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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA 5 ª REGIÃO PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA – 5ª REGIÃO Praça Visconde de Mauá, S/Nº - São José, Recife-PE, CEP 50.020-100 PABX: 0**(81) 2121-9800 - Fax: 0**(81) 2121-9899 Exmos. Srs. Desembargadores da Eg. Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo nº 2004.05.00.000264-8 Ref.: AGTR 53625-CE Agrte: UNIÃO Agrdo: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI CONTRA-MINUTA AO AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 005/2004 Ilustre Relator, O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por seu Procurador Regional da República que esta subscreve, vem, perante V. Exa., oferecer CONTRA-MINUTA ao presente Agravo de Instrumento interposto pela UNIÃO contra a decisão a qua concessiva de antecipação dos efeitos da tutela em Ação Civil Pública (Processo nº 2003.81.00.031179-8) que tramita na 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Ceará, aduzindo, para tanto, as seguintes considerações: I – DOS FATOS Tudo tem razão de ser numa Ação Civil Pública manejada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face da UNIÃO, ESTADO DO CEARÁ E MUNICÍPIO DE FORTALEZA, cujo pedido principal, em sede de julgamento de mérito, é compelir os Requeridos à prestação adequada de serviços médico-oftalmológicos e ao custeio de aparelhos necessários relacionados a essa atividade, trazendo, como leading case, a situação de um paciente, em particular, de nome Luciano Gomes da Silva, à vista de sua urgente necessidade de se submeter a uma definição médica nesse sentido, daí a razão do pleito de antecipação dos efeitos da tutela, em cognição sumária, que findou por ser concedido em 1º grau.

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PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA – 5ª REGIÃO

Praça Visconde de Mauá, S/Nº - São José, Rec i fe-PE, CEP 50.020-100 PABX: 0**(81) 2121-9800 - Fax: 0**(81) 2121-9899

Exmos. Srs. Desembargadores da Eg. Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo nº 2004.05.00.000264-8 Ref.: AGTR 53625-CE Agrte: UNIÃO Agrdo: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI CONTRA-MINUTA AO AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 005/2004

Ilustre Relator,

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por seu Procurador Regional da República que esta subscreve, vem, perante V. Exa., oferecer CONTRA-MINUTA ao presente Agravo de Instrumento interposto pela UNIÃO contra a decisão a qua concessiva de antecipação dos efeitos da tutela em Ação Civil Pública (Processo nº 2003.81.00.031179-8) que tramita na 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Ceará, aduzindo, para tanto, as seguintes considerações:

I – DOS FATOS Tudo tem razão de ser numa Ação Civil Pública manejada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face da UNIÃO, ESTADO DO CEARÁ E MUNICÍPIO DE FORTALEZA, cujo pedido principal, em sede de julgamento de mérito, é compelir os Requeridos à prestação adequada de serviços médico-oftalmológicos e ao custeio de aparelhos necessários relacionados a essa atividade, trazendo, como leading case, a situação de um paciente, em particular, de nome Luciano Gomes da Silva, à vista de sua urgente necessidade de se submeter a uma definição médica nesse sentido, daí a razão do pleito de antecipação dos efeitos da tutela, em cognição sumária, que findou por ser concedido em 1º grau.

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A pedra de toque que anima a inicial é o direito à saúde, via universalização do Sistema Único de Saúde (SUS), de que falam os arts. 196 e 198 da Constituição Federal, quando associado ao tratamento prioritário a ser dispensado aos portadores de deficiência física (leia-se: Lei nº 7.853/89), onde aí se enquadra o paciente acima em foco, por se encontrar sob o alcance de uma doença degenerativa na sua retina.

Nesse cenário, foi concedida a liminar, como tal

desafiada pelo presente Agravo de Instrumento, com pedido de efeito suspensivo, a partir da seguinte síntese de fundamentação:

a) ilegimitidade passiva ad causam da UNIÃO,

por entender que a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) lhe passaria ao largo, enquanto mais afeta aos outros entes federativos que compõem o pólo passivo da presente ação;

b) impropriedade da via eleita, à falta de dano

causado pelo braço estatal ou de qualquer interesse ditado na Lei nº 7.347/85 digno de justificá-la, além da ilegitimidade ativa do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, quando em ótica um direito individual que sequer pode ser classificado como homogêneo, já que diz respeito a um só paciente;

c) incompetência da Justiça Federal, como

reflexo mesmo da exclusão da UNIÃO da lide; d) ausência de verossimilhança das alegações

contidas na inicial, tendo presentes os seguintes subitens, a saber: d.1) a questão da “reserva do possível”, por

falta de efetiva disponibilidade financeira por parte do Estado (lato sensu);

d.2) afronta ao princípio da isonomia e ao

princípio da impessoalidade, na medida em que canalizados os recursos financeiros para atendimento a um só paciente, em detrimento de sua melhor otimização em favor de outros, na mesma situação, dada a escassez orçamentária;

d.3) natureza programática do art. 196 da

Constituição Federal, a implicar na inexistência de direito subjetivo público nessa situação;

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d.4) ofensa ao princípio da harmonia e

independência dos poderes, dada a projeção do Poder Judiciário, com a medida judicial ora hostilizada, de se imiscuir na seara do Poder Executivo, enquanto lhe cabendo a administração dos recursos públicos destinados à saúde;

d.5) ausência de previsão orçamentária, com

quebra das prioridades eleitas para o exercício fiscal;

e) irreversibilidade do provimento judicial, a considerar sua natureza satisfativa, em completo desacordo com a norma-matriz do art. 273, § 2º, do Código de Processo Civil.

Com vista dos autos, resta a esta Procuradoria

Regional da República oferecer contra-minuta ao presente recurso, desde logo consignando sua TEMPESTIVIDADE, para os fins aqui cogitados.

II – DO DIREITO

Pois bem, é de se ter como presentes, in casu, os pressupostos que justificariam a antecipação dos efeitos da tutela, na medida em que há verossimilhança nas alegações aduzidas na inicial, isso para não falar do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, e, quando em conta a delicada situação de saúde que atravessa o paciente Luciano Gomes da Silva, nada melhor do que se trabalhar com o mesmo cenário fático-probatório de que se valeu a decisão monocrática para concluir, num juízo próprio de cognição sumária, pela existência de prova inequívoca dos fatos. II.1. COMPETÊNCIA DA UNIÃO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE (LEGITIMIDADADE PARA COMPOR O PÓLO PASSIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL) O legislador constituinte não poderia ter sido mais feliz na repartição da competência, quando em conta a prestação de serviços nessa área, em particular, na medida em que o Sistema Único de Saúde (SUS) nada mais é do que a representação mais autêntica do velho sonho do federalismo cooperativo.

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O federalismo cooperativo, diz com muita propriedade Paulo Bonavides (“in” “A Constituição Aberta”, São Paulo, 2ª ed., Malheiros Editores, 1996), representa um contraponto democrático a uma certa tendência do mundo moderno de formulação ideativa do Estado (lato sensu) a partir da concentração de todos os poderes na mão de um ente central, que seria, no nosso caso, a União. É aí onde aparece a importância do federalismo cooperativo, naquilo que esse sobredito constitucionalista tão bem expõe:

“Não resta dúvida que a época tem sido de concentração de poderes e ações intervencionistas da parte do Estado, por decorrência inelutável de pressões sociais que deixam às vezes arquejante o organismo democrático das Sociedades Abertas. O problema de instituições estáveis se torna mais grave nos sistemas de governo dos países em desenvolvimento, onde a vinculação do poder com a ordem jurídica se apóia em elementos da tradição e da cultura política da sociedade, a qual basicamente não existe. E, quando tais países se organizam sob a forma federativa, o único caminho para evitar o ‘Leviatã’ unitário das burocracias tecnocráticas passa necessariamente pelo meridiano de um federalismo cooperativo, de inspiração democrática. Esse federalismo não é fechado, tanto que reconhece também por legítimo que, nas uniões federativas, certas matérias, como política exterior e defesa, pesquisa básica de grande porte, economia, finanças, planejamento e proteção do meio ambiente, com a defesa do patrimônio ecológico, tenham suas regras e decisões básicas referidas à órbita de competência do poder central” (Bonavides, op. cit., p. 432/435).

No caso do modelo pátrio, é a própria Constituição Federal que, em função de sua relevância e prioridade, elege determinadas áreas de atuação, onde aí se enquadra a seara sanitária, tidas como merecedoras de um trabalho conjunto das unidades federativas, sem qualquer exceção, e, para isso, faz valer uma técnica que combina, de um lado, a competência concorrente, onde a União tem primazia para estabelecer normas gerais em matéria de “proteção e defesa da saúde” (art. 24, XII, c/c o seu § 1º), sem prejuízo de sua suplementação pelos Estados (art. 24, § 2º) e Municípios (art. 30, II), e, de outro, aparece a competência comum, na medida em que “cuidar da saúde” é matéria que tem que ser entregue a todas as pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios – art. 23, II, CF).

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A propósito, cumpre observar que o Sistema Único de Saúde (SUS) é um laboratório por demais apropriado para essa prática do federalismo cooperativo, sendo de enfatizar que o fato da União ter sido obrigada pelo modelo constituinte a abrir mão de certa parcela de poder em favor dos demais entes federativos não implica em se eximir de uma responsabilidade que, primariamente considerada, seria até de sua exclusiva alçada, não fosse a desconcentração competencial desenhada pelos idealizadores desse modelo de Estado. Não seria demasiado enfatizar que expoentes constitucionalistas, à frente Manoel Gonçalves Ferreira Filho (“Comentários à Constituição brasileira de 1988, São Paulo, Ed. Saraiva, 1990, vol. 1), defendem uma idéia segundo a qual a competência material, sendo um reflexo da competência legislativa concorrente, isso justificaria a mesma primazia que se reserva ao ente federativo a quem toca a fixação de regras gerais, como é o caso da União, em matéria sanitária, na perspectiva acima enfocada. É bem verdade que outros doutrinadores, como é o caso de Paulo Luiz Neto Lôbo (“in” “Competência legislativa concorrente dos estados-membros na Constituição de 1988, Brasília, Revista de Informação Legislativa nº 26 (101), jan./mar. 1989, p. 100), partem da mesma idéia de que, considerando que ambas as técnicas – competência concorrente e competência comum – exigem cooperação, daí para frente a conclusão é uma só no sentido de que “não pode prevalecer a supremacia de qualquer poder”. O certo é que, seja admitindo um considerável equilíbrio de competências entre todas as esferas federativas, seja admitindo que a União tem um papel preponderante, enquanto lhe cabendo a fixação de regras gerais em matéria sanitária, de uma coisa não há como fugir, ou seja, não há como excluí-la do pólo passivo da presente relação processual. II.2. AÇÃO CIVIL PÚBLICA (VIA PROCESSUAL ADEQUADA EM FACE DE OMISSÕES ESTATAIS). O que está aqui em questão é, primordialmente, uma obrigação de fazer por parte do braço estatal, no sentido de prestar um adequado atendimento medido-oftalmológico à população, e, secundariamente, o fornecimento de aparelhos relacionados a essa atividade.

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Nessa situação, sobressai a importância da ação civil pública como instrumento adequado para fazer frente às omissões das pessoas políticas no cometimento de atribuições que lhes estariam afetas em sede de prestação de serviços de saúde, conforme delineamento traçado pelo legislador constituinte (leia-se: arts. 23, II, e 196, da CF) e infraconstitucional (leia-se: Leis nº 8.080/90 e nº 8.142/90). Mesmo que fosse o caso de se trabalhar com uma obrigação de dar, e não simplesmente de fazer, ainda assim avultaria a responsabilidade do Estado pelas omissões decorrentes de uma detrimentosa prestação de serviços de saúde à população. Na lição sempre autorizada de Cretella Júnior, “não apenas a ação produz danos. Omitindo-se, o agente público também pode causar prejuízos ao administrado e à própria Administração. A omissão configura a culpa in omittendo ou in vigilando. São casos de inércia, casos de não-atos. Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente” (“Tratado de Direito Administrativo”, VIII/210, nº 161). Assim, de pouca valia a doutrina que advoga uma distinção marcada pela sutileza entre ato comissivo como causa e ato omissivo, quando muito, como condição, sendo preferível as conclusões incentivadas pelo mestre Yussef Said Cahali (“Responsabilidade Civil do Estado”, Ed. Malheiros, 2ª ed., 1995, p. 283), ao enunciar, dentre outros, esses dois seguintes princípios:

“a) A omissão de conduta exigível da Administração, na execução de obra ou prestação de serviço, induz a responsabilidade civil do Estado pelos danos conseqüentes dessa omissão.

b) Desde que exigível a atuação estatal, seja na execução de obras, seja na prestação de serviço, a conduta omissiva da Administração na implantação das obras necessárias para evitar o dano, ou na execução do serviço, autoriza a responsabilidade civil do Estado pelos danos sofridos pelos particulares, identificada a sua causa naquela omissão das obras ou dos serviços devidos; ainda que, para tanto, tenha concorrido fatores estranhos, como fatos da Natureza, de terceiro ou do próprio ofendido, quando, então, a conduta omissiva da Administração aturará como simples concausa da verificação do evento danoso, induzindo, daí, a proporcionalização da responsabilidade indenizatória (...)”.

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Transportando essas conclusões para a hipótese em evidência, dúvidas não pairam de que, se a conduta omissiva das autoridades públicas na prestação de serviços na área de saúde seriam conducentes até mesmo à responsabilidade civil, via obrigação de dar, com tanto mais razão isso tem motivação de ser quando se objetiva, como ordem de prioridade, uma obrigação de fazer, que nada mais é do que materializar aquilo que a legislação tanto constitucional como infraconstitucional assim determinam, sem qualquer contemporização.

II.3. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA COMPOR O PÓLO ATIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL (AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM FAVOR DO DIREITO À SAÚDE E EM DEFESA DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS INDISPONÍVEIS E DE INEGÁVEL ALCANCE E RELEVÂNCIA SOCIAL).

Inegavelmente, o direito à saúde, por si só,

constitui-se num interesse difuso de tantos quantos se encontram na condição de sujeitos indeterminados que sofrem as mesmas deficiências nesse campo de atuação estatal. Por outro lado, o direito à prestação de serviços médico-hospitalares em relação a determinados titulares que compõem um plano de saúde, só para conjecturar, transformaria essa pretensão em interesse coletivo propriamente dito. E, finalmente, para nos deter na hipótese dos autos, o direito à prestação de determinado serviço de saúde – in casu, o atendimento médico-oftalmológico -, pode ser considerado à vista da esfera particular de cada paciente, de modo a caracterizá-lo como detentor de um interesse individual homogêneo

Portanto, na perspectiva da inicial, o que está

em jogo é um interesse individual homogêneo, pouco importando que aí se tenha tomado como parâmetro um só paciente (assim mesmo, só para efeito da liminar, mas não para o cenário mais abrangente traçado na ação, como um todo, quando se considerando o fundo da questão), o que, a rigor, serve apenas de paradigma (ou leading case) a todos aqueles – e não são poucos – que procuram o Sistema Único de Saúde (SUS) em busca de uma assistência médico-oftalmológica.

Fixado o presente campo de atuação como

inerente aos interesses individuais homogêneos, nem por isso afastada estaria a legitimidade do Ministério Público para promover sua tutela coletiva. Assim, não mais se justificam as discussões acerca da legitimidade do Parquet, bastando ter presente a regra-matriz constante dos arts. 127 e 129, inciso III, da Carta Magna, em função dos quais lhe incumbe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, bem assim “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

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No caso em tela, não se pode perder de vista o

inegável alcance e relevância do acesso à saúde, enquanto direito social (art. 6º, CF).

Nessa ordem de idéias, bem se vê que se justificaria à evidência a atuação do Ministério Público na defesa de interesses coletivos (lato sensu), quando menos interesses individuais homogêneos, em qualquer caso dotados de indisponibilidade e espectro social manifestos.

Por certo, não é por outro motivo que o art. 81,

parágrafo único, do Código do Consumidor – e como tal aqui aplicável, por força do art. 21 da Lei nº 7.347/85 -, disponibiliza essa atribuição ao Ministério Público, mesmo que em defesa de direitos e interesses individuais homogêneos.

Para ser ainda mais específico no tocante ao

Ministério Público Federal, é de se trazer à colação o art. 5º da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, naquilo que arrola, dentre suas funções institucionais, aquela constante em seu inciso V de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto... aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde...(letra “a”), para mais adiante, em seu art. 6º, inciso VII, letras “a” e “d”, atribuir-lhe a perspectiva de “promover o inquérito civil e a ação civil pública para “a proteção dos direitos constitucionais (onde aí se inclui o direito à saúde, de que fala o art. 196) e “outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos”.

A doutrina, em larga escala (podendo aqui ser

citada a seguinte coleção de autores: Kazuo Watanabe, “in” “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor”, Forense Universitária, 4ª ed.; Hugro Nigro Mazzilli, “in” “A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, Ed. Saraiva, 7ª ed., p. 10; Leandro Katscharowsky Aguiar, “in” “Tutela Coletiva de Direitos Individuais Homogêneos e sua Execução”, Ed. Dialética, p. 32), o mesmo podendo se dizer da melhor jurisprudência, já começam a se dar conta desse amplo espectro de atuação do Ministério Público, podendo aqui ser invocado, a respeito, decisão do Pretório Excelso, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 163.231-SP (DJU 05.03.97), à frente, como relator, o Min. Maurício Corrêa, que culminou na seguinte ementa:

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“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES. CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO. 1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). 2. Por isso mesmo, detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). 3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminadade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinadade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. 4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. 4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas

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por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal.

5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação”.

Registre-se, nesse particular, o figurino que essa matéria está tomando corpo no Pretório Excelso, cujo sentido, em última análise, é reconhecer a legitimidade do Ministério Púbico em relação àqueles interesses individuais que, embora homogêneos, são dotados de indisponibilidade ou relevância social.

Nesse sentido, extrai-se, a contrario sensu, a

posição tomada pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos RREE nº 195.056-PR e 213.631-MG (cfr. Informativo STF nº 174, de 06 a 10 de dezembro de 1999), pois, em tais ocasiões, não obstante tenha sido afastada a legitimidade do parquet em hipóteses que diziam respeito à tutela de interesses individuais homogêneos, o certo é que os membros da Corte assim o fizeram à falta de vislumbre da indisponibilidade ou relevância social que acompanhasse tais direitos.

Veja-se, a respeito, o que se cogitou no RE nº

195.056-PR, tendo por relator o Ministro Carlos Velloso, de quem se compreende a seguinte ementa:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPOSTOS. IPTU. MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMIDADE. LEI Nº 7.347, DE 1985, ART. 1º, II, E

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ART. 21, COM A REDAÇÃO DO ART. 117 DA LEI Nº 8.078, DE 1990 (CÓDIGO DO CONSUMIDOR); LEI Nº 8.625, DE 1993, ART. 25. C.F., ARTIGOS 127 E 129, III. I – A ação civil pública presta-se à defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou quando houver uma relação de consumo. Lei nº 7.324/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei nº 8.078/90 (Cód. do Consumidor); Lei nº 8.625, de 1991, art. 25.

II – Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se à defesa desses direitos, legitimado o Ministério Público para a causa. C.F., art. 127, caput, e art. 129, III.

III – O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto – no caso o IPTU – pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei 7.347/85, art. 1º, II, art. 21, redação do art. 117 da Lei nº 8.078/90 (Cód. do Consumidor); Lei nº 8.625/93, art. 25, IV; C.F., ART. 129, III), nem seria possível identificar o direito do contribuinte com “interesses sociais e individuais indisponíveis” (C.F., art. 127, caput).

IV – R.E. não conhecido” (grifos não constantes do original)”.

Dada a sua importância para o tema, avulta, nesse particular, o voto-vista proferido, nesse julgamento, pelo Ministro Sepúlveda Pertence, naquilo que avança na matéria para deixar assentada a possibilidade de legitimação do Ministério Público mesmo em caso de direitos e interesses individuais homogêneos disponíveis, enquanto dotados de interesse social à luz da Constituição Federal. Eis o que, a certa altura, assim consignou:

“E, para orientar a demarcação, a partir do art. 129, III, da área de interesses individuais homogêneos em que admiti a iniciativa do MP, o que reputo de maior relevo, no contexto do art. 127, não é o incumbir

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à instituição a defesa dos interesses individuais indisponíveis mas, sim, a dos interesses sociais. De um lado, a proteção aos interesses ou direitos individuais indisponíveis é função tradicional do Ministério Público, cujo instrumento não será, de regra, a ação coletiva, mas a ação individual, por substituição ao titular incapaz ou hipossuficiente, ou a intervenção no processo comum que lhe diga respeito (cf. J. Marcelo Vigliar, Ação Civil Pública, Atlas, 1999, p. 79). De outro lado, a eventual indisponibilidade pelo titular de seu direito individual, malgrado sua homogeneidade com o de outros sujeitos, não subtrai o interesse social acaso existente na sua defesa coletiva. Ao contrário, são de direitos disponíveis as hipóteses mais notórias de indiscutida legitimação do MP para a ação civil pública de defesa de interesses homogêneos, a começar daquela dos consumidores e dos outros casos de anterior previsão legal referidos. O problema é saber quando a defesa da pretensão de direitos individuais homogêneos, posto que disponíveis, se identifica com o interesse social ou se integra no que o próprio art. 129, III, da Constituição denomina patrimônio social. Não é fácil, no ponto, a determinação do critério da legitimação do Ministério Público”. E assim persiste, mais adiante: “Creio, assim, que – afora o caso de previsão legal expressa – a afirmação do interesse social para o fim cogitado há de partir da identificação do seu assentamento nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da República, nela consagrados.

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Afinal de contas – e malgrado as mutilações que lhe tem imposto a onda das reformas neoliberais desse decênio – a Constituição ainda aponta como metas da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Esse critério – que se poderia denominar de interesse segundo a Constituição – ainda que nem sempre explicitado em tese, parece estar subjacente a diversas decisões judiciais, algumas já citadas, que tem reconhecido a legitimação do MP para a defesa de direitos individuais homogêneos, seja ou não a hipótese simultaneamente enquadrável no âmbito da tutela dos consumidores: recorde-se, por exemplo, as questões relativas ao custo da educação privada (STF, RE 163231, pub. 26.02.97, Corrêa; RE 185.360, 2ª T . 17.11.97, Velloso, DJ 20.02.98; STJ: Resp 70.797, 13.11.95, Rosado, DJ 18.12.95 e precedentes), à seguridade social, à saúde – desde o caso dos usuários de planos de assistência ao do conjunto de trabalhadores carentes, vítimas de doença profissional oriunda das condições de trabalho de determinada empresa (STJ, Resp 58.682, Direito, RDA 207/283)”. E, finalmente, assim arremata: “Cuidei, apenas, nos limites reclamados para a solução do caso, de tentar discernir, à luz da Constituição, até onde se pode reputar legitimado o Ministério Público, à promoção da defesa coletiva de direitos individuais privados e disponíveis; só para essa discriminação de áreas – quando já não a tenha feito a lei – é que entendo adequado o critério do interesses social segundo a constituição” (com acréscimos de grifos). E o que não dizer do voto do Ministro Ilmar

Galvão, desta feita já na condição de relator do julgamento do RE nº 213.631-MG, naquilo que deixou assim pontificado:

“De admitir-se, entretanto, que, não raro, interesses ou direitos coletivos e individuais

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homogêneos, portanto, divisíveis e disponíveis, por originarem-se de uma situação fática comum, apresentam-se como que revestidos de indivisibilidade, assimilados, por esse modo, a interesses e direitos difusos, que, por sua natureza social e por sua abrangência, atingem a sociedade como um todo, hipótese em que poderão, também, ser tutelados por via da ação civil pública intentada pelo Ministério Público. O Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (apud Hugo Nigro Mazzili, in “A Defesa dos Direitos Difusos em Juízo”, Saraiva, 1995, p. 79), sumulou hipóteses dessa espécie, in verbis:

“O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade, como: a) os que digam respeito à saúde ou à segurança das pessoas, ou ao acesso das crianças e adolescentes à educação; b) aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; c) quando convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico”.

Com efeito, nessas hipóteses, o interesse não se afigura como simplesmente de grupo ou individual, ainda que homogêneo, revestindo, por igual, natureza social, aspecto em que tem caráter de interesse indivisível, razão pela qual, sem prejuízo da iniciativa dos próprios lesados, isoladamente, ou em grupo, ou mesmo, por intermédio da respectiva associação de classe, pode ser judicialmente defendido pelo Ministério Público. Na verdade, não apenas pode, mas deve o Ministério Público assumir a defesa de quaisquer direitos ou interesses, sempre que revelada conveniência para a sociedade, como um todo, independentemente de tratar-se de interesses e direitos que podem, por igual, ser judicialmente defendidos por eventuais prejudicados perfeitamente identificáveis.

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Não foi sem razão, portanto, que a Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) incluiu o Ministério Público no rol dos legitimados para a ação coletiva nele prevista (arts. 82, I, e 91), dispositivos mandados aplicar à ação civil pública pelo art. 117 do referido diploma legal. É óbvio que tais regras, conforme observa o ilustrado Hugo Nigro Mazzilli, não legitimam o Ministério Público a pleitear a reparação do dano sofrido por determinados consumidores lesados pelo fabricante de certa espécie de bens, o mesmo, entretanto, não se podendo dizer relativamente aos bens fabricados com defeito ou de serviços prestados em obediência à lei. Nessas circunstâncias, a rigor, dois são os interesses lesados: um, de natureza divisível, individual, subjetiva, cuja defesa cabe ao próprio lesado; e outro, de caráter indivisível, coletivo e difuso, de interesse social, cuja proteção se impõe ao Ministério Público. Da segunda espécie, desenganadamente, os interesses que respeitam à saúde, à educação, ao transporte público coletivo, à segurança dos consumidores, etc., problemas que, enfim, ficariam sem solução, com sério prejuízo para o grupo social, não pudessem ser objeto da ação do Ministério Público, dada, entre outras razões, a grande dispersão de possíveis lesados e a pequena expressão econômica do dano a que, de ordinário, fica exposta cada um deles, fatos suscetíveis de dissuadi-los do recurso ao Poder Judiciário. Nesse sentido, o RE 163.231, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado pelo Plenário, em 26.02.97. No caso dos presentes autos, cogita-se de taxa municipal exigida dos proprietários e possuidores de imóveis situados na sede municipal tida pelo Ministério Público como indevida por inconstitucional”. E, no final, fez a seguinte distinção:

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“Sem dúvida, não se configura, aí, a hipótese de que, acima, se cuidou, seja, de situação de que decorre, a um só tempo, direitos individuais homogêneos e interesse social, de natureza difusa, posto nela não afetado interesse da sociedade, como um todo, mas apenas de parcela dessa, representada pelos titulares de domínio ou posse sobre imóveis urbanos” (grifos acrescentados dada a pertinência com a situação dos autos). Destarte, forte nessa última hipótese tratada no

voto acima em destaque, bem se vê que em tudo se identifica com a situação dos autos, na medida em que aqui está em jogo, a um só tempo, uma ofensa a um direito constitucional indisponível, assim se entendendo o efetivo exercício ao direito à saúde, como tal conjugado a um inequívoco interesse social, o que justamente justifica a legitimidade do parquet.

De igual modo, nessa perspectiva de trazer à

colação a tendência atualmente reinante nos tribunais superiores, nada melhor do que se valer de um precedente do Superior Tribunal de Justiça, o qual, mutatis mutandis, diz respeito igualmente a interesses individuais homogêneos no campo da saúde.

A propósito, o seu teor:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DANOS CAUSADOS AOS TRABALHADORES NAS MINAS DE MORRO VELHO. INTERESSE SOCIAL RELEVANTE. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. 1. O Ministério Público tem legitimidade para ajuizar ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos, desde que esteja configurado interesse social relevante. 2. A situação dos trabalhadores submetidos a condições insalubres, acarretando danos à saúde, configura direito individual homogêneo, revestido de interesse social relevante a justificar o ajuizamento da ação civil pública” (Resp nº 58682/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJU 16.12.96).

Por conseguinte, do que se colhe do apanhado de todas as decisões acima estampadas, conclui-se que, a menos que se queira, em completo desvirtuamento da linha mestra ditada na

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Constituição Federal, afastar o caráter de indisponibilidade do direito à saúde, resta concluir que, ainda assim, remanesceria a legitimidade do Ministério Público Federal pelo só aspecto de sua relevância social, sendo, como efetivamente o é, um interesse dotado de tal dimensão, a teor do art. 6º da Constituição Federal.

II.4. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL (DECORRÊNCIA NECESSÁRIA DA PRESENÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NO PÓLO ATIVO E DA UNIÃO NO PÓLO PASSIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL).

A competência da Justiça Federal é uma decorrência necessária das presenças do Ministério Público Federal, no pólo ativo, e da União, no pólo passivo, como acima enfatizado, sendo desnecessário se aprofundar novamente na questão, senão fazer remissão, no particular, às razões ali expendidas.

No mais, é o bastante trazer à colação as seguintes

decisões do Superior Tribunal de Justiça:

“PROCESSUAL CIVIL – CONFLITO DE COMPETÊNCIA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL CONTRA A UNIÃO E OUTROS (...)”.

“Se a ação civil pública é promovida pelo Ministério

Público Federal contra União, a competência para processar e julgar o feito é da Justiça Federal (...)” (CC nº 25.448/RN, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 17.06.2001, p. 108).

“CC - CONSTITUCIONAL - COMPETÊNCIA - Em se

evidenciando que a petição (...) inclui a União Federal, no pólo passivo da relação processual, a competência se firma em favor da Justiça Federal” (CC nº 12.930-3 - TO, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJU de 11.09.95).

Na mesma linha, o entendimento de alguns tribunais regionais federais, a considerar os seguintes precedentes:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE-SUS (...)”

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- É competente a Justiça Federal para processar e julgar Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal objetivando a anulação de contrato de prestação de serviço de assistência médica, com recursos do Sistema Único de Saúde-SUS, sem o prévio procedimento de licitação (...)” (TRF/1ª Região, Agravo nº 0101948, Rel. Juiz Mário César Ribeiro, DJU 18.05.98, p. 137).

“PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MPF. Se a ação proposta pelo MPF está incluída dentro de suas atribuições, previstas na CF/88 e na LC nº 75/93, como é o caso dos autos, basta esse fato para legitimar o Parquet Federal para a causa e, consequentemente, a Justiça Federal é a competente para o processo e julgamento do feito (...)” (TRF/4ª Região, Apel. Cív. Nº 2001.04.01.065054, Rel. Carlos Eduardo Lenz, DJU 25.04.2002, p. 471).

II. 5. INOPONIBILIDADE DA EXCEÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL

Por influência de doutrinadores germânicos, procura-se aqui agregar mais um complicador à efetivação dos direitos sociais em nosso país, esquecendo-se que é muito cômodo condicionar, sob o pressuposto da disponibilidade orçamentária, a implementação de políticas públicas de saúde em países de primeiro mundo, tamanha assistência que dispõem seus cidadãos ao longo da vida, de modo que os agravos daí decorrentes não têm a mesma urgência peculiar a países periféricos, como é o caso do Brasil, onde o valor “vida”, de tanto que assume uma dimensão fluída ao sabor das necessidades humanas, vive em constante “corda bamba”.

Por outro lado, não se pode emprestar um

caráter absoluto à cláusula da “reserva do possível”, de que se vale o Estado como condicionante, em nome da chamada “regularidade fiscal”, para tudo aquilo que diga respeito à prestação material de serviços públicos – aí incluídos aqueles inerentes à saúde -, sob pena de se transformar em “letra morta” a efetivação dos direitos sociais, de sede constitucional (art. 6º, CF).

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Isso foi muito bem analisado por Andreas Krell (“in” “Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha : os (des)caminhos de um Direito Constitucional “Comparado””, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 53/54) o qual, com a autoridade de constitucionalista de berço germânico, ao mesmo tempo vivenciando a realidade brasileira, assim expõe:

“(...) Os problemas de exclusão social no Brasil de hoje se apresentam numa intensidade tão grave que não podem ser comparados à situação social dos países-membros da União Européia.

Pensando bem, o condicionamento da realização de direitos econômicos, sociais e culturais à existência de “caixas cheios” do Estado significa reduzir a sua eficácia a zero; a subordinação aos “condicionantes econômicos” relativiza sua universalidade, condenando-os a serem considerados “direitos de segunda categoria. Num país com um dos piores quadros de distribuição de renda do mundo, o conceito de “redistribuição” (Umverteilung) de recursos ganha uma dimensão completamente diferente. Não é à toa que os estudiosos do Direito Comparado insistem em lembrar que conceitos constitucionais transplantados precisam ser interpretados e aplicados de uma maneira adaptada para as circunstâncias particulares de um contexto cultural e sócio econômico diferente, o que exige um máximo de sensibilidade. O mundo “em desenvolvimento” ou periférico, de que o Brasil (ainda) faz parte, significa uma realidade específica e sem precedentes, à qual não se podem descuidadamente aplicar as teorias científicas nem as posições políticas trasladadas dos países ricos. Assim, a discussão européia sobre os limites do Estado Social e a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode absolutamente ser transferida para o Brasil, onde o Estado Providência nunca foi implementado”.

De todo o modo, mesmo que se entenda – e isso admitindo só por respeito à dialética do debate – que seria o caso de se invocar a cláusula da “reserva do possível” em situações, como a

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presente, então, a título de contraponto, resta chamar atenção para uma solução que está sendo sugerida por alguns estudiosos do tema, naquilo que transfere ao Estado o ônus da prova para demonstrar, judicialmente, a existência de motivos fáticos razoáveis para deixar de cumprir a prestação social a que está comprometido, por disposição constitucional, como é o caso da saúde, para só então o Poder Judiciário poder se pronunciar sobre a razoabilidade dessas ponderações. Nesse sentido, Gustavo Amaral (“Interpretação dos Direitos Fundamentais e o Conflito entre Poderes”, “in” “Teoria dos Direitos Fundamentais”, RJ, Ed. Renovar, 1999, p. 112), verbis:

“Não quer isso dizer que seja outorgada ao Estado a potestade de acrescer após a redação de cada direito social positivo a cláusula si voluero, alijando a questão de qualquer controle jurisdicional. A reserva do possível significa apenas que a concreção pela via jurisdicional de tais direitos demandará uma escolha desproporcional, imoderada ou não razoável por parte do Estado. Em termos práticos, teria o Estado que demonstrar, judicialmente, que tem motivos fáticos razoáveis para deixar de cumprir, concretamente, a norma constitucional assecuratória de prestações positivas (...)”.

De qualquer forma, mesmo admitindo a favor do Estado a oponibilidade da exceção da cláusula da “reserva do possível”, isso só seria razoável em relação a outros direitos sociais, mas não no que diz respeito à saúde pública, a considerar a realidade atual, por demais promissora, em termos de regularidade orçamentária. Não se pode perder de vista que há mais de dez anos o Governo Federal vem procurando dar uma estabilidade à saúde pública, primeiro, com a criação, em 1993, do Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira (IPMF), posteriormente transformado na atual Contribuição sobre Movimentação Financeira (CPMF), cuja alíquota, hoje em torno de 0,38%, representa uma importante ferramenta para o incremento de receitas nesse setor, em particular, o mesmo podendo se dizer das recentes emendas constitucionais, como enfatizado pela Profª Ana Maria Malik, da Fundação Getúlio Vargas, ao assim discorrer:

“Ao final do ano 2000, é introduzida uma importante alteração na forma de financiamento global do sistema de saúde. O Congresso aprova a Emenda Constitucional nº 29, prevendo que o orçamento

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federal par saúde terá reajustes automáticos segundo a variação do valor nominal do PIB. Mais que isso, vincula recursos estaduais e municipais para a saúde, estabelecendo um percentual mínimo dos recursos próprios destes níveis de governo para aplicação imediata, um percentual mínimo a ser atingido em 2004 e a regra para essa progressão. Estados e municípios deverão aplicar imediatamente no mínimo 7% de seus recursos próprios, devendo chegar a 12% e 15%, respectivamente (...)”. “Essa emenda pretende que sejam alcançados três objetivos: estabilização dos recursos, sua ampliação e o comprometimento de todos os níveis de governo com o financiamento. Uma estimativa do Ministério da Saúde aponta a possibilidade de crescimento de mais de 40% dos recursos dos três níveis de governo, entre 1998 e 2004, destinados a Ações e Serviços de Saúde. Deste total, os governos estaduais deverão ampliar seus gastos em mais de 60%, seguidos pelos municípios com 28% em relação aos valores de 1998 (Brasil, 2001 e 2001c) (“in” “Planejamento, Financiamento e Orçamento da Saúde: alteração no Sistema Único de Saúde nos anos 90 (a Reforma da Reforma)”, artigo publicado numa coletânea sob o patrocínio da UnB, da FIOCRUZ e do Ministério da Saúde).

Para concluir a presente seara de debate, não seria um despautério dizer que, em primeiro lugar, não há espaço para a cláusula da “reserva do possível” em países tão carentes de prestações sociais positivas, como é o caso do Brasil, e, mesmo que fosse o caso, a hipótese, em se tratando de saúde pública, é de inoponibilidade – com o perdão do neologismo – de tal exceção, a considerar a realidade orçamentária para o setor, na perspectiva acima enfocada. II.6. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA (OU DA IMPESSOALIDADE) Não há como deixar de registrar uma certa incoerência da União, ao alegar, de um lado, a existência de dificuldades orçamentárias para satisfazer a tutela antecipada, quando em conta o tratamento médico-oftalmológico do paciente Luciano Gomes da Silva, só que, a essa altura, atribui a essa decisão um sentido

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casuístico, a pretexto de se mostrar ofensiva ao princípio da isonomia (não há nem necessidade de se abordar sobre o princípio da impessoalidade, dada a sobreposição, para os fins aqui cogitados, entre ambos). Isso só reforça a idéia de que não se pode falar em indisponibilidade orçamentária em face de um tratamento médico a ser dispensado a uma pessoa, dada a urgência de sua situação, sob pena de se desenhar um quadro de falência não condizente com a realidade orçamentária que se reserva para a saúde pública em nosso país. O mais interessante de tudo é que a decisão guerreada, antes de implicar em ofensa ao princípio da isonomia, a ele conduz, enquanto instrumento de uma ação afirmativa (ou discriminação positiva) em favor dos menos afortunados, vale dizer, em prol daqueles que não dispõem de acesso mais abrangente aos serviços médico-hospitalares, ao contrário das camadas mais privilegiadas, enquanto titulares de planos privados de saúde.

Dito isso, não se pode perder de vista que o lema, hoje, é diferenciar como antídoto a discriminações históricas, como foi muito bem lembrado por Maren Guimarães Taborda, naquilo que, forte em Bobbio, assim particulariza a questão:

“Com o objetivo de colocar todos os membros da sociedade em condições iguais de competição pelos bens da vida considerados essenciais, muitas vezes é necessário favorecer uns em detrimento de outros. Introduzem-se, assim, artificialmente, ou imperativamente, discriminações que de outro modo não existiram: ‘uma desigualdade torna-se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desigualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da equiparação de duas desigualdades’”. (“in” “O Princípio da Igualdade em Perspectiva Histórica: conteúdo, alcance e direções, Revista de Direito Administrativo, São Paulo, v. 211, jan. março 1998, p. 257/258).

Traduzindo-se para o bom vernáculo jurídico, fala-se agora numa “ação afirmativa”, como soa peculiar aos ouvidos do direito norte-americano, ou em “discriminação positiva”, expressão mais próxima do europeu, mas em qualquer caso com aquela mesma projeção tão bem evidenciada por Cármen Lúcia Antunes Rocha (“in” “Ação Afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade, Brasília,

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Revista de Informação Legislativa, n. 131, ano 33, p. 286), nos seguintes termos:

“De um conceito jurídico passivo mudou-se para um conceito jurídico ativo, quer-se dizer, de um conceito negativo de condutas discriminatórias vedadas passou-se a um conceito positivo de condutas promotoras da igualação jurídica. (...) “Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático”. Pensamento outro, portanto, é a certeza da

manutenção de um status quo em favor de uma camada social mais privilegiada a quem sempre será garantida a porta franca do acesso aos serviços de saúde, diferentemente dos mais pobres, em favor dos quais só a interferência do Poder Judiciário para materializar um tratamento isonômico nesse campo que lhe é tão desfavorável, daí a importância de uma ação afirmativa (ou discriminação positiva) para amenizar essas desigualdades, onde aí se enquadra a decisão judicial ora em análise. II.7. A MAXIMIZAÇÃO DAS NORMAS PROGRAMÁTICAS DE SAÚDE (ART. 196, CF) Não se pode desconhecer que vivemos sob a influência de uma Constituição dirigente, da qual tão bem discorreu o grande Canotilho, quando de sua tese de doutorado intitulada “Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador – contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas”, cujo sentido, em última análise, não é o de proporcionar um estatuto lingüístico de todo vazio, destituído de conteúdo finalístico, mas sim operar um texto que pretende impulsionar mudanças sociais a partir de enunciação de metas e diretrizes programáticas a serem perseguidas pelo Estado e pela sociedade, como um todo. Essa perspectiva – e o que é melhor, com uma temática toda voltada para o direito à saúde - foi muito bem enfatizada por Sebastião Botto de Barros Tojal, em artigo sob título “A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado Social: O Direito Sanitário”, naquilo que assim pontifica:

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“O caráter vinculante das constituições dirigentes transcende a realização infraconstitucional das normas programáticas constitucionais para acolher também a própria atuação econômico-social do Estado (...)”. (...) “José Joaquim Gomes Canotilho assim situa o problema: “A Teoria da Constituição se pergunta em que medida pode uma lei fundamental transformar-se em programa normativo do Estado e da sociedade. A resposta, indubitavelmente, é afirmativa, observando mesmo o constitucionalista que a “definição, a nível constitucional, de tarefas econômicas e sociais do Estado, corresponde ao novo paradigma da constituição dirigente (...)”. (...) Nesses termos, o conteúdo da Constituição dirigente pode ser definido pelo conjunto de imposições constitucionais que é endereçado ao Estado e à sociedade, materializado pela atividade normativa, econômica e social a que especialmente o Estado está vinculado pelo seu dever jurídico de implementação de uma nova ordem econômica e social (...)”. (...) “Com efeito, a garantia do direito à saúde, expressamente referida no artigo 196 da Constituição, inscreve-se exata e precisamente no rol daquele conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos voltadas para a realização da nova ordem social, cujos objetivos são o bem-estar e a justiça sociais (...)”. (...) “Está, pois, o Estado juridicamente obrigado a exercer as ações e serviços de saúde visando a construção da nova ordem social, cujos objetivos, repita-se, são o bem-estar e a justiça sociais, pois a Constituição lhe dirige impositivamente essas tarefas. Note-se, a esse propósito (...) que a força vinculante do Estado e da sociedade à Constituição dirigente transcende a realização infra-constitucional das normas programáticas constitucionais, para

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acolher também a própria atuação econômico-social do Estado, até porque é o Estado também o destinatário por excelência das normas infra-constitucionais” (artigo publicado numa coletânea destinada a um Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal, sob o patrocínio da UnB, da FIOCRUZ e do Ministério da Saúde).

Por outro lado, em contraposição à idéia aqui defendida nas razões recursais da União no sentido de que não haveria direito subjetivo à prestação de serviços de saúde, dada a inspiração em uma norma programática, como assim classifica o art. 196 da Constituição Federal, é o caso de ponderar que a dicção desse dispositivo constitucional é de tal ordem a expressar uma imposição às autoridades estatais (a propósito, a seguinte passagem: “A saúde...é dever do Estado”), de modo que daí para frente existe, até mesmo por uma inegável decorrência lógica, um direito fundamental em favor do jurisdicionado.

Nesse sentido, Regina Maria Macedo Nery Ferrari (“in” “Normas Constitucionais Programáticas: normatividade, operatividade e efetividade”, São Paulo, Ed. RT, 2001, p. 229/230), quando assim explana:

“Tratando-se das normas programáticas e da produção de situações jurídicas subjetivas, é interessante ressaltar, em decorrência de sua imperatividade, que é possível admitir uma proteção ativa, isto é, o titular pode invocar, em certos e determinados casos, a execução forçada do objeto do Direito; a instauração coativa da situação de fato que configura o dever jurídico estatal, pois quem tem um direito subjetivo pode reclamar o seu reconhecimento, tanto da Administração como diante da Justiça (...)”. E assim continua:

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“Assim, é possível afirmar que nem sempre as normas programáticas apresentam-se aptas a produzir, desde logo, direitos subjetivos, mas quando isso acontece, surgem para os beneficiários situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, que serão efetivadas por prestações, positivas ou negativas, exigíveis do Estado, e quando não realizadas voluntariamente, fazem nascer para o titular do direito, uma pretensão que deverá ser veiculada pelo direito de ação, isto é, do direito de exigir perante o Judiciário a sua prestação coativa, pois ao lado da possibilidade de exigir, existe o dever jurídico de cumprir, e quando esta exigibilidade de conduta acontece do particular em face do Estado, diz-se existir um direito subjetivo público”.

O mais interessante do trabalho dessa doutrinadora é que, mais adiante, coloca justamente o art. 196 da Constituição Federal como exemplo de uma dessas normas que, embora constitucionalmente programáticas, “podem propiciar a exigibilidade efetiva da conduta determinada, o que pode ser realizável mediante prestações positivas ou negativas (op. cit., p. 230/231), o que, por outras palavras, coloca a saúde como um direito subjetivo público, à disposição de qualquer cidadão, como assim já enfatizou o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE nº 271.286/RS, Rel. Min. Celso de Mello (DJU 24.11.2000, p. 101), cuja leitura da ementa do acórdão (cfr. fls. 06/07 dos presente autos), por si só, já traça um quadro por demais favorável à perspectiva aqui enfocada. II. 8. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À SEPARAÇÃO DOS PODERES Ao Poder Judiciário está entregue a tarefa de materializar o direito ou jurisdição (como é próprio da expressão latina jurisdictio, entendido pela conjugação dos termos jus (direito) e dicere (dizer)), daí por que muitas vezes tem que apreciar algum ato ainda que provindo de outro Poder, como é o caso do Executivo, sabendo-se que assim o fazendo nada mais cumprirá senão o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, CF). Por outro lado, o esquema clássico da divisão de poderes tem que ser relativizado, sendo o caso de observar que nem os idealizadores do federalismo estadunidense (Hamilton, Jay e

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Madison) lhe sufragaram um maior rigor, tanto é assim que deles vem a noção de que teoria não significa “que os três poderes devam ser reciprocamente independentes, mas que se deve excluir que quem possua todos os poderes de um determinado setor possua também todos os poderes de um outro, de modo a subverter o princípio sobre o qual se baseia uma constituição democrática, e que portanto é necessária uma certa independência entre os três poderes para que a cada um seja garantido o controle constitucional dos demais” (apud Andréas Krell, op. cit., p. 89).

É nesse sentido que tem que ser interpretada a decisão da magistrada de 1º grau, sendo o caso, aliás, de se valer, até mesmo pela autoridade de quem já escreveu um livro sobre o assunto (cf. “O Controle Jurisdicional da Administração Pública”, São Paulo, Ed. Dialética, 1999), das razões ali expostas, verbis:

Nem afronta à separação de poderes verifica-se

na presente hipótese (...). Embora seja político e, portanto, insuscetível de interferência judicial o ato de destinação dos recursos financeiros do Governo, é certo que o Poder Judiciário não pode deixar de cumprir seu papel típico (...). E assim o faz quando analisa argumentos relativos à ausência da prestação adequada de serviços pelo Poder Público. Se, em virtude de prerrogativa que lhe é conferida, o Executivo, por omissão, deixa descoberto serviço essencial à população, cabe, sim, a intervenção judicial no sentido de corrigir a irregularidade, determinando seja efetivada a prestação, sem, contudo, definir, os valores a serem gastos, mantida, portanto, a competência exclusiva da Administração. Com estas considerações, vemos que, antes de desrespeito ao referido princípio, trata-se de verdadeira atuação no sentido de otimizar a diretriz, através de mecanismo de freio e contrapeso” (cfr. fls. 08).

II. 9. PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA DO DIREITO À SAUDE Como dizer que não existe previsão orçamentária para a realização de um serviço público, como assim alega a União, sabendo-se que a prestação aqui diz respeito a uma tarefa regular, na área de saúde pública, em nada havendo de extraordinário,

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por isso mesmo não se constituindo em quebra de qualquer prioridade eleita para o presente exercício fiscal. Aliás, nesse particular a tudo é de se fazer remissão ao que já foi exposto no item II.5, supra, quando ali procura bem evidenciar o sentido de estabilização fiscal que está assumindo o orçamento da seguridade social, aí incluído o setor de saúde pública. A se considerar a possibilidade de um só paciente trazer todo esse alvoroço à regularidade fiscal do orçamento da saúde - e o que pior, como se ele não fosse tão prioritário como qualquer outro que tenha acesso ao mesmo atendimento médico-oftalmológico -, então resta concluir que algo de muito preocupante está prestes a ocorrer nessa pauta orçamentária, sendo preferível, por isso mesmo, carrear recursos de outras áreas menos nobres (gastos exorbitantes em publicidade do governo, p. ex.). II.10. REGULARIDADE DO PROVIMENTO JURISDICIONAL DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA (INEXISTÊNCIA DE IRREVERSIBILIDADE) Na medida em que presente, na ação civil pública sob análise, uma relação de continente para conteúdo, quando em conta o pedido principal (v. item I, às fls. 37), dotado de maior abrangência – atendimento médico oftalmológico e custeio de aparelhos necessários (a tantos quantos assim necessitarem) -, frente ao de antecipação de tutela (v. letra “d”, às fls. 37), composto de um menor alcance – mesma situação anterior, só que relacionada a um paciente, de nome Luciano Gomes da Silva -, bem se vê que não há, rigorosamente falando, uma identificação entre ambos os pedidos, de modo que não se pode falar em tutela satisfativa, de caráter irreversível, quando a pretensão final está em aberto, a depender de uma solução na oportunidade da entrega da prestação jurisdicional. De qualquer maneira, é de se trazer à colação o entendimento hoje sufragado na doutrina pátria, à frente Luiz Guilherme Marinoni, naquilo que procura apartar duas grandezas conceituais, vale dizer, de um lado a “irreversibilidade do provimento”, e, de outro, a “irreversibilidade dos efeitos fáticos do provimento”, que não se confundem entre si, sabendo-se que o provimento, tal como considerado no plano jurídico, nunca pode ser tido como de caráter irreversível, admitindo-se, quando muito, o sentido irreversível dos efeitos fáticos do provimento, nesse caso por invocação sublime do princípio da proporcionalidade. Com essa fonte de inspiração, avulta a lição de Renato Luis Benucci (“Antecipação da Tutela em face da Fazenda Pública”, São Paulo, Ed. Dialética, 2001, p. 28), quando assim explana:

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“A antecipação dos efeitos do provimento final, consoante o art. 273, caput, do Código de Processo Civil, situa-se no plano fático, e não no plano jurídico, pois todo provimento judicial provisório é reversível no plano jurídico. A conclusão é que a regra que prevê a irreversibilidade fática – seguindo, neste passo, a doutrina dominante (e aí ele cita, em nota de rodapé, Marinoni, “in” Antecipação da Tutela”; Carreira Alvim, “in” “Tutela Antecipada na Reforma Processual”; Antônio Cláudio Machado, “in” “Tutela Antecipada”; Nelson Nery Jr, “in” “Atualidade sobre o Processo Civil”) – comporta atenuações, não devendo ser interpretada de modo rígido”.

E segue, mais adiante:

“Deste modo, quando o julgador defrontar-se com uma situação de dúvida, em que ou concede a antecipação, ou o direito da parte perecerá, deverá ser aplicado o princípio da proporcionalidade, devendo a tutela ser antecipada para evitar que um bem jurídico maior (como a vida do autor) seja preterido em benefício de um bem menor (como o patrimônio do réu). Assim, desde que observados os demais requisitos do art. 273 do Código de Processo Civil, a tutela poderá ser antecipada, mesmo com o risco da irreversibilidade do provimento, naqueles casos em que o magistrado, sopesando os bens ou direitos jurídicos em jogo, assim entender”.

Dessa forma, tendo por superado qualquer entendimento em contrário à possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela para a hipótese dos autos, sobretudo em se tratando, no essencial, de uma mera obrigação de fazer, daí para frente é o bastante se trabalhar com o regime jurídico desse instituto, que, como bem diz Cândido Rangel Dinamarco (“in” “A Reforma do CPC”, 2ª ed., ver. e ampl., São Paulo, Malheiros Editores, 1995), é “uma arma poderosíssima contra os males do tempo no processo”. Assim, uma vez presente prova inequívoca, ao mesmo tempo se convencendo o magistrado da verossimilhança das alegações, daí para frente é de se admitir uma espécie de adiantamento da prestação jurisdicional, via antecipação da tutela, sempre que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou mesmo –

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embora não seja essa a hipótese -, quando fique caracterizado abuso no direito de defesa, de regra mediante expedientes meramente protelatórios à conclusão do processo. A propósito desses dois critérios gerais eleitos pelo legislador para a implementação de tal instituto da tutela antecipada, quais sejam, prova inequívoca e verossimilhança do alegado, nada melhor do que se valer dos ensinamentos de Teori Albino Zavaschi (“in” “Antecipação da Tutela”, São Paulo, Editora Saraiva, 1997, p. 75/76), nos seguintes termos:

“Atento, certamente à gravidade do ato que opera restrição a direitos fundamentais, estabeleceu o legislador, como pressupostos genéricos, indispensáveis a qualquer das espécies de antecipação da tutela, que haja (a) prova inequívoca e (b) verossimilhança da alegação. O fumus boni iuris deverá estar, portanto, especialmente qualificado: exige-se que os fatos, examinados com base na prova já carreada, possam ser tidos como fatos certos. Em outras palavras: diferentemente do que ocorre no processo cautelar (onde há juízo de plausibilidade quanto ao direito e de probabilidade quanto aos fatos alegados), a antecipação da tutela de mérito supõe verossimilhança quanto ao fundamento do direito, que decorre de (relativa) certeza quanto à verdade dos fatos. Sob esse aspecto, não há como deixar de identificar os pressupostos da antecipação da tutela de mérito, do art. 273, com os da liminar em mandado de segurança: nos dois casos, além da relevância dos fundamentos (de direito), supõe-se provada nos autos a matéria fática (...). Assim, o que a lei exige não é, certamente, prova de verdade absoluta, que será sempre relativa, mesmo quando concluída a instrução, mas uma prova robusta, que, embora no âmbito de cognição sumária, aproxime, em segura medida, o juízo de probabilidade do juízo de verdade” (destaques não constantes do original).

Outro não é o entendimento de Carreira Alvim (“in” “Código de Processo Civil Reformado”, Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 2ª ed., p. 103), do que se colhe do seguinte magistério:

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“A constatação da verosimilhança e demais condições que autorizam a antecipação da tutela dependerá, sempre, de um juízo de delibação, nos moldes análogos ao formulado para fins de verificação dos pressupostos da medida liminar em feitos cautelares ou mandamentais. Esse juízo consiste em valorar os fatos e o direito, certificando-se da probabilidade de êxito na causa, no que pode influir a natureza do fato, a espécie de prova (prova preconstituída), e a própria orientação jurisprudencial, notadamente sumulada (com acréscimo dos destaques).

Com tanto mais razão, assume, em importância, a possibilidade de antecipação dos efeitos de uma tutela, quando em sede de uma ação civil pública, como é o presente caso, porquanto trata-se de um instrumento processual que persegue bens de vida inerentes à sociedade, à vista mesmo de interesses difusos, coletivos ou mesmo individuais homogêneos, para considerar a hipótese em evidência. Não é outro motivo que Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, em sua obra “Código de Processo Civil Comentado” (São Paulo, Ed. RT, 3ª ed., 1997, p. 1.149), prega uma idéia majoritariamente aceita no sentido de que, “Pelo CPC 273 e 461, § 3º, com a redação dada pela L 8952/94, aplicáveis à ACP (LACP 19), o juiz pode conceder a antecipação da tutela de mérito, de cunho satisfativo, sempre que presentes os pressupostos legais” (destaques acrescentados). Para finalizar, é de se invocar dois precedentes do Superior Tribunal de Justiça de inegável alcance, dada sua similitude com a questão presentemente tratada nos autos, como assim se observa:

.“CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO (INTERFERON BETA). PORTADORES DE ESCLEROSE MÚLTIPLA. DEVER DO ESTADO. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE (CF, ARTS. 6º E 196). PRECEDENTES DO STJ E STF. 1. É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos o direito fundamental à saúde constitucionalmente previsto. 2. Eventual ausência do cumprimento de formalidade burocrática não pode obstaculizar o

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fornecimento de medicação indispensável à cura e/ou a minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso, não dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento. 3. Entendimento consagrado nesta Corte na esteira de orientação do Egrégio STF. 4. Recurso ordinário conhecido e provido (ROMS nº 11129/PR, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJU 18.02.2002, p. 279).

.“CONSTITUCIONAL. RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM HEPATITE “C”. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. (...) 2. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo de determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia da vida digna. 3. O direito à vida e à disseminação das desigualdades impõe o fornecimento pelo Estado do tratamento compatível à doença adquirida no exercício da função. Efetivação da cláusula pétrea constitucional. (...)” (Resp nº 430526/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJU 28.10.2002, p. 245). No mesmo sentido, as seguintes decisões do

STJ: no ROMS nº 11183/PR, Rel. Min. José Delgado, DJU 4.9.2000, p. 121, o Estado do Paraná foi obrigado a fornecer o medicamento Riuzol (Rilutek) a uma pessoa portadora de esclerose lateral amiotrófica; no ROMS nº 13452/MG, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 7.10.2002, p. 172, ficou reconhecido o direito à obtenção de medicamentos indispensáveis ao tratamento de retardo mental, heiatropia, epilepsia, trocolomania e transtorno orgânico da personalidade.

O melhor de tudo é contar com a já conhecida

decisão do STF, quando do RE nº 271.286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24.11.2000, p. 101, naquilo que fala textualmente em “direito subjetivo público à saúde” à luz de uma interpretação de normas constitucionais, mesmo que programáticas, na medida em que toma por

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consideração que o art. 196 da Constituição Federal “tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro”, de modo que isso “não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”. Transplantando todos esses acórdãos para a hipótese em tela, bem se denota a importância que o direito à saúde vem assumindo perante os tribunais pátrios, sendo de esperar que o mesmo tratamento seja dispensado por esse eg. Tribunal Regional Federal da 5ª Região, até porque a sensibilidade que aflorou na decisão monocrática tem respaldo numa prova inequívoca que só uma incursão nos autos principais teria mais condições de bem refletir, não havendo como desautorizá-la por simples alegações destituídas de maiores fundamentos fático-jurídicos. III – CONCLUSÃO Firme na idéia de que restou plenamente demonstrada a necessária presença dos requisitos do instituto da tutela antecipada, vale dizer, prova inequívoca dos fatos e verossimilhança das alegações, como tais associados a um fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, nada mais resta a compreender, como outro resultado, senão aquele de negar provimento ao presente Agravo de Instrumento, com a conseqüente manutenção da r. decisão que emprestou antecipação de efeitos a um dos pedidos – mas não a todos – tutelados pela ação principal, por ser de Direito e inteira Justiça! Recife, 04 de maio de 2004.

FRANCISCO CHAVES DOS ANJOS NETO Procurador Regional da República