MOACYR SCLIAR, "O dia seguinte"
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Transcript of MOACYR SCLIAR, "O dia seguinte"
MOACYR SCLIAR
(1937-)
A.A. ~ 2010-2011
Prof.ª eli
Moacyr Scliar: aqui
O dia seguinte
Se há alguma coisa importante neste mundo, dizia o marido,
peremptório, é uma empregada de confiança.Com o que a mulher
concordava. Satisfeita, aliás: a empregada, cuidadosamente
selecionada por ela, era extremamente confiável. Tomava conta da
casa, fazia compras, e até retirava dinheiro do banco para os patrões.
Tudo dentro dos mais absolutos padrões de honestidade. Confiavam
tanto nela que não hesitavam em deixar-lhe o apartamento, quando
viajavam.
Uma vez resolveram passar o fim de semana na praia. Avisaram a
empregada, que, como de costume, concordou – nunca saía, aquela
confiável doméstica -, tomaram carro e foram. No meio do caminho,
deram-se conta: haviam esquecido as chaves da casa da praia. Muito
aborrecidos, discutindo o tempo todo, deram volta. Com o trânsito
congestionado acabaram chegando à cidade noite fechada.
Ao sair do elevador, deram-se conta de que algo estranho estava
acontecendo: sons vinham lá de dentro, um rock tocado a todo o
volume. O que podia ser aquilo, se a empregada, discreta como ela
só, jamais ouvia música?
- Acho bom chamarmos a polícia – disse a mulher, mas o marido,
mais corajoso – e intrigado com aquilo – já estava abrindo a porta. O
que viram quase os fez desmaiar.
O apartamento estava cheio de gente. Umas cinquenta pessoas,
pelo menos, homens e mulheres. Gente de aparência humilde, mas
dançando animadamente, vários com cálices de champanhe na mão.
Os cálices deles, a champanhe deles.
Quando conseguiram se recuperar da estupefação, entraram no
apartamento. Aparentemente sem ser reconhecidos, perguntavam
pela empregada. Por fim localizaram-na no local onde habitualmente
estava – na cozinha -, porém elegantemente vestida, com um tailleur
da patroa. Que, quase fora de si, bradou:
- Mas você enlouqueceu, Elcina? O que é isto? Que confusão é
esta na minha casa?
- Calma, dona – disse um simpático mulato que ali estava. – Não
é confusão nenhuma. É uma festa. Nós sabemos que a casa é sua,
mas pode ficar tranquila, não vamos levar nada, vamos deixar tudo
direitinho. Como sempre.
Como sempre? Então aquelas festas já eram rotina?
- Sempre que vocês viajam – disse o rapaz, com uma careta tão
cómica que eles tiveram de sorrir. E, sorrindo, a coisa já mudava. No
instante seguinte estavam confraternizando com os demais
convidados. Quando insistiram para que eles dançassem também,
hesitaram, mas depois – que diabos, na vida a gente precisa
experimentar de tudo – acabaram aderindo à festa. Dançaram,
beberam, riram. Ao final da noite tinham de admitir: jamais se
haviam divertido tanto.
Moacyr Scliar, "o dia seguinte" ~
in "contos de verão", Jornal de Letras Artes e Ideias, nº 831
Academia Brasileira de Letras
entrevista
Moacyr Scliar