MOACYR SCLIAR, "O dia seguinte"

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MOACYR SCLIAR (1937-) A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli Moacyr Scliar: aqui

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Moacyr Scliar, "O dia seguinte" ~ in "contos de verão", Jornal de Letras Artes e Ideias, nº 831 ~ leitura complementar para o 12.º ano ~ e.e. ~ António Arroio ~ Prof.ª eli

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MOACYR SCLIAR

(1937-)

A.A. ~ 2010-2011

Prof.ª eli

Moacyr Scliar: aqui

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O dia seguinte

Se há alguma coisa importante neste mundo, dizia o marido,

peremptório, é uma empregada de confiança.Com o que a mulher

concordava. Satisfeita, aliás: a empregada, cuidadosamente

selecionada por ela, era extremamente confiável. Tomava conta da

casa, fazia compras, e até retirava dinheiro do banco para os patrões.

Tudo dentro dos mais absolutos padrões de honestidade. Confiavam

tanto nela que não hesitavam em deixar-lhe o apartamento, quando

viajavam.

Uma vez resolveram passar o fim de semana na praia. Avisaram a

empregada, que, como de costume, concordou – nunca saía, aquela

confiável doméstica -, tomaram carro e foram. No meio do caminho,

deram-se conta: haviam esquecido as chaves da casa da praia. Muito

aborrecidos, discutindo o tempo todo, deram volta. Com o trânsito

congestionado acabaram chegando à cidade noite fechada.

Ao sair do elevador, deram-se conta de que algo estranho estava

acontecendo: sons vinham lá de dentro, um rock tocado a todo o

volume. O que podia ser aquilo, se a empregada, discreta como ela

só, jamais ouvia música?

- Acho bom chamarmos a polícia – disse a mulher, mas o marido,

mais corajoso – e intrigado com aquilo – já estava abrindo a porta. O

que viram quase os fez desmaiar.

O apartamento estava cheio de gente. Umas cinquenta pessoas,

pelo menos, homens e mulheres. Gente de aparência humilde, mas

dançando animadamente, vários com cálices de champanhe na mão.

Os cálices deles, a champanhe deles.

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Quando conseguiram se recuperar da estupefação, entraram no

apartamento. Aparentemente sem ser reconhecidos, perguntavam

pela empregada. Por fim localizaram-na no local onde habitualmente

estava – na cozinha -, porém elegantemente vestida, com um tailleur

da patroa. Que, quase fora de si, bradou:

- Mas você enlouqueceu, Elcina? O que é isto? Que confusão é

esta na minha casa?

- Calma, dona – disse um simpático mulato que ali estava. – Não

é confusão nenhuma. É uma festa. Nós sabemos que a casa é sua,

mas pode ficar tranquila, não vamos levar nada, vamos deixar tudo

direitinho. Como sempre.

Como sempre? Então aquelas festas já eram rotina?

- Sempre que vocês viajam – disse o rapaz, com uma careta tão

cómica que eles tiveram de sorrir. E, sorrindo, a coisa já mudava. No

instante seguinte estavam confraternizando com os demais

convidados. Quando insistiram para que eles dançassem também,

hesitaram, mas depois – que diabos, na vida a gente precisa

experimentar de tudo – acabaram aderindo à festa. Dançaram,

beberam, riram. Ao final da noite tinham de admitir: jamais se

haviam divertido tanto.

Moacyr Scliar, "o dia seguinte" ~

in "contos de verão", Jornal de Letras Artes e Ideias, nº 831