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Flavio García (org.) III Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: o insólito na literatura e no cinema COMUNICAÇÕES 2008 FICHA CATALOGRÁFICA F801p III PAINEL "REFLEXÕES SOBRE O INSÓLI- TO NA NARRATIVA FICCIONAL": O INSÓ- LITO NA LITERATURA E NO CINEMA – COMUNICAÇÕES. / Flavio García; (org.) – Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. Publicações Dialogarts Bibliografia ISBN 978-85-86837-39-5 1. Insólito. 2. Gêneros Literários. 3. Narrativa Fic- cional. 4. Literaturas. I. García, Flavio. II. Univer- sidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departa- mento de Extensão. IV. Título CDD 801.95 809 Correspondências para: UERJ/IL/LIPO – a/c Darcilia Simões ou Flavio García Rua São Francisco Xavier, 524 sala 11.023 – B Maracanã – Rio de Janeiro – CEP 20 569-900 [email protected]

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  • Flavio Garca (org.)

    III Painel Reflexes sobre

    o Inslito na narrativa ficcional:

    o inslito na literatura e no cinema

    COMUNICAES

    2008

    FICHA CATALOGRFICA

    F801p III PAINEL "REFLEXES SOBRE O INSLI-TO NA NARRATIVA FICCIONAL": O INS-LITO NA LITERATURA E NO CINEMA COMUNICAES. / Flavio Garca; (org.) Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008.

    Publicaes Dialogarts Bibliografia ISBN 978-85-86837-39-5 1. Inslito. 2. Gneros Literrios. 3. Narrativa Fic-cional. 4. Literaturas. I. Garca, Flavio. II. Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departa-mento de Extenso. IV. Ttulo

    CDD 801.95

    809

    Correspondncias para: UERJ/IL/LIPO a/c Darcilia Simes ou Flavio Garca

    Rua So Francisco Xavier, 524 sala 11.023 B Maracan Rio de Janeiro CEP 20 569-900

    [email protected]

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    14:00 / 15:45 SESSO DE COMUNICAES

    Quem tem medo do lobo mau? O lobisomem como smbolo da alteridade

    Alexander Meireles da Silva ISAT / UNIABEU Coordenador da sesso

    e Jane Guimares Felizardo ISAT

    De olho nas penas: a construo do discurso fundador brasileiro na fico de

    Ana Maria Machado Carlos Alberto da Conceio Feliciano UERJ

    O conto de Cinderela e suas re-significaes:

    a imagem para/na educao Renata do Nascimento de Souza e Denise Barreto da Silva

    UERJ

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    ndice: O INSLITO EM EFEITO BORBOLETA: A (RE)CONSTRUO DE IDENTIDADES E REALIDADES NA PS-MODERNIDADE.... 15

    ADILSON SOARES DA SILVA JUNIOR ....................................................... 15 ABSURDO E INSLITO BANALIZADO: GNEROS OU CATEGORIAS DE GNERO?............................................................... 35

    ALINE DE ALMEIDA MOURA................................................................... 35 EM BUSCA DO EU: VOLTA DOS PASSOS HERBETIANOS ...... 54

    ANDR LUIZ ALVES CALDAS AMRA .................................................... 54 REFLEXES SOBRE UM POSSVEL INSLITO NA NARRATIVA DE SRGIO SANT`ANA: UMA LEITURA DO NARRADOR EM MONSTRO SOB A TICA DA PS-MODERNIDADE ............ 74

    AUGUSTO BRITO MONTANO ................................................................... 74 ENTRE A REALIDADE E A FANTASIA EM A INVENO DE MOREL DE ADOLFO BIOY CASARES.............................................. 89

    BRBARA MAIA DAS NEVES................................................................... 89 DE OLHO NAS PENAS: A CONSTRUO DO DISCURSO FUNDADOR BRASILEIRO NA FICO DE ANA MARIA MACHADO............................................................................................. 110

    CARLOS ALBERTO DA CONCEIO FELICIANO ..................................... 110 UM OLHAR SOBRE A FADA CONTEMPORNEA: ONDE TEM BRUXA TEM FADA ............................................................................... 136

    DANIEL SIMES SANTOS MASSA .......................................................... 136 O TEMPO DA ESCRITURA EM OBRAS FINAIS DE CLARICE LISPECTOR ........................................................................................... 153

    EDSON RIBEIRO DA SILVA .................................................................... 153 A EXPERINCIA MSTICA DO INSLITO NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORNEA................................................... 176

    EDUARDO GUERREIRO BRITO LOSSO.................................................... 176

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    COMTE-SPONVILLE, Andr. O Ser-Tempo. Traduo de Eduardo Brando. So Paulo: Martins Fontes, 2006. GENETTE, Grard. Discurso da Narrativa. Traduo de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade, s/d. HAMBURGER, Kte. A Lgica da Criao Literria. Traduo de Margot P. Malnic. 2. ed. So Paulo: Editora Perspectiva, 1986. LISPECTOR, Clarice. gua Viva. 12. ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1993. ______. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. ______. A Paixo Segundo GH. 15. ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1991. MACHADO, Irene. O Romance e a Voz: A prosaica dialgica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago/FAPESP, 1995. NOLASCO, Edgar Cezar. Clarice Lispector: Nas Entrelinhas da Escritura. So Paulo: Annablumme, 2001. NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. 2. ed. So Paulo: tica, 2003. PINO, Cludia Amigo. A Fico da Escrita. Cotia, SP: Ateli Editorial, 2004. S, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Petrpolis: Vozes, 1979. TODOROV, T. Estruturalismo e Potica. Traduo de Jos Paulo Paes. 3. ed. So Paulo: Cultrix, 1974. ZAGURY, Eliane. A Escrita do Eu. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira/INL, 1982.

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    A EXPERINCIA MSTICA DO INSLITO NA LITERATURA BRASILEIRA

    CONTEMPORNEA

    Eduardo Guerreiro Brito Losso UERJ

    1- ATUALIDADE DA MSTICA TRANSGRESSIVA E PS-MODERNISMO

    A influncia do surrealismo na literatura brasileira no foi dominante no Brasil mas tem sido cada vez mais acentuada e estudada. Murilo Mendes o nome mais citado nesse sentido, e a partir dele observamos uma certa linhagem que alia a subverso imagtica (dissonncias de sentido) com a busca de uma experincia mstica ou iluminao profana, nas palavras de Benjamin (BENJAMIN, 1997: 23-4, 32-3), atravs do choque transgressivo da linguagem potica. Gostaramos de analisar a relao entre a produo de uma linguagem potica e a ascese existencial do escritor moderno e ps-moderno que procura chegar a uma experincia do inefvel por meio do choque imagtico, configurando uma espcie de mstica secularizada e transgressiva do inslito. Nesse caso, ser preciso pensar no que est implicada essa ascese e mstica esttica moderna num contexto brasileiro: at que ponto isso destoaria da literatura brasileira como um todo ou, mais provavelmente, caracterizaria secretamente uma opo esttica ainda mal observada, analisada e refletida?

    Por trs de uma possvel opo esttica, nosso foco procurar entender, acima de tudo, como e por que h nesses autores um projeto de transformao individual e social de propores escatolgicas e religiosas enquanto tentculos tropicais do sonho surrealista. Da Jos Guilherme Merquior

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    chamar ateno para o fato de haver no surrealismo e em sua herana cunhada em Murilo Mendes ambies existenciais libertrias, que queriam se realizar por meio de uma revoluo cultural.

    Sendo uma transformao tanto poltica quanto psquica e espiritual, tal projeto pode ter sido desmistificado pela desiluso de todos os movimentos modernistas com a segunda guerra e, posteriormente, o triunfo do capitalismo liberal oposto a um socialismo ditatorial no menos decepcionante que, embora aparentemente derrotado na queda do muro, encontrou novas formas de represso burlando sistemas democrticos na atualidade, confirmando, enfim, na sua aparente oposio mtua, o que Adorno chamou de mundo administrado (verwaltete Welt). (ADORNO, 2003: 505) A obra de arte precisa estar consciente de seu prprio carter de mercadoria numa sociedade integrada e protestar em seu prprio trabalho formal tal situao, no se confundindo com falsos protestos esquerdistas nem pseudo-atividades ou ativismos. (ADORNO, 2003: 772)

    A desmistificao e ultrapassagem dialtica do projeto modernista, incluindo o surrealista, foi feita com uma paulatina desiluso do potencial existencial, emancipatrio e filosfico da prpria arte (incluindo, naturalmente, as destruies regeneradoras da anti-arte). Houve a preponderncia de uma ironia ps-moderna da intertextualidade, do pastiche, da mistura multicultural e da confuso de fronteiras entre o pop e o erudito que, contudo, no privilegia a nsia utpico-existencial de experincias subjetivas e objetivas que estavam movimentando a arte e a crtica cultural desde o incio da modernidade.

    Diante disso, parece que o quadro em geral pintado pela diluio da teoria do ps-modernismo que o mpeto libertador e revolucionrio do surrealismo, alcanando seu pice cultural explosivo na contracultura dos anos 60/70, foi superado por

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    uma ironia cnica e desiludida, ao mesmo tempo que festiva de uma arte erudita j de pazes com a indstria cultural espelhando a vitria final do liberalismo, que s deveria, depois de 11 de setembro e Hugo Chavez, ainda ser defendido contra formaes regressivas de fundamentalismo e novas manifestaes ditatoriais. Se h niilismo esttico na vanguarda devido a sua recusa sistemtica de valores estticos, mas paradoxalmente utopia afirmativa praticada como poltica cultural (STROM, 2004: 38), no ps-modernismo haveria uma herana da transgresso modernista sem afirmao utpica, retirando o investimento no futuro (pois, de certa forma, a revoluo j aconteceu) e mantendo um hedonismo sincrtico das artes, das pocas, dos estilos, da intertextualidade e desubjetivao e uma ironia sem grandes aspiraes. (CONNOR, 1993: 150) Toda marginalidade transforma-se em centralidade pop dominante justamente porque se abriu desde o princpio a uma linguagem formal acessvel da indstria cultural.

    Independente do fato de todos as vanguardas - incluindo a mais paradigmtica, o surrealismo terem realmente despencado de suas iluses de arte coletiva, de uniformizao de um estilo artstico e de um ideal messinico a partir de um manifesto, a nsia utpica no direcionada a guerrilhas polticas mas a revolues individuais e culturais no se tornou simplesmente coisa do passado. No entendemos, portanto, utopia no seu sentido positivo e fixo de um futuro j programado, como queriam comunistas e todo marxismo pr-sovitico e sovitico, antes, a utopia negativa ou nsia utpica (utopische Sehnsucht) prpria da arte e do pensamento crtico de Adorno e Bloch. (ADORNO; BLOCH, 1978: 360-1) Quem explicou bem o que h de messinico no materialismo e legtimo para a atualidade do exerccio crtico foi Michel Lwy (LWY, 1990: 59); ver tambm minha tese. (LOSSO, 2007:

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    134-145) Lwy percebeu que a trajetria libertria do surrealismo est para alm do plano poltico-revolucionrio:

    No se pode esquecer que o surrealismo contm aquilo que Ernst Bloch chamava de um excedente utpico, um excedente de luz negra que escapa aos limites de qualquer movimento social e poltico, por mais revolucionrio que seja. Esta luz emana do ncleo inquebrantvel da noite do esprito surrealista, de sua busca obstinada pelo ouro do tempo, de seu mergulho perdido nos abismos do sonho e do maravilhoso. (LWY, 2002: 36)

    Assim como a suposta superao da utopia cultural (deslegitimando aes de poltica cultural) falsa, a diluio liberal da teoria do ps-modernismo tende a desqualificar manifestaes atuais do choque subversivo e inslito da linguagem literria em prol de uma conciliao da alta literatura com a cultura de massa, em que nem a cultura de massa se mostra totalmente perdida em sua prpria banalizao, popularizando elementos e procedimentos da alta cultura, nem a alta cultura se mantm avessa ao pblico num insistente hermetismo.

    Apesar de haver efetivamente um ganho de ambos os lados nesse pacto, manifestaes atuais de hermetismo, subverso de estruturas narrativas e choque literrio que nada negociam com o entendimento e a fruio do grande pblico tornaram-se para muitos propostas estticas mais que ultrapassadas, justificando sua censura. Nesse caso, s haveria lugar para o inslito desde que ele fosse palatvel em formas popularizadas do fantstico, da fico cientfica, do terror, do estilo ps-moderno e da fbula infantil. A radicalizao do inslito presente nas prosas poticas de narrativas desconstrudas, no choque da imagem potica dissonante, enfim, no experimentalismo da linguagem, seria algo

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    historicamente ultrapassado. Portanto, o trecho abaixo de Roberto Piva do poema Heligbalo deve passar a ser considerado nada mais nada menos do que um epgono menor do surrealismo.

    As alamedas martimas enfaixavam um horscopo com moluscos-cartomantes embriagados de bombons velhos. A seda noturna descia sobre meu crnio como um espelho de amor. (PIVA, 2005: 113, do livro Piazzas, de 1964)

    O desprezo do grande pblico seria, enfim, teoricamente justificado, a obrigao chata de termos de passar pela angstia da falta de sentido moderna atravs dos abstracionismos e dissonncias, de engolir o gosto amargo da amargura secular, transformou-se de gesto rebelde juvenil em rabugice de velhas geraes artsticas. Se h no absurdo do texto inslito e dissonante um gozo de linguagem prprio da juno entre prazer e desprazer do sentimento do sublime moderno, que esse prazer artstico realmente exista e possa sempre encontrar novas formaes estticas, o senso comum ps-moderno quer deixar de ser levar tal fato em considerao simplesmente por que tal prazer difcil e a arte ps-moderna j tornou elementos modernistas maciamente aceitveis, de modo que no h mais necessidade de educar o pblico para o prazer difcil e desconfiar da indstria cultural como queria Adorno - pois j arranjaram um jeito de o difcil tornar-se fcil e de a indstria cultural mesma encontrar dignidade artstica.

    Dentro desse horizonte de expectativas da pior espcie de crtico literrio atual, limitado s conquistas que foram as da contracultura, o valor artstico da indstria cultural torna-se uma oportunidade para desprezar a continuidade de transgresses da linguagem na literatura. No se trata de valorizar o puro ato subversivo em si e para si mesmo, pois ele j perdeu tanto seu pthos inaugural como sua, poderamos

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    assim dizer, ingenuidade subversiva. O que ele pode contribuir na atualidade, do ponto de vista semntico e hermenutico, est nas suas novas experimentaes literrias de indeterminao e flutuao de sentido, explorando mais a fundo e extensamente regies de impreciso, vagueza e indefinio do enunciado e da estrutura mesma do discurso. No penso somente na caracterstica ambigidade de qualquer texto literrio e a abertura interpretativa prpria do universo ficcional, porm, mais precisamente, nos efeitos nebulosos e sombrios da suspenso do sentido e da voluntria supresso de coordenadas bsicas para a construo de um universo ficcional inteligvel que satisfaa e conforte a exigncia de entretenimento do pblico. A renncia fruio esttica mais primria e imediata trabalha para que aparea, pela negao da negao, um prazer dialeticamente ulterior.

    A radicalizao da ambigidade, que chega a violentar o entendimento, radicaliza tanto a ficcionalidade que chega a neg-la para afirmar o puro jogo mais elementar da forma, mas, diferentemente das j conhecidas teorias do modernismo, gostaria de frisar como pode se reconstruir nebulosas de ficcionalidade possvel e delas fruir a partir dessa indeterminao de base, em vez de frisar a mera negao da iluso narrativa (de acordo com a influncia do niilismo dadasta agindo subterraneamente numa certa diluio do ps-estruturalismo hoje).

    Observo que hoje nos interessa mais apontar nessa transgresso textual o desejo de uma experincia mstica do excesso de possibilidades ficcionais simultneas, da vertigem de vislumbrar o horizonte infinito da narratividade e da poeticidade; h, portanto, mais uma ambio mstica prometica de paradoxalmente abarcar o infinito nele se perdendo do que de meramente destruir a fico e se desiludir dos artifcios da arte. Tal entusiasmo existencial converge para a nsia de transformao utpica por meio de uma revoluo

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    cultural da qual o escritor se considera um personagem ativo e decisivo. O sacrifcio do significado e da satisfao do entendimento serve como percurso inicitico necessrio para alcanar essa vertigem sublime de mergulho no horizonte absoluto e imediato da poesia e da fico. A suspenso do sentido, que julgada em seu valor negativo como espera, expectativa frustrada de entendimento, pode ser o prazer de, num estado de suspenso, acolher o desconhecido, ou a felicidade provocada pelo crescimento do sentimento de existir, trazido pelo acontecimento. (LYOTARD, 1989: 97) O ensaio de Lyotard, O sublime e a vanguarda para ns um bom ponto de partida na medida mesma em que no considera o modernismo superado pelo ps-modernismo, ao contrrio, ainda atravessa-o no que ele teria de melhor:

    Impelidos pela esttica do sublime, em busca de efeitos intensos, as artes, qualquer que seja seu material, podem, e devem, desprezar a imitao dos modelos apenas belos, e experimentar combinaes surpreendentes, inslitas, chocantes. O choque supremo, que Ocorra (algo) em vez do nada, a privao suspensa. (LYOTARD, 1989: 105)

    Se o leitor fruir da ocorrncia sbita e complexa do choque e em vez de compar-lo com significados inteligveis receb-lo diante do nada (pois o choque se choca com as evidncias para, ao destru-las, desvelar seu embate fundamental com o nada), vai se deparar com o xtase sublime de se despojar de seu prprio imperativo de entendimento e enquadramento semiolgico. No interessa nesse desprendimento da necessidade de compreenso um mero abandono do entendimento que flutue no nada, antes a liberdade de mobilizar uma compreenso relativa, varivel e flexvel, aberta aos caprichos chocantes do objeto esttico; alcanando, em toda sua amplitude, a experincia esttica

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    enquanto forma especificamente moderna de xtase mstico, ou seja, sublime.

    2- MURILO MENDES E SEU CRISTIANISMO INSLITO

    Com base nessas consideraes gerais, pretendo analisar e comparar entre si textos de Murilo Mendes, Roberto Piva e Carlos Emlio Corra Lima, procurando observar neles a vertigem sublime do texto transgressivo como uma espcie de prtica artstica ritual para a transformao mstico-utpica no plano individual e social.

    Percorreremos a trajetria dialtica do modernismo de Murilo Mendes, passando por um certo modernismo tardio de Roberto Piva e chegando a gerao mais recente de Carlos Emlio Corra Lima.

    Merquior tem muitos motivos para afirmar que Murilo Mendes uma voz solitria e inslita (MENDES, 1994: 11) na literatura brasileira. Para comear, podemos levantar a questo do seu cristianismo. Como poeta modernista, Murilo acumulou caractersticas irreverentes e insolentes, assumindo, juntamente com seus colegas Mrio de Andrade, Oswald de Andrade e Drummond, o tom coloquial de linguagem vulgar, antiestilista, em sua primeira fase, nos poemas de 1925-29. H ao mesmo tempo um grande mpeto ertico, focando meninas morenas (MENDES, 1994) com seios empinados gritando / Mame eu quero um noivo (MENDES, 1994: 103), vindas Das cinco regies onde navios angulosos / Sangram nos portos da loucura (MENDES, 1994) evidenciando a ligao psicanaltico-surrealista entre inconsciente e sexualidade. Antiestilismo e erotismo so traos comuns de uma clara insolncia juvenil que se afasta da sociedade na medida mesma em que se aventura para alm das fronteiras da razo. Contudo, em Tempo e eternidade, de 1934, o poeta sublima o

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    coloquialismo e o erotismo erigindo a musa como ideal esttico. Nesse livro aparece de forma mais direta sua converso, seguida de uma lamentvel inibio imagtica. Mas logo no livro Os quatro elementos, de 1935, e na produo posterior, observamos que a adoo de um tom mais nobre j operou a sntese com a irreverncia mais amadurecida dentro da purificao da linguagem, onde o ludismo de personificaes temticas (cada poema possui um ttulo que freqentemente personificado e apreciado liricamente, como por exemplo, A lua MENDES, 1994: 269 e O fogo MENDES, 1994: 271-2) e imagens dissonantes tornam-se instrumentos de uma revoluo cultural e messinica. Por isso, seu cristianismo terminou por se harmonizar com o inconformismo apocalptico, tico e existencial, do poeta maldito dos primeiros anos, em vez de com ele se chocar, e deu a Murilo maior firmeza para afirmar uma ascese potica do martrio e da salvao (Cf. Merquior apud MENDES, 1994: 15) juntamente com a nsia de abarcar a totalidade da experincia humana e universal, desejando uma espcie de oniscincia potica.

    Ela almeja um novo tipo de unio mystica com Deus, como no poema Panorama: eu te perteno tu me pertences que mistrio (MENDES, 1994: 275). O pertencimento mtuo do poeta com Deus sinal de que o poeta moderno, mesmo convertido, no diminui sua sede megalmana de potncia e xtase. Ao querer abarcar o mundo e ao mesmo tempo estar alm dele, o poeta um super-homem que alimenta sua proximidade sagrada com Deus num constante delrio divino (MENDES, 1994: 281), um olhar sempre direcionado ao futuro, s suas possibilidades indeterminadas, e encontra-se embriagado de uma sensao proftica no cerne do prazer criativo. Como bem diz logo no incio de Poesia em pnico,

    O esprito da poesia me arrebata

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    Para a regio sem forma onde passo longo tempo imvel Num silncio de antes da criao das coisas. (MENDES, 1994: 285)

    A poesia contm portanto qualidades potencialmente extticas, levando a um topos negativo, sem forma e sem som, que se iguala ao momento originrio incriado. Fica clara uma nova espcie de teologia negativa que quer ser um deus em direo a um fim nico: a morte ou a verdadeira unio final com Deus. O poeta nega ser o deus nico s para se divinizar com a poesia e partir em direo a Ele. O deus-poeta, para finalmente pertencer a Deus, vai buscar sempre descobrir em si mesmo onde Deus lhe pertence, auto-divinizando-se.

    Essa fome prometica de Deus o que Michel Carrouges chamou de mstica do super-homem do escritor moderno (ou psico-mstica) (Cf. CARROUGES, 1948: 15-56) e o que j chamei, em outro texto, de megalomania esttica e asctica ou mstica secularizada. (Cf. LOSSO, 2004: 72-90) O poeta constri para si um mundo imaginrio para lidar melhor com as frustraes do mundo e agir contra elas. Ao enfrentar a segunda natureza do mundo burgus, artificialmente criado para fins de dominao da natureza pelo homem e do homem pelo homem, pretende colocar a imaginao no poder e erigir-se em novo Rei-sol para a revoluo cultural final. Logo, depois da revoluo burguesa, em vez de dar lugar a uma revoluo socialista, o poeta visionrio moderno quer ser arauto de uma revoluo em que sua potncia esttica torne-se a efetividade prtica de uma nova cultura a um s tempo justa e libertria, em vez de injusta e controladora, inibidora de energias libidinais e criativas.

    No incio da obra ele se queixava de estar demasiado limitado em sua individualidade. Mas depois (MENDES, 1994: 299) o eu se iguala a tudo. Esse percurso de ascenso do eu ao todo, do sujeito individual ao esprito absoluto, em termos

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    hegelianos, demonstra a ligao do desejo com a ambio megalmana, com a vontade de poder de tornar-se super-homem. Aqui Murilo encontra Nietzsche mesmo que por caminhos bem diferentes e at nos faz observar, com um olhar adorniano aquele que v em abandonos forados da subjetividade o prprio reforo da mesma que o anti-hegelianismo de Nietzsche de perder-se no real dionisaco contm mesmo assim algo de hegeliano por supra-assumir a totalidade objetiva na experincia do sujeito. Essa ligao ainda ignorada de Nietzsche com Hegel foi plenamente realizada naquele que considero o maior de todos os nietzschianos, Bataille, que imaginou em Hegel o horror de estar no fundo das coisas de ser Deus, e afirmou, com razo, que Nietzsche s conheceu de Hegel a vulgarizao habitual. (BATAILLE, 1992: 118)

    A perdio do dionisaco deseja secretamente muito do controle do apolneo e a derrocada da conscincia do saber absoluto no diminui sua ambio mesma de poder absoluto. Portanto, h um certo momento dialtico em que perdio e controle, embriaguez e conscincia se equivalem em vontade de poder.

    Do desejo de desaparecimento do mundo da primeira fase e da segunda fase de primeiro impacto da converso Murilo encontrou, numa terceira fase sinttica, uma nova relao de absoro e superao do mesmo. De um desejo ertico vital e uma posterior renncia sexualidade, encontrou uma melhor adoo de um erotismo mstico-esttico de unio ativa da imaginao e do delrio com as coisas e com Deus. Murilo me parece, por isso, um exemplo de singularidade perfeita do messianismo vanguardista, pois, se ele no geral uma mstica atia, em Murilo compreendemos que sua ambio messinica de se tornar, mais do que uma nova esttica, uma nova religio, mantm ligaes secretas com o prprio cristianismo. Ou seja, o cristianismo do barroco e do

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    romantismo encontra em Murilo sua nova metamorfose artstica e esclarece, incorporado num exemplo singular, o fundo apocalptico, utpico e salvfico de toda a poesia moderna da tradio da ruptura. Como reflete Octavio Paz no artigo que possui esse ttulo,

    Nossa poca rompe bruscamente com todas essas maneiras de pensar. Herdeira do tempo linear e irreversvel do cristianismo, ope-se, como este, a todas as concepes cclicas. Diferena ... desenvolvimento, revoluo, histria todos esses nomes condensam-se em um: futuro. (PAZ, 1984: 34)

    Inevitvel constatar que a raiz da concepo desse futuro est na escatologia e soteriologia judaico-crist.

    Por isso, deixo aqui a sugesto de estudar melhor os intrincados problemas tericos que ainda no foram devidamente analisados, ainda que j bem reconhecidos, da emancipao, laicizao e secularizao da arte moderna. Podemos resumi-los numa interrogao: como as razes religiosas da prpria emancipao da arte moderna continuam a influir no que h nela de mais radical, subversivo e transgressor? Se o cristianismo de Murilo o exemplo mais fcil para descobrir essas ligaes secretas, ele nos ajuda a entender o atesmo subterraneamente mstico dos exemplos mais difceis.

    Curiosamente, Murilo se torna um inslito poeta moderno por ser convertido, torna-se inslito por retornar estranhamente ao slito, torna-se, portanto, uma inslita combinao do slito e do inslito, em que um contamina insolitamente o outro.

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    3- PIVA: A SOBERANIA DO INSLITO NA LINGUAGEM

    O verso antimeldico e antiharmnico (MENDES, 1994: 15) de Murilo, verso cerrado e spero, simultaneamente munido das mais ricas imagens e polifonias de sentido, influenciou diretamente a potica de Roberto Piva.

    Embora Piva esteja sendo, de uns anos para c, descoberto e devidamente valorizado como um dos maiores representantes da gerao iniciada nos anos 60, necessrio iniciar uma longa anlise, pesquisa e discusso em torno de sua obra e do que ela representa para a literatura brasileira. Produzindo ligaes inusitadas entre surrealismo, antropofagia e beat generation, tendo como fundo um pensamento anti-burgus e transgressivo nutrido por Sade, Lautreamont, Nietzsche e Artaud, Piva , sem dvida, o mais genuno poeta maldito do Brasil.

    Se o cristianismo de Murilo no nenhuma regresso do poeta a estgios pr-modernos, contribuindo, ao contrrio, para entender melhor a ligao entre o modernismo e o sagrado, o cerne surrealista, epifnico e mstico de Piva est totalmente distanciado de qualquer religio, radicalizando o enfrentamento aos valores, costumes e instituies burguesas como praticamente nenhum outro escritor brasileiro. Fascinado pela marginalidade dos loucos, msticos, vagabundos, maconheiros, pederastas e homossexuais, freqentador de submundos, do underground de adolescentes roqueiros, alm de demonstrar grande interesse por tribos primitivas e seus rituais orgacos de iniciao, o poeta rene das mais diversas direes religiosas, msticas, filosficas, artsticas e sociais uma ascese ou anti-ascese (ou melhor: a ascese da anti-ascese) de bombardeio ao mundo burgus. Podemos afirmar com segurana que Piva produziu uma sntese potica e existencial de todas as manifestaes transgressivas da modernidade. Sua erudio instrumento de violncia artstica s ordens

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    estabelecidas no plano externo e interno, no nvel social, psicolgico, ideolgico e filosfico. A erotizao do conhecimento como forma de o vitalizar contra as formas repressivas da sociedade freqenta leituras como se fossem fetiches sexuais, coisas poticas para uso e abuso transgressivo, imaginando at mesmo transformar os autores que cita: minhas alucinaes arrepiando os cabelos do sexo de Whitman. (PIVA, 2005: 54)

    Como no poderia deixar de ser, a subverso de Piva comea, antes de mais nada, na linguagem. Se Murilo assimila o surrealismo no estilo seco e com doses ainda medidas de dissonncia imagtica, Piva pretende romper gravemente com qualquer tipo de encadeamento lgico ou fio de significao. Os surrealistas j teorizavam que a escrita automtica no mera arbitrariedade, mas um esforo de incongruncia, que chega a ser maior que o esforo mental feito para enunciados com sentido estvel. (BRETON, 1988: 331-334)

    por isso que a escrita automtica foi muitas vezes descrita como uma verdadeira ascese, que no consiste de modo algum em deixar-se arrastar para um discurso que se continua por si mesmo, mas que, pelo contrrio, impe um esforo considervel para que sejam mantidas afastadas as diferentes formas de censura. (DUROZOI, 1972: 119-20)

    Nunca deixar de existir os que se irritam, como Laurent Jenny em Lautomatisme comme mythe rhtorique, com as expanses indefinidamente narcsicas (MURAT, 1992: 31) dos que se deleitam com a escrita automtica. Contudo, para os irritar ainda mais, h aqueles que, como Piva e o Leonardo Fres de Sibilitz, elaboram a ascese de radicalizar a dissonncia verbal da escrita automtica numa escrita bem deliberada precisamente para violentar nossa repulsa consciente ao absurdo. Logo, o nonsense de Piva segue os

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    melhores resultados do surrealismo procurando exagerar no absurdo verbal sem deixar de elaborar uma rica e complexa potica dentro dessa proposta.

    Leiamos o poema Matria & clarineta de Piazzas, de 1964.

    Matria & clarineta As panteras das plumas & as tranas das estrelas Numa fuselagem sem sada Um pelicano de tempos em tempos esgania o mar dos ambulantes Noite de meninos com coraes brancos Fendas diminudas na imvel lamentao entre a sopa & o garfo de polaride Os canteiros dos clavicrdios em oblqua orao sob os dentes Em curto langor & velas ampliando. (PIVA, 2005: 101)

    Cada frase est isolada da outra sem nenhuma pista de sua conexo recproca. Fora os versos que continuam sintaticamente as frases dos versos anteriores, no h ligao de sentido entre os versos, como se fossem um acmulo de constataes poticas. No interior de cada frase, h uma dissonncia de sentido prpria da imagem surrealista mais radical, como as panteras das plumas. Pode haver uma relao entre panteras e aves aqui (ambos so animais vertebrados), mas h momentos em que no encontramos nenhum fio de sentido at no interior dos sintagmas, como em oblqua orao sob os dentes. Logo, trata-se da maior radicalizao do inslito no nvel semntico.

    J que no se encontra nada para ser entendido, resta tentar encontrar formas de saber fruir desse poema. Seria possvel imaginar situaes absurdas em que tais enunciados possam fazer sentido, mais ou menos como se uma histria

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    fantstica ou de fico-cientfica estivesse por trs de cada verso. Essa hiptese mostra, inclusive, a fraternidade secreta entre a literatura fantstica e o surrealismo: o fantstico e o maravilhoso constroem uma realidade bem diferente da nossa onde determinadas situaes e enunciados passam a fazer sentido, enquanto a poesia nonsense supe que o prprio leitor j possa se encarregar de construir esse mundo ficcional.

    Mas proponho uma hiptese mais radical. O texto nos ensina a tomar gosto no pela difcil apreenso do entendimento, nem pela construo subjetiva de uma possibilidade de apreenso do entendimento, antes pela verdadeira tomada de distncia do prazer esttico frente ao entendimento. Nesse caso, quanto menos entendermos, melhor, no para tornar o prazer esttico catico, arbitrrio e por isso indiferente (se ele um juzo de gosto, como quer Kant, impossvel lhe ser indiferente), mas para fruir das coordenadas imagticas do poema mais na sua violncia de dissociao do que nas possibilidades de associao.

    A partir da, a prpria associao e correspondncia das coisas mais distantes aparecer com o brilho exttico de uma perspectiva onrica, de uma liberdade potencialmente infinita da imaginao. O prazer da falta de sentido tornar-se- prazer das infinitas possibilidades de sentido. Num estgio dialtico ainda posterior, pensando num novo tipo de ascenso mstica do poeta moderno, as infinitas possibilidades de sentido daro lugar a uma afirmao da pura negatividade da linguagem e da representao em que a experincia, despida de qualquer instrumento, apoio, objeto, encontra-se numa noite escura dos sentidos, como dizia So Joo da Cruz. Mas se Murilo ainda trazia uma ascese da purificao atravs do trabalho artstico, Piva pratica uma ascese da sujeira, do abjeto, uma verdadeira ascese da perverso de modo que a prpria perverso supera a si mesma num imenso erotismo csmico da linguagem absurda com o mundo. A libertinagem esttica torna-se ontolgica e

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    iguala sacralidade e profanao, o que nos lembra muito Bataille, mas com o adicional de que tal profanao se enraza na alucinao potica da prpria linguagem.

    Logo, as palavras, os objetos (garfo, polaride), os seres (panteras, meninos) so ingredientes de uma carnavalizao dos sentidos, de uma baguna transcendente, como escreveu Murilo Mendes, que revelam um estado alucinatrio e exttico cuidadosamente reprimido na formao e educao das instituies de sociedades ocidentais. A loucura mstica algo a ser desejado por uma ascese de erudio, perverso e desvario realizado no trabalho da linguagem. As diferenas essenciais entre a loucura, a perverso e a ascese mstica tradicional so simplesmente ignoradas em prol de uma inslita mistura de componentes j inslitos em si, como se o que mais interessasse, para Piva, fosse justamente sua oposio inslita razoabilidade dos costumes e virtudes burguesas. Em Piva constata-se, portanto, a soberania do inslito na linguagem e no pensamento potico contra o enfraquecimento burgus das potencialidades do sujeito e da coletividade.

    4- EMLIO: JORRO LRICO E ENTUSIASMOS MESSINICOS

    Murilo e Piva so dois poetas, agora nosso terceiro e ltimo escritor ser um prosador. Carlos Emlio Corra Lima , no entanto, um prosador que no cessa de investir no lado imagtico da prosa de modo que chega a diminuir bastante a tenso da trama narrativa para dar primazia ao trabalho potico com a linguagem. O enredo, que sempre se mantm em estado de esboo, serve mais como pretexto para um fluxo de prosa potica. Mesmo assim, considero profcuo uma anlise da narrativa potica de Emlio at para concluir problemas de estrutura narrativa que j estvamos levando em conta na teorizao da obra dos poetas. Embora Emlio seja um escritor

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    de vrios livros e extensa produo, focarei seu primeiro livro, que h contm a maior parte das caractersticas de toda a obra at o momento e j revela a maturidade do escritor, A Cachoeira das Eras.

    O livro carrega o desejo de ser uma espcie de romance total, sendo uma epopia para novos tempos, para pensar nos termos dos primeiros romnticos alemes (os Frhromantiker, Novalis e Schlegel). Essencialmente feito de um fluxo potico ininterrupto, ele contudo contm diferentes captulos, escritos por um narrador homodigtico (que participa da histria mas no como protagonista) que pede ao leitor que se esquea dele mesmo, esqueam-me para sempre (LIMA, 1979: 37), por personagens secundrios e um conjunto de personagens que juntos protagonizam a narrativa. Eles so intitulados de a coluna de Clara Sarabanda, uma confraria secreta de iniciados. So personagens bomios que trabalham para o deus da luz Juripari contra o deus das trevas, Jar e esto encarregados de redimir o mundo. Jar foi o responsvel pela destruio da Atlntida, pela colonizao da Amrica Latina, pelo desmatamento das florestas brasileiras, pelas injustias sociais e pelos limites internos do prprio homem. Juripari deus que vai liberar as energias inutilizadas e desperdiadas do homem produzindo o renascimento da Atlntida, a libertao do Brasil, especialmente de seus ndios, e a reconciliao do homem com a natureza, enfim, a redeno do mundo.

    O romance rene em si uma srie de gneros: h momentos epistolares quando Antnio Lopes escreve para seu filho Eduardo Bravo suas viagens, experincias msticas e estados de graa, dando a ele instrues para combater Jar e aproximar-se de uma experincia mstica com Juripari e prometendo a ele uma existncia redentora, Tua sombra fecundar florestas. (LIMA, 1979: 64) Tais instrues so as mais inslitas e poticas possveis:

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    Destri os robs de voz malfica. ... Meu filho, teu nome caipora, constri teu belo pavor na encruzilhada das cidades. ... Fura as orelhas, faz buraco nas pontas dos dedos, inventa uma nova mo, aumenta de tamanho, faz um esforo de longo a largo rio sem fim. Faz isso, meu filho! Procria generosamente. (LIMA, 1979: 63) Mergulha na cachoeira das eras. ... As danas devem sempre ser para a esquerda e todos os homens, mulheres e crianas devem andar para trs. Voc notar que isso traz estranha sensao. ... Deves tambm, incessantemente, masturbar-te, pensa no somente mulheres, pensa tambm nos homens, nos meninos, nas salamandras, nas capivaras, nas pacas, no tapir correndo pelos campos, levando-te naquela correria pelos ermos gostosos at o orgasmo fremente no crepsculo, desce masturbando-te para que teu pnis cresa e sejas bom fecundador, fecunda o prazer de cada coisa, s fiel aos princpios gerais do universo. ... masturba-te pensando no Sol ... Precisas viver dentro de uma cachoeira de amor interior por todas as coisas... chega at o interior de tudo com prazer, o prazer a vasta regio de antigas sensaes que alimenta o interior de todas as coisas. Com isso poders captar um pouco do mecanismo central do mundo. (LIMA, 1979: 64-65)

    Alm de ser epistolar, cada captulo desenvolve e parodia um gnero diferente. H momentos, como o que j vimos, que pode ser interpretado como um manual asctico, outros que parecem relatos de viagem, outros cartas de viagens de descobrimento, outros um dirio de viajante, outros parecem

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    escrituras profticas ao modelo bblico, e grande parte encarna um relato de experincias msticas. Tudo isso est atravessado de um substrato misterioso, fantstico, redentor, maravilhoso e libertrio. O desejo messinico ambiciona com isso encontrar uma comunicao nova e sublime com o leitor de forma que o jorro de delrios seja absorvido como mensagem redentora e epifnica. Por isso h um grande valor simblico no fato de a carta do pai ser escrita para o filho, confundindo o leitor emprico com o narratrio ficcional.

    H vrios momentos em que o texto fala de si mesmo. Sua auto-referncia sempre engloba, no entanto, a totalidade do que expe como mundo: a histria, a natureza, Brasil e a experincia interior.

    O propsito asctico do livro parece estar no trabalho microcsmico individual de um grupo de viajantes bomios para a redeno universal. O romance produz um universo mitolgico-potico moderno. Essa criao artstica recompe a experincia interior, a interpretao da histria universal e a mimese da natureza para agir no mundo experimentando o mistrio vital.

    O antagonista da narrativa personificado mitologicamente, inspirando-se na cultura indgena, como Jar. A partir da h uma luta poltica e psicolgica com o medo, situaes de terror e dominao dos governos pelos ndios. Por isso um captulo narra uma revoluo carnavalesca contra o estado, em que as pessoas vo seguindo uma multido delirante que canta e dana rompendo com a ordem social.

    Mas, fora isso, o livro no apresenta tenses antagnicas de uma intriga e se mantm afirmativo, descrevendo estados de graa e demorando-se em fluxos poticos. A narrativa toma gosto por levantar situaes e coisas misteriosas ou inslitas sem elabor-las num contnuo causal. Ela torna-se um constante acmulo de informaes que alimentam um mistrio nebuloso essencialmente potico da

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    histria. As poucas recorrncias e encaixes de situaes narradas de captulo a captulo propem um esqueleto instvel que serve para investir mesmo na narrao ininterrupta de um discurso potico-messinico. O prprio acmulo indefinido de elementos enigmticos passa mais a fazer parte do fluxo lrico do que funcionar como trama de um pico. Logo, a proposta pica do romance est enervada e irrigada de um lirismo mstico. No toa que vrias vezes aparece na narrativa uma msica maravilhosa que se mistura prpria melodia das palavras.

    Eles que eram alegres palhaos brincando com o cosmos, eles que eram uma orquestrao de novos mundos, eles que eram a vida riscando a eternidade num segundo de luz e alegria, eles que eram a nova pureza harmnica das espcies de viagem ... eles que vinham para a ltima batalha com as trevas quando todos os tempos e espaos se encontravam simultneos na construo de um novo universo sem limites... Eles que so e sero a msica por trs das palavras que os descrevem em narrativa. (LIMA, 1979: 151)

    A prolixidade de Emlio no , a meu ver, imaturidade de um romancista que no sabe construir uma narrativa. Ao contrrio, penso ser uma impressionante profuso de imaginao potica a partir de situaes narrativas que servem voluntria e conscientemente a tal profuso, e no para limit-la. Se o texto parece se perder no seu jorro de imagens e entusiasmos messinicos e utpicos, o leitor convidado a fruir dessa perdio narrativa e desse verdadeiro encontro com a experincia mstica literria por meio de um caudal pico-lrico sem fim.

    O presente da ao narrativa cheio de experincia, mas quase no contm continuidade com a narrao anterior.

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    Um captulo mantm sempre uma proposta de escrita isolada e internamente coerente, mas sem conexo temporal-causal com o anterior nem com o prximo. Eles vo apenas carregando vagas ressonncias dos outros paulatinamente. Almas futuras e antigas se pronunciam em ns, palavras de hoje. (LIMA, 1979: 108) Tanto Murilo quanto Emlio convivem com um tempo dilatado, atentos ao passado esquecido e ao futuro prometedor e ignorado. O mistrio da existncia se d na vaguido e no desconhecimento enigmtico do passado e do futuro. Em Emlio, para lidar com esse tempo to distante para trs e para frente, a exaltao pica e proftica se demora indefinidamente em contornos lricos.

    5- AFINIDADES E DIFERENAS

    Diferentemente de Murilo e bem prximo de Piva, Emlio exalta um paganismo primitivo oposto a qualquer monotesmo ou racionalidade ocidental. H um pan-erotismo delirante e desvairado em Emlio e Piva. Mas Emlio menos violento, perverso e mesmo linguisticamente radical que Piva. Sua escrita ainda prosa e por isso mesmo conduz fios de sentido que seguram amplides poticas de grande mpeto imaginativo, mas com muita melodia, harmonia e beleza lrica. Suas perverses e fantasias so afirmativas, nomeiam um inimigo mtico, mas o confrontam com leveza, alegria e doura. Se ambos praticam uma escrita transgressiva e inslita por si mesma, Emlio mais pleno de simpatia hermtica e pratica com fidelidade uma certa lio simbolista de unir sugesto, correspondncias imagticas e mundividncia csmica. Piva, por outro lado, possui a escrita maldita da dissonncia forada dos sentidos, do verso seco, isolado, mantm uma abismal distncia entre os enunciados, como se fossem serem misantrpicos do texto, hostis um ao outro.

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    Mesmo assim, Emlio, Piva e Murilo caracterizam-se por conter um texto moderno subversivo, sem concesses nem facilitaes ao leitor, com grande inventividade imagtica, trabalho, inteligncia e liberdade imaginativa postas a servio de um desejo de experincia mstica e redeno messinica. Observamos neles um esforo para serem arautos de um futuro que reconhecero nos artistas transgressivos, e no em santos comportados, muito menos em pastores miditicos, a chave de uma nova religiosidade.

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