Mito e Arquivo 1o capítulo

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Em “Mito e Arquivo”, Roberto Gonzáles Echevarría, propõe-se a construir uma teoria sobre a origem e desenvolvimento da narrativa latino-americana e o nascimento do romance moderno, estabelecer uma relação entre as origens do romance (picaresca) e o discurso legal do império espanhol, mas também com confissões de criminosos. Três seriam os momentos históricos e os pilares teórico- ideologicos para o engendramento do romance latino-americano: as primeiras narrativas assemelhavam-se aos textos dos descobridores (séc. XVI); em um segundo momento, as narrativas latino-americanas constituiriam uma simulação dos discursos científicos dos viajantes (Humboldt e Darwin - século XIX) enquanto discursos de Conhecimento, Autoridade e Poder; já no século XX, a ideologia e a identidade cultural latino-americanas ganham forma com a influência do discurso Antropológico (estudo da língua e do mito). A culminância desse processo é a criação de uma mítica própria por romances como Cem Anos de Solidão, mas a partir de uma memória atávica que remete aos estudos antropológicos, descritivo-científicos e aos arquivos de textos legais. De acordo com Echevarría, a fuga é uma imagem comum nas narrativas latino-americanas porque sua origem está ligada a formas de discursos impostos pelo poder, e o narrador do romance picaresco está enredado na lei que o oprime, como se ele fosse sua própria jaula. Daí

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Em “Mito e Arquivo”, Roberto Gonzáles Echevarría, propõe-se a construir uma teoria

sobre a origem e desenvolvimento da narrativa latino-americana e o nascimento do romance

moderno, estabelecer uma relação entre as origens do romance (picaresca) e o discurso legal

do império espanhol, mas também com confissões de criminosos.

Três seriam os momentos históricos e os pilares teórico-ideologicos para o

engendramento do romance latino-americano: as primeiras narrativas assemelhavam-se aos

textos dos descobridores (séc. XVI); em um segundo momento, as narrativas latino-americanas

constituiriam uma simulação dos discursos científicos dos viajantes (Humboldt e Darwin -

século XIX) enquanto discursos de Conhecimento, Autoridade e Poder; já no século XX, a

ideologia e a identidade cultural latino-americanas ganham forma com a influência do discurso

Antropológico (estudo da língua e do mito). A culminância desse processo é a criação de uma

mítica própria por romances como Cem Anos de Solidão, mas a partir de uma memória atávica

que remete aos estudos antropológicos, descritivo-científicos e aos arquivos de textos legais.

De acordo com Echevarría, a fuga é uma imagem comum nas narrativas latino-

americanas porque sua origem está ligada a formas de discursos impostos pelo poder, e o

narrador do romance picaresco está enredado na lei que o oprime, como se ele fosse sua

própria jaula. Daí a estreita relação entre o advento do Estado moderno e do Romance. A

escrita possui caráter coercitivo, amplificado pela criação da imprensa, que tornou ilimitado o

alcance do discurso do rei e da lei. É nesse ambiente de coerção verbal da lei e do discurso do

Estado, em meio a perseguições e fugas que surge e se desenvolve o romance, numa estreita

relação com elementos externos que legitimam determinados discursos. “La novela, por tanto,

forma parte de la totalidade discursiva de uma época dada, y se sitúa em el campo opuesto a

su núcleo de poder.” (ECHEVARRÍA, 32).

A partir de diálogos com as teorias de Foucault e Bakhtin, Echevarría propõe-se a

estudar as origens do romance e suas relações com outros discursos, lançando hipóteses

sobre o funcionamento da tradição narrativa latino-americana. Segundo o autor, a narrativa não

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é uma forma autônoma de discurso e estabelece relações mais produtivas com o discurso não-

literário que com sua própria tradição, comportando-se e evoluindo de forma diversa da lírica. O

romance seria o único gênero moderno porque desafia a noção de gênero. Não surge da épica

ou qualquer outro gênero e seu objetivo seria, segundo Echevarría, não ser literário.  Como

prova disso, verifica-se que, no fim do século XX a literatura latino americana debruça-se sobre

os arquivos, não dos descobrimentos e da época colonial, mas sobre a independência e

criação das nações latino-americanas, numa revisão histórica.

No capítulo introdutório de seu ensaio, “Um claro em la selva: de Santa Monica a

Macondo”, Echevarría parte de relatos e análises de “Los pasos perdidos”(1953), de Alejo

Carpentier, e Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Tecendo considerações

acerca da estreita relação que a escritura estabelece com a fundação de cidades e com a

punição a delitos. O livro de Carpentier é destacado como ficção de arquivo fundadora, um

ponto de convergência dos diversos discursos anteriores sobre a América-Latina, alguns

obsoletos e outros que iriam desaguar em Garcia Márquez, além de desmistificar a ilusão de

um novo começo com a formação dos Estados do Novo Mundo, pois em todo começo já estão

presentes a lei, a história e a cidade. A partir de “Los pasos perdidos” seria possível elaborar

uma leitura crítica da tradição latino-americana, de cujas ruínas se levantam questionamentos

só respondidos por Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão. “Si la novela de Carpentier es la

ficción del Archivo fundadora, la de Garcia Márquez es la arquetípica. Por este motivo, el

Arquivo como mito constituye su núcleo” (ECHEVARRÍA, 27)

O texto de Carpentier é paradigmático no que diz respeito à presença da antropologia

no romance moderno latino-americano. Em sua viagem, o narrador de “Los pasos perdidos”

constrói uma arqueologia das formas narrativas latino-americanas, que não se contentam com

a ficção, aspiram à verdade por trás do discurso ideológico que lhes dá forma, sendo esta

verdade a própria ficção. A cultura latino-americana criou ficções para entender a si mesma.

Echevarría afirma que, assim como o romance do século XIX converteu a América Latina em

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caso de estudo científico, o romance latino americano moderno transformou a história da

América Latina em mito originário, tornando-se, ao mesmo tempo reescritura e desescritura da

história latino americana. Símbolo dessapresença das leis e das teorias científicas que

constituem o arquivo em que se fundamenta a narrativa latino americana e que ela mesma

corrói é “el galeón español desmoronándose em la selva de Cien Años de

Soledad.”(ECHEVARRÍA, 42).

Debruçado sobre o Mito, o autor cubano, destacando sua recorrência, nos romances

latino-americanos questiona se este pode exercer o mesmo papel que os mitos clássicos na

leitura da natureza humana e do Novo Mundo e se seria possível criar mitos hoje, questão

resolvida por meio de “Cem anos de solidão” que ao mesmo tempo em que nega a

possibilidade de criarem-se novos mitos, aponta-os como única satisfação para nossa busca

por sentido.

A relação estreita entre Mito e Arquivo é traduzida em Cem anos de solidão. O romance

mescla a referência a mitos diversos (bíblicos, heroicos, sobrenaturais) com elementos da

história latino-americana, convertidos a um mesmo plano, o que revela um desejo de fundar um

mito latino-americano. O Arquivo não se apresenta como algo concreto e estanque, mas como

algo que emerge de elementos prévios e que carece de complementação por meio da escrita e

da leitura, marcado por combinações, misturas, heterogeneidades e diferenças. O Arquivo é

um mito moderno em uma forma antiga. Em Cem anos de Solidão, o arquivo é simbolizado

pela figura de Melquiades, que representa Borges (segundo quem o mito está no princípio e no

fim da literatura), e através do qual Garcia Márquez rompe com a mediação antropológica

sobre a América Latina, fundada na busca de mitos primitivos e aponta para os mitos

modernos: o livro, a escrita, a leitura Assim como o Arquivo guarda os segredos do estado, o

romance guarda os segredos da cultura, sendo ambos, embora segredos, comuns a todos.