio. Escrevo como estou a respirar. D. Francisco Manuel de Melo dizia «quantas horas vivo, assim escrevo». Escre- via na prisão, escrevia nos barcos, até na vés- pera da guerra da Catalunha, ele passou a noi- te a escrever. Eu sou assim também, escrevo na casa de banho se for preciso, em qualquer sítio, sobre qualquer tipo de papel. Quando não tenho papel, escrevo na mão – depois passo para o papel. Tenho uma dificuldade: escrever ficção directamente para o compu- tador. Quando sou obrigado a fazê-lo, impri-

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Sarah Adamopoulos entrevista o escritor Miguel Real

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32»noticiasmagazine 15.JUN.2008

Miguel Real Escritor,especialistaem Cultura Portuguesa,o seu assunto central é Portugal,temapara ele infinito,desdobrando-se pelos vários géneros que abraça,parecendo estar à vontade em todos eles.Diz que não pensava serescritor,que escrevia confissões para si próprio,que não mandavapara nenhum editor.Parece satisfeito,ainda um pouco aturdidocom o imponderável sucesso,mas grato,luminoso,cheio defuturo.Sente-se nele uma tranquila inquietação,diariamenteexposta ao mar das Azenhas de Sintra,no qual podemos vê-locolher o sopro singular que faz dele um autor poderoso.TEXTO Sarah Adamopoulos¬ FOTOGRAFIA Pedro Azevedo

No texto que introduz o livro Memórias de Bran-ca Dias, refere-se a dado passo ao «encanta-mento que só a literatura concede». Fale-medesse encantamento. A literatura sofre o processo da arte, que éconseguir transmitir a uma vida normal umsuplemento de delírio suficiente para darsentido a essa vida. A literatura, como toda aarte, não é um produto como outro qual-quer, como por exemplo sabonetes ou piz-zas. A literatura é algo mais sagrado do queisso. Escrever uma página por dia é como irà missa todos os dias. Acreditando-se numdeus que não existe, que é o deus da literatu-ra. Em que os santos são os escritores. O Pa-dre António Vieira fez anos no outro dia, efez-se uma santificação da obra dele, umasacralização. O encanto que a literatura trazé dar um sentido, unificado, harmónico e be-

lo, à vida de uma pessoa que é igual a todasas outras. Como eu, que sou professor, soupai, sou amigo, sou sintrense, tal como mi-lhares de outras pessoas, que são professo-ras, pais ou mães, amigas, sintrenses. Encon-trei na literatura, sobretudo no ensaio e noromance, essa unificação das partes avulsasda minha vida. Digamos que eu seria um ho-mem extremamente fragmentado e dotadoapenas de uma felicidade medíocre – que éa felicidade normal do cidadão. Sim, a felici-dadezinha (o O’Neill diria «a vidinha») En-contro na literatura esse quid, esse patamarsuperior que me dá grata felicidade. E dá-metanto mais quanto eu não quis (nem quero)fazer carreira de escritor, nunca pensei serescritor, e as coisas foram acontecendo to-talmente por acaso, muito suscitadas por si-nais, e pressões exteriores, mais do que por

grandes vontades interiores. Mas a partir daVoz da Terra, em 2005, comecei efectiva-mente a ter uma disciplina muito grande. Em que consiste, em termos práticos, essa dis-ciplina do «seu» escritor?Levanto-me às seis da manhã para escrever.Mas escrevo a qualquer hora do dia ou da noi-te, em qualquer sítio. Escrevo como estou arespirar. D. Francisco Manuel de Melo dizia«quantas horas vivo, assim escrevo». Escre-via na prisão, escrevia nos barcos, até na vés-pera da guerra da Catalunha, ele passou a noi-te a escrever. Eu sou assim também, escrevona casa de banho se for preciso, em qualquersítio, sobre qualquer tipo de papel. Quandonão tenho papel, escrevo na mão – depoispasso para o papel. Tenho uma dificuldade:escrever ficção directamente para o compu-tador. Quando sou obrigado a fazê-lo, impri-

ria, antes a ilumine». O que faz com a Histórianos romances históricos que escreve?Antigamente, até ao 25 de Abril, pensava-seque o romance histórico era a reprodução,mais ou menos exacta, da realidade. Um au-tor era tão mais fiel ao romance quantomais fiel fosse à História. Pelo menos desdeos contos do Borges. Mas também em Por-tugal, desde o Memorial do Convento que setem uma outra concepção do romance his-tórico. O romance histórico trata efectiva-mente de um determinado período históri-co, num determinado lugar, mas não tem dereproduzir fielmente, veridicamente, aprópria História. Pelo contrário. O roman-ce histórico deve, reproduzindo a realida-de, abrir outros horizontes. Mostrar as ou-tras possibilidades que aquela sociedade ti-nha e não desenvolveu. Nesse sentido, oBorges é magistral, e a dado passo o que es-creve deixa de ser romance histórico paraser romance fantástico. O romance históri-co pretende por um lado dar numa visão pe-quena, ficcional, o modo como as pessoassentiram, se emocionaram, casaram, tive-ram filhos, viveram, foram felizes ou infeli-zes, morreram. Até ao 25 de Abril conside-rava-se que isso chegava, e o grande roman-cista histórico era aquele que reproduziacom absoluta fidelidade uma rua, uma ca-

sa, a roupa de uma mulher, era alguém quedocumentava, sim. Hoje considera-se que oromance histórico tem como tarefa daruma visão condensada de uma sociedade deoutro tempo, mas dando inteira liberdadeao autor para trabalhar esse tempo, não sónos sentimentos eternos dos homens (oamor, a amizade, a tragédia, etc.), mas tam-bém mostrar facetas que estavam contidasmas que não foram realizadas. A definiçãoacadémica determina que o romance histó-rico aconteça até três gerações antes do au-tor, o que significa que o autor não pode terfalado com ninguém que tivesse vivido naépoca sobre a qual se debruça. Iluminar étambém isso, é mostrar, de relance, os sen-timentos que as pessoas tinham na época. O romance histórico parece outra vez um géne-ro muito amado.Tenho uma explicação para isso: a seguir ao25 de Abril nós ficámos mal com a nossa His-tória. A História era o fascismo, era os Des-cobrimentos, era o império de onde fomosexpulsos. O primeiro grande livro de recon-ciliação com a nossa História é o Memorialdo Convento, de Saramago, que nos reconci-liou com o século XVIII, com o D. João V,com as grandes obras dos portugueses. O se-gundo é A Voz dos Deuses,do João Aguiar, queé um romance sobre Viriato, e que nos re-

concilia com o nosso passado mais remoto.O terceiro é A Casa do Pó,de Fernando Cam-pos, que nos reconcilia com o império.Quando entramos na Europa há uma gera-ção que começa a apagar tudo o que era amemória portuguesa, e o Padre AntónioVieira praticamente desaparece. Mas agora,que já estamos no império, que já sabemosfalar inglês, que já temos carro e cartão decrédito (havendo até pessoas que já têmduas casas), começamos a dar importância ànossa cultura. Agora que já somos iguais aosfranceses e aos ingleses, já podemos outravez valorizar a nossa própria História. E daío romance histórico estar na moda, porquea nossa mentalidade colectiva precisava deencontrar culturalmente as suas raízes.Penso que é essa sua abordagem ao romancehistórico, através também da qualidade da suaescrita, que surpreende. Uma escrita interior,feita com o sangue e as entranhas. Surpreen-de também o seu à-vontade a tomar para si avoz das mulheres (Branca Dias, Snu Abecas-sis). Que ousadia é essa?É uma escrita quase pós-moderna, sobre umpassado histórico. Sobre as mulheres, não te-nho explicação para isso. Apaixonei-me porelas, pela Branca Dias, e pela Snu. No caso daSnu, estava a apetecer-me escrever um ro-mance de amor, e a ideia era a de que não há

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mo, e depois emendo. Emendo imenso. Façooito, dez revisões. Gasto papel, tinta... Levan-to-me e começo logo a escrever. Depois douaulas, e estou na escola. O resto do dia estousempre a escrever. A ler e a escrever. Depois aInês [a filha] chega de Lisboa, a Filomena [amulher] chega de Sintra, faço um pouco de vi-da familiar. Vejo pouca televisão, ouço muitamúsica, como deixei de ter os CD [MiguelReal perdeu tudo num incêndio] passei a ou-vir a Antena 2, que me dá uma grande pazmental. E como perdi muitos livros, passei afrequentar a biblioteca. O ordenado de pro-fessor não dá para comprar livros. Nem euqueria [comprar livros], já não me apetece terlivros. Tenho portanto uma rotina tranquila.Aos fins-de-semana vou muito às livrarias, àssessões de autógrafos, vou a congressos, vejoamigos. Se calhar ficou decepcionada com aminha descrição dos meus dias.Nada (risos). Sei que tem um livro novo sobre oPadre António Vieira.Sim, tenho até dois. Um romance sobre a vi-da dele no meio dos índios Tupis, e um en-saio sobre a vida e a obra dele.

Que ligação fortíssima é essa com o Padre An-tónio Vieira?É uma ligação que é fácil. Quando temos apresunção de que somos escritores, começa-mos a ler o Padre António Vieira e sentimo--nos tão gafanhotos, tão formigas, que fica-mos em absoluto fascínio perante a escritadele. O Padre António Vieira é indubitavel-mente o melhor prosador português. NemEças, nem Camilos... Fernando Pessoa e Ca-mões estão ao nível dele, mas na poesia. Des-cobri o Padre António Vieira há talvez dezanos. Aliás, na minha vida começou tudo hácerca de dez anos (risos). Em 2001 concorria uma bolsa do Centro Nacional de Culturapara fazer o itinerário brasileiro do Padre An-tónio Vieira. Andei quatro ou cinco mesespelo Brasil, por todo o lado onde ele esteve, epor outros, com o objectivo de escrever umromance. Que escrevi, mas nunca foi publi-cado. Em princípio sê-lo-á este ano. Chama-se O Sal da Terra, que é uma frase dele. Volteidepois ao Brasil, novamente com o CentroNacional de Cultura – o CNC é um pouco cul-pado desta grande paixão pelo Vieira. Uma

paixão que muitas outras pessoas têm. Quan-do pensamos que ele é um padre jesuíta, doséculo XVII, hesitamos, mas quando come-çamos a lê-lo descobrimos que ele é de factouma das mais fantásticas personagens daHistória de Portugal. Em primeiro lugar, eleé o português mais fracassado de todos ostempos. Tudo o que ele pensou, tudo o quesonhou, as profecias, os planos políticos quegizou com o D. João IV, tudo isso fracassou.Uma vez ele foi a Amesterdão para comprarvinte barcos, e só conseguiu comprar um.Tudo na vida dele era assim. Tentou casarpor duas vezes o príncipe Teodósio, que erao filho de D. João IV, nunca conseguiu. Tudoo que ele presumiu realizar na sua vida fra-cassou. Mas mesmo assim, ele assumiu sem-pre três grandes lutas de denúncia social, quesão absolutamente singulares, porque nãoencontramos mais nenhum sacerdote oumissionário a fazer o que ele fez: a luta pela li-bertação dos índios no Brasil, ao longo de vá-rios anos, continuamente ameaçado de mor-te, e depois expulso do Brasil. Chamavam--lhe abutre, diziam que ele queria os índios sópara si, e que não os dava aos colonos. Se ho-je temos os dialectos tupis no Brasil a ele tam-bém os devemos. Fez depois a defesa dos ne-gros escravos. Nunca pediu a abolição da es-cravatura, mas defendeu a humanização do

trabalho dos negros, continuadamente, àfrente dos senhores de engenho e dos gover-nadores, no púlpito das igrejas onde falava,denunciando-os a todos como autênticos la-drões do trabalho dos negros. Vieira faz equi-valer o trabalho dos negros às penas por quepassou Nossa Senhora quando Jesus Cristomorreu. Depois, a luta pelos judeus, peloscristãos-novos, ele é o primeiro a pedir o fimda diferenciação entre cristãos-novos e ju-deus, o que o marquês de Pombal veio a fazercem anos depois. Estas lutas fazem dele umhomem intrépido. Atravessou o oceanoAtlântico sete vezes, foi preso por corsários,sofreu naufrágios, perseguições... No meiode toda esta adversidade, ele é o melhor ora-dor e pregador português, alguém que trataa língua portuguesa com uma mestria quenunca foi igualada, que ao nível da prosatransformou o português numa língua bela.Qualquer país teria imenso orgulho em ter oPadre António Vieira. E lê-lo é admirá-lo, e éficar apaixonado pelo homem e pela obra. A dada altura, num dos seus livros, defende aideia de que «a ficção não reproduza a Histó-

Inovar«O romance histórico deve,reproduzindo a realidade,abrir outros horizontes.Mostrar as outras possibilidades que aquelasociedade tinha e não desenvolveu»

BINasceu em Lisboa, em 1953. É licenciado em Filosofia pelaUniversidade de Lisboa eMestre em Estudos Portugue-ses, pela Universidade Aberta,com uma tese sobre EduardoLourenço. Especialista emcultura portuguesa, MiguelReal é, actualmente,professor de Filosofia ecolaborador do «Jornal deLetras», onde faz crítica literá-ria. Da sua obra fazem parte oensaio, o romance, o teatro e afilosofia. Recebeu o PrémioRevelação de Ficção daAPE/IPLB (O Outro e o Mesmo),o Prémio Revelação de EnsaioLiterário da APE/IPLB(Portugal – Ser e Representa-ção), o Prémio LER/Círculo deLeitores (A Visão de Túndalopor Eça de Queirós) e o PrémioLiterário Fernando Namora (AVoz da Terra).

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tante e tão romântico quanto um primeiro.Demonstrar também que não há o amoreterno. O amor é eterno enquanto dura.O seu assunto, no fim de contas, é sempre Por-tugal.Sim, a cultura portuguesa. Até certa altura,mais do que o romance, praticava sobretu-do o ensaio. E sempre me fez imensa im-pressão esta capacidade portuguesa paraora nos vangloriarmos ora chorarmos, es-ta ciclotomia contínua entre a esperança eo fracasso. Quando foi a Expo’98 tínhamose demonstrávamos uma alegria e um orgu-lho em ser portugueses, mas em 2000 já es-távamos todos a chorar. Essa capacidade desofrimento, de auto-humilhação peranteos outros povos, sempre me impressionou.Há uma mágoa fortíssima que não conse-guimos arredar do coração, se à tarde be-bemos um tinto e comemos umas sardi-nhas e até parecemos felizes, à noite já es-tamos derrotados. Acho que conseguiencontrar uma explicação para isso n’ AMorte de Portugal. Ao longo da nossa Histó-ria, nós sofremos quatro grandes traumas,

que dão origem a esse contínuo ciclo de su-cessos e fracassos. O complexo viriatino, deViriato, que nos faz considerar-nos peque-nos, humildes, porém fomos à Índia. Valorosos, que apenas na adversidade conse-guem superar-se. Exactamente. Mas depois perdemos a in-dependência, e surge o complexo vieirino:fomos grandes, havemos de voltar a sê-lo, eseremos sempre grandes pelo Quinto Im-pério. É a grande tese profética do PadreAntónio Vieira: a que acredita que Portugalvai dar uma nova luz ao mundo, uma luz depaz, harmonia, amor e abastança. Os por-tugueses vão trazer isso ao mundo inteiro.Através dos missionários, e dando eleexemplo com a sua própria vida. Uma projecção absurda num futuro imaginário.Mais do que absurda, delirante. O futuro,para Vieira, era no ano de 1666, o ano daBesta, porque ele era esotérico. E no entan-to, no momento glorioso de Portugal, eleestava preso pela Inquisição nos subterrâ-neos de Coimbra. Mas mesmo assim nãodeixou de acreditar no Quinto Império, atéà morte. Esse sonho de Vieira nunca se rea-lizou, e, cem anos depois, veio o marquêsde Pombal dizer que nós éramos pobres,pobres, miseráveis, inferiores a qualqueroutro povo europeu, e aqueles que expul-

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um só amor para toda a vida. Pedro e Inês éum amor eterno, D. Pedro está em Alcobaçavirado para o túmulo de Inês, e quando res-suscitar, no fim dos tempos, a primeira coisaque vai ver é o rosto de Inês. Mas hoje (en-tenda-se finais do século XX, princípios doXXI) pode haver um segundo amor, tão feliz,tão romântico, tão estimulante e entusias-mante quanto um primeiro amor. Mas nosanos oitenta, quando Snu e Sá Carneiro apa-reciam em todo o lado, não era assim, e eleseram aliás imensamente criticados por to-dos: pela Igreja, por Mário Soares, pelo Par-tido Comunista, e até pelo seu próprio parti-do. Não tive a intenção de tomar para mim avoz das mulheres, por amor de Deus, mas so-bretudo nos monólogos, e nos romances in-timistas, é um facto que me sinto mais à von-tade a descrever as mulheres do que os ho-mens. Já em termos sociais, económicos,reais, políticos, sinto-me mais à vontade a re-tratar os homens.A que atribui isso?A traumas infantis, porventura, não sei (ri-sos). Talvez a pequena explicação para estapropensão que me faz interessar pelas mu-lheres nos meus romances esteja noutra coi-sa: no apagamento das mulheres. Aliás, oprimeiro manuscrito de O Último Minuto daVida de S. era o Sá Carneiro a falar.

Na altura falava-se da Snu, sim, mas à boca pe-quena.Exacto, tal como aconteceu com BrancaDias, que era uma mulher judia, cuidado,foi ela que infectou o Brasil de sangue ju-deu. Penso que é antes de mais uma sede dejustiça, que me leva a reinventar mulheresque foram felizes, que amaram, foram mu-lheres realizadas, mas que a História vem aesquecer. Tanto Branca Dias como Snu Abecassis foram,por outro lado, mulheres que enfrentaram oseu tempo.São mulheres que de certo modo abriramnovos horizontes à sociedade. Sá Carneiroe Snu anunciam o divórcio à sociedade, é apartir deles que o divórcio se vulgariza, opróprio primeiro-ministro, no final dosanos setenta, aparecia com uma mulherloura, e estrangeira, nos comícios e em to-do o lado. Mas apesar disso, Snu desapare-ce das biografias oficiais. Embora tenhafeito uma obra espantosa à frente da D.Quixote, que foi em Portugal como um céunum inferno. Em Portugal só se editavam

os velhotes, Alves Redol, Rodrigues Mi-guéis... e aparece a D. Quixote com O Del-fim, de Cardoso Pires, ou aqueles cadernosamericanos de jornalismo de investigação,sobre os negros, as mulheres, as guerras...se não se podia falar da guerra de Angolafalava-se da guerra do Vietname. Snu abreainda as portas à poesia, muito antes da As-sírio e Alvim, e até da Presença. Não são umas mulheres quaisquer, as suas he-roínas.De modo algum. São mulheres realizadas,que abrem horizontes à sociedade e que asociedade depois renega, por preconceito,evidentemente. No caso de Snu e de Sá Car-neiro, eram ambos pessoas realizadas, erambons profissionais, que já tinham tido fi-lhos, que tinham uma mentalidade euro-peia, e que a partir dos quarenta anos vivemum segundo amor fortíssimo. Andam demão dada, numa altura em que as mulheresainda davam o braço aos homens. Eles ti-nham um amor quase juvenil um pelo ou-tro, e a minha ideia foi também demonstrarque um segundo amor pode ser tão impor-

Obras publicadasEnsaioG. W. Leibniz: O Paradoxo e a Maravilha(1995).Narração, Maravilhoso, Trágico eSagrado em Memorial do Convento, deJosé Saramago (1996).Introdução à Filosofia da Saudade noSéculo XX (1998).Portugal – Ser e Representação (1998).Padre António Vieira e o Ano de 1666 (1999).A Geração de 90 – Romance e Sociedade no PortugalContemporâneo (2001)Eduardo Lourenço – Os Anos de Forma-ção: 1945 - 1958 (2003)O Essencial sobre Eduardo Lourenço(2003)O Marquês de Pombal e a Cultura Portu-guesa (2005)O Último Eça (2006)A Morte de Portugal (2007)Agostinho da Silva e a CulturaPortuguesa (2007)Eduardo Lourenço e a CulturaPortuguesa (2008)

FicçãoO Outro e o Mesmo (1980)Carta de Sócrates a Alcibíades, SeuVergonhoso Amante (1987)A Verdadeira Apologia de Sócrates (1998)A Visão de Túndalo por Eça de Queirós(2000)Memórias de Branca Dias (2003)A Voz da Terra (romance, 2005)O Último Negreiro (2006)O Último Minuto da Vida de S. (2007)DiárioAtlântico, a Viagem e os Escravos (2004)Teatro(Em co-autoria com Filomena Oliveira)Memorial do Convento (adaptaçãodramatúrgica para as Companhias deTeatro de Almada e de Sintra, 1999) Os Patriotas, sobre a Geração de 70(Quinta da Regaleira, 2001), O Umbigo deRégio (Teatro Trindade e Barraca, 2003), Liberdade, Liberdade! (Palácio Mantero,Sintra, 2004)1755. O Grande Terramoto (Teatro da Trindade, 2006).

Portugal«Sempre me fez imensa impressão esta capacidade portuguesa para ora nos vangloriarmos ora chorarmos,esta ciclotomia contínua entre a esperança e o fracasso».

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Memórias de Branca Dias

Adelino Gomes, certo dia ementrevista para o Públicoperguntou-lhe como é quetinha conseguido escrevertantos livros em tão poucotempo. A pergunta impõe-se,já que entre livrosdidácticos, ensaios, roman-ces, novelas, um diário etextos para teatro, MiguelReal publicou até à data maisde 25 títulos. Questionadosobre a prolífica produção,explica que talvez sejaporque escreve todos osdias – à mão, em cadernosque se vão enchendo, dandolugar a mais cadernos.Acrescenta que, idealmente,escreveria sempre sódepois de tranquilamentepensar, de ir ver o mar, de lerum livro, voltar a pensar – oque ultimamente (a braçoscom todo o tipo desolicitações,nomeadamente

colaborações para aimprensa) nem sempreconsegue. Nunca pensouser escritor, escrevia sópara si, umas «coisastristes» nuns cadernos,onde punha tudo: os filhos,os vizinhos, as notícias quelia – uma coisa fragmentada,destinada a nada ser derelevante. Mas de repentecomeçaram a aparecer unscontos. E um dia foi a BuenosAires e voltou de lá com umaideia para um livro – com queviria a ganhar o PrémioLER/Círculo de Leitores em2000 (A Visão de Túndalo porEça de Queirós). Mas mesmoassim, não se levou a sério, eprosseguiu lendo, lendoimenso, gastando metadedo ordenado em livros. Quequando se lê, é normal quese escreva. Começou entãoa escrever uns «ensaiospequeninos», coisas decarácter universitário, quenão tinham «decerto impor-tância nenhuma» para os

não-académicos. E só comBranca Dias (a personagemcentral do livro Memórias deBranca Dias) começa alevar-se (vagamente) asério. No Brasil, por ondeandou com uma bolsa doCentro Nacional de Cultura,cruzou-se certo dia com umeditor brasileiro (de ensaiose textos históricos), que aoouvi-lo falar do seu desejode escrever sobre o PadreAntónio Vieira, olhou para elecom genuína piedade (quemse atrevia assim a desejarsequer escrever sobreVieira?) e lhe disse que eledevia mas era escreversobre Branca Dias. Quem é,perguntou Miguel Real, quenunca tinha ouvido falardela. A mãe de todos nós,respondeu o editorbrasileiro. Diga-me um livroonde eu possa ler sobre ela,pediu Miguel. Não há, disse oeditor. Ela não deixou rasto,esclareceu. Tudo o que há éisto. E estendeu-lhe uma

entrada de dicionário, apartir da qual Miguel Realescreveu o romance Memó-rias de Branca Dias – trans-formando o romance histó-rico noutra cousa: a tal «quesó o encantamento da litera-tura concede». Passoumeses a pensar incessante-mente em Branca Dias, adocumentar-se sobre enge-nhos de açúcar, apaixonado,alegremente obcecado.Escreveu. Levou omanuscrito a Maria do Rosá-rio Pedreira, então editora daTemas&Debates, hoje aeditar na Quidnovi. Ela publi-cou. A primeira edição esgo-tou. Ele admirou-se daquelesucesso. Rosário Pedreirainsistiu para quecontinuasse a escrever, eele foi e escreveu A Voz daTerra (distinguido com oPrémio Fernando Namora em2005, e que considera ser o seumelhor romance). Depoisdisso nunca mais parou.

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sámos, os judeus, fizeram a Holanda, o paísmais rico do mundo de então. O marquêsde Pombal marca o complexo da humilha-ção [complexo pombalino]. Temos de seriguais aos ricos. Sócrates é um pombalinopuro, até faz impressão, demitiu o ministroda Saúde, mas em vez de dizer que foi por-que o povo não estava a gostar dele, não, ne-gou, e diz que a política para a Saúde nãovai mudar. Autoritário como o Pombal. Fi-nalmente, o complexo canibalista, que é opior de todos: a pequenina inveja, a mes-quinhez de vizinho para vizinho, de colegapara colega, luta de pequeninos galos quese digladiam para atingir um poleiro mui-to pequenino, mas que os enche a todos deorgulho contentinho. O canibalismo é umestado de contínua perseguição que os por-tugueses têm feito a si próprios, desde 1640até ao 25 de Abril. Com polícias ferozes,que matavam as pessoas. O Partido Comu-nista, por exemplo, estava para a PIDE co-mo os judeus estavam para a Inquisição. A Morte de Portugal o que é? É o fim dessePortugal que deu origem a esses quatrocomplexos [viriatino, vieirino, pombalinoe canibalista], porque entrámos na Europa,e passámos a ser um país normal, igual aosoutros todos. Vestimos como os franceses e

os ingleses, e os italianos, e todos os outrospovos, comemos o que eles comem, com osgarfos que eles também usam, temos as es-colas que eles têm, os mesmos hospitais...... e cada vez mais será assim.Exacto, até deixarmos de ser Portugal. O nosso território não vai desaparecer, maso Portugal que deu origem aos portugue-ses apaixonados, saudosos, líricos, aventu-reiros, emigrantes, e no entanto simples,humildes, está a desaparecer e vai dar ori-gem a uma região da Europa, chamadaPortugal, com museus regionais, e casas defados, mas como povo singular vamos de-saparecer. E isto é inevitável. E não vale apena chorar. Ao desaparecer esse outro po-vo que fomos, desaparece também este ci-clo de saudade e de sucesso, de aventura ede fracasso, de amor e ódio, ou seja, esta es-quizofrenia. A Europa é um caldeirão cul-tural, onde se diluem todas as culturas, fa-zendo emergir uma cultura racionalista,informatizada, técnica. A nova geração debancários, por exemplo, já não sofre comesses ciclos. Nós já não sofremos de analfa-betismo, como o antigo Portugal, sofremosde iliteracia, o que faz toda a diferença. Osdirigentes políticos de hoje não têm doresde alma. São homens europeus puros, sem

complexos, são técnicos, preparados paraoptimizar Portugal. O que lhes falta então?Faltam-lhes os grandes princípios do Por-tugal histórico, a razão para Portugal exis-tir. Se os serviços de saúde de Espanha sãomelhores do que os portugueses, então va-mos a Espanha. Somos hoje por isso umpaís sem complexos.A Morte de Portugal é apresentado como umensaiozinho despretensioso, mas julgo quecondensa ideias importantes, que mereciamsuscitar debates. É também um texto políticomuito desassombrado, e muito duro também.Está a nascer um Portugal europeu, que éum país com uma mentalidade racionalista,que apenas valoriza a eficiência, e no qual atranscendência não tem lugar. Dar sentido àvida, hoje em dia, é gozar a vida. Gozar a vi-da é ir para a farra, é ir ao futebol, beberumas cervejas, ter grande actividade sexual,ir ao Brasil apanhar sol. O homem está redu-zido a um corpo, a carne, o canal do Estadomostra reportagens sobre troca de casais,que sentido tem isto? Fazemos sacrifíciosbrutais para isto? As escolas sem dinheiropara nada, as maternidades fechadas, o de-semprego a crescer, para quê? Para baixaruns pontos percentuais num orçamento deEstado?«