Modernidade e a idéia de história

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Edmilson Menezes Marisa Donatelli (Organizadores)

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Edmilson MenezesMarisa Donatelli(Organizadores)

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Modernidade e a Idéia de História

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Modernidade e a Idéia de História

Edmilson MenezesMarisa Donatelli

(Organizadores)

2003

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EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA:Adilma Menezes (CEAV - UFS)

IMAGEM DA CAPA: POMEAU, René. Voltaire. Paris: Sueil, 1994

PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS:Dorival de Freitas, Edmilson Menezes e Marisa Donatelli

Modernidade e a idéia de História/Organizaçãode Marisa Donatelli, Edmilson Menezes. --Ilhéus: Editora da Universidade Estadual deSanta Cruz, 2003.424 p

ISBN: 85-7455-056-6

1. Filosofia de história. 2. Modernidade, I.Donatelli, Marisa. II. Menezes, Edmilson.

CDU 101.1

© 2003 by EDMILSON MENEZES E MARISA DONATELLI

Direitos desta edição reservados àEDITUS - EDITORA DA UESC

Universidade Estadual de Santa CruzRodovia Ilhéus/Itabuna, km 16 - 45650-000 Ilhéus, Bahia, Brasil

Tel.: (073) 680-5028 - Fax (073) 689-1126http://www.uesc.br e-mail: [email protected]

GOVERNO DO ESTADO DA BAHIAPAULO GANEM SOUTO - GOVERNADOR

SECRETARIA DE EDUCAÇÃORENATA PROSÉRPIO FONTES LIMA - SECRETÁRIA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZRENÉE ALBAGLI NOGUEIRA - REITORA

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EQUIPE EDITUSDIRETOR DE POLÍTICA EDITORAL: JORGE MORENO; REVISÃO: MARIA LUIZA NORA E

DORIVAL FREITAS; SUPERVISÃO DE PRODUÇÃO: MARIA SCHAUN; COORD. DE

DIAGRAMAÇÃO: ADRIANO LEMOS; DESIGN GRÁFICO: ALENCAR JÚNIOR.

M689m

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SUMÁRIO

- Sobre os organizadores e os autores .................. 7

- Apresentação ........................................................ 13

- HISTÓRIA E CIÊNCIA EM BACON ................................. 15Maria das Graças de Souza

- PROVIDÊNCIA DIVINA E RAZÃO NA HISTÓRIA:VICO E A FILOSOFIA MODERNA .................................. 30Humberto Aparecido de Oliveira Guido

- JUSTIÇA E HISTÓRIA NA LINGÜÍSTICA DE ROUSSEAU .... 44Ricardo Monteagudo

- PRISMAS DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA KANTIANA:CIVILIZAÇÃO E FINALIDADE MORAL ........................... 61Edmilson Menezes

- PROGRESSO E AGONIA: A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA

EM KANT E CIORAN ................................................... 86Rosário Rossano Pecoraro

- MUNDO INTELIGÍVEL E ANALOGIA NA MORAL DE KANT 106Vinícius de Figueiredo

- SOBRE O FUNDAMENTO NA FILOSOFIA DA HISTÓRIA DE

HEGEL: UMA LEITURA DO CAPÍTULO “FORÇA E

ENTENDIMENTO; FENÔMENO E MUNDO SUPRA-SENSÍVEL” 126Alice M. Serra

- A ESPIRAL DO ESPÍRITO - UMA ANÁLISE DA

‘HISTÓRIA FILOSÓFICA’ DE HEGEL ........................... 152Jorge Grespan

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- A CRÍTICA HEGELIANA E A TAREFA DA MODERNIDADE:A “SUPERAÇÃO POSITIVA” DA RELIGIÃO E DA

FILOSOFIA DE HEGEL. .............................................. 187José Crisóstomo de Souza

- BENEDETTO CROCE: ENTRE A FILOSOFIA DA

HISTÓRIA E A TEORIA DA HISTORIOGRAFIA ................ 220Raimundo Nonato Pereira Moreira

- A CRÍTICA HEIDEGGERIANA DA MODERNIDADE ......... 234João Bosco Batista

- PARA INTERROMPER O CURSO DA HISTÓRIA:UMA LEITURA DAS TESES SOBRE A FILOSOFIA

DA HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN ......................... 248Renato Franco

- HISTÓRIA E PÓS-MODERNISMO .................................. 278José Antônio Vasconcelos

- ATÉ ONDE VAI O IMAGINÁRIO NA HISTÓRIA? UMA

CRÍTICA DO MARXISMO A PARTIR DE CASTORIADIS ..... 304Francesco Pecorari

- HISTÓRIA E HERMENÊUTICA – PARA PENSAR

A IDÉIA DE HISTÓRIA ................................................ 321Maria Emilia Monteiro Porto

- ERIC WEIL E A NOÇÃO DE “FIM DA HISTÓRIA” ......... 347Inácio Helfer

- A MODERNIDADE, O CONHECIMENTO HISTÓRICO E OS

IDEAIS DE VERDADE E OBJETIVIDADE....................... 373Andréa da Rocha Rodrigues

- NOVA HISTÓRIA: AB(USOS) E PERSPECTIVAS ............. 392Flávio Carvalho

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Sobre os autores

ALICE M. SERRA, é Graduada em História pelaUFMG e atualmente cursa o mestrado em Filoso-fia na mesma instituição. Sua área de pesquisa éHistória da Filosofia e seu tema de pesquisa é“Tempo e espaço na filosofia de Hegel em Iena”.

ANDRÉA DA ROCHA RODRIGUES, Mestre em HistóriaSocial pela Universidade Federal da Bahia. Pro-fessora de Teoria da História e Historiografia

Sobre os organizadores

MARISA CARNEIRO DE OLIVEIRA FRANCO DONATELLI éprofessora do Departamento de Filosofia eCiências Humanas da UESC (Ilhéus). Doutora emFilosofia pela Universidade de São Paulo (USP),2002, com tese sobre a Medicina Cartesiana.Atualmente atua nas áreas de História da FilosofiaModerna e História da Medicina.

EDMILSON MENEZES é doutor em Filosofia pelaUNICAMP. Professor de Filosofia da História eHistória da Filosofia Moderna do Departamentode Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.Publicou, entre outros, História e Esperança emKant (Editora da Universidade Federal de Sergipe/Fundação Oviêdo Teixeira, 2000).

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SOBRE OS ORGANIZADORES E OS AUTORES8

Brasileira do Departamento de Filosofia e Ciênci-as Humanas da Universidade Estadual de SantaCruz. Publicou: “Elites de cor numa cidade brasi-leira: um estudo de ascensão social e classes soci-ais e grupos de prestígio”. Salvador, Afro-Ásia, 1997.

EDMILSON MENEZES, é Doutor em Filosofia pelaUNICAMP. Professor de Filosofia da História eHistória da Filosofia Moderna do Departamentode Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.Coordenador do GT – Filosofia da História eModernidade da ANPOF. Publicou, entre outros,História e Esperança em Kant. São Cristóvão, Edi-tora da Universidade Federal de Sergipe/ Funda-ção Oviêdo Teixeira, 2000.

FLÁVIO CARVALHO, é Mestre em Filosofia pela Uni-versidade Federal de Pernambuco. Professor daFAVIP/PE.

FRANCESCO PECORARI, é Licenciado em História pelaUniversidade Federal de Sergipe e Mestre em Filo-sofia pela Pontifícia Universidade Católica do Riode Janeiro. É Professor de História da Filosofia An-tiga e Medieval na UFS e Professor convidado deFilosofia da História no Instituto de Filosofia do Se-minário Maior da Arquidiocese de Aracaju/SE. Pos-suí vários artigos publicados em diversas Revistasespecializadas de Filosofia do país.

HUMBERTO APARECIDO DE OLIVEIRA GUIDO, é Profes-sor Adjunto de Filosofia da História e História daFilosofia Moderna e coordena o Grupo de Estudo

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SOBRE OS ORGANIZADORES E OS AUTORES 9

da Filosofia de G. Vico no Departamento de Filoso-fia da Universidade Federal de Uberlândia. É mem-bro do GT-Filosofia da História e Modernidade daANPOF. Suas principais publicações são artigos ecapítulos de livros dedicados ao estudo da filosofiade G. Vico, entre os quais destacam-se: Vico e l’emancipazione delle belle arti: l’ arte come creazioneed espressione della mente umama. In SEVILLA,J. M. (Editor) Pensar el nuevo siglo. GiambattistaVico y la cultura europea. Nápoles: Città del Sole,2001. Barbarie e esclarecimento: G. Vico e a Escolade Frankfurt. In LASTÓRIA, L. A. N., COSTA, B.C. G. & PUCCI, B. (orgs) Teoria Crítica, ética e edu-cação. Piracicaba/São Paulo: Editora Unimep/Au-tores Associados, 2001.

INÁCIO HELFER, é Doutor em Filosofia pela Universitéde Paris I Panthéon Sorbonne. É Professor de Filo-sofia da Natureza e Ética Geral do Centro de Ciên-cias Humanas da Universidade do Vale do Rio dosSinos, São Leopoldo. Publicou, entre outros: Pensa-dores Alemães dos séculos XIX e XX. Santa Cruzdo Sul: EDUNISC, 2000.

JOÃO BOSCO BATISTA, é Doutor em Filosofia pelaUniversidade Gama Filho do Rio de Janeiro. ÉProfessor de História da Filosofia, Fenomenolo-gia Existencial, Introdução à Filosofia e Filosofiada Religião no Departamento de Filosofia da Uni-versidade Federal de São João del-Rei.Publicou,entre outros: A Caminho de uma nova ética: umainterpretação do pensamento de Heidegger. Lon-drina: EDUEL, 2001.

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SOBRE OS ORGANIZADORES E OS AUTORES10

JOSÉ ANTÔNIO VASCONCELOs, é Doutor em Históriapela Universidade Estadual de Campinas.É Pro-fessor de Filosofia na Universidade Tuiuti doParaná. Publicou entre outros: História, pensa-mento e ação. São Paulo, Editora do Brasil, 1999;“História e pós-estruturalismo”, In: MargarethRago e Renato Gimenez (orgs.). Narrar a Histó-ria, Repensar o Passado. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2000.

JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA, é Doutor em FilosofiaPolítica, pela Unicamp, com pós-doutorado em Fi-losofia Contemporânea na Universidade daCalifórnia, Berkeley. É Professor Titular de Filo-sofia no Departamento de Filosofia da Universi-dade Federal da Bahia, onde ensina Filosofia Po-lítica, Filosofia Contemporânea, e Prática de In-vestigação em Filosofia. Publicou, entre outros,Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento JovemHegeliano (Edufba, 1992), e A Questão da Indivi-dualidade: a Crítica do Humano e do Social naPolêmica Stirner-Marx (Edunicamp, 1995).

JORGE GRESPAN, é Doutor em Filosofia pela Unicamp,com pós-doutorado pela Universidade Livre deBerlim.Professor de Teoria da História no Depar-tamento de História da Faculdade de Filosofia, Le-tras e Ciências Humanas da USP. Publicou O Ne-gativo do Capital. São Paulo: Hucitec, 1998.

MARIA EMÍLIA MONTEIRO PORTO, é Doutora em Históriapela Universidade de Salamanca. É professora de História da Cultura e História da Civilização Ibéri-

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SOBRE OS ORGANIZADORES E OS AUTORES 11

ca do Departamento de História da Universidade Fe-deral do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outrosartigos: “Jesuítas e Ocidentalização na Capitania doRio Grande”: Revista do Instituto Histórico e Geográfi-co do Rio de Janeiro, 2001 e “Fragmentos de melanco-lia nas cartas jesuíticas do Rio Grande”.Natal, Cader-no de História UFRN, 1999.

MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA, é Doutora em Filoso-fia pela USP. Professora do Departamento de Fi-losofia / FFLCH – USP. Publicou, entre outros,História e Ilustração. São Paulo: Discurso Edito-rial, 2001.

RAIMUNDO NONATO PEREIRA MOREIRA, é Doutoran-do em História pela Universidade Estadual deCampinas. É Professor de História Contemporâ-nea e Teoria da História do Departamento deEducação - Campus II/Alagoinhas - da Universi-dade do Estado da Bahia. É autor, entre outros,de: O tempo e a história contemporânea. In: Re-vista de Letras da FFPA/UNEB, 1994; Algumasquestões sobre Os Sertões e a historiografia con-temporânea: notas preliminares para uma pes-quisa. Anais do V Congresso de História da Bahia.

RENATO FRANCO, é Doutor pela Universidade Esta-dual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. É Profes-sor Assistente Doutor da área de Filosofia do De-partamento de Antropologia, Filosofia e Políticada Faculdade de Ciências e Letras da UNESP /Araraquara. É Coordenador do Grupo de Estudose Pesquisa sobre Teoria Critica na UNESP. Publi-

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SOBRE OS ORGANIZADORES E OS AUTORES12

cou, entre outros: “ Imagens da Revolução no Ro-mance Pós-64” In: Sociedade e Literatura no Bra-sil. São Paulo: Edunesp, 1999.

RICARDO MONTEAGUDO, é Mestre em Filosofia pelaFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-nas da Universidade de São Paulo e doutorandopela mesma universidade. É Professor-assistentede Filosofia Política do Departamento de Filoso-fia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Uni-versidade do Estado de São Paulo “Júlio de Mes-quita Filho” UNESP - Campus de Marília. Publi-cou, entre outros, “Linguagem e história emRousseau” na revista Philosophica, n º 2, mar/2001.ROSÁRIO ROSSANO PECORARO, é Graduado em Filo-sofia pela Universidade de Salerno (Itália) e Mes-tre em Filosofia pela PUC-Rio. Atualmente é dou-torando em Filosofia na PUC-Rio.Publicou, entreoutros: La filosofia del voyeur. Estasi e scritturain Emil Cioran. Salerno: Il Sapere, 1998 e“Niilismo, Metafísica, Desconstrução”. In: Às mar-gens: a propósito de Jacques Derrida. Rio de Ja-neiro e São Paulo: Editora PUC-Rio e EdiçõesLoyola, 2002.

VINÍCIUS DE FIGUEIREDO, é Doutor em Filosofia pelaUniversidade de São Paulo. É Professor de Históriada Filosofia do Departamento de Filosofia da Uni-versidade Federal do Paraná (UFPR). Publicou, en-tre outros: Quatro figuras da aparência. Londrina:Lido Editora, 1995.

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APRESENTAÇÃO 13

Apresentação

O que significa, contemporaneamente, deter-se nostemas ligados à filosofia da história? Muitos reduzi-ram essa disciplina filosófica ao opróbrio e a dispen-sam como última das manifestações metafísicas daModernidade. Entretanto, não parece que recusartoda filosofia da história, como nos adverte Gouhier,seria, ainda assim, uma filosofia da história? Com efei-to, as transformações decisivas que o mundo hodiernovê diante de si contêm implicações históricas, o quenos convoca a atualizar o debate acerca da História eseu sentido. Com esse objetivo, reunimos, neste livro,alguns textos concernentes às discussões sobre a his-tória e seu objeto, desde o século XVII até acontemporaneidade, que compõem uma amostragemdo que se está trabalhando no âmbito da filosofia dahistória, ao menos, mais expressivamente, no Brasil.

A elaboração deste livro só foi possível a partir daproposta surgida no IX Encontro Nacional de Filoso-fia da Associação Nacional de Pós-graduação em Filo-sofia -ANPOF, realizado entre os dias 3 e 8 de outu-bro de 2000, em Poços de Caldas-MG. Durante esseevento, com base na reorganização da estrutura in-terna da ANPOF, começaram a funcionar os Gruposde Trabalho (GTs). Por iniciativa de alguns pesqui-sadores da área de Filosofia da História foi pro-posto e aprovado o Grupo de Trabalho Filoso-

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APRESENTAÇÃO14

fia da História e Modernidade que possui emseu quadro professores da USP, UFS, UESC,UNICAMP, UFBA, UFU e UFPB. Notou-se, comefeito, que o surgimento do grupo suscitou o inte-resse de vários pesquisadores, mesmo não poden-do inscrever-se a tempo no GT e, oficialmente,participar de suas atividades. Atividades estas quetiveram, na avaliação dos participantes, uma boarepercussão, levando-nos a propor um encontromais amplo que conseguisse reunir a maioria dosenvolvidos com a área e os grupos de pesquisa jáformados, e, dessa forma, avaliar a produção es-pecífica ao tema. Assim, ter-se-á avaliado o estadoda questão, quando o tema é a reflexão filosóficaacerca da história e do seu sentido.

Esse encontro foi viabilizado através de umaparceria entre a Universidade Estadual de SantaCruz - UESC, a Universidade Federal de Sergipe -UFS, a Universidade São Paulo - USP e a ANPOF.O I Colóquio Nacional de Filosofia da Histó-ria, realizado no período de 20 a 23 de novembrode 2001, em Ilhéus (BA), contou com a participa-ção de pesquisadores de instituições de quase todoo país e propiciou o contato entre historiadores efilósofos, resultando daí um embate frutífero, cujadivulgação, através dos escritos, intenta o prolon-gamento daquela discussão para além das frontei-ras do colóquio.

Marisa DonatelliEdmilson Menezes

(organização do evento)

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MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA 15

HISTÓRIA E CIÊNCIA EM BACON

MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA

ste meu texto é parte de um projeto quedesenvolvo atualmente sobre o início damodernidade, e que se intitula “O en-

genheiro e o navegante: Bacon, Descartes e o pro-jeto moderno de restauração das ciências”. Naverdade, em meu trajeto de estudos, vejo-me so-bretudo como um pesquisador que os francesescostumam chamar de “dixhuitièmistes”. Minhadissertação de mestrado, meu doutorado e minhatese de livre-docência, que resultou no livro “Ilus-tração e história”, são trabalhos sobre as luzesfrancesas. Cheguei a Bacon pelo viés da necessi-dade de reconstituir a origem da idéia modernade progresso, que marcará a reflexão iluministasobre a história.

A relação entre ciência e história em Bacon podeser examinada de dois pontos de vista. Em pri-meiro lugar, pode-se analisar o lugar do saber his-tórico no quadro da divisão das ciências de Bacon.Em seguida, podemos investigar o peso da ídéiabaconiana da ciência em sua concepção da histó-ria propriamente dita, ou de sua visão do cursodos acontecimentos humanos.

S

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HISTÓRIA E CIÊNCIA EM BACON16

I. A história no quadro da divisão das ciênciasem Bacon

No De augmentis scientiarum, Bacon afirma quea história civil (que se distingue da história natu-ral e da história eclesiástica), por sua importânciae autoridade, ocupa o primeiro lugar entre os es-critos do homem. É pelo conhecimento da históriaque temos acesso aos exemplos de nossos ances-trais, que reconhecemos as vicissitudes das coi-sas, os fundamentos da prudência e da reputaçãodos homens.1

Podemos nos perguntar qual o lugar que o sa-ber histórico poderia ocupar no grande projeto derestauração das ciências de Bacon, que se caracte-riza sobretudo pela primazia da observação e daexperiência, pela escolha da via indutiva, que ope-ra o trabalho comum entre os sentidos e o intelec-to. Ou seja: a restauração das ciências para Baconé a realização de um projeto de uma filosofia natu-ral, cujo método se funda na observação da natu-reza seguido do trabalho da mente. A isto Bacondenomina “o trato direto das coisas” ou ainda “ofamiliriarizar-se com as próprias coisas” (NovoOrganon, livro I, aforismo 36), e que consiste emuma via que “recolhe os axiomas dos dados dossentidos e dos fatos particulares, ascendendo con-tínua e gradualmente até alcançar, em último lu-gar, os princípios da máxima generalidade. Este é

1 De augmentis, livro II, capítulo V

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o verdadeiro caminho, diz Bacon, que ainda nãoinstaurado” (NO, livro I, aforismo 19).

Ora, parece, à primeira vista, que “o trato dire-to das coisas” e a ascensão dos axiomas dos senti-dos até alcançar os princípios da máxima genera-lidade não seriam procedimentos adequados parao conhecimento dos fatos históricos, que são sem-pre singulares e com os quais não podemos ter exa-tamente um “trato direto”. Assim, voltamos à ques-tão inicial: qual seria o lugar da ciência históricano projeto baconiano?

Lembremos, para começar, as conhecidas sen-tenças de Bacon segundo as quais “a verdade é fi-lha do tempo”, do “parto másculo do tempo”, ouentão aquela que afirma que “a história é a únicamestra de toda verdade”2. Retomemos, em segui-da, o quadro baconiano da divisão das ciências. Ocritério de classificação do saber são as faculdadesda alma, que é, para Bacon, a sede do conhecimen-to. Assim, toda ciência humana se divide em trêspartes: a história, que remete à faculdade da me-mória, a poesia, que remete à imaginação, e a filo-sofia, que remete à razão3. A história, por sua vez,se divide em história natural e história civil. Veja-mos o que diz Bacon: “O objeto próprio da históriasão os indivíduos, enquanto circunscritos no tem-

2 De augmentis scientiarum, I.3 O quadro da classificação dos conhecimentos humanos da Encyclopédie de Diderot

e D’Alembert retomará, no século seguinte, o mesmo critério das faculdadeshumanas para classificar as ciências. Cf. D’Alembert, Discours Préliminaire del’Encyclopédie. Paris, Gonthier, 1965, p. 63.

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HISTÓRIA E CIÊNCIA EM BACON18

po e no espaço. Pois embora a história natural pa-reça ocupar-se das espécies, todavia, se ela assim ofaz, é somente por causa da semelhança que existe,sob muitos aspectos, entre as coisas naturais com-preendidas dentro de uma única espécie, de sorteque quando se conhece uma se conhecem todas, se-melhança que nos leva a confundi-las. Mesmo queconsideremos algumas vezes indivíduos únicos emsua espécie, como o Sol e a Lua, ou que em muitosaspectos se afastem dela, não se está por isso me-nos autorizado a descrevê-los na história naturaldo que a descrever os indivíduos humanos na his-tória civil”4.

Esta definição dos objetos da história, tanto anatural quanto a civil, como objetos singulares ouindivíduos, decorre do fato de que, desde a elabo-ração do quadro da classificação das ciências,Bacon tem em vista o que já acima referimos acer-ca de seu método, que parte das percepções dossentidos e ascende progressivamente até às máxi-mas mais gerais. Ora, é certo que os sentidos sóapreendem coisas particulares, e o trabalho de ge-neralização será o do entendimento, ou da razão.Isto não significa que a construção científica, paraBacon, possa ser considerada como construção ar-tificial de conceitos gerais, que não teriam seuscorrespondentes na natureza. Ao contrário, naperspectiva baconiana, o filósofo (que no séculoXVII não se distingue do homem de ciência) é, naspalavras do primeiro aforismo do Novo Organon,

4 Idem, De augmentis scinetiarum, II.

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apenas “ministro e intérprete da natureza”, e sóconsegue ampliar seus conhecimentos e sua açãona medida em que descobre a ordem natural dascoisas, seja pela observação, seja pela reflexão.Fora disso, o homem não sabe e não pode mais nada.(NO, livro I, aforismo I).

A ciência da natureza começa, pois, pela histó-ria natural. Segundo Bacon, uma história naturalque forneça o material adequado para a constru-ção de uma ciência da natureza que garanta o es-pírito contra o erro, que permita evitar a descri-ção de mundos imaginários e possibilite penetrarna verdadeira natureza do mundo, “dissecando-o”,por assim dizer, ainda não foi feita. A operação deestabelecimento desta ciência do mundo naturalexige uma história natural de um gênero novo, queprepare o entendimento oferecendo-lhe recursosnovos e efetivos: sua finalidade, por sua ordem epelo seu conteúdo, difere em tudo da lógica atéentão utilizada. Seu objetivo é o de iluminar nossainvestigação na busca de causas, tal como ele oapresenta no prefácio do De augmentisscientiarum. Não se trata apenas da descrição doscorpos, mas também de suas qualidades, ou daque-las qualidades que podem ser consideradas como“cardeais” no universo, constituindo as forças pri-mordiais da natureza. Assim, nas narrações ou des-crições, é preciso fazer entrar tudo aquilo do qualfomos ou somos testemunhas oculares, tudo o queexaminamos com cuidado e severidade, prenden-do-nos mais às coisas do que às palavras.

As divisões da história natural são estabelecidasa partir da consideração do estado ou da condição

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da natureza, que pode se apresentar de três for-mas: ou a natureza é livre e se desenvolve em seucurso ordinário, como ocorre com os céus, com osanimais e as plantas, tal como estes objetos seapresentam aos nossos olhos; ou ela aparece demodo resistente ou rebelde, como no caso das cha-madas produções monstruosas; ou, enfim, tal comoela pode se revelar por intermédio da arte huma-na. Teremos assim a história natural das gerações,das preter-gerações e a história natural das artes,que será chamada história mecânica ou experimen-tal. A primeira tem como objeto a liberdade da na-tureza, a segunda os seus desvios e a terceira osseus laços ou liames. Bacon tem consciência da no-vidade que consiste em classificar a história mecâ-nica no quadro da história natural. Os que se es-pantam com esta classificação estão presos a umpreconceito segundo o qual as artes são considera-das como uma espécie de apêndice da natureza. Ora,o princípio que corrige este preconceito considera,ao contrário, que as coisas artificiais não diferemdas coisas naturais pela forma ou pela essência, massomente pela causa eficiente. Pois o homem não temnenhum poder sobre a natureza a não ser aqueleque lhe pode dar movimento; podemos aproximarou afastar as coisas naturais umas das outras; se ascoisas naturais são dispostas a produzir certos efei-tos, pela ação do homem ou sem esta ação, istopouco importa.

Para Bacon, a primeira destas três partes dahistória natural foi razoavelmente cultivada; asduas outras foram tratadas de maneira medíocre,e a tarefa de construí-la é urgente. Se em relação

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ao seu objeto a história natural se divide nestastrês partes, em relação ao seu uso teremos duaspartes: ou é empregada para o simples conheci-mento das coisas, ou como matéria primeira da fi-losofia natural. No primeiro caso, seu fim é o pra-zer, sem nenhuma utilidade especial. Mas, no se-gundo caso, a história natural é uma espécie desementeira e material para a indução verdadeira.Toda a história natural até então produzida, se-gundo Bacon, não atende, seja pela escolha dos ob-jetos, seja pelo seu conjunto, às exigências que atornariam adequada para cumprir este fim supe-rior que é o de fundar uma filosofia da natureza(De Augmentis Scinetiarum, livro II, cap. III).

Bacon escreveu, como uma das partes da Gran-de Instauração, um Modelo de uma história natu-ral e experimental, no qual pretende apresentar aidéia de uma história natural que possa servir debase e de fundamento a uma verdadeira filosofiada natureza. Num primeiro momento, após retomara divisão tripartite à qual já nos referimos, assinalaos cuidados indispensáveis a qualquer naturalistaque se proponha a formular uma história naturalque sirva de material para a filosofia: deixar de ladoo respeito pelas antiguidades, pelas citações deautoridades, abandonar as controvérsias; abando-nar o luxo das histórias naturais sobrecarregadasde descrições e representações de assuntos, multi-plicados e variados apenas para satisfazer a curio-sidade; rejeitar as descrições supersticiosas e aspretensas experimentações da magia. Desembara-çada destas três espécies de traços supérfluos, res-tará ao naturalista empreender a exposição preci-

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sa e fiel, menos divertida, certamente, para o lei-tor; mas não se trata precisamente aqui, de prazere diversão, e sim de uma espécie de silo, paiol, deum depósito no qual se possa buscar tudo o quefor necessário para o trabalho de interpretaçãoda natureza que deve suceder à história natu-ral, e que é o seu principal fim.

Em suma: a história natural não é, para Bacon,a ciência da natureza, mas o conhecimento quedeve necessariamente antecedê-la. Ela é a descri-ção minuciosa e a ordenação de fatos naturais ob-servados seja a olho nu seja com o auxílio da arte,a partir dos quais se efetuará a indução segundoas regras prescritas no livro I do Novo Organon.

Vejamos agora se é possível reconstituir a mes-ma trajetória do ponto de vista do que Bacon de-nomina história civil, que, de modo análogo à his-tória natural, que é a matéria da filosofia da natu-reza, seria o material da filosofia civil.

Fazer história civil, para Bacon, é uma tarefaque apresenta dificuldades específicas: é precisoque o historiador possa transportar seu espíritopara o passado, torná-lo, por assim dizer, antigo,apresentar o movimentos dos séculos, observar ocaráter dos personagens, as forças secretas queconduzem as ações, os motivos escondidos dosEstados. Tudo isso é tarefa delicada que exigemuita atividade e muito juízo.

Tal como a história natural, a história civil temtambém una divisão tripartite: as memórias, as an-tiguidades e a história perfeita. As memórias ex-põem o encadeamento das ações e dos acontecimen-tos, sem se referir aos verdadeiros motivos, princí-

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pios e ocasiões. Tomam o que há de mais notávelnas pessoas e nas coisas, apresentam os aconteci-mentos na ordem do tempo. As antiguidades, oudestroços da história, são como pranchas que res-taram de um naufrágio, buscam vestígios dispersos,fragmentos da história de diferentes lugares, épo-cas e pessoas do passado. Mas o que seria, paraBacon, a história perfeita? Penso que se pode dizerque ela é perfeita no sentido latino do perfeito, ouseja, completo. O chanceler lhe atribui três funções:ou ela apresenta um recorte no tempo, ou algumpersonagem individual ou finalmente alguma faça-nha memorável, e neste caso teremos as crônicas,as vidas (biografias) e relatos, numa nova divisãotripartite. Cada um destes ramos tem sua particu-laridade: as crônicas são notáveis por sua autenti-cidade, as vidas por seu caráter exemplar e os rela-tos sempre dependem da verdade e sinceridade como qual são escritos. A crônica, ou história dos tem-pos, por sua vez pode ser particular ou universal,conforme seu objeto seja um reino ou uma repúbli-ca, ou então o universo inteiro. Penso que esta idéiade história universal, que será um pouco mais tar-de retomada por Bossuet e no século seguinte porVoltaire no Ensaio sobre os costumes, se não estásendo formulada por Bacon pela primeira vez, estápelo menos adquirindo o seu contorno propriamen-te moderno. Do ponto de vista de Bacon, emborahaja, em seu tempo, escritores que tenham empre-endido a tarefa de escrever uma história do mundodesde suas origens, os resultados têm sido um amon-toado confuso de relatos. Mas o empreendimento éjustificável e útil, pois, diz Bacon, “as coisas huma-

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nas não são tão separadas pelos limites das regiõese dos impérios ao ponto de não possuírem entre siuma infinidade de relações”. (De augmentisScientiarum, II, cap. VIII). Assim, a história uni-versal reúne, como se fosse num único quadro, osdestinos do mundo.

Passemos ao segundo ponto: a história civil deveser o material para uma filosofia civil (assim comoa história natural deve ser o material para a filo-sofia natural), objeto do livro oito do De augmentis.Temos aqui novamente uma divisão tripartite, quesegundo Bacon, apresentam as três ações princi-pais da sociedade, que são os costumes, a ciênciados negócios e a ciência do governo. O desenvolvi-mento do texto não deixa ver com clareza o papelda história civil como material para a ciência ci-vil. Esta se apresenta sobretudo como ciência daprudência, em suas três partes, ou seja, prudêncianos costumes, nos negócios e no governo. O recur-so à história, embora presente, não é sistemático.O Novo Organon não apresenta um desenvolvi-mento que seja específico para a história ou a ci-ência civil. Seria necessário examinar se a tese se-gundo a qual a história civil é material para a filo-sofia civil, tal como a história natural é materialpara a filosofia natural, se confirma nos Ensaios,assim como analisar a obra de Bacon História daInglaterra e a relação entre Bacon historiador eBacon teórico do saber histórico. Mas Bacon assi-nala o caráter preliminar ou o estágio inacabadodo projeto: diz o chanceler ao final do livro oito doDe augmentis, que tratou da ciência civil:

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“Enfim, respirando um pouco e dirigindo nosso olharpara o que deixamos para trás, pensamos que o tra-tado que acabamos de apresentar se parece muitoa estes prelúdios com a ajuda dos quais os músicostestam seus instrumentos quando vão afiná-los; pre-lúdio que, na verdade, tem algo de rude e desagra-dável aos ouvidos, mas cujo efeito será que tudo oque ouvirmos depois será mais ameno. Foi precisa-mente neste espírito que, afinando a lira das musase colocando-a no tom correto, nós a colocamos emcondições de produzir um som dos mais melodio-sos, sob os dedos e o arco de outros. É certo quequando colocamos sob nossos olhos a disposição dotempo em que vivemos, tempo no qual as letrasparecem ter voltado a se encontrar com os mortaispela terceira vez (a primeira foi com os gregos, asegunda com os romanos), consideremos os seusmeios e recursos nesta terceira visita, a penetra-ção e a profundidade do grande número de gêniosde nosso século, ... o que os antigos deixaram, aarte da tipografia, as grandes navegações, a paz naEuropa, enfim, a propriedade inseparável de nossotempo, que lhe é como inerente, cujo efeito é que averdade vai sendo descoberta a cada dia, quandoreflito sobre tudo isso, continua Bacon, não possodeixar que aumentem minhas esperanças de queeste terceiro período superará em muito os doisoutros períodos que ocorreram com os gregos e ro-manos, desde que os homens queiram conhecer, eque passem de mão em mão a tocha das ciências e

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não o estopim da contradição, e considerem a bus-ca da verdade como um dos mais nobres empreen-dimentos....” (De augmentis, VIII, cap. III).

II. Saber histórico e filosofia da história

Esta reflexão de Bacon sobre seu próprio temponos remete ao segundo aspecto da relação entre ci-ência e história na Instauratio Magna, e que diz res-peito não mais à história enquanto saber histórico,mas à concepção baconiana do curso da história pro-priamente dita, suas determinações e suas linha deforça, que poderíamos chamar mais ou menos im-propriamente de filosofia ou teoria da história.

O primeiro ponto a assinalar é que a idéia deprogresso, em torno da qual se orienta a reflexãomoderna da história, certamente tem sua origemna concepção baconiana da avanço das ciências.Nascida portanto no interior de um projeto de res-tauração do conhecimento, a idéia de progressodará às concepções modernas da história um cará-ter intelectualista, ou, se quisermos, idealista, ide-alismo aqui entendido como uma concepção parti-cular segundo a qual são as idéias, ou o avanço doconhecimento, a força que move o curso dos acon-tecimentos. É inclusive importante notar queVoltaire, quando apresenta sua teoria dos quatrograndes séculos (o de Péricles, o de Augusto, o re-nascimento e por fim chamado grande século, queé o XVII, revela de modo explícito a inspiraçãobaconiana, segundo a qual a humanidade recebeutrês vezes a visita das musas, a primeira entre os

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gregos, a segunda entre os romanos, e a terceiraem seu próprio tempo (ele de fato se situa entre orenascimento e é pioneiro da revolução do saberdo século XVII).5

A concepção histórica que foi progressivamenteforjada na modernidade considera o curso dos acon-tecimentos como um processo sem princípio e fimpredeterminados. É no interior desta concepção quepode nascer a idéia do novo na história. De que modoesta idéia do inteiramente novo foi construída nopensamento moderno ocidental? Tentemos apreen-der as etapas desta construção.

O projeto baconiano da Instauratio Magna, que,nas palavras de Bacon, tinha o objetivo de “restau-rar, aperfeiçoar a relação que a ciência estabeleceentre o espírito e as coisas”, aparece, num primeiromomento, como restauração. Entretanto, Bacon in-siste em apresentar a Instauratio como algo intei-ramente novo. Na Carta Dedicatória, dirá que o li-vro trata de “coisas novas, absolutamente novas”6.Filha do tempo (que é, segundo Bacon, o parteiroda verdade), a Instauratio Magna instala uma rela-ção com a Antigüidade: tanto a Antigüidade quantoa novidade são filhas do tempo. Assim como o tempo

5 VOLTAIRE. Le siècle de Louis XIV. In: Oeuvres Historiques,.Paris, Gallimard,Bibliothèque de la Pléiade, 1977, p. 625. O fato de Voltaire acresecentar umquarto século não altera praticamente a referência direta a Bacon, Para Voltaire,o quarto século, que é o “grande século de Luis XIV, é como o apogeu do séculoda Renascença, que concluiu o trabalho dos homens do XVI estendendo-o dasletras e artes à filosofia.

6 BACON, Francis. The great instauration.In: Novum organum. Open CourtPublishing Company, Illinois, 1996, p. 5

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devora seus filhos, estas duas também se devoram.A Antigüidade inveja as descobertas, e a novidade,não contente com o que pôde descobrir, quer aindaexcluir e rejeitar tudo que a precedeu. Na verdade, aInstauratio é restauratio: embora ela pretenda seapresentar como algo inteiramente novo, de fato, elafoi, segundo Bacon, “copiada de um livro muito anti-go, que é a própria natureza”. Ela é a novidade doponto de vista do conhecimento. Na Carta ao ReiJames, Bacon dirá que se trata de “uma nova lógica,ou arte de fazer descobertas pela via da indução”7 . Éo próprio tempo que engendra o novo no conheci-mento. Em carta à Universidade de Cambridge, de1620, Bacon declara que “o curso das eras e dos sé-culos deve necessariamente trazer o novo”. Do novono conhecimento se passa ao novo na história. Não éportanto sem razão que os radicais ingleses, duran-te a revolução, reivindicavam uma herançabaconiana, como mostram os estudos de ChristopherHill, contra qualquer evidência de que, se vivesseainda, Bacon pudesse apoiar os seus anseios de mu-dança social e política (Bacon foi um homem do go-verno na monarquia inglesa pré-revoluconária. Seuespírito político certamente não é republicano). Mas,como dizia um comentador de Diderot, toda heran-ça na história das idéias é bastarda. Daí o fato dosradicais revolucionários, levellers e diggers, julga-rem que era adequado embarcar na caravela deBacon, para ultrapassar as amarras do passado eultrapassar com ela as colunas de Hércules para es-tender os limites do mundo.

7 Idem, p. 6.

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Referências bibliográficas

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VOLTAIRE.Oeuvres Historiques.Paris, Gallimard,Bibliothèque de la Plêiade, 1977.

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PROVIDÊNCIA DIVINA E RAZÃO NAHISTÓRIA: Vico e a Filosofia Moderna

HUMBERTO APARECIDO DE OLIVEIRA GUIDO

ico (1668-1744) faz parte daquele grupo depensadores cujo lugar na história da filo-sofia não encontra consenso; é freqüen-

te encontrá-lo nos momentos anteriores ou poste-riores à época em que viveu e escreveu as suasobras. B. Croce (1980) colocou Vico no movimentodo idealismo alemão, quando não o via como a an-tecipação da filosofia de Kant; a filosofia de Vico,na interpretação de E. Grassi (1992) foi o ápice dohumanismo quinhentista e renascentista. A pro-vidência divina é o elemento que melhor elucidaesta polêmica sobre o lugar de Vico na cultura fi-losófica moderna. De acordo com L. Bellofiore(1962), a providência divina na obra viquiana é in-terpretada em quatro direções: a positivista, a ide-alista de Croce, a católica e a vitalista.

A discussão sobre a providência, neste traba-lho, contempla a quarta linha interpretativa. A in-terpretação positivista foi refutada em dois traba-lhos anteriores (Guido 1999a e 1999b); a interpre-tação idealista é a leitura que Croce fez da obra deVico, colocando-o como o precursor da sua filoso-fia do espírito pós Hegel (White 1994:241) e, por

V

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último, a interpretação católica é destituída defundamentação filosófica.

A providência divina tem nas obras de Vico sig-nificado original, de acordo com P. Girard,

(. .) esta concepção rompe com a tradiçãoagostiniana sustentada por Bossuet em seuDiscours sur l’histoire universelle. Com efeito,para Vico, a Providência jamais foi uma forçatranscendente que atua de maneira sobrenatu-ral e imediata em função de um desígnio inaces-sível ao espírito humano. (2001:46)

A originalidade na formulação da sua defini-ção de providência divina é o fruto maduro dafilosofia de Vico. Esta filosofia está integrada àperspectiva realista do experimentalismobaconiano e galileano (Iannizzotto, 1968), e absor-veu com grande intensidade as diretrizes do pen-samento moderno, recorrendo ao humanismo como propósito de resgatar a importância das disci-plinas humanistas para a formação do homemmoderno.

Vico foi original porque o seu esforço de assi-milação das tendências culturais estava sincro-nizado com a sua capacidade crítica, dando-lheisenção na polêmica que consumiu o debate in-telectual napolitano dos séculos XVII e XVIII,envolvendo os partidários da filosofia moderna— identificados como os inovadores —, e os par-tidários da contra-reforma — os conservadores.Vico foi um fervoroso admirador das grandesconquistas tecnológicas alcançadas com a as no-

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vas ciências, porém, advertia para os riscos de-correntes da aplicação perniciosa da nova ciên-cia mecânica, quando utilizada para outros finsque não aqueles da paz e da prosperidade1 .Quanto ao humanismo, para Vico a educaçãohumanista se fazia necessária para a emancipa-ção integral do homem moderno, porém, ele re-provou a falsa sabedoria resultante do excesso desoberba e presunção, tanto dos doutos, quanto dasnações: os primeiros por querer que aquilo quesabem seja tão antigo quanto o mundo, as naçõesporque cada uma quer ser a mais antiga e a pri-meira a alcançar as comodidades da vida civil.

O conceito de providência é utilizado com fre-qüência na obra magna de Vico: Principì di scienzanuova2 . É preciso cautela para a compreensão do

1 No livro de 1709, De nostri temporis studiorum ratione (De rat.), Vico enumerouas vantagens trazidas pela nova mecânica, ele concluiu a exposição alertandopara o poder de destruição das novas ciências, quando os objetivos não são maisa paz e a prosperidade da humanidade: “Sem dúvida, diria que com estas trêsdisciplinas [mecânica, geometria e física] teve origem a hodierna arte da guerra,tão evoluída em relação à dos antigos, que colocada diante do nosso método defortificar e expugnar as cidades, Minerva desprezaria sua acrópole e Júpiterreprovaria o seu raio de três pontas por não ser sem pontas e inerte.” (De rat.,p. 175)

2 Esta obra teve três edições, a primeira foi publicada em 1725, cinco anos depois,com profundas reformulações, acréscimos e correções, surgiu a segunda edição,finalmente, já em seu leito de morte, entre dezembro de 1743 e janeiro de1744, Vico corrigiu as provas tipográficas da terceira edição que viria a públicoem julho de 1744, seis meses após a sua morte. Em relação à segunda edição de1730, o texto de 1744 possui pequenas correções, alguns esclarecimentos epoucos acréscimos, de maneira que não traz inovações em relação ao que haviasido publicado na segunda edição. Por este motivo, a edição de 1744, mesmosendo a terceira edição, é nomeada pela crítica viquiana como a Scienza nuovaseconda de 1744. Doravante, a referência a esta obra será feita de formaabreviada: Sn44, seguida do número do parágrafo.

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uso que Vico faz nas sucessivas passagens nas quaisé empregado o conceito de providência. Na pers-pectiva da interpretação vitalista aqui adotada, talconceito aparece sob duas orientações distintas:ora como razão universal, ora como a racionalidadehumana, neste caso a providência divina é o sinô-nimo do entendimento humano.

Nas páginas iniciais da Sn44, recorrendo a umagravura3, Vico tece as primeiras consideraçõessobre a providência divina; não há nessas conside-rações uma definição pronta, uma formulação es-tática, ao contrário, o propósito de Vico é a inves-tigação dessa força providente nos desígnios hu-manos. Ficam evidentes nas primeiras páginas daSn44 dois propósitos inconfundíveis: demonstrar aexistência de Deus como força providente que pre-serva o gênero humano, e, segundo, investigar osprimórdios da humanidade, ou seja, a barbárie. NaSn44, Vico não persegue a compreensão do Deusda tradição judaica e cristã, também não discute ademonstração de Deus segundo a ordem das coisasnaturais criadas pelo intelecto divino; a novidadeda ciência de Vico é, precisamente, o estudo domundo social.

Evidenciar a existência de Deus somente pelarazão natural, era para Vico realizar a tarefametafísica apenas pela metade; é muito mais fácil

3 Vico redigiu os parágrafos da “Idéia da Obra” da Sn44 descrevendo uma gravuraque oferece os elementos necessários para a investigação dos tempos obscuros;esta gravura foi incorporada à segunda edição de 1730 e permaneceu no textodefinitivo de 1744, a gravura foi concebida pelo próprio Vico e feita por umilustre desenhista napolitano da época, Domenico Antonio Vaccaro.

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confirmar a existência de Deus por aquilo que émais peculiar, Vico estava se referindo às vonta-des e às paixões humanas. Para alcançar o seu pro-pósito, Vico não admitiu que somente as ciênciasmecânicas e naturais pudessem exprimir verda-des indubitáveis, ele defendeu a pertinência dasdisciplinas humanistas para a investigação da ver-dade sobre o homem; daí decorre a sua concepçãode providência divina ser vitalista; o próprio Vicose encarrega de esclarecer o leitor:

porque ela[a metafísica], nesta obra, mais alto sealçando, contempla em Deus o mundo das menteshumanas, que é o mundo metafísico, para demons-trar a providência no mundo dos ânimos humanos,que é o mundo civil, ou seja, o mundo das nações.(Sn44, § 2)

A gravura utilizada para apresentar os propó-sitos da Sn44 salienta o movimento da luz naturalna direção descendente: do Deus providente o raioluminoso atinge o peito da metafísica, espargindoa luz na direção da estátua de Homero, que se en-contra um pouco mais abaixo. No entanto, no tex-to, Vico diz que a metafísica em atitude de êxtasecontempla em Deus o mundo das mentes huma-nas dos homens ferinos, para os quais, Deus nãose revelou, tal como havia feito com o seu povoeleito. A ausência deste princípio impeliu essespovos ímpios a buscarem a salvação dos seus ma-les valendo-se do próprio esforço. Esses homensnão se encontravam jogados no mundo, tal comoconjeturavam os jusnaturalistas protestantes, eles

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tiveram para o seu auxílio somente a providênciadivina, a única capaz de preservar o gênero huma-no em um tempo sem lei e sem a cognição do ver-dadeiro Deus.

O equívoco dos primeiros homens: imaginar osseus deuses dotados de propriedades tanto huma-nas quanto sobrenaturais, resultou da robustez dafantasia desses primitivos, que, com a mesma in-tensidade, foram débeis de raciocínio. Os primei-ros bárbaros foram muito rudes para entender ospropósitos elevados da providência. Assim nasce-ram as religiões pagãs no mundo bárbaro, elas fo-ram os primeiros freios para os impulsos violen-tos que perduraram durante o vaguear ferino des-ses homens solitários e infelizes. A Sn44 foidedicada à investigação dos

(...) tempos determinados e ocasiões particularesde necessidades ou utilidades humanas, sentidaspelos primeiros homens da gentilidade, eles, comespantosas religiões, as quais eles mesmos fingi-ram e acreditaram, imaginaram primeiro tais edepois tais deuses; (...). (Sn44, § 6)

Para Vico, a perenidade da vida humana sobrea terra é a prova cabal que fundamenta a certezada existência da força providente, com a qual osprimeiros homens tornaram-se capazes de dar for-ma humana às suas paixões ferinas. A ação da pro-vidência divina não se configura como força sobre-natural, pois, ela não interfere em momento al-gum nos eventos humanos; a providência se fazpresente como força natural e inata que impulsio-

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na o homem ferino na construção da ordem social,na qual ele se conhece e se realiza.

O conceito de providência está diretamente li-gado a outros dois conceitos essenciais: naturezahumana e livre-arbítrio. Vico não refutou a defini-ção racionalista de razão, que a descreveu comoluz natural; no entanto, esta luz só atinge o seuesplendor quando é preservada em um ambienteadequado, ou seja, o mundo social. A luz natural éa própria natureza humana, a natureza sociávelque existe desde o momento em que a vida huma-na surgiu no mundo; o primeiro pensamento hu-mano foi o objeto da pesquisa obstinada de Vico,que consumiu os seus esforços por mais de vinteanos. A este respeito Vico afirmou:

(...) para chegar ao costume deste primeiro pensa-mento humano nascido no mundo da gentilidade,encontramos ásperas dificuldades que nos custarama pesquisa de bem vinte anos, e [devemos] descerdestas nossas naturezas humanas muito civilizadasaté aquelas de fato ferinas e hediondas, as quaisnos é certamente negado de imaginar e somentecom grande pena nos é permitido de entender.(Sn44, § 338)

A violência dos costumes humanos aponta paraa forma do primeiro pensamento: o espanto, doqual resultou a cognição confusa de Deus, cultiva-da nos primórdios da humanidade por intermédiodas religiões bárbaras. A luz natural faz com queos homens sejam seres sociáveis, daí a relação daprovidência divina e da natureza humana com o

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livre-arbítrio, que, segundo Vico se configuroucomo a única autoridade do mundo sem lei, e, tam-bém, é esta autoridade que conduziu os homensna direção do mundo social:

Tal autoridade é o uso livre da vontade, sendo ointelecto uma potência passiva sujeita à verdade:porque os homens deste primeiro ponto de todasas coisas humanas começaram a celebrar a liber-dade do arbítrio humano de ter sob freio os movi-mentos dos corpos, para aquietá-los, ou, dar-lhesmelhores direções. (Sn44, § 388)

A força natural que Vico denomina de providên-cia divina está nos indivíduos, impelindo-os a agi-rem motivados pelas suas necessidades e visandoas suas utilidades. Anterior ao surgimento das fa-mílias, existiu o estágio ferino, caracterizado peloisolamento entre os homens, de modo que, cadaum se constituiu em uma autoridade solitária, nãohavendo nenhuma norma moral, porque isolados,os indivíduos faziam de si a regra do universo.

Porém, dizia Vico inspirado em Espinosa, “ascoisas fora do seu estado natural nem se adaptam,nem duram” (Sn44, § 134), tal afirmação atesta queos homens são por natureza sociáveis (Sn44, § 2); asituação conjectural da guerra de todos contra to-dos não se perpetua, porque existe em cada um aforça natural que impele cada indivíduo a realizara sua verdadeira natureza. Vico dizia, amparadopela história universal, que “o gênero humano des-de que se tem memória do mundo, viveu e vive demodo confortável em sociedade” (Sn44, § 135).

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Os parágrafos acima deixam nítido que a refle-xão de Vico está situada no âmbito da filosofia dosséculos XVII e XVIII, porém, há uma peculiaridadeno trabalho de Vico, ele quis adentrar os domíniosque haviam sido abandonados pelos seus contem-porâneos e, por isso, foram reduzidos à uma únicapalavra: tradição. Contrariando a orientaçãocartesiana da luz natural, Vico enxergou tambémuma força social que atua sobre a razão. O entendi-mento humano é algo natural porque existe e atuano indivíduo, dependendo de estados fisiológicos;ainda cabe acrescentar, o entendimento é naturalporque Deus “em seu eterno conselho, nos deu oser, e naturalmente no-lo conserva” (Sn44, § 2). Estaessência natural do ser é o objeto da ciênciacartesiana, porém, ela só poderá ser compreendidano momento em que o indivíduo é visto como pes-soa, isto é, o ser integral, real e existente.

A elucidação da razão, segundo a ordem natural,só será efetivada quando o seu estudo estiver associ-ado à investigação social sobre o homem, isto por-que, a realidade física, que foi criada pelo intelectodivino depende da vontade divina, ao passo que ohomem, além da dimensão natural, é o responsávelpela ordem social que atua sobre a sua razão. Maisuma vez, Vico insiste na pertinência do primeiropensamento humano como a chave para o conheci-mento da história das idéias humanas:

Assim, nos é naturalmente negado de poder en-trar na vasta imaginação daqueles primeiros ho-mens, cujas mentes em nada eram abstratas, denada eram sutis, de nada eram espirituosas, por-

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que estavam todas submersas nos sentidos, todasembotadas pelas paixões, todas sepultadas nos cor-pos: por isso dissemos acima que ora podemos ape-nas entender, de fato imaginar não se pode, comopensaram os primeiros homens que fundaram ahumanidade gentílica. (Sn44, § 378)

A autoridade solitária de cada indivíduo con-duziu as ações humanas na direção da satisfaçãoimediata das necessidades naturais, das quais apreservação da vida é a fundamental. A preserva-ção da vida levou os primeiros homens ao convíviosocial, formando as primeiras famílias, querendoproteger as suas famílias os bárbaros criaram asprimeiras cidades, para garanti-las construíramos impérios sobre a terra, desta marcha da histó-ria é de se deduzir um princípio universal: “o ho-mem em todas essas circunstâncias ama principal-mente a própria utilidade” (Sn44, § 341). Nesteponto Vico passou a explorar a heterogeneidadedos fins das ações humanas.

A heterogeneidade das ações humanas faz daSn44 uma teologia civil racional da providênciadivina, porque, no início, os homens das naçõesgentias imaginaram os seus deuses, diz Vico: “en-tão os primeiros homens, que falavam por sinais,pela sua natureza acreditaram que os raios, os tro-vões eram sinais de Júpiter” (Sn44, § 379). Antesdos deuses, viveram os homens. A religião é a pri-meira das coisas humanas, que conduziu os homensna passagem do estágio ferino da autoridade soli-tária para a vida familiar, que é a fase de transi-ção em direção ao mundo civil. Vico foi enfático ao

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defender a primazia do homem e a sua anteriori-dade em relação à geração dos deuses: “esta Ciên-cia nos seus princípios contempla primeiramentea Hércules” (Sn44, § 3).

Parafraseando Descartes a respeito da primei-ra verdade que é alcançada com a reflexão filosófi-ca, Vico se referiu da seguinte maneira à primeiraverdade sobre o mundo social:

Mas em tal densa noite de trevas onde está encober-ta a primeira e muito distante antigüidade, apareceeste lume eterno que não se esconde, desta verdade,que não se pode de modo algum colocar em dúvida:que este mundo civil ele certamente foi feito peloshomens, o qual se pode, porque se deve, encontraros princípios nas modificações da nossa própria mentehumana. (Sn44, § 331)

A história universal e o desenvolvimentocognitivo singular de cada indivíduo estão em rela-ção unívoca e confirmam a providência na história.A providência, na acepção do entendimento huma-no, está presente nos sucessivos estágios de desen-volvimento das idéias humanas. No início, durantea idade dos deuses, os homens utilizavam uma lin-guagem muda, cujos caracteres eram os sinais na-turais feitos por intermédio dos corpos, esta lin-guagem foi um “falar fantástico por meio de subs-tâncias animadas, a maior parte de imagens divi-nas” (Sn44, § 401). O segundo estágio da históriauniversal, a idade dos heróis, foi um tempo no qualvigorou a força dos nobres sobre a plebe. A imagi-nação é a principal faculdade do entendimento hu-

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mano bárbaro, a linguagem heróica é falada por in-termédio de metáforas e alegorias, tendo porcaracteres as insígnias e as armas dos nobres.

A idade dos homens é a realização plena da na-tureza humana, momento em que se atinge o ápiceda sociabilidade da razão humana, a linguagem éconvencional, isto é, compreendida por todos, e oscaracteres são as letras alfabéticas, com as quaissão escritas as leis civis. A observação rigorosa dosestágios iniciais da razão permitiu a Vico elaboraruma ciência sobre a marcha da história universal,descobrindo, a partir desta ciência, a constância dascoisas humanas, expressa da seguinte maneira: “oshomens primeiro sentem sem advertir, depois per-cebem com o ânimo perturbado e comovido, final-mente refletem com a mente pura” (Sn44, § 218).

Outro aspecto original da filosofia de Vico é asua interpretação do caráter cíclico da história.As três idades não são estáticas, elas alternam-sedurante os cursos e o recursos da história univer-sal. O progresso histórico é acumulativo, porém,não é linear e ascendente, existem muitos momen-tos de queda na marcha progressiva da história dahumanidade, esses momentos de declínio atestama fragilidade do entendimento humano, que mes-mo tendo atingido — na polis grega e no Séculodas Luzes — o ponto mais alto da sabedoria, corre orisco de cair em uma nova situação de barbárie. Omundo feudal, por exemplo, foi para Vico a segundabarbárie. O retorno à barbárie não significa a repeti-ção da história, isto nunca acontece, o que ocorre éque a humanidade está em constante mudança e cor-re o risco de criar situações que não contemplam a

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eqüidade civil, e sempre que a igualdade entre oshomens desaparece, isto é um sinal evidente de quea verdadeira natureza humana está vivendo uma si-tuação de dominação social, tal como ocorreu duran-te as sucessivas barbáries: a primitiva e a feudal.

A providência divina não abandona os homens, mes-mo quando eles fazem o contrário daquilo que lhessubministra a razão. Apesar da queda, o progresso éincontestável, depois da primeira barbárie, as religi-ões bárbaras desaparecem, dando lugar à filosofia, cujatarefa foi descrita por Vico: “a filosofia para auxiliar ogênero humano, deve soerguer e sustentar o homemcaído e débil, e não retorcer a sua natureza, nemabandoná-lo em sua corrupção” (Sn44, § 129)4 . A filo-sofia é a possibilidade de preservação da idade doshomens. Porém, para que isto seja possível, é precisopreservar a memória das coisas humanas responsá-veis pela vida em sociedade. A filosofia da história deVico não teve a pretensão de apresentar uma lei defi-nitiva para o curso da história, menos ambiciosa —no entanto, muito mais eficiente —, a história na Sn44cumpre o designo que o próprio autor sublinhou:

De tal maneira esta Ciência vem a ser de fato umahistória das idéias, costumes e feitos do gênero hu-mano. E dessas três se vejam surgir os princípios dahistória da natureza humana, e estes serem os prin-cípios da história universal, a qual, parece ainda ca-recer dos seus princípios. (Sn44, § 368)

4 Vico estabeleceu um paralelo entre os poetas teólogos e os filósofos: os primeirosforam os sentidos, os últimos o intelecto da humanidade (Sn44, §363).

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Referências bibliográficas

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JUSTIÇA E HISTÓRIA NALINGÜÍSTICA DE ROUSSEAU

RICARDO MONTEAGUDO

“Temo que não nos desvencilharemos de Deusenquanto acreditarmos na gramática”.(Nietzsche)

ecentemente, uma nova tradução deuma importante obra póstuma deRousseau foi introduzida por um ensaio

de Bento Prado Jr intitulado “A força da voz e aviolência das coisas”. Este ensaio foi escrito hámais de vinte anos e seu objetivo é estabelecer umaleitura de Rousseau a partir de sua concepção delinguagem retomando aspectos da retórica anti-ga. Bento polemiza com alguns estudiosos da lin-guagem que atingem o cerne da modernidade a par-tir de Rousseau. A finalidade destes estudiosos eraprecisamente, no momento em que o pós-moder-nismo começa a surgir, destruir a possibilidade deuma filosofia da história, daí o interesse porNietzsche e a rejeição de Hegel. O alcance do de-bate aparentemente historiográfico proposto porBento Prado é por isso surpreendente.

V

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Bento discute a leitura do Ensaio sobre a ori-gem das línguas e a concepção de linguagem emRousseau proposta por J. Derrida em Agramatologia, por M.Foucault em As palavras e ascoisas e por J. Starobinski em A transparência e oobstáculo. Além da relação entre filosofia e litera-tura no século XVIII, o que também está em ques-tão portanto é a possibilidade de comunicação, oumelhor, os graus de comunicação conforme as cir-cunstâncias. Daí a importância da linguagem e dareflexão sobre a linguagem feita pelos antigos, es-pecialmente por meio da oposição entre retórica efilosofia. Temos de um lado a persuasão e de outroa verdade. Como compreender em Rousseau a ver-dade (sua divisa pessoal era vitam impendere vero,dedicar a vida à verdade) e o paradoxo (ele diziaque “prefere ser um homem de paradoxos do queum homem de preconceitos”)? Veremos que o eixocentral de seu pensamento é a justiça.

I

A interpretação do Ensaio sobre a origem daslínguas é especialmente complexa por se tratarde uma obra aparentemente inacabada epublicada postumamente. A divisão em capítulosfoi feita pelos comentadores e há diversas passa-gens que contradizem outras obras do cidadão deGenebra (por exemplo, a caracterização da con-dição natural do homem muito próxima do esta-do de guerra, lembrando a fase final do “segun-do” estado de natureza no Discurso sobre a desi-gualdade, quando a propriedade era já quase ine-

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vitável). A importância desta obra está na análi-se da língua como uma melodia, isto é, como umamúsica. Assim, o tempo é fundamental na com-preensão dos processos de comunicação e de suaevolução. Ademais, a tonalidade peculiar a cadavoz e o acento presente no som, ou melhor, a ma-neira como o tom peculiar a cada um atinge o ou-tro porta sinais naturais. Um grito de dor é facil-mente reconhecido e desperta sentimentos natu-rais. Segundo Rousseau, há no som algo de natu-ral que fala ao coração, que atinge a natureza dohomem para além de sua consciência. Por isso,surgiu um problema quando os sons começarama se combinar e ritmar para formar palavras, poiso sentido passou a exigir algum tipo de conven-ção artificial que permanecesse no tempo. O sen-tido é por isso necessariamente acrônico (daí areferência elogiosa ao Crátilo de Platão feita porRousseau no Ensaio, capítulo 4 in fine). Ao intro-duzir a mediação da convenção, o sentido precisade outra mediação para explicitar a primeira eassim por diante. A multiplicação de mediaçõesintroduz mudanças na comunicação, por issoRousseau afirma que “quando as luzes se esten-dem, a linguagem muda de característica, [...] enão fala mais ao coração mas à razão” (ROUSSEAU1999, p.123). É o fim da transparência.

Da mesma forma, o desenho e a escritura tam-bém amarram o tempo e são acrônicos, exigem en-tão mediações para adquirirem sentido e não falammais diretamente ao coração, ou diretamente à na-tureza. Rousseau afirma que “a arte de escrever nãodecorre (ne tient point) da arte de falar” (ibid., p.125)

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e são independentes entre si, pois inicialmente re-correm a convenções diferentes. Entretanto, a es-crita permite designar o estágio de desenvolvimen-to de uma sociedade: primeiro pinta-se objetos(como no caso dos [hieróglifos] egípicios e dos[astecas] mexicanos); segundo estabelece-se sinaispara designar relações (como os chineses); só emterceiro lugar a fala é decomposta em partes ele-mentares (como os europeus).

Há então uma gradação entre a melodia natu-ral da voz e a melodia artificial da fala paralela àimagem natural do gesto e à imagem artificial daescrita. A linguagem muda de característica tor-nando-se convencional. A justiça natural imediatapassa a depender da mediação da convenção, e ohomem se torna um ser moral. A acronia da con-venção, todavia, é um artifício que não sufoca to-talmente a justiça natural, sufoca-a apenas parci-almente por que se vale dela como simulacro parase estabelecer, e é justamente a sutileza destasimbiose entre natureza e cultura que dificultainterpretar o pensamento de Rousseau.

O título do ensaio de Bento é especialmente es-clarecedor de seu argumento. Trata-se de mostrarque em Rousseau a pura voz que antecede o logos écapaz de atingir o outro, adquirindo assim uma for-ça. A voz tem então uma força antes de se tornararticulada. Esta força é oriunda da piedade naturalpela qual um ser sensível tem compaixão pelo so-frimento de outro ser sensível. Por outro lado, ascoisas sentidas podem ser indiferentes, causar dorou prazer, mas são sentidas independentemente davontade do ser que sente, por isso é preciso antes

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aprender a conviver com elas do que rejeitar algu-mas sensações e privilegiar outras. Como não po-dem ser escolhidas, não padecem de moralidade epor isso são, por assim dizer, violentas. Temos, as-sim, um parâmetro para uma espécie de inter-sen-sibilidade, a força da voz, que pode vir a se tornarinter-subjetiva (quando a voz vira fala, quando aphoné vira logos), e a violência das coisas, que vaiimplicar uma mediação material para a inter-sub-jetividade. Se formos parafrasear Starobinski, a for-ça da voz equivale à transparência, que entretantoantecede o logos, e a violência das coisas equivaleao obstáculo, sempre presente em qualquer rela-ção. Note que a introdução do logos exclui a trans-parência e a imediatez, mas por outro lado tambémelimina a intransponibilidade do obstáculo.

A análise de uma passagem muito curiosa pode nosajudar a compreender o que está em questão. Segun-do Rousseau, a música tem “poder sobre nossos cora-ções” por que “na melodia, os sons não agem em nósapenas como sons, mas como sinais de nossas afei-ções, de nossos sentimentos” (ibid., p.171). Este “efei-to moral” atinge até mesmo os animais, como prova aatenção dispensada pelos gatos ao ouvirem imitar-mos seu miado. Haveria então uma melodia naturalenquanto sinal de sentimentos naturais. Entretanto,porque algumas impressões [musicais] que nos atin-gem são indiferentes para os bárbaros, ou porque nos-sas mais belas músicas não têm valor para os caraíbas?Rousseau lembra, então, que “como prova do poderfísico dos sons cita-se a cura das picadas dastarântulas” (ibid., p.172). Para curar as picadas desteinseto, não são necessários sons absolutos ou as mes-

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mas árias; ao contrário, para cada um é necessárioárias de uma melodia que conheça e cujas frases pos-sa compreender. Assim, o italiano precisa de áriasitalianas e o turco de árias turcas. Os acentos que afe-tam o convalescente precisam ser-lhe familiares. Eleprecisa entender a língua que lhe falam para que oque lhe dizem possa colocá-lo em ação. Assim, se amúsica não dispuser seu espírito de forma favorável,ela não surtirá o efeito desejado. Por isso, as mesmascantatas de Bernier que curaram a febre de um músi-co francês tê-la-iam causado em outro músico de qual-quer outra nação. Portanto, primeiro, a música temum poder natural sobre os espíritos; segundo, estepoder natural depende de convenção.

O interessante é que o desenho, a pintura, a es-critura ou até a geometria são acrônicas para apercepção. Tais artes que independem do temposensitivo não podem ter o mesmo poder naturalque a música: “não ver que o efeito das cores resi-de em sua permanência e o dos sons em sua suces-são significa conhecer muito mal as operações danatureza” (ibid., p.174). Ora, o colorido suscita ad-miração e contemplação, nada resta a fazer. Equi-vale, em música, à pura harmonia, à repetição domesmo, portanto sem nenhuma melodia. Os pode-res da melodia são mais amplos. “As cores são oornamento dos seres inanimados, toda matéria écolorida; porém os sons anunciam o movimento, avoz anuncia um ser sensível; somente os corposanimados cantam”. Há então um privilégio da mú-sica e da melodia sobre as outras linguagens ex-clusivamente harmônicas. “O campo da música é otempo, o da pintura é o espaço”. Trata-se, então,

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de compreender como esta questão se apresentaem outros aspectos do pensamento do cidadão deGenebra. Como todo o movimento e toda mudançase dá no tempo, a oposição entre a história e a na-tureza em Rousseau adquire mais esta referência,música e pintura, ou, nos termos de Bento Prado,paradigma musical e paradigma pictórico.

Em seu ensaio, Bento mostra que a teoria musi-cal de Rousseau é paradigma para a análise da lin-guagem: “a música se encontra no ponto de partidada gênese ideal [das línguas] e num dos polos da re-flexão sistemática” (PRADO Jr 1998, p.61). Na ori-gem, são as paixões que unem fala e canto, e não asnecessidades (como já indicado em MONTEAGUDO2001); na estrutura da linguagem, a melodia é privi-legiada por oposição à harmonia. Por isso, a cura daspicadas das tarântulas não pode ter regras musicaisabsolutas, pois a força da música na cura dependeda possibilidade de ser interpretada. Não há assimuma verdade de razão que force a cura, mas umaverdade de sensação vinculada a uma experiênciaanterior. Do ponto de vista objetivo da físicaperceptiva, o som e a visão são análogos na medidaem que se compõem de ondas sonoras ou visuais, masa experiência da visão é espacial e a do som é tempo-ral, o que implica uma diversa relação da heteroge-neidade da percepção na formação da consciência.As cores existem por si mesmas, não são alteradaspela presença de outras cores, (“o amarelo é amare-lo, independentemente do azul e do vermelho”, dizRousseau), mas o som depende de suas relaçõesmútuas no interior de um sistema definido. Ora, oser físico e o ser moral se distinguem pelo ser coisa e

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pelo ser relação. A percepção visual do ser físico oupictórico implicam uma relação temporal que é ex-terior à própria percepção espacial, porém isto nãoocorre na percepção sonora ou musical, pois a rela-ção lhe é constitutiva e interior. Por isso, a teoria daimitação em Rousseau adota o paradigma musical,isto é, a percepção visual também é musical, pois érelacional ao longo do tempo, transforma-se com otempo. Para Rousseau, portanto, dizer que o conhe-cimento é histórico é dizer que o conhecimento man-tém o paradigma musical da verdade sensitiva erelacional, e não o paradigma pictórico da verdade te-órica e absoluta. De fato, qualquer conhecimento é re-sultado de condições históricas e mesmo biográficas.

Segundo Bento, o sentido da idéia de verdadeem Rousseau sofre um deslocamento pelo qual a“universalidade da razão” sempre se volta a uma“humanidade local e histórica”. Assim, o “usocognitivo” da linguagem não se separa de seu “usoprático” (ibid., p.82). Adiante, Bento mostra que agramática não se dissocia de seu outro, a retórica,e por isso a verdade está sempre em simbiose coma justiça. Não há razão externa ao jogo de interes-ses e entende-se por que “tout tient à la politique”,tudo concerne a política. Portanto, a preocupaçãocom a justiça e com a política está presente emtodas as manifestações literárias de Rousseau1 .

1 Este aliás é um dos pontos de partida de Bento Prado Jr: “Há um apagamento dafronteira que separa a filosofia e a literatura, elas não são mais regiões diferentes,mas espaços imbricados internamente” (PRADO Jr 1972, p.15).

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II

Vejamos agora a crítica de Bento às leiturasde Foucault, Derrida e Starobinski.

Na Gramatologia, Derrida afirma, seguindoos passos de Nietzsche, que a história da metafísicaatribui ao logos a origem da verdade e se caracteri-za pelo logocentrismo. O império da lógica na es-critura e na ciência rejeita todo conhecimento quenão se apoie na simbologia matemático-fonética.Com isso, a linguagem se infla como problema por-que precisa lidar tanto com o ser quanto com o pen-samento enquanto presenças representadas de simesmos. O mundo então é passível de leitura pelopensamento, e a leitura adequa o logos às duas pon-tas de contato. Dessa forma, a leitura por si só énão-presença que determina a objetividade de umlado e a subjetividade de outro. Segundo Derrida, adenúncia da leitura como não-presença é exemplarem Rousseau, que acusa a representação na escri-tura como empobrecimento da presença, entretan-to Rousseau repete o gesto platônico de referir-sea outro modelo de presença, a do sentimento carre-gando em si a lei divina. Assim, a escritura asfixia avida, pois a voz da consciência e a lei divina do sen-timento e do coração prescindem de representação.A transparência das leis da natureza funcionariacomo simulacro de relações morais. Rousseau, en-tão, acusa a debilidade da escritura, como suple-mento exterior àquilo que exprime, representaçãode representação, mas imediatamente recalca oalcance desta fraqueza que impediria toda e qual-

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quer comunicação. Entre uma voz sem logos - purasubjetividade - e um logos geométrico - pura obje-tividade - não há meio termo possível. Rousseau,então, desespera e delira, eis a origem dos mal-entendidos de que foi vítima.

Segundo Bento, todavia, reduzir a lingüísticade Rousseau a esta dualidade cartesiana é não re-conhecer a inter-subjetividade como constituidorada moral e reguladora do poder, tanto na compre-ensão do mundo em sua presença quanto na inter-pretação do mundo em sua representaçãoconceitual ou lingüística. Por isso, a “violência daletra” indicada como fonte de poder em Lévi-Strauss e Rousseau, segundo Derrida, adquirepara Bento, ao contrário, força retórica fundadatanto na força da voz regredida à simples nature-za quanto na violência das coisas revelada pelojogo do poder. Bento vê, portanto, na linguagemuma força moral por meio da voz (pelo acento na-tural) e um poder político revelado pela violência.Segundo Derrida, a imitação em Rousseau dupli-ca a natureza em dois movimentos contraditóriosque não se unem (solipsismo e logocentrismo) eque, caso se unissem seriam inúteis. Bento obser-va o seguinte: “Invertendo a fórmula de Derrida, aimitação não pode jamais tornar-se inútil pois, sema obliquidade de seu trabalho, nenhum espetáculopode acontecer e ser vivenciado no imediato”(PRADO Jr 1998, p. 67). A obliquidade da imitaçãoé precisamente a interpretação. Por isso, “o espe-táculo da natureza tem a necessidade da imitaçãopara abrir-se aos olhos dos homens”. Rousseaupode então permanecer crítico do logocentrismo,

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como nota Derrida, mas sem cair da dualidadecartesiana de que é acusado2.

As críticas de Foucault em As palavras e as coi-sas não são, no fundo, muito diferentes das deDerrida. Segundo Foucault, a experiência da lingua-gem entre os séculos XVI e XIX é o de estabelecer aomesmo tempo normas de bom uso e princípios quegovernam a verdade. Ela reúne, então, norma e fato.Este nominalismo exprime a utopia de uma lingua-gem que exprima a interioridade de uma consciên-cia. Mais uma vez, a obra de Rousseau é exemplar,pois exprime a tensão entre, de um lado, a esperan-ça iluminista de se constituir um saber empírico peloconhecimento da natureza e, de outro, a ausência designificado moral deste conhecimento quando nãointegrado com o conhecimento “do homem e dos ho-mens”. Por outro lado, todavia, a singularidade docidadão de Genebra no século das Luzes ainda oconduz ao delírio persecutório e ao desejo de apre-sentar-se como vítima. Permanece então a carac-terística da “utopia de uma linguagem perfeita-mente transparente em que as coisas elas mesmasseriam nomeadas sem interferência” (Foucault,apud PRADO Jr 1998, p.27). As palavras na cons-ciência e as coisas no mundo se identificam no cam-po mediador da linguagem. Esta identificação lin-güística gera uma prática institucional pela qual osaber se configura como um poder: quem não tem

2 Por outro lado, a idéia de justiça permanece baseada na natureza mesmo sem ologos para guiar a interpretação, o que não necessariamente salva Lévi-Straussdas críticas de Derrida.

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consciência não tem poder. Segundo Foucault, asinceridade de Rousseau entra em colapso com areprodução material de sua palavra que a defor-ma fora de sua intimidade. O registro exterior eli-mina a transparência de sua origem e dá à palavrauma dimensão arbitrária.

Segundo Bento, contudo, este outro lado da lin-guagem sustentado pela gramática não é arbitrá-rio porque obedece uma finalidade retórica quepode ser calculada. A dispersão da verdade pri-meira, ao invés de fortalecer a gramática (normasde comunicação), articula a intersubjetividade e aorganização social. Ora, mesmo quando a lingua-gem não era exterior à gramática, a imitação e ainterpretação já eram elementos constitutivos dacomunicação. Daí a importância da música comoparadigma. Por isso, segundo Bento, Rousseau afir-ma que “dizer e cantar eram a mesma coisa” e per-gunta se “teria sido tão espantoso, quanto à ma-neira pela qual se formaram as primeiras socieda-des, que se tivessem posto em verso as primeirashistórias e se tivessem cantado as primeiras leis?”(PRADO Jr 1998, p.85)3.

Starobinski também mostra a civilização comoobstáculo para o ideal de transparência na lingua-gem. Este ideal num momento feliz da históriahumana, quando a astúcia e a mentira não eramnecessárias, antes da instituição da propriedadee do estado de guerra. Há todavia momentos em

3 Bento acompanha Foucault em outro sentido: “a reflexão de Rousseau faz tremeros princípios da lingüística clássica em todos os níveis” (PRADO Jr 1998, p.85).

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que a experiência da palavra pode restituir estafelicidade original, como mostram algumas passa-gens da Nova Heloísa. Mesmo assim, trata-se deum intervalo que não pode durar. A perspectivapsicanalítica de Starobinski assevera que o desejode transparência mergulha Rousseau em depres-são perante o menor obstáculo. A linguagem en-tão prescinde de suplemento, pois apenas o ato decomover-se é suficiente para emocionar, a sinceri-dade do sentimento é suficiente para que seja sen-tido enquanto tal. O acento da voz garante a gêne-se do sentido no outro. O silêncio é então um obs-táculo incontornável. Neste caso, a liberdade e ainterpretação são ignoradas. Starobinski afirmaque “Rousseau interpreta, mas não quer saber queinterpretou” (apud PRADO Jr 1998, p.25). Em ou-tro lugar, diz que “Rousseau se recusa a admitirque a significação depende dele e que, em grandeparte, seja sua obra” (apud PRADO Jr 1998, p.70).

Bento afirma simplesmente que “esta verdadepsicológica ou existencial não tem contrapartidano sistema de seu pensamento. Pelo contrário,desde o nível mais elementar da percepção,Rousseau faz atuar a liberdade e, com ela, a inter-pretação” (ibid.). Ora, Bento mostra que nenhumasensação pode adquirir sentido sem o exercício dojulgamento e portanto da liberdade. Só a consci-ência, enquanto condição da significação, pode darforma à dispersão da sensibilidade por meio da“comparação”. Se a liberdade e a interpretaçãoestão ausentes, então ainda não há consciência,nem língua, nem sociedade. Se em seu delírio, aformação de sentido se compromete, em sua filo-

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sofia, Rousseau mostra que não há significação semliberdade. Em outras palavras, toda comunicaçãoimplica uma mediação material que elimina atransparência e impõe a interpretação. Entretan-to, como vimos, a mediação material da voz temforça moral, há então uma linguagem natural dajustiça presente na cura das picadas de tarântulas.Daí a importância do paradigma musical na con-cepção de linguagem.

III

Ao apresentar estas leituras de Rousseau, Bentoobserva o seguinte:

O que há de comum a todas essas leituras (Derrida,Foucault, Starobinski, Althusser), para além da di-versidade das categorias mobilizadas, é a escolhade situar o problema da linguagem, em Rousseau,num campo aberto que opõe o desejo à presençaque o suprimiria ao satisfazê-lo. Neste horizonte, alinguagem deve, necessariamente, oscilar entre opolo positivo da expressão perfeita e muda da sub-jetividade e o polo negativo da proliferação dos sig-nos maléficos e indecifráveis (PRADO Jr. 1998, p.26).

Esta preocupação com a linguagem reapareceintensamente no século XX, e também em certareleitura de Nietzsche que Bento retroage aRousseau de maneira surpreendente: “Rousseaunão é Nietzsche, é claro, mas é certo que uma con-tinuidade liga as duas iniciativas críticas” (ibid.).

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De fato, o mesmo interesse pela música pareceestar presente em ambos, a mesma intensidadecrítica e até dramática com relação a seu tempo, eo mesmo deslocamento da vontade de verdadepara a vontade de poder. Ademais, em ambos acrítica da filosofia é feita em nome da moral.

Na conclusão de seu trabalho, Bento recolocaNietzsche ao lado de Rousseau, mas já procuran-do mostrar o ponto cego. Rousseau mostra que avontade de verdade deriva ou é secundária em re-lação a uma vontade de justiça. Com isso, segundoBento, Rousseau parece responder de antemão aNietzsche quando este diz: “o que em nós quer averdade? [Qual] o valor deste querer?” (apud PRA-DO Jr 1998, p.91-2). Para Rousseau, a verdade nãose justifica por si mesma, a verdade só tem valorquando comandada pelo valor da justiça. Se ver-dade e justiça são sinônimos, então pode-se suporuma “má verdade” sempre que a pura verdade es-capa das normas da justiça. Bento continua obser-vando que a hierarquia da música sobre a gramá-tica e da justiça sobre a verdade é estabelecida pelaprimazia da intersubjetividade. A verdade adqui-re outro estatuto: “é como se a idéia de verdadenão fosse mais pensada segundo o modo da ade-quação, mas segundo o modo do contrato ou da dí-vida” (PRADO Jr 1998, p.92). Uma citação deNietzsche feita por Bento vem a calhar: “Educar edisciplinar um animal que possa fazer promessas -não é essa a tarefa paradoxal que a natureza se pro-pôs em relação ao homem?” (apud PRADO Jr 1998,p.93). Para Rousseau, o uso essencial da linguagemé de ordem retórica e não mais de ordem lógico-gra-

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matical. A despeito disso, a idéia de justiça perma-nece intacta. Por isso, Rousseau contra Nietzsche,Bento anota: “Deus pode então sobreviver à morteda gramática, mesmo tratando-se apenas de umefêmero sursis” (PRADO Jr. 1998, p.96).

Desta forma, se a filosofia da história renun-ciar a seus preconceitos gramaticais, terá aindauma breve sobrevida de ordem retórica. Não é pre-ciso torná-la necessariamente fragmentada e sur-da e acusá-la de ideológica, recurso tão retóricoquanto a própria essência da linguagem que o ex-prime. O que conviria avaliar é a tentaçãohabermasiana do sartreano Bento, mas essa é ou-tra questão.

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PRISMAS DA FILOSOFIA DA HISTÓRIAKANTIANA: Civilização e FinalidadeMoral

EDMILSON MENEZES

ste trabalho tem por objetivo ana-lisar o tema de um plano da naturezana Filosofia da História de Kant, ten-

do em vista o seu valor moral, ou seja, um plano danatureza concebido como princípio meramente sub-jetivo, que tem um incontestável valor heurístico.Longe de interditar a compreensão da história hu-mana a partir da idéia de liberdade, o conceito deum plano da natureza aparece em Kant como con-seqüência daquela idéia. Neste sentido, se a natu-reza pode ser pensada como o campo onde atua aliberdade, então tudo na natureza deve concorrerpara tornar possível essa atuação, de tal modo quemesmo aquilo que parece travar a manifestaçãoda liberdade, a exemplo do mal moral, deve serentendido como instrumento administrado para agarantia dessa mesma manifestação. Assim sen-do, o fio condutor da análise é o tema da hipocri-sia, através dele é possível mostrar uma aproxi-mação à idéia de finalidade moral na história.

A filosofia da história se vale da faculdade dojuízo reflexivo a partir do seguinte princípio: para

V

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PRISMAS DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA KANTIANA62

a conexão manifesta das coisas segundo causas fi-nais, uma causalidade diferente do mecanismo temque ser pensada, nomeadamente a de uma causado mundo atuante (inteligente) segundo fins, mes-mo se este princípio seja também muito precipita-do e indemonstrável para a faculdade do juízodeterminante. Neste caso, ele (o princípio) é umasimples máxima da faculdade do juízo, onde o con-ceito daquela causalidade é uma simples idéia, àqual não se pretende de modo nenhum conferirrealidade, mas pelo contrário, se utiliza somentecomo fio condutor da reflexão, permanecendo sem-pre aberto para todos os princípios explicativosmecanicistas e não se perde fora do mundo sensí-vel.1 Quando Kant propõe um plano da naturezaorganizando e orientando a história, é a máximada faculdade do juízo que o autoriza a fazê-lo. Umplano da natureza permanece um princípio regu-lador, uma hipótese de trabalho, que é válida de-vido a sua extrema fecundidade. Ele não é algoexistente, mas um “como se”. A idéia de finalidadepossibilita trabalhar no mundo sensível com o es-copo de procurar leis, neste caso específico, leismorais. Quando dizemos, “a humanidade caminhapara o melhor”, a idéia de finalidade ajuda-nos adescobrir no progresso, não um sentido que elepossui em si mesmo, mas o sentido assumido porele diante de nós em relação aos fins da razão. O

1 Cf. KANT, I. KU. § 71. Preussischen Akademie der Wissenschaft. 23 vol. ; Trad.Brasileira de Rhoden, p. 230 - 231

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progresso da cultura não garante o progresso mo-ral. No entanto, devemos pensar e encontrar o pro-gresso moral lá dentro.

« Os homens considerados individualmente”,diz Kant , “e até povos inteiros, não se dão contaque, ao perseguirem cada um o seu propósito deacordo com a sua disposição pessoal e, muitas ve-zes, em prejuízo do outro, conspira à sua revelia aintenção que eles própios ignoram, mas para elatrabalham, como se seguissem um fio condutor,favorecendo a sua realização; a qual, aliás, se lhesfosse dado a conhecer, pouco lhes importaria. »2 Anatureza engendra em vista da consecução de seusfins, e os homens, muitas vezes, neste processo nãotêm participação alguma. Mesmo conservando emtela a possibilidade regulativa, poderíamos con-cordar com Vlachos3 - « as especulações finalistaspesam enormemente sobre a filosofia crítica » - ,ou o fim perseguido pela natureza somente excluiem aparência a participação da liberdade na his-tória, reservando-lhe um papel destacado?

É possível atribuir um papel educador à nature-za4. Assim, o que no início é instinto precisa ser buri-lado, por meio de uma disciplina transformadora daanimalidade em humanidade. Aos poucos, o cami-nho para a liberdade se amplia, a tutela natural éabandonada e o homem toma nas mãos o seu próprio

2 KANT, I. Idee. AK VIII, p. 173 VLACHOS, G. La Pensée Politique de Kant. Paris, PUF, 1962, p. 573, n. 664 Ver sobre o tema KRÜGER, G. Critique et Morale chez Kant. Trad. de M. Regnier.

Paris, Beauchesne, 1961.

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destino. A disciplina tem por incumbência impediro seu desvio. A natureza, aliás, não tem por hábitoconsultar o homem em seus desígnios. Ela o educaem vista de sua destinação. No entanto, a razão prá-tica autoriza a pensar estes desígnios privilegiandono final o homem livre, mesmo que o seu começo sejamarcado por um aspecto pesadamente finalista.Analisemos como Kant entende a idéia de fim, comoa natureza usa o homem para os seus fins e comoestes últimos dizem do homem moral.

O conceito de fim (Zweck), é primeiramente prá-tico. Enquanto tal, ele resulta da razão prática, o« poder dos fins » é a vontade.5 Com efeito, a facul-dade de julgar possui, ela também, de modo maispreciso a faculdade de julgar reflexionante, umprincípio a priori enquanto faz uso da idéia de fimpara julgar um objeto. Mas, assim fazendo, ela nãoestá dando uma lei à natureza, porém a si própria.Ela não determina nenhum objeto através destaidéia de fim e não atribui à natureza nenhuma ati-vidade efetivamente finalizada. Ela se limita àapreensão de formas e leis particulares, empíricas,da natureza, como se recebesse de um princípioque colocasse fins, uma figura unificada pela con-formidade ao fim, uma conexão tendo em vista umobjetivo. A idéia de fim, face à natureza, tem so-mente um sentido regulativo e se presta a encade-ar de modo coerente as experiências particulares,produzindo entre elas uma ordem sistemática:«Ora, porque o conceito de um objeto, na medida

5 KANT, I. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. AK IV, p. 416

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em que ele ao mesmo tempo contém o fundamentoda efetividade deste objeto, chama-se fim e o acor-do de uma coisa com aquela constituição das coisasque somente é possível segundo fins se chama con-formidade a fins (Zweckmässigkeit) da forma dessacoisa, o princípio da faculdade do juízo então é, noque respeita à forma das coisas da natureza sob leisempíricas em geral, a conformidade a fins da natu-reza na sua multiplicidade. O que significa dizerque a natureza é representada por este conceito,como se um entendimento contivesse o fundamen-to da unidade do múltiplo das leis empíricas. A con-formidade a fins da natureza, por isso, é um parti-cular conceito a priori que tem a sua origem mera-mente na faculdade de juízo reflexiva.»6

Não se pode acrescentar aos produtos da nature-za algo como uma relação a fins neles visíveis, masapenas utilizar este conceito para refletir sobre elesno tocante à conexão dos fenômenos naturais, cone-xão, aliás, dada segundo leis empíricas. Este concei-to também é diferente da conformidade à finalidadeprática (da arte, ou dos costumes, por exemplo),mesmo se pensado a partir de uma analogia com aque-la. Sendo assim, o mundo é formado de uma tal ma-neira, que as leis nele reinantes conduzem-no a umdesenvolvimento de ordem final, quer seja ela pen-sada através da teleologia física, quer seja completa-da pela teleologia moral. O alvo derradeiro da cria-ção é o ser racional (Vernunftwesen) enquanto sujei-to da moralidade. O conjunto formado por tais seres

6 KANT, I. KU., p. XXVIII; Trad. p. 24 - 25

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constitui um mundo moral, um reino dos fins. E ofim último da natureza, no homem, é a cultura. Noentanto, como passar da cultura à moral?

Se devemos encontrar no próprio homem o que,enquanto fim, deve ser estabelecido pela sua co-nexão com a natureza, ou o fim precisa ser de talmodo que, ele próprio pode ser satisfeito atravésda natureza na sua beneficência (Wohltätigkeit).Ou trata-se da aptidão e habilidade para toda aespécie de fins, para o que a natureza (tanto ex-terna, como interna) pode ser por ele utilizada. Oprimeiro fim da natureza seria a felicidade. O se-gundo, a cultura do homem. Mas, antes de chegarao fim último (letzten Zweck) da natureza, é preci-so dizer: ele só pode ser fixado quando tiver sidoestabelecido o fim terminal (Endzweck) da cria-ção, « fim incondicionado e o único podendo pôrfim ao sistema de fins da natureza.» Este fim ter-minal só pode ser o homem sob a lei moral. Co-nhecido, portanto, tal fim, estamos autorizados aver algo no homem podendo ser o fim último danatureza, que, aliás, não pode estar fora da natu-reza sendo algo que ela seja capaz de realizar, afim de preparar o homem para o que ele própriotem a fazer para ser fim terminal.

O conceito de felicidade não pode ser conside-rado como base para um fim último da natureza. Ohomem projeta para si mesmo uma idéia de umestado, à qual ele quer adequar este último sobcondições simplesmente empíricas. Isto o conduzde maneira inevitável a mudar, de modo freqüen-te, este conceito. Se a natureza estivesse submeti-da a um conceito parecido, não se poderia admitir

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nenhuma lei universal determinada e segura, poisseria impossível concordar o vacilante conceito com ofim proposto pelos indivíduos a si mesmos. Mesmo sereduzimos este conceito à verdadeira necessidadenatural, na qual a nossa espécie concorda plenamen-te consigo mesma, ou se pretendemos dar um grandevalor à habilidade para criar fins por si imaginados,nesse caso nunca seria alcançado o que o homem en-tende por “felicidade” e o que é o seu último e pró-prio fim da natureza (não fim da liberdade).7 O fatode cada um colocar para si mesmo um fim singular edeterminá-lo como objeto de felicidade, indica umpoder de escolha, uma liberdade. Por conseguinte, éilusório igualar “felicidade” e “fim último da nature-za”. A primeira é apenas um fim relativo.

Sendo assim, resta procurar o fim último nacondição subjetiva, na aptidão de se colocar a simesmo fins em geral e usar a natureza enquantomeio. Ora, produzir aptidão de um ser racionalpara fins desejados em geral (por conseguinte naliberdade) é próprio da cultura. «Só a cultura(Kultur) pode ser o fim último, o qual se tem razãode atribuir à natureza a respeito do gênero huma-no. »8 A natureza promove no homem dois tiposde cultura: a primeira é a da habilidade. Ela nãopode desenvolver-se bem no gênero humano, a nãoser graças à desigualdade entre os homens. Estadesigualdade promove a opressão de uns pelosoutros e aumenta o descontentamento interno. A

7 Cf. Id. ibid., # 83 ; Trad., p. 270 - 718 Id. ibid.; Trad., p. 272

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miséria cresce paralela ao progresso da cultura.« Mas a brilhante miséria está ligada, todavia, aodesenvolvimento das disposições naturais e o fimda própria natureza, mesmo que não seja o nosso fim,é todavia atingido deste modo.»9 Ao conflito das li-berdades opõe-se um poder conforme a lei num todochamado sociedade civil, pois somente nela pode terlugar o maior desenvolvimento das disposições na-turais. Contudo, esta sociedade requer ainda um todocosmopolita (weltbürgerliches Ganze), o sistema detodos os Estados sob o acordo legal que garante apaz entre eles. Desta maneira a natureza promove odesenvolvimento de todos os talentos do homem pormeio da oposição que exerce. O segundo tipo de cul-tura é a cultura da disciplina (Kultur der Zucht(Disziplin)). As inclinações muito dificultam o desen-volvimento da humanidade, porque obstacularizamos homens em sua atividade de estabelecer fins.Logo, impõe-se uma disciplina especial como conditionecessária desta atividade. A segunda forma de cul-tura é negativa e consiste na liberação da vontadeface ao despotismo dos desejos.

A natureza mostra, assim, o seu intento de re-duzir o que há ainda de animalidade e rudeza nohomem. «As belas artes e as ciências, que por umprazer universalmente comunicável e pelas boasmaneiras e refinamento na sociedade, ainda quenão façam o homem moralmente melhor, tornam-no porém civilizado, sobrepõem-se em muito à ti-

9 Id. ibid.; Trad., p. 273

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rania da dependência dos sentidos e preparam-noassim para um domínio no qual só a razão devemandar. »10

O homem, único ser na terra possuidor de en-tendimento e de uma faculdade de voluntariamen-te colocar a si mesmo fins, merece ser corretamen-te denominado senhor da natureza. A cultura, en-quanto promove esta aptidão para se propor fins, éo fim último da natureza. O homem só merece osenhorio sobre a natureza, se ele puder se proporfins incondicionados em sua ação. Deste modo, eleé fim terminal da criação, independente da natu-reza. Ele, como sujeito moral, é o fim terminal. Ele«não necessita de nenhum outro fim como condi-ção da sua possibilidade». E mais: «sobre o homem(assim como qualquer ser racional no mundo) en-quanto ser moral não é possível continuar a per-guntar: para que (quem in finem) existe ele? A suaexistência possui nele próprio o fim mais elevado,ao qual - tanto quanto lhe for possível - pode sub-meter toda a natureza, perante o qual ao menosele não pode considerar-se submetido a nenhumainfluência da natureza. Ora, se as coisas do mun-do, como seres dependentes segundo a sua exis-tência, necessitam de uma causa suprema, atuan-do segundo fins, então o homem é o fim terminalda criação, pois que sem este a cadeia dos fins su-bordinados entre si não seria completamente fun-damentada.»11

10 Id. ibid., Trad., p. 27411 Id. ibid. ; Trad. p. 276

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Do exposto até agora, sabemos: a natureza querhomens livres, e para isso ela empreendeu umtrabalho de drástica redução do que neles é ins-tinto, podendo assim se concretizar sua destinaçãomoral, a saber, o homem deve ser tratado semprecomo fim e jamais como meio. Por outro lado, uti-lizando nossas inclinações, a natureza serve-se doshomens para atingir seus objetivos, e a «boa von-tade» não desempenha aí um papel importante. Te-mos, então, uma natureza que quer, e utiliza o ho-mem enquanto meio para seus fins. Resta aindaespaço à questão: qual é o espaço da liberdade,especialmente neste contexto? A resposta fica maisclara se trabalharmos o problema como se ele fos-se divisível em duas partes distintas: a cultura e amoralidade. A natureza limita-se à primeira, acultura é fim relativo e só pode ser pensada quan-do um fim terminal lhe confere sentido. A tutelada natureza não consegue avançar para além dacultura, da sociedade, pois a «insociável sociabili-dade» não realiza a liberdade, mas simplesmentea torna possível. A cultura prepara a liberdade. Aanálise kantiana da hipocrisia reflete com justezaesta perspectiva. Sobre os falsos brilhos da civili-zação, um dos diagnósticos de Kant é o seguinte:«Nós somos altamente cultivados (kultiviert) no do-mínio das artes e da ciência. Somos civilizados(zivilisiert) em excesso quando se trata das boasmaneiras e a responsabilidade social. Mas quantoa nos considerar como já moralizados ainda faltamuito. A idéia de moralidade, sem dúvida, faz parteda cultura; mas a aplicação desta idéia, que se res-tringe apenas à honra e a um saber viver em soci-

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edade, constitui simplesmente a civilização. En-quanto, porém, os Estados consagrarem todas assuas forças a quiméricos e violentos propósitos deconquista , entravando assim, sem cessar, o lentoesforço da formação interior do modo de pensardos seus cidadãos, privando-os de todo o apoio nocumprimento deste fim, não se pode contar comum empreendimento deste tipo, pois um longo tra-balho interior é necessário da parte de cada comu-nidade para a educação (Bildung) dos seus cida-dãos. Todo bem que não é imbuído de uma disposi-ção (Gesinnung) moralmente boa, não passa depura aparência e falsos brilhos.»12

Kant constata a sociedade ainda como o reinoda aparência, no qual a hipocrisia é confundidacom civilidade. Os termos kultiviert e zivilisiertindicam dois momentos do progresso humano. Acultura (Kultur) consiste no desenvolvimento denossas disposições naturais, enquanto criaturasracionais. É o estado da habilidade no qual o ho-mem saiu do instinto, sem ter ainda a lei. Trata-sede um momento de grande marca pedagógica, re-fere-se às primeiras tentativas de uma disciplinadas inclinações naturais do ser humano: “Este ho-mem é suscetível e tem necessidade de uma edu-cação, tanto sob a forma de ensinamento como dedisciplina (Zucht (Disziplin)).”13 A civilização

12 KANT, I. Idee. 7ª Proposição. Referências sobre o tema encontram-se em:CASTILLO, Monique. Kant et l’avenir de la culture. Paris, PUF, 1990, p. 111 esegs.; SCUCCIMARRA, Luca. Kant e il diritto alla felicità. Roma, Editori Riuniti,1997, p.149 e segs.

13 KANT, I. Anthropologie. Trad. de M. Foucault. Paris, Vrin, 1988, p. 163

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(Zivilisierung) é a segunda etapa, aquela da vidaem sociedade, na qual a obrigação de viver em gru-po fornece novos impulsos e novos apelos às dis-posições originárias, cujo o desdobramento se im-põe pela vida social. Estamos diante do reino dalegalidade, onde a lei constrange os homens; ondeprevalece a prudência, ou seja, a arte de tirar pro-veito do coletivo.14

Existe uma febre de honraria e confusão de va-lores. Esta mania é a paixão e a fraqueza dos ho-mens, permitindo uma influência sobre eles, a par-tir de suas opiniões enviesadas: « Não é o amorpela honra, alta estima que o homem tem direitode esperar dos outros por causa de seu valor inte-rior (moral), mas um desejo de celebridade, ao qualbasta a aparência. »15 A civilização é ainda o reinodos falsos brilhos, o lugar onde se aparenta ser oque não se é, onde se utiliza o outro como meiopara se atingir um reconhecimento vão e sem in-teresse moral. Sem nenhum interesse moral? Tal-vez, para um projeto filosófico incapaz de conce-ber uma idéia de cultura e de história, na qual en-tende-se que por detrás dos atos frívolos e hipó-critas pode se «esconder» uma astúcia comandan-do, à revelia do homem, esta cena confusa em vis-ta de um fim superior. Assim nos autoriza pensara razão. «A natureza humana guarda certa hipo-crisia (Unlauterkeit), que deve, em definitivo, comotudo o que provém da natureza, levar a bons fins;

14 Cf. KANT, I. Über Pädagogik. AK IX, p. 48615 KANT, I. Anthropologie. # 84, p. 124

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eu quero falar de nossa inclinação a esconder nos-sos verdadeiros sentimentos e a exibir outros, pornós supostos como bons e honrados. Com efeito,esta tendência, que leva os homens a dissimular eao mesmo tempo ter uma aparência presunçosa,não somente civilizou-os, mas, ainda em certa me-dida, moralizou-os pouco a pouco, porque ninguémpodia compenetrar-se, de uma só vez, por meio dadissimulação da decência, da honorabilidade e damoralidade.»16 A fim de concretizar os seus objeti-vos, a natureza lança mão de um artifício: a hipo-crisia. A bela aparência é uma etapa, uma plata-forma de onde se salta para o ato moral.

Um mínimo de hipocrisia civilizada deve serlevado em conta quando pensamos a natureza pos-ta em marcha por meio de evoluções e não de re-voluções. Logo, a astúcia (List) da natureza utili-za-se desta manifestação superficial para estimu-lar os verdadeiros germes ainda por serem de-senvolvidos no gênero humano. «Encontramos en-tão, continua Kant, nos supostos bons exemplosvistos a nossa volta, uma escola de aperfeiçoamen-to para nós mesmos. Porém esta disposição a nosfazer passar por melhor do que somos e a manifes-tar os sentimentos ainda ausentes, de qualquersorte, só serve provisoriamente para despir o ho-mem de sua rudeza e lhe fazer tomar, ao menos nocomeço, a maneira (die Manier) do bem por eleconhecido; pois, uma vez desenvolvidos e trans-

16 KANT, I. KrV. B 776

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postos os bons princípios para a maneira de pen-sar, esta hipocrisia deve então ser pouco a poucocombatida com rigor, caso contrário, ela corrompeo coração e sufoca os bons sentimentos sob o joioda bela aparência. »17 Em suas lições de Antropo-logia, Kant retoma o mesmo argumento: « A corte-sia (politesse18) parece fazer-nos curvar para quesejamos amigáveis. As saudações (compliments19)e todas as galanterias da corte bem como os maiscalorosos protestos verbais de amizade não dizemsempre a verdade (Meus caros amigos, não exis-tem amigos - Aristóteles20); elas em contrapartidanão se enganam, pois cada um sabe o caso ao qualdeve aplicá-las. Em seguida, e principalmente, asdemonstrações de boa vontade e de apreço, vaziasno começo, conduzem de modo progressivo a for-mas de pensar que lhes são na realidade maisadequadas.»21 Sabemos no íntimo: os signos exte-riores da boa regra de convivência, em muitas oca-siões, são vazios e falseados. Mas tudo se passacomo se preferíssemos esta exterioridade vã, esteteatro, à crueldade da barbárie: «Os homens emgeral são tanto mais atores quanto mais civiliza-dos. Eles tomam a aparência do afeto, da conside-ração mútua, da reserva, do desinteresse, sem en-ganar ninguém, porque cada um sabe muito bem:isto não provém do coração. E é bom que seja as-

17 Id. ibid.18 Em francês no original19 Em francês no original20 Diógenes Laércio, V, 1, 2121 KANT, I. Anthrop. # 14, p. 36

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sim no mundo. Pelo fato de os homens encenaremseus papéis, as virtudes, das quais durante muitotempo eles tomaram apenas a aparência combina-da, são estimuladas de maneira paulatina e pas-sam aos seus modos. Mas enganar o que nos enga-na, isto é, as inclinações, é trazer de volta à obedi-ência as leis da virtude. Não se trata de um engodo,na verdade é uma maneira inocente de buscarmos anossa própria imagem.»22

A terra é um teatro! E Cervantes lembra-nosque a vida humana parece um espetáculo: quandoa peça acaba e as máscaras são retiradas, os ato-res se encontram todos juntos, como os homensapós a morte.23 Esta idéia da vida como espetácu-lo teatral, no final conduzindo os homens às suasverdadeiras características, encontra eco em Kant.Por detrás das máscaras, ou seja, da hipocrisia ci-vilizada, encontramos um homem procurando a suaprópria imagem. Os homens têm consciência desua encenação, pois ela é fruto de um acordo mu-tuamente estabelecido para tornar possível a con-vivência das liberdades: é um espetáculo entrehomens. Não temos mais as marionetes de Platão24

transplantadas para o teatro do mundo por Lutero:toda a história profana é um teatro divino de ma-rionetes (Puppenspiel Gottes).25 Em Kant, os fan-

24 PLATÃO. Leis, I, 644 d, e; VII, 803 c . Paris, Gallimard (Bibliothéque de laPléiade), 1996

25 Cit. por CURTIUS, E. R. Literatura Européia e Idade Média Latina. Trad. deT.Cabral. Rio de Janeiro,INL, 1957,p. 238

22 Id. ibid. ; Trad., p. 35 (grifos meus)23 D. Quixote. II a. Parte, capítulo XII. Kant leitor de Cervantes? Ver Opus

Postumum. AK, XX, p.9

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toches foram substituídos por atores, por homenslivres que já não são mais manipulados por cor-déis divinos, mas têm a capacidade de se livrardeles para assumirem os riscos de encenar. Asmarionetes não podem verdadeiramente represen-tar, não podem dissimular, enganar. Seus gestos,sem autonomia, não são na realidade algo próprioa elas, mas de um outro.

A aparência do bem nos outros não é sem valorpara nós, desse jogo de dissimulação, algo sério e im-portante pode nascer. Segundo parece, a escolha dametáfora do teatro é significativa pelo seu conteúdomoral. A «falsidade» do mundo teatral reflete uma for-ma de agir da sociedade. É difícil dizer neste cenárioquem engana quem. O artista é verdadeiramente ogrande mestre do engodo, porque se passa por alguémque não é? Ou, na realidade, ele é o grande enganado,pois o espectador lhe faz crer que confia na autentici-dade do papel? Ou ainda uma terceira via é aceitável,a saber: no teatro presenciamos um engodo recípro-co. O comediante dissimula ser o que não é, e o espec-tador finge acreditar naquele personagem posto emcena. Por alguns momentos ator e platéia, por um acei-te tácito, vivem a dissimulação na qual cada um es-quece o seu próprio papel para assumir um outro: oprimeiro, o de um personagem artificial de força cê-nica, e o segundo, o de um crente. Na sociedade civili-zada as experiências são vividas de maneira seme-lhante. Quando ponho em prática a polidez (condiçãode ator), há sempre alguém (como espectador) fin-gindo acreditar e, ao final de uma reunião, de umencontro social (como após uma peça de teatro),retornamos para nossas casas com o sentimento

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de termos cumprido a nossa obrigação civilizada (comodepois do teatro encontramos um prazer efêmero quese desfará em breve), e então podemos continuar aser nós mesmos. No entanto, o exercício de dissimu-lar nos levará a desenvolver as disposições morais.

Através de tentativas, ensaios, repetições e ima-gens, o homem realiza a sua educação moral. A parti-cipação da natureza se faz pelo encaminhamento àvida social, nela o homem se educa. A tutela da natu-reza, por conseqüência, é pedagógica, quando ela fazuso das nossas inclinações manifestas na hipocrisia eprepara-nos para a liberdade. Lembremo-nos, a edu-cação kantiana pede disciplina e tutela no início, paradepois, pouco a pouco, se fazer o implemento da auto-nomia. Na «escola de aperfeiçoamento» ,ou seja, nasociedade, o processo de moralizar-se é lento, porémcontínuo. De modo progressivo, a vida social ensinaaos homens como se tolerar mutuamente. Neste sen-tido, a bela aparência assume um caráter positivo,embora o seu aspecto de provisoriedade lhe confirasempre o estatuto de exemplo no seu sentidoilustrativo e nunca o de exemplo moral. Um exemplo(Exempel)26 é um caso particular de uma regra prá-tica apresentado in concreto. Ora, não se podeafirmar o jogo da hipocrisia civilizada como amanifestação in concreto de uma regra prática

26 Sobre a diferença entre Exempel e Beispiel, ver os tradutores francês eespanhol de Kant, respectivamente: Alexis Philonenko, nota n° 1 da página 157da sua tradução de KANT, I. Métaphysique des Moeurs: Doctrine de la Vertu.Paris, Vrin, 1968 ; Adela Cortina, p.356, tradução de KANT, I. La Metafísica delas Costumbres. Madrid, Tecnos, 1989

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racional, mas como um estímulo ao ato moral, estesim obediente a um decreto da razão. A sociedadefunciona para nós como educadora que, de «maneiraexperimental» fornece ilustrações (Beispiel), coad-juvantes do nosso processo de aprendizagem moral:«A maneira experimental (técnica) para educar emmatéria de virtude, para o educador, é o bom exem-plo (das gute Beispiel) (ter uma conduta exemplar),e para os outros o exemplo que serve de lição (unddas warnende an anderen); porque a imitação é parao homem ainda inculto a primeira determinação davontade para admitir as máximas, das quais ele seapropria por conseqüência. O hábito consiste em im-plantar em si uma tendência persistente sem nenhu-ma máxima, pela freqüente satisfação desta; e nãoum princípio do modo de pensar (Prinzip derDenkungsart), porém um mecanismo da sensibilida-de (logo, isto explica porque desaprender é mais di-fícil que aprender)»27 Quando fazemos uso dos cum-primentos, gestos e boas maneiras, a sua aparênciamoral não é o mais importante, mas a sua capacida-de de servir de exemplo ilustrativo (Beispiel).

A civilização e a cultura são o espaço privilegiadono qual podemos, pelo ato de imitar, educar-nos mu-tuamente de modo experimental, não regido por com-pleto em vista da autonomia subjetiva. Isto, apesarde não ser facultado nele encontrar nenhum mode-lo de ação virtuosa, pois esta se funda no uso livreda razão em obediência pessoal à lei. Contudo, o

27 KANT, I. Tugendlehre. # 52 ; Trad. de Alexis Philonenko. Paris, Vrin, 1985,p.157

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exemplo ilustrativo (Beispiel) pode nos sensibilizar,na justa medida em que somos capazes de um senti-mento moral. “Mas”, continua o nosso filósofo, “notocante à força dos exemplos (Exempels) (seja para obem, seja para o mal) apresentada à nossa tendênciade imitação ou de suspeita, o que os outros nos dãonão pode fundar nenhuma máxima de virtude. Comefeito, a virtude consiste, de modo preciso, na auto-nomia subjetiva da razão prática de cada homem e,portanto, ela implica a lei e não a conduta dos outroshomens para nos servir de modelo. Por isso, o edu-cador não dirá ao seu aluno travesso: tome comoexemplo (Exempel) este bom garoto (ordeiro e estu-dioso)!, pois tal gesto servirá apenas para estimularo ódio do primeiro pelo segundo, pois, graças a este, ele é colocado em lugar desfavorável. O bom exem-plo (Exempel) (a conduta exemplar) não deve servirde modelo, mas apenas de prova para mostrar comoalgo que é conforme ao dever é praticável. Não é en-tão fazendo a comparação com um outro homem (talcomo ele é), mas a comparação com a idéia (de hu-manidade) do que deve ser portanto a lei, que o edu-cador obterá a regra infalível da educação por eleministrada. »28 Acrescente-se ao conselho kantiano,a moral não carece de exemplos (Beispiele). Esta ouaquela pessoa não pode me servir de exemplo mo-ral, pois «o que é apodítico não precisa de exemplo(Beispiele), porque apreendo a priori a suanecessidade.»29 A mesma coisa se passa com as pro-

28 Id. ibid.; Trad., p.15829 KANT, I. Leçons d’Éthique. Trad. de L. Langlois. Paris, Le Livre de Poche, 1997, p. 217

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posições matemáticas, elas não requerem exem-plos (Beispiels), estes não lhes servem de prova,mas somente de ilustração. A necessidade de agirdeste ou daquele modo, no campo moral, é apre-endida a priori. Disto resulta: nenhum exemplo(Beispiel) é necessário em matéria de moral. O fun-damento e o princípio de nossa conduta devem seapoiar na simples razão e não podem ser deriva-dos a posteriori. Se a experiência nega demons-trações de honestidade, retidão ou virtude, a ra-zão nem por isso deixa de nos ordenar a sermoshonestos, retos e virtuosos. Caso oposto, seriacomo um matemático que deixasse de utilizar asproposições matemáticas em suas operações porqueelas não estariam dadas in concreto na experiência enão valessem enquanto idéia.

A moralidade não pode ser julgada a partir deexemplos (Beispiele), mas estes são obrigados aserem vistos como bons ou maus de acordo comprincípios universais. O arquétipo se encontra noentendimento. Os atos de cortesia, polidez, finotrato, etc., exigidos pela vida civilizada, não po-dem nos servir de exemplos (Beispiele) na condu-ta moral. Mas, como então fomentariam eles a vir-tude? A resposta está associada ao seu aspectoexperimental, isto é, didático. Como os exemplosmatemáticos, os atos sociais não são provas, masilustrações que nos estimulam em nossa aprendi-zagem moral. Eles não implicam um alto grau deresolução moral e não podem por isso ser conside-rados como virtudes: eles não exigem nenhum es-forço sobre nós mesmos, nenhum sacrifício pesso-al. Na vida hipócrita, o outro não é buscado tendo-

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se em vista um real auxílio às suas necessidades.Uma tal forma de vida só contribui ao prazer e aoagrado das freqüentações sociais. Contudo, deambos surge a virtude e as freqüentações são oca-siões de exercício para a tolerância. Os atos acimareferidos podem ser descartados como exemplos(Beispiele) morais ou verdadeiros modelos de con-duta virtuosa, todavia não podem ser dispensadoscomo ocasião de aprendizagem. Antes de qualquercoisa, imitá-los decorre de uma fórmula repetitivapara a aceitação coletiva que, pelo seu caráterreiterativo, educa os homens para a vida em co-mum, os dociliza e refina as suas relações. A imi-tação aqui não é para seguir, mas é para comparare experimentar. As qualidades sociais «embora nãosejam virtudes nelas mesmas, são exercícios paradesenvolver e cultivar em nós a virtude.»30 O exem-plo (Beispiel) só é útil para a moral quando vistoatravés desse prisma pedagógico. Mesmo não sen-do em si uma virtude, ele é o instrumento do quallança mão a natureza para educar os homens, eleé um dos meios dos quais ela se utiliza para atin-gir seus objetivos. Os pequenos gestos de gentile-za, os cumprimentos, às vezes abusivos, a formapolida, são vistos como se no fundo espelhassem,de forma imperfeita, o amor da humanidade. Emcada pequeno gesto esconde-se um germe que, esti-mulado como elemento formador, realizará no fu-turo uma nova forma de pensar, na qual o homemnão mais utilizará o outro como meio, porém como

30 Id. ibid.

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fim, e a hipocrisia social não passará de um capítu-lo (necessário) da história da moralização humana:«o homem percorreu então os primeiros passos dabrutalidade à cultura cujo fundamento verdadeiroé o valor social do homem; assim, se desenvolvempouco a pouco todos os talentos, forma-se o gosto eatravés de uma evolução no sentido de um esclare-cimento contínuo, começa a se estabelecer uma for-ma de pensar que pode, com o tempo, transformara grosseira disposição natural em discernimentomoral relativo a princípios práticos determinados.E deste modo, um acordo patologicamente extor-quido em vista do estabelecimento de uma socieda-de pode se transformar em um todo moral.»31 Eis ofim para o qual conspira a natureza.

Parece-nos, então, que para se fugir ao determi-nismo natural, na filosofia da história kantiana, éimprescindível ter em mente se o homem é o fimterminal da natureza, qualquer fim perseguido poresta levará infalivelmente ao primeiro como o alvoda criação. Logo, haverá um momento no qual ateleologia física cederá de modo definitivo o lugarà teleologia moral como explicação, restando entreelas apenas a analogia da organização com vista afins determinados, e a segunda preencherá as ca-rências da primeira. Reconhecemos, portanto, oshomens somente enquanto seres morais, ou seja,como fim da criação, como possuidores de razão, aomenos a condição principal para considerar o mun-do como um todo coerente segundo fins e como sis-

31 KANT, I. Idee. 4 ª Proposição

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EDMILSON MENEZES 83

tema de causas finais; «mas antes de mais temosum princípio para referência, para nós necessária(tendo em conta a constituição da nossa razão), defins da natureza a uma causa do mundo inteligível,que nos serve para pensar a natureza e as qualida-des desta primeira causa como fundamento supre-mo no reino dos fins e assim determinar o conceitodos mesmos, coisa de que a teleologia física não eracapaz, a qual somente podia originar conceitos in-definidos precisamente por isso inúteis, tanto parauso teórico como para o prático.»32

Como ser moral, o homem é convocado a colaborarna consecução do reino dos fins, pelo fato de a nature-za não ser incumbida de tudo fazer. Os seus limiteslhe obrigam a deixar um espaço para o movimento dohomem, e uma finalidade condutora da história não éincompatível com o homem livre. A natureza prepa-ra, mas não realiza a liberdade: «para descobrir ondeé que ao menos em relação ao homem temos que colo-car aquele último fim da natureza, somos obrigados aselecionar aquilo que a natureza foi capaz de realizar,para o preparar para aquilo que ele próprio tem quefazer para ser fim terminal (Endzweck)33. Com efeito,a natureza, apesar de não lhe poupar em detrimen-to dos outros animais, parece ter destinado o ho-mem a ser o seu senhor, mas na «medida em que elepróprio se faz para isso ». Deste lugar, o homem échamado a participar da realização do soberano bemno mundo, e a tarefa da finalidade não é mais acor-

32 KANT, I. KU. # 86; Trad., p. 28433 Id. ibid., Trad. , p. 271 (grifos meus)

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PRISMAS DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA KANTIANA84

dar simplesmente as causas aos fins, porém trans-por o desafiador problema de uma contradição en-tre as finalidades naturais elas mesmas. A questãoda vida toma um novo impulso através de um pro-longamento cultural que se introduz como umdesenraizamento do homem, impensável fora de ummovimento da reprodução animal em vista daque-le da produção civilizada de si.

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PROGRESSO E AGONIA: A Concepçãode História em Kant e Cioran

ROSÁRIO ROSSANO PECORARO

constante progresso para o melhor, o de-senho oculto, mas racional, da natureza,o fio condutor a priori na história do mun-

do (Weltgeschichte), a fundação da afirmação rela-tiva ao progresso não em uma formulação teórica,mas em uma experiência real, em um acontecimen-to do devir histórico: a revolução francesa.

Neste trabalho exporemos, sinteticamente, asetapas da elaboração kantiana, que será, sucessi-vamente, lida e problematizada através dos escri-tos de filosofia da história do filósofo franco-ro-meno Emil Cioran (1911-1995). Marcadas por umprofundo pessimismo, desiludidas e radicalmentenegativas, as páginas de Cioran poderão consti-tuir um interessante contraponto à visão confian-te de Kant.

I

A idéia de um progresso da espécie humana, deum fio condutor a priori capaz de guiar o curso,obscuro e contraditório, dos acontecimentos his-tóricos é exposta no ensaio sobre a Idéia de uma

O

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história Universal de um ponto de vista cosmopo-lita. Ciente de que “de uma madeira tão retorcida,da qual o homem é feito, não se pode fazer nadareto”, (KANT, 1986, p. 16) Kant evita o impasse –em que uma excessiva e injustificada confiança noser humano e nas suas “qualidades” o teria em-purrado – apostando, lucidamente, no “propósitoda natureza”, no seu “plano obscuro” que a espéciehumana realizaria ao longo do próprio desenvol-vimento, mesmo sem ter nenhuma consciência deestar trabalhando para isso.

É difícil disfarçar um certo dissabor quando se obser-va a conduta humana posta no grande cenário mun-dial, e muitas vezes o que isoladamente aparenta sa-bedoria ao final mostra-se, no seu conjunto,entretecido de tolice, capricho pueril e freqüentementetambém de maldade infantil e vandalismo: com o quenão se sabe ao cabo que conceito se deva formar des-sa nossa espécie tão orgulhosa das suas prerrogati-vas. (KANT, 1986, p. 10)

Após o diagnóstico negativo, uma primeira so-lução:

Como o filósofo não pode pressupor nos homens eseus jogos, tomados em seu conjunto, nenhum pro-pósito racional próprio, ele não tem outra saída,senão tentar descobrir, neste curso absurdo dascoisas humanas, um propósito da natureza que pos-sibilite todavia uma história segundo um determi-nado plano da natureza para criaturas que proce-dem sem um plano próprio. (KANT, 1986, p. 10)

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O desafio kantiano (que se resolverá somenteno Conflito das faculdades) de tentar encontrarum fio condutor no devir histórico, e de fundá-lo elegitimá-lo teorica e praticamente, começa exata-mente nessas páginas escritas em 1784. A primei-ra preocupação do filósofo é com o equilíbrio que énecessário manter entre as duas faces do homemo qual, embora seja feito de uma madeira retorcida,pode ser, sem dúvida, o instrumento de que a na-tureza – inteligível, mas segundo Kant, em cons-tante progresso para o melhor – serve-se para re-alizar os seus planos. Nas primeiras três proposi-ções, o filósofo alemão deixa claro que “Todas asdisposições naturais de uma criatura estão desti-nadas a um dia se desenvolver completamente econforme a um fim” (KANT, 1986, p. 11) e que elas,além de ser úteis e de ter uma finalidade, estãovoltadas para o uso da razão do homem e “devemdesenvolver-se completamente apenas na espéciee não no indivíduo”. (KANT, 1986, p. 11). Na quar-ta proposição, Kant introduz a célebre noção de“insociável sociabilidade” do homem, isto é, o an-tagonismo que a natureza utiliza para alcançar oseu objetivo. É a oposição entre a tendência a as-sociar-se e a de separar-se ou isolar-se que, “des-pertando todas as forças do homem, o leva a supe-rar sua tendência à preguiça e, movido pela buscade projeção, pela ânsia de dominação ou pela cobi-ça, a proporcionar-se uma posição entre compa-nheiros que ele não atura, mas dos quais não podeprescindir”. (KANT, 1986, p. 11)

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Os primeiros passos rumo à cultura e ao desen-volvimento da espécie humana são dados. O pro-gressivo esclarecer-se do caminho permitirá “afundação de um modo de pensar que pode trans-formar, com o tempo, as toscas disposições natu-rais para o discernimento moral em princípiospráticos determinados e assim finalmente trans-formar um acordo extorquido patologicamentepara uma sociedade em um todo moral”. (KANT,1986, pp. 13-14) Como esse progressivo Aufklärungse mostraria e se fundamentaria Kant não o diz.Explica, apenas, que é aí que se revela a “disposi-ção de um criador sábio”, incompreensível para oshomens, mas que realiza o projeto da Providência.

Antes de voltar a reafirmar (na nona e últimapré-posição) a inegável presença de um fio condu-tor a priori no devir histórico do homem e prever“uma perspectiva consoladora para o futuro”, naqual a espécie humana finalmente se elevará, de-senvolvendo plenamente aquelas disposições raci-onais rumo ao melhor e ao progresso que a nature-za pôs nela, Kant acena, no começo da oitava pro-posição, a uma questão decisiva: “O problema estáem saber se a experiência revela algo de um tal cur-so do propósito da natureza”. (KANT, 1986, p. 20)

Kant percebe que a sua visão, assim como estásendo exposta, corre o risco de não ir além de umaquimérica declaração de boas intenções. “A peque-na parte que a humanidade percorreu permite de-terminar somente de maneira muito incerta a for-ma de sua trajetória e a relação das partes com otodo”, (KANT, 1986, p. 20) entretanto, continua ele:

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a natureza humana não se mostra indiferente fren-te à mais longínqua época que nossa espécie devealcançar, desde que ela possa ser esperada com se-gurança. Principalmente no nosso caso não deveocorrer a indiferença, já que parece que podemos,por meio de nossa própria disposição racional, ace-lerar o advento de uma era tão feliz para os nossosdescendentes. Graças a isso, o mais leve sinal desua aproximação torna-se muito importante paranós. (KANT, 1986, p. 11)

A busca deste sinal, de um signo evidente, capazde fundamentar a elaboração teórica desenvolvidaaté aqui e a exigência de oferecer ao homem umapraxis, são o movente das reflexões que encontra-rão solução no Conflito das faculdades. O proble-ma decisivo é, justamente, o da “fundamentação”.

Em outras palavras: é possível evitar que essesconceitos não se transformem em uma mera “fic-ção romanesca?”. (CRAMPE-CASNABET, 1996, p.133) É possível “descobrir no domínio da históriauma prova que demonstraria definitivamente quena espécie humana há um progresso para o me-lhor?”. (CRAMPE-CASNABET, 1996, p. 133)

No terceiro parágrafo da segunda seção do Con-flito das faculdades, Kant se pergunta se a espé-cie humana encontra-se em perpétua regressãorumo ao pior; se, ao contrário, está progredindopara o melhor em relação ao seu destino moral ouse ela está destinada a permanecer para sempreem uma história circular, sem progresso algum. Ohomem não é nem Demônio nem Deus; nele en-frentam-se e lutam duas forças contrapostas, que

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tornam impossível prever o resultado do comba-te. Kant, obviamente, não capitula: escolhe a se-gunda opção, a defende, a funda e a legitima noevento “esclarecedor”. A atenção concentra-se,pois, em uma experiência histórica, em um acon-tecimento real: “Na espécie humana deve sobrevi-ver uma experiência qualquer, que, como um ele-mento de fato (Begebenheit), indique a sua dispo-sição e a sua capacidade a ser a causa do próprioprogresso para o melhor”. (KANT, 1935, p. 99)

Essa experiência é a revolução francesa, o sig-no que, brotando do mundo dos fatos históricos,indica aos homens o caminho; que lhes revela aprópria disposição e a própria capacidade de pro-gredir para o melhor. Kant apela para o “funda-mento” moral que está no íntimo de cada homeme que, não obstante a presença do mal, do egoís-mo e da maldade, consegue se mostrar com todaa sua força graças àquele acontecimento históri-co, concreto e extraordinário. Dessa forma os ho-mens tomam consciência que ao redor deles ocor-re algo que respeita um certo projeto, um certosentido, uma certa “lógica”. Mais confiantes poresta doação de significado à própria ação, à pró-pria praxis, os homens tornam-se cientes de quesão eles os artífices do progresso para o melhor;um progresso (este é um ponto importante) emque eles podem intervir, acelerando a realizaçãodo “propósito da natureza” que vimos ser centralno ensaio sobre a Idéia de História universal.

Os eventos revolucionários mostram a tendên-cia da humanidade a progredir moralmente, a re-conhecer-se como portadora de ideais mais no-

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bres e elevados. A própria revolução, com todosos seus aspectos negativos, trágicos, sangrentos,representa a liberdade, encarna a possibilidadede dar um sentido (positivo) à história, é o grandesímbolo do siècle des lumières; ela é o aconteci-mento que, mais propriamente, não é a causa doprogresso para o melhor, mas deve ser visto comoalgo que o indica como inevitável conclusão dodevir humano, como “signo histórico (signum re-memorativum, demonstrativum, prognosticum),podendo desta forma demonstrar a tendência dahumanidade, considerada na sua totalidade, istoé, não segundo os indivíduos (pois isso conduziriaa uma enumeração e a um cálculo intermináveis),mas conforme ela se encontra no Mundo, divididaem povos e Estados”. (KANT, 1935, p. 100)

Kant, como sublinha Norberto Bobbio, distin-gue a história conjetural da história profética. Estavisa, ambiciosamente, “descobrir as tendências dodesenvolvimento da história humana”, (BOBBIO,1990, p. 146) mas sem ter a pretensão, própria daanálise conjetural, de corresponder à verdade. “Aocontrário da história empírica, que é a história doshistoriadores, a história profética, que é a histó-ria dos filósofos, [...] tenta buscar em um eventoextraordinário não tanto a causa de um aconteci-mento sucessivo, quanto um indício, uma indica-ção, um signo”. (BOBBIO, 1990, p. 146) Em outraspalavras, não se trata de uma “previsão”, comoacontece no domínio da história conjetural, no quala argumentação é baseada no critério ‘se... então’,mas jamais se sabe se o ‘se’, o pressuposto existeou existirá um dia. O exato contrário do que ocor-

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re na história profética em que o evento extraor-dinário, que é o seu ponto de partida, realmenteaconteceu”. (BOBBIO, 1990, p. 147)

Mas, dentro do signo da revolução, o que é maisimportante para o filósofo alemão? O que é querealmente possui a potência reveladora a que Kantconfia a tarefa decisiva de fundar a afirmação teó-rica do progresso para o melhor? Será que ele estáse referindo apenas ao fato da revolução (com a suaviolência, o derrubamento de antigas instituiçõespolíticas, a nova organização do Estado) ou à espe-rança, ao temor e ao espanto que acompanham oseventos revolucionários cuja “fama” desperta a cu-riosidade ou a fantasia das pessoas? Não que tudoisso que acabamos de citar não tenha importância.O que verdadeiramente vale para Kant, porém, nãoé (apenas) a revolução e sim um aspecto, diríamosuma conseqüência dela. O relâmpago que ilumina ocaminho do homem e lhe revela a disposição moralrumo ao progresso e ao melhor é o “entusiasmo” doespectador desinteressado, não envolvido nem “to-mado” pelos eventos revolucionários.

O acontecimento, como Kant esclarece no sex-to parágrafo, não tem nada a ver com as ações oucom os delitos cometidos pelos homens, nemtampouco com o desaparecimento súbito, como poruma oculta magia, de “antigos e brilhantes edifíci-os políticos” e o surgimento de outros.

Não, nada de tudo isto. Ele [o acontecimento] dá-sesomente no modo de pensar dos espectadores quese revela publicamente no jogo das grandes revolu-ções e que, não obstante o perigo dos sérios prejuí-

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zos que um tal espírito partidário poderia provocar-lhes, manifesta um interesse universal e todaviadesinteressado, pelos jogadores de um partido con-tra os do outro, demonstrando (por causa da uni-versalidade) um caráter da espécie humana na suatotalidade e ao mesmo tempo (por causa do desin-teresse) um caráter moral desta que, pelo menosnas suas disposições, não somente permite esperaro progresso para o melhor, mas é ele mesmo umtal progresso. (KANT, 1935, pp. 100-101)

Mais do que a revolução concreta, visível, o quepara Kant é decisivo é o que ela provoca, desperta.A revolução – com a luta para a liberdade, mas tam-bém com os seus crimes e as suas misérias, o acon-tecimento que pode ter sucesso, mas que estápesadamente exposto ao risco de fracassar – “en-contra nos espíritos de todos os espectadores (quenão estão engajados nesse jogo) uma simpatia deaspirações que beira o entusiasmo (...) e que nãopode ter outra causa senão uma disposição moralda espécie humana”. (KANT, 1935, pp. 101)

Mas de que revolução estamos falando? Expli-ca Cioran:

uma revolução que teve êxito, que se estabeleceu,transformada no oposto de uma fermentação e deum nascimento, deixa de ser uma revolução, por-que imita e tem que imitar as características, oaparato e até o funcionamento da ordem que der-rubou. Quanto mais se consagra a isso (e não temcomo fazer de outro modo), mais destruirá seus

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princípios e seu prestígio. Doravante conservadoraa seu modo, lutará não para defender o passado,mas o presente. Nada a ajudará mais nisso do queseguir os caminhos e os métodos que o regime queaboliu usava para se manter. Da mesma forma, paraassegurar a durabilidade das conquistas de que seorgulha, ela se afastará das visões exaltadas e dossonhos de onde até então extraíra os elementos deseu dinamismo. (CIORAN, 2001, pp. 30-31)

Aos fatos que suscitaram o entusiasmo dos es-pectadores sucederá – inevitavelmente – o Ter-ror, o sangue, a eliminação de rivais e companhei-ros; uma nova opressão e uma nova tirania.

II

Ora, o perigo da “ficção romanesca” foi evita-do? A prova de que na humanidade existe um pro-gresso para o melhor foi encontrada? E se for, pos-sui uma evidência definitiva? Fornece-nos respos-tas satisfatórias no trágico face a face com a vio-lência, o Mal, a brutalidade do homem e da suaHistória?

O homem, “aquele-que-não-é” escreve Cioranem La chute dans le temps, sublinhando o fato deque é exatamente este “déficit de existência” que,ao invés de prostrá-lo, remi-lo, libertá-lo, reduzi-lo a pura resignação, e por conseguinte, a pura paz,desperta-o furiosamente e o faz sair, por reação,do torpor originário, atiçando-o à ação, ao desafio,à ferocidade, ao poder, à História. O homem: ani-

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mal que desertou das suas origens e permutou aeternidade pelo devir; troglodita soberbo e pre-sunçoso que se apoderou da consciência, doada porPrometeu, o “filantropo funesto” descrito em His-tória e utopia, e lançou-se – como dizia Nietzsche– no imenso mar da vida, engajando-se em umacorrida afanosa, absurda, enganosa, irreal, despro-vida de significação, finalidade, rumo. O homem,

sombra que lida com simulacros, um sonâmbulo quese vê andar, que observa os próprios movimentossem entrever aí a direção nem a razão. A forma desaber que escolheu é um atentado, um pecado sequiserem, uma indiscrição criminal com respeito àcriação, que ele reduziu a um amontoado de obje-tos diante dos quais se põe, ergue-se como um des-truidor – papel que desempenha por jactância maisque por coragem. (CIORAN, 1995 a, p. 1076)

O homem agoniza comicamente, é interessantesó enquanto afunda. “Se perdura, é porque não tema força de capitular, de interromper a própria de-serção para a frente (a História é isso, e nada mais),porque adquiriu um automatismo na decadência”.(CIORAN, 1995 a, p. 1076)

Na primeira parte deste trabalho, assistimosao poderoso e articulado esforço de Kant parafundamentar as suas afirmações otimistas sobrea humanidade, os seus fins, o seu devir. Vimos ofilósofo traçar, sem ingenuidade, mas com umacarga infinitamente problemática de confiança,as “utopias” do progresso, da constituição civil

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justa, do fio condutor, da sociedade que se tor-nará um todo moral. Escreveu Cioran:

A cada passo à frente sucede um passo atrás: é ainfrutífera agitação da história, devir... estacio-nário... Que o homem tenha se deixado enganarpela miragem do Progresso, é algo que torna ri-dículas todas as suas pretensões de sutileza.(CIORAN, 1989, pp. 173-174).

E em História e utopia, livro publicado em1960, em uma França obcecada pelo engajamentoe pela ação:

Por mais diversos que sejam seus disfarces, a idéiade perfectibilidade penetrou em nossos costumes:adere a ela mesmo quem a questiona. Ninguémquer aceitar que a história se desenvolve sem ne-nhum motivo, independentemente de uma direçãodeterminada, de um objetivo. ‘Ela tem um objeti-vo, corre em direção a ele, virtualmente já o atin-giu’ proclamam nossos desejos e nossas doutrinas.Quanto mais carregada de promessas imediatasestiver uma idéia, mais chances terá de triunfar.(CIORAN, 1994, pp. 112-113)

A lucidez do filósofo franco-romeno, que dá omelhor de si ao dedicar-se aos frêmitos vãos elutuosamente atarefados do homem histórico,desconstrói sistemas e teorias que repetem, ape-sar de toda contraposição ou diferença o mesmorefrão de um sentido na História, de uma conci-liação dialética, de um sopro messiânico e de

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um novo advento, do providencialismo, daperfectibilidade do homem e das suas “criações”,do constante progresso para o melhor, de umasociedade sem classes, etc. Em uma expressão:significações impregnadas de teologia:

Nas épocas em que tomamos consciência da nuli-dade de nossas iniciativas, assimilamos o destinoora à Providência, disfarce tranqüilizador da fatali-dade, camuflagem do fracasso, confissão de impo-tência para organizar o devir, mas vontade de res-gatar suas linhas essenciais e lhes extrair um sen-tido, ora a um jogo de forças mecânico, impessoal,cujo automatismo regula as nossas ações e até asnossas crenças. No entanto, este jogo, por maisimpessoal e mecânico que seja, nós oinvoluntariamente envolvemos com prestígios quea sua própria definição exclui, e o restringimos –conversão de conceitos em agentes universais – auma potência moral responsável pelos acontecimen-tos e pelo curso que devem tomar. Em plenopositivismo não se evocava em termos místicos ofuturo, a que se atribuía um poder de eficácia pou-co menor que o da Providência? É portanto inegá-vel que se infiltra em nossas explicações uma gotade teologia, inerente e mesmo indispensável aonosso pensamento, ainda quando mal se compro-meta a apresentar uma imagem coerente do mun-do. (CIORAN, 2001, p. 6)

A incômoda presença do telos religioso. A cren-ça em um fim, um objetivo, uma utopia qualquer:

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Atribuir ao processo histórico uma significação,fazê-la surgir de uma lógica imanente ao devir éadmitir, mais ou menos explicitamente, uma for-ma de providência. Bossuet, Hegel, Marx, pelopróprio fato de atribuírem um sentido aos acon-tecimentos, pertencem a uma mesma família ou,pelo menos, não diferem essencialmente uns dosoutros, já que o importante não é definir, deter-minar este sentido, mas recorrer a ele, postulá-lo. E eles recorrem a ele, postulam-no. Passarde uma concepção teológica ou metafísica para omaterialismo histórico é simplesmente mudar deprovidencialismo. (CIORAN, 2001, p. 6)

No milenário combate contra as “evidências”negativas, que dão forma aos vultos trágicos daHistória e do tempo, os mecanismos da Utopiatêm sido determinantes. Cioran individua naindubitável força de encantamento, na capacida-de de oferecer esperanças, sentidos e consolaçõese no rigor profético das doutrinas utopistas o mo-tor de toda reflexão sobre a História. Esta imen-sa “fascinação do impossível”, esta desenfreadapaixão pela Utopia, a saber, por um “não lugar”,por “lugar nenhum”, por “um lugar que não exis-te”, (do grego ou, não e tópos, lugar) é facilmenteexplicável:

Apresso-me em acrescentar que esta literatura re-pugnante é rica em ensinamentos e que, aofreqüentá-la não se perde totalmente o tempo. Des-de o princípio se distingue o papel (fecundo ou fu-nesto, não importa) que desempenha, na origem

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dos acontecimentos, não a felicidade, mas a idéiade felicidade, idéia que explica por que, tendo a ida-de de ferro a mesma extensão da história, cada épocadedica-se a divagar sobre a idade de ouro. Se sepusesse fim a tais divagações, ocorreria uma estag-nação total. Só agimos sob a fascinação do impossí-vel: isto significa que uma sociedade incapaz de ge-rar uma utopia e de consagrar-se a ela estáameaçada de esclerose e de ruína. A sensatez, àqual nada fascina, recomenda a felicidade dada, exis-tente; o homem recusa esta felicidade, e essa sim-ples recusa faz dele um animal histórico, isto é, umamante da felicidade imaginada. (CIORAN, 1994,p. 101)

O homem, de resto, ama sacrificar-se “em nomede” algo... Precisa da ilusão de que alguma coisavalha a pena; precisa de uma ideologia: alavancado agir, fonte do engajamento, motor das guerras,chama das revoluções; “subproduto das visõesmessiânicas ou utópicas, e algo assim como suaexpressão vulgar”. (CIORAN, 1994, p. 115)

Conscientes ou não, o frenesi da escolha nos de-vora sem interrupção. Todo instante, todo respiro,todo movimento implica uma tomada de posição: aexistência é um matadouro de possibilidades igual-mente vãs. O prevalecer de uma idéia ou de outradepende do acaso, da combinação desordenada decircunstâncias enclausuradas em si mesmas e quesó adquirem a posteriori os traços de um aconteci-mento. Nem livre-arbítrio nem necessidade guiamos nossos caminhos de animais políticos, mas simvacilações, erros, ilusões, crenças.

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Os que aderem a um partido pensam se distin-guir dos que seguem outro, enquanto todos, des-de o momento que escolhem, no fundo se asse-melham, participam de uma mesma natureza ese distinguem apenas em aparência, pela másca-ra que assumem. É absurdo imaginar que a ver-dade consiste na opção, quando toda tomada deposição eqüivale a um desprezo pela verdade. Paranossa infelicidade, a escolha, a tomada de posi-ção é uma fatalidade a que ninguém escapa. Cadaum de nós deve optar por uma não-realidade, porum erro, convencidos dele à força, como doentes,febris: nossos assentimentos, nossas adesões sãocomo que sintomas alarmantes. (CIORAN, 2001,pp. 6-7)

Escolher, engajar-se, acreditar. Esquerda eDireita, Revolução e Reação, Liberalismo e So-cialismo: para Cioran nomes diferentes da mes-ma polícia: “Dizer: prefiro tal regime a tal ou-tro, é flutuar no indefinido; seria mais exato afir-mar: prefiro tal polícia a tal outra. Pois a histó-ria na realidade se reduz a uma classificação depolícias; por que, de que trata o historiador, se-não da concepção do gendarme que os homenscriaram através dos tempos?”. (CIORAN, 1991,p. 78) Vítima resignada, enganada, mas dinâmi-ca e vital, do devir histórico e político é o povo,destinado a carregar o próprio destino de venci-do. O seu fado, mesmo nas ocasiões nas quaisacredita estar lutando para se libertar, é “sofreros acontecimentos e as fantasias dos governan-tes, prestando-se a desígnios que o enfraquecem

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e o oprimem. Toda experiência política, por mais‘avançada’ que seja, desenrola-se à sua custa, diri-ge-se contra ele”. (CIORAN, 1994, p. 60) É inútilter piedade: a“ sua causa é sem remédio. Nações eimpérios se formam por sua complacência nas ini-qüidades das quais ele é objeto. Não há chefe deEstado nem conquistador que não o despreze; masaceita este desprezo e vive dele. Se o povo deixas-se de ser débil ou vítima, se não cumprisse seudestino, a sociedade se desvaneceria, e com ela ahistória”. (CIORAN, 1994, pp. 60-61) Os homensagüentam tudo, são um “convite para os déspotas”e se eles se rebelam é só para cair em novas cruel-dades e tiranias. Liberdade? Emancipação? Ide-ais? Batalhas por um futuro melhor? “Que não nosfalem mais de povos dominados, nem de seu gostopela liberdade; os tiranos sempre são assassina-dos tarde demais: essa é sua grande desculpa”.(CIORAN, 1991, p. 78)

O homem ilude-se de “criar” história, acreditano próprio poder de dominá-la. Na realidade é ahistória que o sacode, o abala, o desfaz, que sedesenvolve no insolúvel e no intolerável. Ora, pos-sui ela um escopo, uma finalidade, uma lógica?“Há mais honestidade e rigor nas ciências ocul-tas do que nas filosofias que atribuem um ‘senti-do’ à história”. (CIORAN, 1991, p. 83) Hegel, “ogrande responsável pelo otimismo moderno”,(CIORAN, 1989, p. 145) esqueceu que o devir é o

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reino do acaso1 e da aparência, que a história “é aironia em marcha, a gargalhada do Espírito atra-vés dos homens e dos acontecimentos (...). Ne-nhum princípio imutável regula os favores e asseveridades da sorte: sua sucessão participa daimensa farsa do Espírito, que confunde, em seujogo, os impostores e os entusiastas, as astúcias eos ardores”. (CIORAN, 1989, pp. 145-146) E se,obrigados à força, tivéssemos de indicar o senti-do da História? Ele, responde Cioran, poderia serencontrado apenas

na maldição que caiu sobre a história, e em nenhumoutro lugar (...). Um gênio maléfico rege os seus des-tinos. Ela, manifestamente, não tem escopo, mas égravada com uma fatalidade que a substitui e queconfere ao devir um simulacro de necessidade. É estafatalidade, e unicamente ela, que permite falar semtornar-se ridículo em uma lógica da história – e mes-mo em uma providência. (CIORAN, 1995 b, p. 1428)

Uma providência maléfica e obscura, que nãoguia as civilizações rumo aos objetivos planejadosou esperados, mas os conduz na direção oposta,precipitando-as nos abismos “com uma obstinação

1 Acompanhemos Schopenhauer: “A história da humanidade, a intimidade dos fatos,a mudança dos tempos, os múltiplos aspectos da vida humana em países e séculosdiversos, tudo isso é apenas a forma casual assumida pela manifestação da Idéia,que não pertence a esta, na qual está apenas a objetividade adequada da vontade,mas ao fenômeno que é conhecido pelo indivíduo; e é tão estranha, tão insensívele indiferente à Idéia quanto são estranhas às nuvens as figuras que representam,ao rio a forma dos seus turbilhões e das suas espumas, e ao gelo as suas figuras deárvores e flores” (O mundo como vontade e representação, I – 35).

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e um método que revelam as tramas de uma po-tência tenebrosa e irônica”, (CIORAN, 1995 b, p.1428) e os sobressaltos de uma agonia sem fim.

Ressoa ali uma última reflexão.Afinal de contas (e apesar de todo pessimismo, todo

massacre, todo absurdo), a História, o progresso, asconquistas da liberdade existem (e resistem): deve-seconcluir, à maneira de Kant, que encontramos maisuma prova, um testemunho, um indício? Não ne-cessariamente: “A hora do crime não soa para to-dos os povos ao mesmo tempo. Assim se explica apermanência da história...”. (CIORAN, 1991, p. 77).

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_____. La chute dans le temps. In: “Œuvres”,Gallimard, 1995 a.

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MUNDO INTELIGÍVEL E ANALOGIANA MORAL DE KANT

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“Onde a etimologia da palavra celeste?”(Cassiano Ricardo)

ão bem conhecidas as palavras comque Kant dá início à “Conclusão” da Crí-tica da razão prática: “Duas coisas en-

chem o ânimo de admiração e veneração sempre no-vas e crescentes, quanto mais freqüentemente e commaior assiduidade delas se ocupa a reflexão: O céuestrelado sobre mim e a lei moral em mim” (KpV: V,161;trad. 1831). O que diz esta imagem? O céu estreladoevoca “o imensamente grande”, e a “inumerável mul-tidão de mundos” que ele deixa entrever “aniquila aminha importância como criatura animal”; nesta mes-

1 Citações das obras de Kant, exceção feita à Crítica da razão pura, são seguidasde referência no corpo do texto, entre parênteses, com a abreviatura da obracitada, a indicação do número do volume e da página que lhe corresponde naKants Werke, Ed. Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, Berlin,Georg Reimer, 1902 em diante <Akademie Text-Ausgabe, Berlin, Walter deGruyter & Co.>, e da tradução disponível em língua portuguesa, cuja referênciaé fornecida na bibliografia.

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ma medida, “meu eu invisível”, “minha personalida-de” são reforçados em seu estatuto noumênico: “a leimoral me descobre uma vida independente daanimalidade e mesmo de todo o mundo sensível”,estendendo-a “até o infinito” (KpV: V,162; trad. 183-184). Em suma, a humilhação de minha natureza sen-sível pelo ilimitado é contrabalançada pelo fato deque o infinito é restituído a minha intimidade racio-nal. Quanto maior a constatação de que a existênciamundana é insignificante, tanto mais clara será apercepção de minha moralidade.

Como se vê, a moralidade aparece aqui comorecuperação do mundo inteligível por um ser sen-sível dotado de razão. E esta recuperação, porsua vez, atesta a diferença entre a condição na-tural e destinação racional do homem – semdúvida, um dos aspectos mais consideráveis doimpacto do kantismo no pensamento alemão navirada do século XVIII. Schiller, por exemplo,viu aí um abismo cuja superação exigiria o re-curso a um terceiro termo, a arte, capaz de me-diar a relação entre ser e dever ser, entre maté-ria e forma2. O jovem Schelling retomou odualismo inaugurado por Kant para caracteri-zar a finitude como registro no qual toda posi-ção é, ao mesmo tempo, oposição, dotando dessemodo a condição mundana da negatividade capazde restabelecer, do ponto de vista prático, a iden-

2 F. SCHILLER, Educação estética do homem. Trad. R. Schwarz e M. Suzuki. SãoPaulo: Iluminuras, 1995, 28.

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tidade originária do Eu absoluto3. O mesmo com-promisso com a síncope inaugurada por Kantentre o racional e o sensível é afirmado pelosromânticos: enquanto Schlegel irá definir a iro-nia como remédio contra a cisão <Spaltung>metafísica entre o ideal e o efetivo4, Novalis iráver no humor o resultado de “uma livre misturado condicionado e do incondicionado”5.

Não bastassem estes aprofundamentos, a es-trutura dualista representada pela distinção emútua referência entre o normativo e o efetivotambém merece atenção por ter sido o principalmotivo da bem conhecida objeção ao formalismode Kant. A polaridade entre o efetivo e onormativo exprime-se como imposição absolutada razão aos sentidos; daí certos leitores de Kant– com o apoio de alguns de seus textos – teremconcluído que, ao agir, o homem moral ponha delado todas as considerações que poderiam advirda experiência efetiva em que se vê inscrito paraconformar-se exclusivamente à Moralität, que,calcada na noção de Lei exposta na “Analítica darazão pura prática” da 2a Crítica, ordena, tout-court, o que fazer. Com efeito, a moralidade tiraseu caráter prescritivo da síncope que a preside:Deus e as criaturas puramente racionais, a rigor,

3 F. SCHELLING, Vom Ich, in: Sämtliche Werke, I, 1856., p. 180 e p. 191.4 Cf. J. RITTER & K. GRÜNDER (edit.), Historisches Wörterbuch der Philosophie,

verbete “Ironie”.5 NOVALIS, Werke, Tagebücher und Briefe (ed. H-J. Mähl & R. Samuel). Darmstadt:

Wissenschaft Buchgesellschaft, 1999, vol. II, 239.

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não agem moralmente, pois, para Kant, a morali-dade toma sua medida do mesmo contraste que oagente tem de suprimir (cf. Gdlg: IV: 439; trad.144). Compreende-se que o imperativo categóri-co tenha sido interpretado como expressão de umamoral avessa aos fatos, refém de um preconceitoteológico do autor ou até como prova da ingenui-dade de Kant frente aos obstáculos que a vidaburguesa impunha à virtude – obstáculos com osquais qualquer leitor de Richardson ou Defoe, lápelo fim do século XVIII, já deveria estar sufici-entemente familiarizado.

Não faltam exemplos deste tipo de objeção, deresto compartilhada pelas variantes dualistas dopós-kantismo, cujo empenho em introduzir medi-ações na oposição inaugurada por Kant manifestao mesmo incômodo frente ao que, na falta de ter-mo melhor, poder-se-ia chamar o irrealismo de suamoral. Com a sátira da boa alma königsbergiana,apresentada por Hegel na Filosofia do Direito, oestigma consagrou-se ao longo do século XX.Horkheimer dá-nos um exemplo:

É devaneio idealista a opinião de que a boa intenção -por mais importante que possa parecer este impulso -seria a única coisa boa, a avaliação da ação apenaspelo que ela intenta e não também pelo que ela signi-fica realmente no respectivo momento histórico. Par-tindo desse aspecto ideológico do conceito kantianode moral, um caminho reto leva à moderna mística

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do sacrifício e da obediência, que fora disso se reportaerroneamente a Kant6.

Tendo em vista tais críticas, não deixa de cau-sar espécie o fato de que a moral do Dever tenhasido reabilitada no século XX por parte significa-tiva da interpretação anglo-saxã do kantismo – eisso, pelos mesmos motivos que conduziram leito-res como Horkheimer à objeção de irrealismo. Estainflexão, cujos motivos não discutimos aqui, temimplicações significativas para a Kantsforschung:procurando oferecer uma base normativa condi-zente com as exigências contemporâneas de umpensamento pós-metafísico, buscou-se secionar ovínculo, existente no texto kantiano, entre o De-ver e as idéias de Deus e da imortalidade da alma,as quais, embora sejam neutralizadas na 1a Críti-ca como objeto de nosso conhecimento teórico, sãoreabilitadas por Kant tão logo estejamos às voltascom o intuito prático da razão. Assim, a defesa daindependência da doutrina da Lei moral diante detoda e qualquer reabilitação dos temas dametafísica clássica terminou por convergir com ainterpretação conforme a qual o essencial da ética

6 M. HORKHEIMER, “Materialismo e moral”, in: Teoria crítica I. Tradução: H.Cohn. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 67. Tal juízo está longe de ser exclusivoda teoria crítica, e tampouco limita-se aos confins da tradição continental;por exemplo, em obra relativamente recente, A. Macyntire afirma que“qualquer um educado na noção kantiana de dever desejará, nesta medida,ter sido educado em um conformismo fácil com autoridade” (MACINTYRE, A.A short History of Ethics. Notre Dame: Univ. of Notre Dame Press, 1988 <2aed.>, p. 198).

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de Kant está no imperativo categórico – só que, aoinvés de representar um obstáculo, o “formalismo”passou a pautar a exegese dos textos, motivadapela busca de um procedimento capaz de respon-der, sozinho, pela força normativa entrevista nasações morais. Paton, por exemplo, afirma que ascrenças metafísicas sobre Deus e a imortalidadeda alma, as quais, conforme Kant, acompanham opostulado do soberano Bem, “não alteram o con-teúdo de sua ética, e nada acrescentam ao supre-mo valor da vontade moral ou à natureza obrigantedo imperativo categórico”7. Beck recusa a idéia,expressa por Kant, de que a moralidade tenha defazer referência às idéias especulativas tratadasna “Dialética da razão pura”: admiti-lo seria, emúltima análise, macular a base normativa da éticaedificada por Kant com suposições metafísicaspouco afeitas à reabilitação contemporânea dokantismo8.

Embora movidas por propósitos antípodas, asinterpretações que perfilamos acima sob dois ti-pos opostos de leitura à partir de Kant comparti-lham o pressuposto de que possamos resumir suaética à defesa exclusiva do valor da obrigação, ex-pressa na forma da Lei. Para o bem ou para o mal,

8 BECK, L. W. A Commentary on Kant’s Critique of Pratical Reason. Chicago: TheUniv. of Chicago Press, 1960. Para o elogio contemporâneo de Kant, ver aconclusão de J.B. SCHNEEWIND, The Invention of Autonomy. Cambridge:Cambridge Univ. Press, 1998.

7 PATON, H. J. The Categorial imperative. A Study in Kant’s Moral Philosophy.Philadelphia: Universitt of Pennsylvania Press, 1971, p.256, apud. MATTOS, F.C. Conhecimento prático e metafísica especulativa em Kant. op. cit., p.13

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deveríamos insular o essencial da moralidadekantiana à Analítica da 2a Crítica. Mas esteinsulamento será lícito? Comecemos por lembrarque, fosse assim, o constrangimento que o impera-tivo produz sobre nossa natureza patológica seriatal, que o agente, esmagado sob o peso da razão,adquiriria feições trágicas; seu compromisso como céu inteligível o tornaria refém de um verso emque Drummond, nada iluminista, conclui que “o mun-do não vale o mundo”. Por certo, a lei moral faz vio-lência à sensibilidade; contudo, não há motivos paracrer que o avesso do sensível corresponda à experi-ência inarticulada e trágica do incondicionado, nem,tampouco, que a admiração e veneração que inva-dem o ânimo do homem moral privem de juízo suainscrição no mundo, como se ele fosse alguém in-capaz de julgar, precisamente por pautar sua con-duta por princípios morais. Talvez se tenha resu-mido muito apressadamente o dualismo kantianoà alternativa entre dois mundos excludentes –como se, ao pressentir a proximidade do Absolu-to, só restasse ao homem “a escolha pânica entre oprazer sensual e a paz da alma”9 – como se, enfim,o cumprimento da Lei equivalesse ao sacrifício noaltar da razão, tal como objeta Horkheimer e, nolimite, parecem dispostos a aceitar Paton e Beck.Antes de oferecer à moral o antídoto do formalismorepresentado pela mediação sociológica ou estéti-ca ou de, ao contrário, ater-se exclusivamente aoimperativo categórico e resumir a um procedimen-

9 SCHILLER, “O ideal e a vida” (na tradução de Rubens Torres Filho).

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to toda verdade da filosofia prática de Kant, con-vém examinar se sua moral, feitas as contas, nãorepresenta, antes de tudo, uma perspectiva inteli-gível sobre o mundo efetivo, que convoca as idéiasespeculativas para lhes conferir um horizonte dedeterminação compatível com a interdição daontologia clássica.

Aponta nesta direção a inserção da moral noprograma iniciado por Kant com a Crítica da ra-zão pura. Embora a primeira Crítica torne oincondicionado incognoscível, ele segue sendopensável. Daí porque o protocolo das condições doconhecimento empírico, que é a Analítica transcen-dental, dê ocasião à retomada da psicologia, dacosmologia e da teologia racionais, cujos temas,como é sabido, adquirem, no fim da Dialéticatranscendental, o estatuto de princípios heurísticosfundamentais para o conhecimento da experiência.De acordo com isso, a 1a Crítica deixa entrever umuso para as idéias da razão diverso do da regulaçãoda experiência. Neste deslocamento, a oposição en-tre o normativo e o efetivo adquire, através da re-presentação do dever, o seu significado prático – enada mais plausível do que supor que a determina-ção racional da vontade exija a referência às idéiasespeculativas discutidas na dialética da razão pura.É para este vínculo entre obrigação e faculdade depensar que devemos voltar nossa atenção: pode bemser que, ao fazê-lo, constatemos que, ao contrário doque sugere o retrato desenhado por alguns de seuscríticos e defensores, o homem moral kantiano nãoseja cego ao que se passa a seu redor, nem que o pre-ço de sua lucidez seja a experiência trágica de al-

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guém cuja vida se desmede por buscar sua medida àrazão; finalmente, pode bem ser que, ao reabilitar asidéias especulativas em sentido prático, Kant sejaabsolutamente coerente com a crítica do dogmatismoclássico – e que, caso quisermos ver aí seu compro-misso com a metafísica, teremos de conceder que elase viu investida de uma nova figura.

Três motivos levam-nos a crer ser impossí-vel dissociar, em Kant, ação moral e pensamentoespeculativo.

1. A unidade da razão. A interpretação dodualismo moral a partir da extensão prática de quesão capazes as significações especulativas depen-de, preliminarmente, da convergência temáticaentre a crítica do conhecimento especulativo e adoutrina da razão prática. É digno de nota, a esterespeito, o que Kant tem a dizer sobre a unidadeda razão, na 2a Crítica:

“Se a razão pura pode por si mesma ser prática, ede fato o é, como o demonstra a consciência da leimoral, é no entanto sempre apenas uma e mesmarazão que, quer seja do ponto de vista teórico ouprático, julga segundo princípios a priori; e é evi-dente que, embora do primeiro ponto de vista o seupoder não seja suficiente para estabelecer peremp-toriamente certas proposições que, contudo, nãoestão precisamente em contradição com ela, deve,logo que estas proposições estão indissoluvelmen-te ligadas ao interesse prático da razão pura, admi-ti-las, sem dúvida como uma oferta a ela estra-nha, que não proveio de seu solo mas, no entanto,bastante certificada, e procurar compará-las e

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conectá-las com tudo o que tem em seu poder, en-quanto razão especulativa” (KpV: V: 121; trad. 140).

Essas proposições que a razão é incapaz de esta-belecer de modo positivo com intuito teórico são,justamente, aquelas relativas à imortalidade daalma e à existência de Deus, discutidas na Dialéticada 1a Crítica. Nesta passagem, Kant diz expressa-mente que essas idéias estão indissoluvelmente li-gadas ao interesse prático da razão, a qual lhes in-veste de um intuito moral, por ocasião da determi-nação pura da vontade. Ou seja: determinar moral-mente a vontade e pensar com intuito prático ostemas da Dialética da razão pura aparecem, aqui,como sendo uma única e mesma coisa.

O primeiro ponto contra as interpretações queprocuram insular a obrigatoriedade da lei moralna Analítica da 2a Crítica, portanto, evoca a idéiade arquitetônica e, através dela, oferece uma vi-são de conjunto do programa kantiano: a afirma-ção da unidade da razão faz da filosofia crítica umsistema de passagens entre os elementos que elaorganiza como doutrina. Estas passagens não sãoaleatórias: o primado da razão prática, adverte-nos Kant, pressupõe que sua união com a razãoespeculativa “não seja, claro está, contingente earbitrária, mas fundada a priori na própria razão,por conseguinte, necessária” (KpV: V: 121; trad.p. 140).

2. Determinação prática do incondicionado. Oque, porém, significa pensar com intuito práticoos temas da Dialética especulativa? No 2o Prefá-

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cio à Crítica da razão pura, em uma passagem naqual discorre sobre as implicações práticas da in-terdição da ontologia dogmática, Kant dá a pista:

“<...> depois de ter sido negado à razão especulativaqualquer avanço no campo do supra-sensível, res-ta-nos considerar se não existem no conhecimentoprático dados que nos permitam determinar o con-ceito transcendente do incondicionado e assim, deacordo com o desejo da metafísica, ultrapassar oslimites de toda a experiência possível por meio donosso conhecimento a priori que só é possível parapropósitos práticos” (KrV: B XIX, XXI, grifo nosso).

O interesse desta passagem reside em que, nela,o problema da determinação moral do arbítrio sevê atrelado com a problemática crítica do limi-te10; com efeito, um arbítrio determinado moral-mente requer a determinação do “conceito trans-cendente do incondicionado”. Assim, o mesmoincondicionado que, em função de sua indeter-minação face ao conhecimento da natureza, foraneutralizado pela 1a Crítica como objeto de umsaber positivo, se torna, graças ao intuito moralda razão, determinável praticamente. Pensar comintuito prático os temas da Dialética da razão pura,conclui-se daí, equivale a determinar o conceito

10 Veja-se MATTOS, F.C. “Conhecimento prático e metafísicaespeculativa em Kant”, op.cit, passim, que repassa com grande interesseas interpretações clássicas acerca do significado das idéias para amoralidade kantiana, salientando a importância assumida aí peloproblema crítico do limite.

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transcendente do incondicionado. É isso, o que, deresto, diz-nos a metáfora da 2a Crítica citada deinício: a ilimitação do céu estrelado inflete na de-terminação prática do infinito. Daí porque pare-ça-nos unilateral encerrar a verdade damoralidade kantiana na violência que a represen-tação da lei faz aos sentidos; ao contrário, a mes-ma “experiência” reabre o infinito como tema dopensamento em regime prático.

3. Determinação do incondicionado e legislaçãouniversal. Se, como decorre do ponto acima, a mo-ralidade constitui o horizonte de determinação doconceito transcendente do incondicionado, entãoé de se supor que o intuito sistemático da razão,meramente regulativo no que respeita ao conheci-mento da natureza (KrV: B 673), se tornedeterminável mediante a obediência à Lei – coisaque, de resto, Kant dá a entender desde a Críticada razão pura11. Ou seja: é de se supor que a de-terminação moral do arbítrio inscreva minha açãoem uma conexão sistemática do agir em geral. Seisso for correto, então determinar-me moralmen-te será o mesmo que relacionar minha conduta coma comunidade representada pelo conjunto dos ho-mens tomados como seres racionais. Em suma: oque constitui a moralidade da ação será, precisa-mente, sua referência racional à humanidade, pos-

11 “Com efeito, já que a razão ordena que tais ações <em conformidadecom os preceitos morais> devem ocorrer, elas também têm de poderocorrer e, por conseguinte, tem que ser possível um tipo particular deunidade sistemática, a saber, a moral” (KrV: B 835). “A moralidadeem si mesma perfaz um sistema” (KrV: B 839).

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sibilitada pela reabilitação prática da noçãoespeculativa de sistema.

Atentemos, neste sentido, para a o fato de que,no §8 da 2a Crítica, Kant formula o princípio damoralidade nos termos de uma modalidade especí-fica da determinação do arbítrio. Lê-se aí que a de-terminação só é moral, quando seu ponto de parti-da é, não “a existência de uma coisa qualquer”, masa forma da legislação universal. “A lei moral <...>só é pensada como objetivamente necessária por-que deve valer para todos os que possuem vontadee razão” (KpV: V: 36; trad. 49). A objetividade da lei,portanto, funda-se na validade que possui para atotalidade dos seres racionais dotados de vontade.Logo, minha ação só é moral, quando a máxima quea pauta admitir minha inscrição em uma comuni-dade racional – quando, como diz Kant na Funda-mentação, efetuar uma “ligação sistemática de se-res racionais por meio de leis objetivas comuns”,leis que, por terem em vista “a relação destes seresuns com os outros como fins e meios”, instituem“um reino dos fins” (Gdlg.: IV: 433; trad. 139).

O reino dos fins, assim, institui como condição damoralidade da minha ação a sua projeção em uma co-munidade inteligível, na qual todo ser racional é to-mado como fim em si mesmo. Conforme aventávamosacima, uma nota da Fundamentação12 atesta que a no-

12 “A teologia considera a natureza como um reino dos fins; a moral considera umpossível reino dos fins como um reino da natureza. Acolá o reino dos fins é umaidéia teórica para explicar o que existe. Aqui é uma idéia prática para realizaro que não existe mas que pode tornar-se real pelas nossas ações ou omissões, eisso exatamente em conformidade com esta idéia” (Gdlg: V: 436 ; trad. 141).

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ção de reino dos fins reabilita – com intuito prático –o que Kant discutira na Dialética da 1a Crítica sob otítulo da idéia teológica. Mas, enquanto a Dialéticahavia se contentado em definir a idéia teológica comoideal mediante o qual a razão “pensa um objeto quedeve ser completamente determinável segundo prin-cípios, se bem que na experiência faltem as condiçõessuficientes para tanto e que o próprio conceito seja,portanto, transcendente” (KrV: B 599), a ação moraltorna possível “um mundo de seres racionais (mundusintelligibilis) como reino dos fins, e isso graças à pró-pria legislação de todas as pessoas como membrosdele” (Gdlg: IV: 438 ; trad. 142).

Convém assinalar que esse ganho de determinaçãoobtido para a noção especulativa de sistema não con-traria as cláusulas proibitivas que a crítica impõe aoconhecimento do supra-sensível. Ocorre apenas que, aoagir moralmente, inscrevo, graças à projeção possibili-tada pela noção de sistema, minha vontade em uma “es-fera totalmente diversa da <esfera> empírica” (KpV: V:34; trad. 46). Sem tal inscrição, a vontade não seria de-terminada pela forma de uma legislação universal, me-diante a qual a natureza racional é representada comoexistindo como fim em si mesma. O que, de resto, con-diz com a doutrina do imperativo categórico, cuja for-mulação obriga-nos a fazer da humanidade jamais omeio, e sempre o fim de nossa ação13. Sem a recupera-ção prática da idéia especulativa de sistema, não have-

13 “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoade qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmentecomo meio” (Gdlg: IV: 429, trad. 135).

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ria como ligar a obrigação moral ao que Kant designa o“princípio dos outros homens <Prinzip andererMenschen>” (Gdlg: IV: 430; trad. 136). Ou seja: o traçoda universalidade que sempre distinguiu, para Kant, averdadeira virtude ante as “virtudes de adoção”, taiscomo a compaixão e a condescendência, sempre restri-tivas14, traduz-se pela inscrição da minha ação na uni-dade sistemática representada pela convicção de quetodos homens, seres racionais, coexistem integran-do uma comunidade inteligível.

A esta altura, dispomos de elementos suficientespara concluir que a determinação prática da açãotranscorre na medida em que o agente pauta sua con-duta pela referência ao incondicionado; sem pensareste último, o agente não será capaz de fornecer àsua vontade um objeto. A recuperação prática doincondicionado traduz-se pelo fato de que, na açãomoral, consideramo-nos necessariamente membrosde um mundo moral15, no qual moralidade e felicida-de se encontram ligadas (KrV: B 837). Resta que arealização deste mundus intelligibilis depende de que“cada um faça o que deve” (KrV: B 838); daí porquepermaneça indeterminado como as ações deste ho-mem moral ligam-se com a sua “expectativa de felici-dade” (Gdlg: IV: 438; trad. 143). Com efeito, nada ga-

14 Cf. I. KANT, Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Campinas:Papirus, 2000, p. 32 ss.

15 O imperativo ordena que cada ser racional aja “como se fosse sempre, pelassuas máximas, um membro legislador no reino universal dos fins”(Gdlg: IV: 438;trad. 142). Em idêntico sentido, Kant afirmara, na 1a Crítica, que a razão nosconstrange a “nos representarmos como pertencentes a um tal mundo <moral>”(KrV: B 839).

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rante que os outros homens ajam baseados em prin-cípios morais – constatação essa que parece dar ra-zão àqueles que vêem na moralidade kantiana umaficção desprovida de apoio na realidade.

Neste ponto, porém, Kant parece antecipar-se aseus críticos e tirar da acusação que lhe será dirigidaa resposta a seus objetores. Com efeito, como deixaentrever a objeção de irrealismo, o que menos im-porta, quando ajo moralmente, é a ação efetiva demeus semelhantes; conta, sim, a representação desua natureza racional pela determinação moral domeu arbítrio. Daí porque a deformidade do mundoefetivo não faça problema ao agente kantiano: é adeterminação racional do arbítrio o que torna o mun-do moral uma conseqüência resultante de sua con-duta no mundo sensível, mesmo que tal mundo inte-ligível seja somente “um mundo futuro para nós”(KrV: B 839). A retomada das idéias especulativasem regime prático não poderia ter um desenlace maisexplícito: “Deus e uma vida futura são duas pressu-posições inseparáveis, segundo princípios da razãopura, da obrigatoriedade que exatamente a mesmarazão nos impõe” (KrV: B 839)16.

16 O ideal do soberano Bem é retomado na Crítica da razão prática, em umapassagem na qual, chamando a atenção para “a ordem dos conceitos da determinaçãoda vontade”, somos advertidos de que a Lei moral está incluída no conceito desoberano Bem, o qual, nesta medida, é não só objeto – “seu conceito e arepresentação de sua existência possível mediante a nossa razão prática constituemao mesmo tempo o princípio determinante da vontade pura” (KpV: V: 109/110;trad. 128). Daí porque nos pareça ilícita a observação de J. RAWLS (Lectures onthe History of Moral Philosophy. Cambridge: Harvard Press, 2000, p. 317), que,em uma afirmação cujo espírito retoma Paton e Beck, diz que o soberano Bem(“uma herança recebida de Leibniz”) é inconsistente com a filosofia moral kantiana.

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MUNDO INTELIGÍVEL E ANALOGIA NA MORAL DE KANT122

Como considerar infeliz uma consciência muni-da da convicção de que o mundo não pode desmen-tir suas idéias?17 Supor que o homem moralkantiano se paute pela lógica do sacrifício não seráresultado da retrospecção do leitor que, inscritoem um mundo sem medida, não se fia mais na ra-zão? Ora, essa possibilidade sequer é admissívelem Kant, para quem a experiência mundana emque se inscreve o agente, longe de dispor de umsignificado próprio, é toda ela balizada pela refe-rência às idéias especulativas. O horizonte de de-terminação destas transforma o agir em uma tare-fa cuja plausibilidade, furtando-se aos contratem-pos do efetivo, reduz este último a tema de umdiscurso indireto: ajo como se minha ação, inscritana ordem dos fenômenos naturais, fosse dotada deuma causalidade incondicionada; interpreto minhaconduta particular como se eu compusesse, comos demais homens, um reino dos fins; percebo ocurso irregular das ações humanas como se eleanunciasse o progresso da humanidade, etc.

Daí porque nos pareça incorreto, para retomarnosso ponto de partida, crer que a estruturadualista da moral kantiana seja fonte de proble-mas para seu autor, como se o preço que ele ti-vesse de pagar por isso fosse, em sentido poucofamiliar ao Esclarecimento, personificar o homemmoral como alguém condenado ao sacrifício ou ao

17 “As idéias <...> estão ainda mais afastadas da realidade objetiva do que ascategorias, pois não se pode encontrar nenhum fenômeno em que as idéias sedeixem representar in concreto” (KrV: B 595).

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niilismo. Concluí-lo requer de antemão admitir,como se fez progressivamente a partir de Schiller,que a síncope entre fato e norma configure umconflito vivido pelo agente ao modo de uma criseexistencial. Ao contrário, desde que “um pensardeterminado do supra-sensível” (KpV: V: 141;trad. 160) seja possibilitado pelo recurso à analo-gia, a medida do que podemos esperar se tornadisponível ao agente moral, que, cifrando o su-pra-sensível neste ou naquele acontecimento, ésempre capaz de reconhecer o desenvolvimentoprogressivo, “embora lento”, das disposições ori-ginais da espécie18. Por sua vez, o fato de que amoral do dever seja assim amparada pela perspec-tiva teleológica, último proveito crítico da idéiaclássica de sistema, isenta a argumentaçãokantiana de toda objeção de extemporaneidade,motivada que é, replicaria Kant, pela incompre-ensão acerca do processo por via do qual a razãovai impingindo sua marca na efetividade. Não éessa mesma intuição que Hegel irá retomar, quan-do, em seu combate aos precursores doexistencialismo, proclamar a reciprocidade entreo real e o racional?

18 KANT, I, Idéia de uma histórias universal de um ponto de vista cosmopolita.(Tradução: R. Terra & R. Naves). São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. Para aexplicação do vínculo, aqui apenas sugerido, entre moral e teleologia, cf. G.LEBRUN, “Uma escatologia para a moral”, in: I. KANT (org.: R. TERRA). Idéiade uma história universal, op.cit., pp. 75-101.

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MUNDO INTELIGÍVEL E ANALOGIA NA MORAL DE KANT124

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SOBRE O FUNDAMENTO NA FILOSOFIA DA HISTÓRIA DE HEGEL126

SOBRE O FUNDAMENTO NAFILOSOFIA DA HISTÓRIA DE HEGEL:

Uma Leitura do Capítulo “Força eentendimento; fenômeno e mundo supra-

sensível”

ALICE M. SERRA

I

conhecido o lugar ocupado pela Feno-menologia do Espíri to de Hegel en-quanto obra inaugural sobre a totalidade

da experiência histórica do Ocidente. A ela se se-guiriam as críticas a uma tal pretensão de um sa-ber absoluto que pudesse dar conta do ‘já não mais’do passado em sua universalidade e verdade. Poroutro lado, a ela se seguiria também a espécie delegado hegeliano à modernidade: não mais perde-ríamos de vista a temporalidade do vivido huma-no, a atenção às culturas, nem também se extin-guiriam as diversas tentativas de fundar um co-nhecimento, mesmo que parcial e fragmentado,sobre a história.

Mas o que enfocarei neste trabalho não são pro-priamente as filosofias da história que se seguiri-am a Hegel, nem também especificamente a filo-

É

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sofia da história de Hegel. O que enfocarei é sim ofundamento que tornará possível a Hegel afirmarsua filosofia da história na Fenomenologia do Es-pírito (1807). Mais precisamente, tentarei mostrarcomo esse fundamento se constitui dialeticamentepara a consciência no terceiro capítulo da seção“consciência” da Fenomenologia, intitulado “For-ça e entendimento; fenômeno e mundo supra-sen-sível”. O lugar estratégico desse capítulo consisteem ser ele o ponto de junção ou de passagem entrea consciência imersa na natureza – a seção “cons-ciência” – para a seção “consciência de si”, quandose inicia a abordagem propriamente histórico-cul-tural da Fenomenologia, primeiro na ‘dialética dosenhor e do escravo’ e em seguida de forma maisexplicitamente histórica nas figurações do“estoicismo”, “ceticismo” e “consciência infeliz”;abordagem que atinge seu cume ao fim da obra narevelação histórica do Espírito Absoluto nas trêsformas da arte (intuição), religião (representação)e filosofia (conceito).

Buscar-se-á explicitar como Hegel somente ini-cia tal abordagem após a consciência experenciarno capítulo “Força e entendimento; fenômeno emundo supra-sensível” a unidade originária e aomesmo tempo em devir entre subjetividade e mun-do objetivo, ou entre espírito e natureza. Serápressupondo essa unidade dialeticamente consti-tuída que Hegel passará a afirmar, da seção “cons-ciência de si” em diante, a homologia em devirentre espírito e segunda natureza ou cultura, ouentre conceito e história; ou, como se pode ler aofim da obra, a junção “história conceituada”. Como

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uma espécie de prenúncio, como na passagem emque Homero faz Odisseu descer aos infernos paraconhecer o seu futuro – o retorno à Ítaca – ou quan-do Virgílio, no livro VI da Eneida, dá a conhecer aEnéias o futuro do Império, assim parece ter con-cebido Hegel o capítulo “Foça e entendimento”.

Antes, contudo, de passar ao estudo do capítulo,inicio com a crítica de Schelling a Hegel a fim detornar mais nítido como, em contrapartida, Hegelse oporá a toda uma tradição que busca um funda-mento não-mediato ou carente de determinações.

II

Em sua “História da Filosofia Moderna: Hegel”,Schelling critica Hegel por seu absoluto consistirnum inexplicável movimento em que, após efeti-var-se no momento lógico, no éter do pensamen-to puro ao fim da Ciência da lógica, inexplicavel-mente passa à natureza e à história, decide ma-nifestar-se para de novo retornar a si, ao lógico,de onde, para Schelling, ele na verdade não teriasaído1 . Não há uma verdadeira exterioridade emHegel, dirá Schelling. Além disso, permaneceinexplicável como do ser contraposto ao nadaHegel retirará devir, ou seja, o movimento mesmodo conceito.2 Hegel não teria afirmado, diriaSchelling, um verdadeiro fundamento. Ele recu-

1 Schelling, F. W. J. Zur Geschichte der neueren Philosophie. Tradução em Schelling:Obras escolhidas. (Col. Os pensadores), 152 ss (paginação da edição traduzida).

2 Id. Ib., 134ss.

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sou o sistema anterior, quer dizer, ou seu (o deSchelling) por este partir do ser puro carente dedeterminações, da noite escura da intuição inte-lectual onde todas as vacas são negras, como dis-sera ironicamente no prefácio da Fenomenologia,mas não teria conseguido ele mesmo, aos olhos deSchelling, superar a unilateralidade do pólo sub-jetivo, em detrimento da objetividade. Esta sim,aos olhos de Schelling, seria preservada por ele,seja em sua intuição intelectual objetivada (a arte),seja em sua filosofia da história que, em estilo pla-tônico ou iluminista, consistiria num avançar pro-gressivo da humanidade em direção à liberdadeabsoluta, a qual coincidirá com o fundamento ab-soluto3. Mesmo que este não se objetive de todo,porém, primordialmente posto na base, coincidin-do com o Eu puro, incondicionado (das Unbedingt),é para ser buscado no campo do condicionado(bedingt), no qual Schelling situa as filosofias teóri-ca e prática.4 Estas, por isso, somente são compre-ensíveis e justificáveis pressupondo o seu funda-mento: o absoluto apreensível apenas por intuição

3 A formulação da intuição intelectual objetiva (a arte) pode ser acompanhadano Sistema do Idealismo Transcendental (System des Transzndentalen Idealismus,1800), obra que se pretende um acabamento do sistema kantiano e que constituitambém um acabamento dos próprios escritos anteriores de Schelling,conhecidos como “do jovem Schelling”, quando Schelling mantinha comofundamento apenas a intuição intelectual não-objetiva ou “Eu absoluto”.

4 Sobre a distinção entre condicionado e incondicionado, ver Do Eu como princípioda Filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano § III. (Vom Ich alsPinzip der Philosophie oder über das Unbedingte im menschlichen Wissen, 1795).

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intelectual, imediata, mas a ser transposto no co-nhecimento e na ação.5

Essa sucinta exposição é apenas para contras-tar com o que tentarei mostrar neste trabalho: ocaminho que Hegel preferirá trilhar emcontraponto à indeterminação ou à determinaçãoapriorística de um princípio do qual se deveriapartir, princípio ele mesmo fundador do real, dodevir, da história. À diferença de seu contemporâ-neo Schelling, um tal princípio não fará sentidopara Hegel, sobretudo pela sua vacuidade em re-lação ao movimento, à riqueza da experiência. Porisso será preciso, na Fenomenologia, partir da ex-periência mesma e ver como a consciência se con-fronta com o mundo da natureza, com o mundo dahistória, como ela mesma constitui-se como saber;assim como será preciso, em se tratando da Lógi-ca, partir não da idéia em sua vacuidade, em suaabstração, mas da idéia que já de início é mediata,

5 Cf. a esse respeito a retomada por Schelling do imperativo categórico deKant: “torne-se idêntico a si mesmo, eleve no tempo as formas subjetivas desua essência à forma do Absoluto”. Vom Ich..., § XV, 125. Quanto à filosofiateórica, cf. passagens como: “O Eu absoluto não é sinônimo do Eu lógico (...)este sujeito lógico, por sua vez, é ele mesmo possível graças à unidade do euabsoluto. (Meu eu empírico é exposto à mudança, mas para permaneceridêntico a si mesmo na mudança, ele tende a elevar os objetos (...) à unidadee ele determina através disso a identidade do esforço que é o seu, a identidadede seu ser-aí, enquanto princípio de suas representações, se mantendo namudança temporal)”. Vom Ich..., § XV, 134ss. Sobre o conhecimento emSchelling ver também Sistema do Idealismo Transcendental, cap. III: “Sistemada Filosofia teórica”.

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está em relação.6 Toda determinação é ao mesmotempo negação, retomaria e repetiria tantas ve-zes Hegel. Nenhuma positividade se afirmará tãosomente, senão que suporá a alteridade para a qualé posta. Nenhuma negatividade, por sua vez, semanterá em si, senão que será para a consciência;a qual a terá como negação determinada no cami-nho em que se eleva ao saber.7

Na Fenomenologia, o que teremos na experiên-cia da consciência é o movimento da mesma ten-tando acompanhar a mudança de seu saber em re-lação às determinidades que se lhe apresentam;ao perceber a insuficiência de seu saber, adeterminidade anteriormente suposta será nega-da; a negação da negação consistirá na preserva-ção dessa experiência. A ciência dessa conserva-ção, contudo, se dá não mais no plano da consciên-cia diante de objetos, a qual tem memória curta,

7 HYPPOLITE, J. “Sens et méthode de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel”.In: Genèse et structure de la Phénoménologie de L’Esprit de Hegel. p.19 ss.

6 Ver Ciência da lógica (Wissenchaft der Logik, 1812-1813) “Qual deve ser o começoda ciência”: “O começo não é o nada puro, senão um nada do qual tem queresultar algo; logo também o ser está já contido no começo. O começo contém,conseqüentemente ambos: o ser e o nada; é a unidade do ser e o nada; ou seja,é um não-ser que ao mesmo tempo é ser, e um ser que ao mesmo tempo é não-ser”. (Wissenchaft der Logik p. 36 / 11-12 - Gesammelte Werke. Hamburg:Felix Meiner). Ver também em seguida a crítica (indireta) de Hegel a Schelling, ecomo Hegel rearticula o princípio schellingniano: “a intuição intelectual é a maispoderosa recusa de mediação e da reflexão demonstrativa, extrínseca. Masalém de uma simples imediação, ela expressa um concreto, a enunciação eexposição de um concreto constitui, como já se fez notar, um movimento demediação, que começa com uma das determinações e avança para outra e estatambém retorna à primeira; é um movimento (...)” (Id., Ib., p. 40 / 17-18).

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não efetua a ligação com o anterior; e sim é obra daErinnerung (rememoração, interiorização), no pla-no da consciência já tornada espírito, o qual se de-fronta não com um algo oposto, alheio, mas com atotalidade de sua experiência. Dialético, retomaráHegel de Platão, é ter visão de conjunto. Experiên-cia, pois, que é na Fenomenologia não a individual,mas a do Ocidente; não a subjetiva como a consci-ência se supõe no início, mas a universal, ou comoHegel prefere chamá-la, Espírito. Com essa deno-minação Hegel remeteria à citação de Schiller coma qual conclui a Fenomenologia: um sopro comum,o da cultura, o qual perpassa um longo e árduo pro-cesso, o da formação (Bildung) em que se passou danatureza à história, ou em que se elevou de “reinoanimal” a “reino do espírito”.

Se nessa paidéia ou formação, logo se pensa numasemelhança com a ascensão dialética da República, con-tudo, uma distância será mantida no caso de se pensaras idéias, sobretudo a idéia de bem em Platão, comofundamento transcendente à experiência, ao real, aodevir. Se essa interpretação é equívoca em relação aPlatão, ela, no entanto, ajuda a elucidar o que não en-contraremos em Hegel: num pólo, a camada sublunar,temporal, contingente; no outro, inversão daquele, acamada eterna e transcendente das idéias imutáveis.Em Hegel, não teremos nem um fundamento situadona interioridade profunda da subjetividade, como emSchelling; nem um princípio fundador situado acima,como se supõe serem as idéias em Platão. Nem tam-bém teremos uma transcendência situada nas coisas,ou atrás delas, numa região indefinida, posto que ina-cessível ao sujeito, no caso o sujeito transcendental e a

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“coisa em si” de Kant. Não há em Hegel um fundamen-to por detrás, ou abaixo, ou acima; a não ser que o abai-xo seja também um acima, o acima um abaixo, ou um àfrente, a depender da perspectiva em que se encontre,como diz Hegel em relação ao “aqui” na “certeza sensí-vel” da Fenomenologia.

Na infinitude hegeliana, direções ou posições nãose mantém como estáticos. Cada determinação é emsi ela mesma e o seu oposto, ou traz em si o oposto desi. Não há um pólo subjetivo oposto à objetividade,como a princípio supõe a consciência; mas, como ve-remos no capítulo “Força e entendimento; fenômenoe mundo supra-sensível”, onde, por assim dizer e anos basearmos em Gadamer8, Hegel dá ao mesmotempo dois golpes – um na “coisa em si” de Kant,outro no mundo das idéias de Platão – as polari-dades opostas se diluem num meio-termo comum:neste, o dois se faz um. Tal será a ‘mágica’ que ten-taremos acompanhar no referido capítulo, que al-guns consideram um dos mais difíceis da Fenome-nologia. A nós nos parece a dificuldade mesma deentender a mágica hegeliana de primeiro unir sub-jetividade e mundo objetivo num meio-termo co-mum para em seguida suprimir (ou suprassumir:aufheben) esse mesmo meio-termo e chegar não àdualidade da qual na verdade não se partiu (postoque a distinção sujeito-objeto se punha somentepara a consciência, não para o “nós” do filósofo queassiste à sua experiência), mas remontar sim à

8 GADAMER, H-G. “Hegel’s Inverted World”. In: Gadamer, H.-G. Hegel’s Dialectic:Five Hermeneutical Studies.

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unidade originária. Esta trará em si, contudo, a mar-ca do negativo, da diferença, do conflito, como emHeráclito. E é nesses pontos mesmos que parece si-tuar-se a positividade da dialética hegeliana, enten-dendo-se por positividade, aqui, não o sentido dessetermo em Hegel, mas o sentido que venha a ter nos-sa leitura de Hegel. Uma filosofia, dirá Ortega yGasset, precisa ter algo a nos dizer hoje; por issoprecisamos lê-la com os olhos de quem busca algo;não com os de quem já encontrou e a reergue.9

III

Com isso, passemos, pois, ao capítulo “Força eentendimento; fenômeno e mundo supra-sensível”,onde supõe-se encontrar o fundamento se consti-tuindo dialeticamente para a consciência10. Antes,

9 Ver também José Henrique Santos, “A propósito de “O Hegelianismo hoje - umanacronismo?”. Cadernos da UNB, 1981.

10 Sobre esse capítulo, cabe remeter ao já citado estudo de Gadamer, o qual nos éparticularmente precioso, sobretudo tendo em vista que os comentadores passamem sobrevôo o capítulo, como o fazem Labarrière, Kojève. Em especial entre osfranceses, a atenção à Fenomenologia centrou-se na ‘dialética do senhor e doescravo’, nos temas éticos, culturais, existenciais. Mas o referido capítulo, pontode junção ou de passagem entre a “consciência” e a “consciência de si” nos pareceestratégico para pensar o problema do conhecimento em Hegel – e do conhecimentoda história, et pour cause – ou senão a ausência desse problema para Hegel. Arespeito desse problema, observa-se que a maioria das análises concentram-se naintrodução da Fenomenologia, onde Hegel recusa a forma de pensar o conhecimentoseja como um meio passivo em que o absoluto se mostraria tal como é; seja comoum instrumento subjetivo por meio do qual se poderia apreendê-lo tal como é emsi. O que Hegel aí recusa é a forma de pensar o conhecimento em separado ouabstraído do próprio ato de conhecer; o que remete à sua conhecida passagem deque é preciso mergulhar na água para aprender a nadar. Se é assim, em vez deapontar de fora o fundamento em Hegel, será preciso acompanhar o movimentomesmo em que esse fundamento se constitui. Explica-se, assim, o que nos conduziuao capítulo “Força e entendimento”; onde veremos ‘o movimento desse movimento’.

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contudo, será ainda preciso lembrar, em linhasgerais, a dialética que nos capítulos anteriores –“a certeza sensível ou: o isto ou o visar” e “a per-cepção ou: a coisa e a ilusão” – nos conduziu a essaterceira dialética da Fenomenologia.

Em “a certeza sensível ou: o isto ou o visar” tra-tava-se, em linhas gerais, de perceber como o sim-ples “aqui” e o simples “agora” com que a consciênciaapontava a coisa eram muito mais do ela que supu-nha: como já mencionamos, o “aqui” não é apenas umaqui singular, imediato, mas, podendo ser toda umaprofusão de ‘aquis’, é ele também um universal. As-sim também no caso do “agora”: o agora que se acabade dizer e que agora já não é mais agora, é, no entanto,conservado quando novamente se diz: agora. Assimcomo o “aqui”, o “agora” não é um simples imediato,mas carrega em si toda uma profusão de ‘agoras’, sen-do ele também um universal: tal a verdade da certezasensível. Esse universal, não apreensível na imediatezda sensação, é para Hegel obra da “natureza divina”da linguagem, capaz de transcender a experiênciasensível – as experiências espaço-temporais singula-res – e conservar no simples imediato, as mediaçõesque ele carrega.

Contudo, é ainda muito pouco, diz Hegel ao fim docapítulo, contentar-se com um ‘aqui-agora’ ou um “isto”com que apenas se aponta ou se “visa” a objetividade,sem se deter na riqueza de determinações que ela com-porta. Assim, será preciso em “a percepção ou: a coisaou a ilusão” não apenas apontá-la, mas demorar-seem percebê-la. A consciência se porá, então, de umlado, enquanto percebente; do outro estará aefetividade, como a ser percebida. Uma vez que a ver-

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dade que a consciência tenta apreender situa-se nacoisa, é esta que aparece como o essencial na relação.É assim a coisa que será múltipla – o mesmo sal que ébranco é também cúbico ou salgado – sendo a consci-ência que errava ao apreendê-lo apenas como “um”sal. Atribuindo a si o erro da percepção, a consciên-cia se verá como o inessencial da percepção, a qualpode ser ou não ser, à diferença da coisa, que perma-nece em sua verdade mesmo não sendo percebida.Mas inconstante, outra e outra vez a consciência secorrigirá: ora tomará a unidade da coisa como ilusó-ria por ela na verdade consistir numa profusão depropriedades; ora considerará essa mesma profusãoilusória por ela ser verdadeiramente una em si. As-sim também, ora tomará suas distintas propriedadescomo passivas umas em relação às outras, como ape-nas postas ao lado de outras sem se tocarem (como osal ser branco e “também” salgado); outrora tomaráessas mesmas propriedades como postas apenas emrelação às suas opostas (como o sal branco não ser osal preto, ou “enquanto” não é preto). A conclusão dessadialética consistirá em a consciência tomar esses di-ferentes momentos não em separado ou abstraídosdos outros, mas verá a coisa “ao mesmo tempo” una emúltipla, meio passivo e unidade excludente;determinidade e negatividade; em si e para si “ao mes-mo tempo” que para outro, ou posta em relação comoutras. A coisa é ela mesma um universal incondicio-nado: tal a verdade da percepção; e quando a consci-ência percebe isso, diz Hegel ao fim do capítulo, ela setorna entendimento.

Tal o resultado a que se chega: universal incondi-cionado, a coisa retornou a si a partir de sua relação

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com outros; ela é “em si conceito”, mas a consciênciaainda não se reconhece nele. Se ficarmos, pois, aqui, aessencialidade ou o fundamento recairá tão somentena objetividade. Mas será necessário situá-lo tambémno entendimento. Melhor dizendo, será necessáriosuprimir essa dualidade em que ainda nos encon-tramos: de um lado a coisa, enquanto universal in-condicionado; de outro o entendimento, esse ter-ceiro modo da consciência que sucedeu à sensaçãoe à percepção. Tal a missão a cumprir em “Força eentendimento; fenômeno e mundo supra-sensível”,onde enfim chegamos. Agora, à coisa se denomi-nará força, ou senão uma dualidade de forças, poisassim a toma o entendimento, em sua mania dedualizar. Contudo, ele perceberá tratar-se de umaforça, a qual coincidirá com ele. O entendimentopassará na força, a força no entendimento. Ao serconsciência disto, a consciência se tornará, em“Força e entendimento”, “consciência de si”. Lem-brar-se-á que para Gadamer a questão central desteterceiro capítulo é exatamente a consciência se darconta de que, ao ser consciência de, ela é consciên-cia de si. Com isso, ela se retirará do reino de coi-sas, do campo da oposição a objetos – a seção “cons-ciência” – para penetrar num outro em que oposi-ções lhe serão realmente oposições: a princípioserá desejo aniquilador de coisas, mas se defron-tará com um outro eu e não poderá agir a partirdele a não ser que ele o permita. Essa, contudo, jáé uma outra história; cabendo retornar ao que oranos interessa: não tanto o problema ético da‘dialética do senhor e do escravo’, mas em especialo problema do conhecimento, a ‘dialética força e

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entendimento’. Problema que justamente faltaexplicitar pois ele somente deixará de ser um pro-blema quando cumprir-se a ‘mágica’: asuprassunção do meio-termo, a ser designado fe-nômeno e em seguida supra-sensível, para quevenham a coincidir a subjetividade – ora denomi-nada entendimento – e a objetividade, ora deno-minada força. Vejamos como isso se dá.

Recapitulando, a consciência que primeiro viraa coisa como um aqui e um agora, em seguidacomo um meio passivo, depois como unoexcludente ou negatividade, para ao fim se darconta de que ela era ao mesmo tempo ambos, emsi e para si ao mesmo tempo que para outro, ouem si a partir de sua relação com outro, um uni-versal incondicionado ou “em si conceito”, ao per-ceber isso tornara-se entendimento. Mas a cons-ciência tornou-se tal para o “nós” do filósofo, poisela mesma, mergulhada na experiência, possui,como dissemos, memória curta; esquecerá, pois,o resultado da dialética anterior – o universalincondicionado – e novamente fará da coisa umadualidade: seja uma unidade refletida em si (umacontinuidade do “uno excludente” da dialéticaanterior); seja um desdobramento de múltiplasdeterminidades (contínua ao “meio passivo” dadialética anterior). Refletida, a coisa é para si;desdobrada, ela é para outro: assim a toma o en-tendimento. Este atribuirá então à coisa umadualidade de forças: uma, a que a solicita aexteriorizar-se, a desdobrar-se em múltiplasdeterminidades; outra, a que a solicita a retornara si, a refletir-se sobre si, una. Para ele são duas

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forças que aparecem então como independentes,como polaridades opostas e objetivas; sendo quena força mesma não há tal dualidade. A verdadeda força, diz Hegel, está no transitar de uma paraoutra, sendo esse movimento mesmo que a cons-titui: as diferenças que imediatamente passam àunidade; a unidade, às diferenças. Na força efeti-va, pois, não há dois pólos, a positividade de umlado, a negatividade de outro; e sim é no meio-termo mesmo em que não se distinguem, ou emque a unidade logo que é posta se desdobra nasdiferenças, na diferença que logo se reconverte àunidade, que se tem a verdade de ambas; suadualidade residindo no entendimento. Contudo,é este mesmo que verá nesse transitar absolutode uma força à outra a essencialidade de ambas,pois no real é nesse meio-termo mesmo em quenão se distinguem ou em que uma se suprassumena outra, que elas lhe aparecem. É a esse meio-termo, “totalidade do aparecer”, que o entendi-mento designará fenômeno : “constância dainconstância”, fenômeno é para ele lugar da mu-dança, do devir, ou “o ser que tem a significaçãodo desvanecer”. Certamente temos anunciadaaqui a formulação posterior da Lógica, quandoHegel faz movimento semelhante ao recusar con-siderar o ser contraposto ao nada como polarida-des distintas; mas cada um tendo sua verdade éno transitar de um ao outro.

Mas voltando à Fenomenologia, o entendimentovoltará a dualizar: se o fenômeno lhe aparece comoo lugar da constante diferenciação, ele, em seu an-seio de permanência e estabilidade, voltará a fazer

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da coisa uma dualidade: por trás do fenômeno sem-pre instável, porá um além permanente, ao qual to-mará como a verdade ou a lei da aparência ou “ofenômeno posto como fenômeno”. Por isso, nessemomento, dirá Hegel, o “fundamento é exatamenteconstituído como lei”11. O entendimento o chamaráde supra-sensível: inversão do sensível, supra-sen-sível é para ele lugar da universalidade; a verdadeda mudança, do devir e do perecível em alguma re-gião acima deles, ou como seu fundamento. Comonão tem acesso direto a esse além permanente, masapenas ao jogo de forças sempre instável, o enten-dimento o tomará como incognoscível; em outrostermos, apenas o divisa através do meio-termo dofenômeno, não o apreende: ele é vazio em determi-nações. Como mostra Gadamer, é implícita aqui areferência à “coisa em si” de Kant, o incognoscívelpor detrás do fenômeno, bem como ao supra-sensí-vel de Platão, o imutável acima do perecível; bemcomo, conforme veremos, à universalidade da físi-ca newtoniana. Do que se segue também a recusaque teremos em “Força e entendimento” dessasmaneiras dualistas ou idealistas de pensar o fun-damento; assim como do que se segue de tais pers-pectivas: a necessidade de postular um terceiro, ummeio-termo para realizar a junção.

11 HEGEL, G. W. F. Phänomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Meiner Verlag,1988. Tradução: Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, p. 109/154.(nesta e nas citações subseqüentes, paginação da edição brasileira seguida daalemã traduzida).

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Contra isso vai mostrar Hegel que o pólo negati-vo e o pólo positivo são polaridades da mesma pi-lha; se na lei da eletricidade são como opostos, naenergia mesma não os encontramos em separado.Assim também é a discussão de Hegel no capítulocom a lei universal da gravidade de Newton: a ver-dade do espaço, do tempo, do lugar e do movimentonão é, para Hegel, serem momentos apenas passi-vos “um ao lado dos outros” dentro da lei dagravitação universal como em Newton; e sim queum momento somente exista já a partir de sua rela-ção com os outros. A lei deve trazer em si a diferen-ça, dirá Hegel. Diferença que aos olhos de Hegeluma lei universal ao modo de Newton – ao do apriori de Kant – não consegue explicar. Por isso éapenas quando o entendimento, no movimento doexplicar, introduz na lei a diferença, que o supra-sensível ou interior incognoscível deixa de ser ainversão imutável do sensível, para, assim como ofenômeno, abrigar em si a diferença. É quando ocor-re essa inversão da inversão que a consciência sedescobre como infinitude ou consciência de si.

A infinitude, ou essa inquietação absoluta do puromover-se a si mesmo, faz que tudo o que é determi-nado de qualquer modo – por exemplo, como ser –seja antes o contrário dessa determinidade. Ainfinitude já era, sem dúvida, a alma de tudo o quehouve até aqui, mas foi no interior que primeiroela mesma brotou livremente. O fenômeno – ou ojogo de forças – já a apresentava; mas foi só no ex-plicar que ela surgiu, livre, pela primeira vez. Quan-do a infinitude – como aquilo que ela é – finalmente

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é o objeto para a consciência, então a consciência éconsciência-de-si. (HEGEL, 1999, p. 116 / 163)

Lê-se, assim, nessa inversão da inversão ou in-versão do mundo invertido, o golpe de Hegel aomesmo tempo ao supra-sensível e à finitude. Se oentendimento considerava o fundamento ou o fun-do verdadeiro das coisas como o supra-sensívelacima do perecível ou o interior incognoscível,neste caso ele lhe será sim um incognoscível etranscendente, dirá Hegel, mas não porque a ra-zão seja míope, incapaz de apreendê-lo, mas sim-plesmente porque não há nada para ver no escuro,por detrás do fenômeno, a não ser que o entendi-mento se coloque lá e veja a si mesmo. A crítica aKant, em especial – mas também à intuição inte-lectual de Schelling – é explícita:

A consciência, elevada sobre a percepção, apresenta-se concluída junto com o supra-sensível através domeio-termo do fenômeno, mediante o qual divisa essefundo [das coisas]. Agora estão coincidindo os dois ex-tremos – um, o do puro interior; outro, o do interiorque olha para dentro do interior puro. Mas como des-vaneceram enquanto extremos, desvaneceu tambémo meio-termo como algo outro que eles. Levanta-se,pois, essa cortina sobre o interior e dá-se o olhar dointerior para dentro do interior (...) Fica patente quepor trás da assim chamada cortina, que deve cobrir ointerior, nada há para ver a não ser que nós entre-mos lá dentro – tanto para ver como para que algoseja visto”. (HEGEL, 1999, p. 118 / 165).

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Tal o resultado dessa dialética: não será neces-sário tomar o fenômeno como meio-termo entreentendimento e fundo verdadeiro das coisas; comonão será necessário tomar o fundo verdadeiro dascoisas ou a lei universal dos fenômenos como omeio-termo, o ponto arquimediano entre sujeitocognoscente e realidade sempre instável. Tal ogolpe de Hegel: não havendo um meio-termo, nãohá também três termos, não haverá dois extremos:a consciência (como infinitude) coincide com ascoisas tal como são em sua verdade (não uma apa-rência inessencial, um interior incognoscível ouuma universalidade abstrata). Mas nada lhe é in-cognoscível, nada lhe é transcendente: tal o resul-tado a que se chega. O real é racional, o racional éreal, para retomar a conhecida passagem da Filo-sofia do Direito de Hegel. Para que um supra-sen-sível ou um interior incognoscível, perguntaráHegel, como antes dele o fizera Aristóteles aPlatão, ou para que dois mundos, um essencial,outro inessencial, se o mundo tal como nos apare-ce e tal como o pensamos – e ser e pensar, nestecaso, como em Parmênides, coincidem – são já pordemais complexos e ricos em determinações?

Assim como Aristóteles recusara as formas emseparado de Platão, Hegel recusa o fundamentoem separado ou existindo como um tertius efetu-ando a junção entre sujeito de um lado, objetivida-de de outro; ou pensamento de um lado, realidadede outro. E sim é na coincidência mesma destaspolaridades que se pensa opostas que situa-se ofundamento em Hegel. Fundamento absoluto noqual subjetividade e objetividade, espírito e natu-

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reza se fazem um. Permanece, contudo, um idea-lismo; afirma-o a tradição. Um idealismo absolutono qual a alteridade se converte à unidade parade novo sair dela; não, porém, porque se trate deum movimento perpétuo de saída e entrada comoquer Schelling12, mas sim porque já saiu, é o quequer mostrar Hegel em “Força e entendimento”.Por isso não é uma questão filosófica, diz Hegel nocapítulo, perguntar como a diferença brota da uni-dade, a unidade da diferença, porque é assim. Eisso deve soar natural como quer Hegel. Não háum sujeito uno diante da fragmentação do mundo;ou algo tão somente uno diante da cisão do sujei-to, seja ele lógico ou psicológico-empírico; mas emtudo a negatividade e a diferença, a fração e a uni-dade. Não, porém, como momentos em separadouns dos outros, mas como infinitude, a inquieta-ção absoluta do constante tornar-se outro em simesmo. Se abstrair no sentido de considerá-los emseparado faz parte do percurso em que a consciên-cia se eleva ao saber; esse “um ao lado do outro”apenas positivo não persiste; na verdade ele nãoexiste: dilui-os o poder do negativo, o movimentodo conceito. Quando a consciência é consciênciadisso, é como se ela penetrasse num novo mundo.Mas o que quer mostrar Hegel é como se ela des-

12 “(...) sua vida é um círculo de figuras, na medida em que ele perpetuamente seexterioriza para outra vez retornar a si, e sempre retorna a si para sempreexteriorizar-se de novo”. Schelling, “História da filosofia Moderna: Hegel”. In:Schelling, (Col. Os Pensadores), op. cit., 160 (paginação da edição alemãtraduzida.)

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cobrisse uma outra forma de olhar o mundo: elenão lhe estranha. Como mostra Luft, em Hegel “ofundamento é aquele que aceitou a dualidade daidentidade e da diferença em si mesmo, ficandocompleto com isso”13. Contudo, será necessáriotantas outras mediações ainda até que essa coin-cidência anunciada em “Força e entendimento”apareça no éter puro do “saber absoluto”, desfe-cho da Fenomenologia e início da Ciência da Lógi-ca; isso, se é que podemos falar em início e fimquando se encontra no círculo infinito hegeliano.

IV

Essa cisão é sim uma forma deficiente de pen-sar, como a consciência que não sabe que o fim jáestá no início, embora não desenvolvido – como o“aqui” e o “agora” universais da certeza sensível –ou que a inversão do mundo é já a sua maneira deser, como na inversão da inversão em “Força e en-tendimento”. E isso é também o que se lê no exem-plo ético do capítulo, que anuncia a Filosofia doDireito: na efetividade, o ideal não é que a pena sejaimposta de cima, e sim que o criminoso tenha nocastigo a reconversão de si mesmo. Não há umaidealidade abstraída da efetividade do mundo, quermostrar-nos o chamado ‘idealista’ Hegel. Gadamerexprime bem isso, acerca de como o capítulo “Força

13 Eduardo Luft, “Fundamento”. In: Para uma crítica interna ao sistema de Hegel.Porto Alegre: Edipucrs, 1995, p. 103.

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e entendimento” sugere-nos que o mundo perverti-do – quer dizer, dirá Gadamer, esse nosso mundo –não encontra seu remédio em algum lugar acimadele, na sua inversão, como se somente um dos pó-los da pilha fosse o efetivo, o outro o seu ideal; oucomo se o criminoso tivesse sua essencialidade so-mente em seu oposto, naquele que nunca se cor-rompe. E sim é no falível mesmo – e isso é paraGadamer o que ensina a dialética “Força e entendi-mento” – que a coisa se resolve. A perversão temem si mesma sua inversão, dirá o hermeneuta.

Por isso não erraríamos, a nos basearmos emGadamer, em perceber em “Força e entendimen-to; fenômeno e mundo supra-sensível” a crítica deHegel ao entendimento abstrato, tal como o for-mulara a filosofia moderna, no longo percurso quevai de Descartes a Kant, passando por Newton,Hobbes, Locke; entendimento que, ao preço daunidade, identidade e universalidade, conserva-ra-se dualista, matematizante, formalista. Não ésem motivo que em seguida ao capítulo “Força eentendimento”, no início da “consciência de si”,Hegel – antecipando Dilthey, Marx e o próprioGadamer – à força denominará vida; ao entendi-mento, desejo. Hegel é avesso à mathesis univer-sal tão cara à era moderna. Sua filosofia procurou,como antes dele Leibniz, trazer idéias de força,vida, dinamismo, ante a opacidade do sujeitosolipsista, o mundo mecanicista de Descartes, ogeometrismo de Spinoza; enfim, fazer frente aodualismo-formalismo de Newton e Kant. Mas mes-mo termos como força ou vida seriam ainda pou-cos a Hegel; ele iria além: era preciso escapar tam-

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bém à tendência biologista-naturalista que encon-tramos em Schelling. Situando no cume de sua filo-sofia a história, há em Hegel um hiato entre o mun-do da cultura, da história, e o mundo da simplesvida. Por isso, é apenas quando, na ‘dialética do se-nhor e do escravo’ um eu se defronta com outro, enão com uma coisa, mesmo que pensada como força(como o faz o entendimento) ou como vida (como atoma o desejo ainda somente animal do início da“consciência de si”), que ele começa a criar, a cons-truir um mundo, a querer um comum e a agir nele,por ele14. É então que entram em cena o trabalho, oartífice, o ethos. O mundo se povoa, a consciênciasai da opacidade em que se supunha encontrar. Elaé espírito e não encontrará repouso em si; pois já épara outro, ou em si a partir de sua relação comoutros. Ora, a partir da leitura de “Força e entendi-mento”, o resto dessa dialética já o sabemos: bastarepetir, ou melhor, transpor para o plano da cultu-ra, da história, a ‘mágica’ que vimos em “Força eentendimento”. Também nesse plano, para Hegel,não há uma efetividade de um lado, como puramenteobjetiva; do outro, um mundo do espírito, puramen-te abstrato como um mundo de formas. Mas toda abusca hegeliana em relação à história consiste empensá-la como a manifestação mesma do espírito.Por sua vez, como viria a formular em sua Filosofiado Direito, importa perceber a sociedade não como

14 Ver em especial J. H. Santos, Trabalho e riqueza e na Fenomenologia do Espíritode Hegel. São Paulo: Loyola, 1993.

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uma unidade imposta à força por um terceiro vindode fora – e essa é sua crítica a Hobbes – mas simcomo um jogo de forças em que a multiplicidadepassa na unidade, a unidade na diferença. No Esta-do ideal, dirá Hegel, o eu é ao mesmo tempo umnós; o nós é ao mesmo tempo um eu. O mesmo severia em sua crítica ao supra-sensível, que anunciaFeuerbach: para Hegel não se trata de postular ummundo da religião; e sim querer um absoluto que semanifesta no mundo e se desdobra nas diferenças.

No plano da cultura, da história, o que nos pare-ce mais difícil, porém, é assimilar a suprassunçãoda mediação tal como se vê em “Força e Entendi-mento”; posto que todo o tempo e de diferentes for-mas nos vemos diante desses meio-termos que cons-truímos ou com que nos defrontamos, ou em quenos colocamos; embora não sejam vazios ou imedia-tos como a intuição intelectual schellingniana ou acoisa em si kantiana. Mas, complexos e ricos emdeterminações, é por isso mesmo que eles perma-necem para nós – e agora não temos em mente o“nós” da Fenomenologia – como um outro, mesmoque o façamos com outros; ou talvez mesmo paraque sejam possíveis os outros. É a eles, a esses meio-termos mediatos dos quais é o próprio Hegel quemnos ensina a não abstrair, que um saber absoluto,na sua ânsia de trazer tudo em si, parece não trazerem si. Mas em Hegel mesmo, talvez, encontremoslugar para ressignificá-los. Nisso talvez resida, oque dissemos a positividade de sua dialética. Seumaior valor parece consistir em não opor a unida-de, a identidade de um lado, a fragmentação, a dife-rença do outro. Mas o esforço hegeliano de perce-

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ber o dinamismo do real, da história, de fluidificaras polaridades pensadas como opostas e percebê-las dentro de uma amplitude sempre diferenciadae em devir talvez tenha algo a nos dizer hoje, nessetempo de oposições petrificadas e ‘bombásticas’.

Costuma-se dizer que a diferença não pode brotarda unidade; mas de fato a unidade é apenas ummomento de fracionamento, é a abstração da sim-plicidade que encontra a diferença. Mas por ser abs-tração é só um dos opostos; como já se disse. Ela é ofracionar-se, pois a unidade é um negativo, um opos-to; assim é posta justamente como o que tem nela aoposição. (Hegel, G. W. F. Phänomenologie desGeistes, 162)

A necessidade (Bedürfnis) da filosofia surge quandoo poder de unificação desaparece da vida dos ho-mens e os opostos perderam sua relação viva e açãorecíproca, adquirindo autonomia. (Hegel, G. W. F.Differenz des Fichteschen und SchllingschenSystems der Philosophie)

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Referências bibliográficas

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A ESPIRAL DO ESPÍRITOUma Análise da ‘História Filosófica’ de Hegel

JORGE GRESPAN

ara a publicação póstuma das Lições so-bre a Filosofia da História Universal,sabemos que os editores tiveram de re-

correr às anotações de aula de alunos, dado o ca-ráter incompleto do manuscrito deixado pelo pró-prio Hegel, base dos cursos por ele ministrados naUniversidade de Berlim na década de 18201 . Semdúvida, tal circunstância imprime certa dificulda-de adicional na compreensão desta obra. Mas o quea distingue das demais no quadro do pensamentohegeliano, e faz dela um texto especialmente com-plexo, advém do tema mesmo de que trata e daconseqüente abordagem que recebe do autor.

1 De acordo com J. Hoffmeister, que preparou a edição mais recente das Lições,em 1955, as versões do séc. XIX apresentavam muitos problemas, tendo sidoLasson, em 1917, e depois ele próprio, que procederam às devidas correções.Foram reunidos basicamente manuscritos de Hegel e as notas de alguns estudantes,consideradas perfeitamente adequadas ao texto do professor. As várias ediçõesalemãs geralmente cuidaram em distinguir bem as duas fontes do material –escritos do próprio Hegel e dos alunos –, conferindo mais rigor ao seu procedimento.Para mais informações, ver a “advertência” da edição alemã: Vorlesungen über diePhilosophie der Weltgeschichte, 1º tomo, Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1994, pp.v-xiv.

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De fato, comparando-a com o outro livro em queHegel trata de um tema histórico, a História daFilosofia, uma diferença importante salta à vista.Aqui, o desenvolvimento da filosofia passa por eta-pas que correspondem perfeitamente à gradativadefinição do seu conceito, sem que neste desenvol-vimento sejam relevantes condições externas taiscomo as particularidades da vida de cada pensadorou do contexto histórico em que se produziu umaetapa específica. O mesmo não ocorre com a histó-ria universal. Nas palavras de Hegel:

na história política, o indivíduo, na singularidadede sua índole, do seu gênio, das suas paixões, daenergia ou da fraqueza de caráter, em suma, emtudo o que caracteriza a sua individualidade, é osujeito das ações e dos acontecimentos. Na históriada filosofia, estas ações e acontecimentos, ao queparece, não têm o cunho da personalidade nem docaráter individual; deste modo, as obras são tantomais insignes quanto menos a responsabilidade e omérito recaem no indivíduo singular, quanto maiseste pensamento liberto de peculiaridade individu-al é, ele próprio, o sujeito criador2 .

Nesta última, assim, não é o filósofo individualo verdadeiro sujeito realizador do processo, e simo próprio conceito filosófico, que se desdobra e setransforma até chegar ao seu conteúdo pleno. Mas

2 HEGEL, Introdução à História da Filosofia, 4ª edição, Coimbra, Arménio Amadoeditor, 1980, pp. 37-38.

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na história em geral é diferente, tendo o indiví-duo um papel fundamental de realizador, de su-jeito, com o processo dependendo dos seus móveispessoais de ação – “sua índole, seu gênio, suas pai-xões” etc. –, em suma, de elementos estranhos àracionalidade e à essência mesma do processo.

Por isso, a Filosofia da História é consideradapermeável a contingências perturbadoras do anda-mento logicamente necessário que o desdobrar doconceito possui geralmente nas demais esferas dopensamento hegeliano. Além das dificuldades deleitura acarretadas por este fato, ele também lançasobre o texto a objeção de que seu desenvolvimentonão pode corresponder às exigências de rigor lógi-co dialético observado em outras obras, como naHistória da Filosofia, que acabamos de ver. O pre-sente trabalho parte desta objeção, tomando-a comodesafio, ao procurar mostrar que a Filosofia da His-tória segue, sim, um percurso dialético absoluta-mente rigoroso. Mais ainda até do que em outroslugares, aqui Hegel teve de afinar ao máximo a ar-ticulação lógica das categorias, para lidar justamen-te com os problemas da particularidade e da con-tingência, reconciliando-as com a necessidade.

Por outro lado, a Filosofia da História é muitasvezes criticada, especialmente por historiadoresde ofício, com o reproche inverso. Ela é considera-da exemplo lapidar do viés logicista hegeliano, queeliminaria acasos e individualidades em favor deuma perspectiva na qual o histórico só tem senti-do se inscrito no movimento geral do espírito hu-mano, na perseguição de sua finalidade mais am-pla. Ela padeceria, assim, de um traço teleológico

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rígido e universalista, comprometendo irremedi-avelmente qualquer resultado positivo que pudes-se inspirar. O outro objetivo deste texto, portan-to, será discutir esta censura a partir do tratamen-to dialético dispensado à contingência por Hegel,avaliando daí o alegado universalismo homogenei-zante que desprezaria a particularidade. E, final-mente, também a definição específica do télos eda teleologia na concepção hegeliana de históriapoderá ser melhor compreendida, evitando as sim-plificações de uma crítica fácil.

I- “O Rosto da História”

Num primeiro momento, a filosofia da histó-ria deve deixar de lado, para Hegel, todos os ele-mentos contingentes. Em significativa passagem,ele diz realmente que “a consideração filosófica nãotem nenhum outro propósito senão afastar o con-tingente. Contingência é o mesmo que necessida-de externa, isto é, uma necessidade que remonta acausas que são apenas circunstâncias exteriores.Devemos buscar na história um fim universal, ofim último do mundo, não um fim particular doespírito subjetivo ou do ânimo”3. Desde logo, a pa-

3 HEGEL, A Razão na História, Lisboa, Edições 70, 1995, p.32. Em alemão, Vorlesungenüber die Philosophie der Weltgeschichte, 1º tomo, Hamburgo, Felix Meiner, 1994,p. 29. A partir daqui, simplesmente citaremos pela sigla RH, em português,seguida pela página e, entre colchetes, a página na edição alemã. Seguiremosem geral a tradução indicada, reservando-nos, contudo, o direito de modificaralgo quando nos pareça necessário para o melhor entendimento.

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lavra usada aqui por Hegel – o “contingente”(Zufällige) – tem o sentido de “casual”, indicandoque sua concepção filosófica desconsidera o efeitode meros acasos na história, em favor do inevitá-vel. Não se trata, entretanto, simplesmente da opo-sição entre acaso e necessidade. O texto define acontingência também como necessidade, dissol-vendo já dialeticamente a rígida dicotomia dos doistermos e deslocando a oposição: a “contingência éo mesmo que necessidade”, só que num âmbito ex-terno à história, “que remonta a causas que sãoapenas circunstâncias exteriores” ao objeto histó-rico; a oposição, portanto, se dá mais exatamenteentre o externo e o interno. Mais do que descartaro elemento apenas casual, uma filosofia da histó-ria deve ater-se ao que se determina no interiormesmo do mundo histórico, ou seja, à sua finalida-de própria. Diante desta última, inclusive o “fimparticular” e o “ânimo” dos agentes individuais são“circunstâncias exteriores”, embora nada tenhamde casual para a realização do “fim universal”,apresentando-se também como uma necessidade,só que externa.

É claro que Hegel não pretende eliminar taiselementos contingentes da explicação ou da nar-rativa da história. O historiador pode e deve levá-los em conta. Por isso, “a história deve ser consi-derada em geral com o entendimento, causas eefeitos devem se tornar concebíveis”4. Na medi-

4 RH, 35 [33].

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da, porém, em que o objeto é a filosofia da histó-ria, os elementos externos aí devem aparecersubordinados ao interno, ao “fim universal”, como“circunstâncias” de sua realização. Assim, “quan-do se diz que a finalidade do mundo se devedepreender da percepção, isto é até certo pontocorreto. Mas para o conhecimento do universal,do racional, deve contribuir a razão”5 . Se o ofíciodo historiador depende basicamente do bom usodo “entendimento”, que relaciona “causas e efei-tos” no acontecer, esta faculdade não basta ao fi-lósofo, que busca mais, a saber, “o conhecimentodo universal”. O entendimento é limitado paraesta tarefa, pois se restringe aos fatos constata-dos, sendo capaz, no máximo, de relacioná-losnuma cadeia causal. Esta relação, contudo, nãomodifica a percepção dos fatos mesmos, que per-manecem como o que são, intocados por ela. Ohistoriador imagina, daí, que seu conhecimento épuramente objetivo, respeitando a integridadedos acontecimentos. Mas justamente a distânciaque toma deles abre espaço, ao contrário, paraque se introduzam seus próprios pontos de vistaenquanto hipóteses causais. Ou seja, a indepen-dência dos fatos diante de uma relação apenasexterna a eles os configura como indiferentes unsaos outros, permitindo estabelecer muitas rela-ções possíveis, já que os fatos não se modificari-am, afinal, por elas. Em vez de um conhecimento

5 RH, 34 [31].

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objetivo, como é sua meta, o entendimento per-mite aventar diversos nexos entre os fatos, deacordo com a imaginação explicativa do historia-dor, isto é, com a sua subjetividade.

O “conhecimento do universal” precisa, portan-to, do concurso de uma outra faculdade: é a razão,capaz de resgatar o nexo realmente existente e atu-ante nos acontecimentos, determinando-os. Talconstituição do acontecimento por sua relaçãoHegel chama de caráter “concreto” da história,retomando a etimologia latina – o ‘con-crescere’,crescer junto –, pelo qual os termos individuaisnão preexistem à sua relação, mas se definem porela, isto é, um pelo outro. Assim, uma concepçãofilosófica, racional, deve “considerar o princípioconcreto, espiritual dos povos e sua história”6 , enão apenas causalidades arbitrariamente estabe-lecidas entre fatos constatados como se fossemindependentes delas. São necessários “não olhosfísicos, não o entendimento finito, mas o olho doconceito, a razão, que atravessa a superfície e pe-netra a diversidade do tumulto multicor dos acon-tecimentos”7 .

O entendimento é “finito”, porque se limita aapreender fatos meramente distintos, compondoum quadro sem nexo objetivo, desordenado, don-de o “tumulto” e a imagem “multicor”. Qualquerordenamento aí só pode ser estabelecido subjeti-

6 RH, 34 [32]. “A história tem diante de si o objeto mais concreto, que sintetizatodos os lados da existência” RH, 34-35 [33].

7 RH, 34 [32].

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vamente pelo historiador, como algo exógeno àhistória mesma, algo “abstrato”. Mas a razão en-xerga o princípio “concreto”, o “conceito” real quediferencia os povos e se desdobra em uma história.Assim, o termo “universal” se refere, em primeiro lu-gar, ao “conceito”, caráter determinante que funda eorganiza um povo como espaço comum das relaçõessociais, da mediação entre os indivíduos. Estes não sedefinem apenas por si mesmos, mas principalmentepor tal mediação. Definem-se mutuamente, “concre-tamente”, dentro da universalidade do seu povo e dasua história.

Contudo, a passagem da dimensão “abstrata” à“concreta”, do entendimento à razão, é feita para Hegelpelo movimento de exposição da própria história, enão por imposição filosófica. O texto diz que “o rostoda história se expõe em geral ao pensamento”8 , e queo faz desdobrando categorias pelas quais, de modo gra-dativamente mais complexo, é possível “atravessar asuperfície [...] dos acontecimentos”.

Na etapa inicial, deste modo, a “superfície” apare-ce enquanto “diversidade” que deve ser “penetrada”pelo “olho do conceito”. É a primeira categoria, a ‘va-riação’, mediante a qual “vemos um painel (Gemälde)enorme de acontecimentos e atos, de configuraçõesinfinitamente diversas de povos, estados, indivíduos,em incansável sucessão”9. Corresponde à experiên-cia de folhear um compêndio de história universal,onde desfila ante nossa vista uma seqüência

8 RH, 35 [34].9 RH, 35-36 [34].

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infindável de povos e acontecimentos, surgindo e de-saparecendo como num inventário, profusa e confu-samente. Mas atentemos à categoria precisa a queHegel aqui faz menção. Conforme a lição da Ciênciada Lógica, a ‘diversidade’ é a primeira forma da di-ferença, pela qual os termos diversos se definem porsi mesmos, independentemente de qualquer nexoexistente entre eles, indiferentes um ao outro10. Avariabilidade decorre, por isso, sem explicação, poiso que importa é registrar a mera diferença. São “po-vos, estados, indivíduos” apenas diferentes uns dosoutros, que se modificam ou ‘variam’ sem ordem vi-sível, que transitam um ao outro sem nexo aparente.O próprio tempo histórico desta mudança não é pon-tuado, constatando-se só uma “sucessão”, caracteri-zada, assim, por ser “incansável... infinita”. É comose os ‘diversos’ fossem só instâncias de um mesmo,sempre repetido. Daí Hegel descrever o interessehistoriador, neste caso, recaindo sobre tudo e todos;com o que também, por outro lado, nada específico éinteressante em si, nada se determina para o inte-resse como excludente dos demais11.

10 Cf. Wissenschaft der Logik, Hegels Werke, vol. 6, Frankfurt, Suhrkamp, 1986,pp. 47-55.

11 “Tudo o que pode penetrar no ânimo do homem e interessá-lo, todo o sentimentodo bom, do belo e do grandioso se vê solicitado [...] Em todos estes acontecimentose acasos vemos à tona o fazer e o sofrer humanos, em toda parte algo de nossoe, por isso, por todo lado a inclinação do nosso interesse a favor e contra. [...]por todos os lados a mais colorida aglomeração, que nos arrasta para seuinteresse; e quando um desaparece, longo entra outro em seu lugar.”, RH, 36[34]. De passagem, note-se a presença dos “acasos” como material deste tipo deinteresse sempre inconstante.

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As limitações desta categoria – a incapacidadede se fixar, de definir – levam à próxima. Mais exa-tamente, a transição entre elas se realiza critica-mente, na medida em que “o lado negativo nestepensamento da modificação suscita nossa triste-za. O que nos pode oprimir é que a mais rica confi-guração, a mais bela vida encontra seu ocaso nahistória [...]; é perecível”12. O interesse na ‘varia-ção’, que vem e vai conforme surgem e desapare-cem seus objetos na história, origina a “tristeza”pelo que vai, desaparece, morre. Delineia-se todoum panorama desta sensação, da “melancolia doviajante” que passa pelas “ruínas” das antigas ci-vilizações e percebe a “transitoriedade” de tudo,mesmo do que foi interessante, relevante, “gran-dioso”13. Assim se imprime no espírito um novoaspecto do “lado negativo” dos acontecimentos. Apresença do “negativo” em geral não é estranha à‘variação’, pois a ‘diversidade’ já é uma forma dediferença; mas nela o limite entre os diferentes étraçado a partir de fora, sem interferir no que cadaum é. Agora, no entanto, o limite se define de den-tro, como a morte que surge da própria vida e adestrói. O “negativo” se elabora no interior do po-sitivo, do que existe, impondo-lhe a barreira damorte inevitável, e não mais simplesmente os li-mites externos que distinguem cada momento his-tórico.

12 RH, 36 [34-35].13 Cf. RH, 36 [34-35].

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E com isso constitui-se a segunda categoria, o ‘re-juvenescimento’ do espírito. Nas palavras de Hegel,à “categoria da variação liga-se logo o outro lado, queda morte surge uma nova vida”14. Os povos e os acon-tecimentos continuam aparecendo em sucessão no“rosto da história”, mas a passagem de um ao outro éapreendida mais profundamente pelos limites for-mados dentro de cada um, definindo ambos momen-tos como o anterior e o posterior. Ora, do mesmo modoque o “negativo” se elabora no interior do positivo,determinando-se por seu oposto, também o positivodeve se preparar pelo negativo, na simetria da rela-ção entre os dois termos. Portanto, não só a morte deum povo decorre da sua vida, como é natural, mastambém o inverso, ou seja, a vida de um povo surgeda morte do antes existente. Temos aqui uma claracorrespondência à categoria lógica da ‘oposição’, naqual os dois termos se negam e afirmam simultanea-mente, ou melhor, afirmam-se através da negação doseu outro. Eles só podem constituir-se como o quesão mediante a negação do que não são – do outro,seu oposto. E, daí, ‘não ser’ também é um modo de‘ser’, isto é, deste ‘ser’ específico – ser oposto15.

É apenas enquanto ‘oposição’ que se concebe cor-retamente o ‘rejuvenescimento’, pois de acordo comele a vida e a morte na história definem-se mutua-mente. Hegel pode referir-se, então, à metáforaoriental da fênix, pássaro mítico que prepara a pira

14 RH, 36 [35].15 Sobre a ‘oposição’, cf. Wissenschaft der Logik, pp. 55-64.

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onde deve imolar-se – a vida determinando seuoposto, conforme seu curso natural –, para renas-cer depois de suas cinzas – a morte engendrandonova vida e contrariando o curso natural. Por trásda beleza emprestada pela metáfora à reflexãohegeliana, assim, opera uma poderosa passagemdialética, rigorosamente retomada: a diferença,definida no início enquanto simples ‘diversidade’,apresenta-se depois como diferença de termos re-lacionados, ou seja, ‘oposição’. Se no mito oriental ainversão do curso natural da vida ocorre justamen-te pela força transcendental a que alude o mito, nafilosofia da história isto se dá no jogo das figuraslógicas, refletindo com precisão o movimentodialético da realidade.

Mas desta maneira já começa a se delinear atransição à terceira e última categoria. Pensar o“ocaso” de um povo como fundamento de um novosignifica pensar o “lado negativo” determinando opositivo. Significa, ainda, apreender o lado positi-vo do negativo, numa visão mais ampla em que osdesvios e retrocessos no decorrer histórico nãorepresentam apenas um mal, mas são constitutivosdo que virá, positivamente apreendido. Por isso,Hegel define sua perspectiva filosófica comoteodicéia e reencontra o projeto leibniziano de ‘jus-tificação de Deus’, pois

o mal no mundo em geral, aí contida a maldade,deve ser concebido, reconciliando o espírito pensantecom o Negativo; e é na história universal que todaa massa do mal concreto é colocada diante dos nos-sos olhos. [...] Esta reconciliação só pode ser

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alcançada pelo conhecimento do afirmativo, no qualaquele negativo desaparece como um subordinadoe ultrapassado16.

O negativo é, por um lado, o mal em si mesmo ese realiza historicamente mediante ações particu-lares “malvadas”; por outro lado, também é mo-mento constitutivo de um todo maior, de um pro-cesso que o engloba e dele se utiliza para determi-nar-se como o seu oposto. A morte da fênix, afinal,só é necessária enquanto momento “subordinadoe ultrapassado” pela sua ressurreição.

Para além da simetria na determinação recípro-ca dos dois termos opostos, revela-se agora umcerto predomínio do lado positivo sobre o negati-vo, da vida que ‘rejuvenesce’ sobre a morte passa-da. A oposição não cessa, pois o novo assim forma-do também se afirma pela negação do outro quetraz dentro de si e que o conduzirá a seu termo.Porém, uma vez mais o jogo desta nova oposiçãose resolverá pela emergência de uma positividademais abrangente. Ao contrário do mito da fênix,então,

o rejuvenescimento do espírito não é um simplesretorno à figura anterior: é sublimação, elabora-ção de si mesmo. Mediante a solução de sua tare-fa, ele cria para si novas tarefas, através das quaisele multiplica a matéria de seu trabalho. [...] Masseu trabalho tem só um resultado: aumentar de

16 RH, 46-47 [48].

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novo sua atividade e de novo se consumir. Cadauma das criações em que se satisfez se lhe opõecontinuamente como uma nova matéria que épara ele a exigência de elaborá-la. O que é paraele formação, torna-se material a que seu traba-lho o eleva, numa nova formação17 .

Continuamente o espírito resolve sua oposiçãoconstitutiva em “criações” novas que o “satisfa-zem”, apaziguam seu conflito íntimo. Mas na obraacabada também se desdobra a oposição original,tornando-a simples “matéria”, ponto de partidapara posteriores e necessárias realizações. O re-sultado é sempre também um novo começo, perfa-zendo um círculo, como no destino do pássaromítico. Na medida, contudo, em que este novo co-meço não é igual ao anterior, de que ele resultou,e sim algo mais complexo e abrangente, o final nãoretoma exatamente o início. Ou melhor, dialetica-mente o retoma, ao se definir também como pontode partida, mas dele se distingue, por outro lado,ao abarcá-lo num todo maior.

A figura que melhor descreve este movimen-to do espírito na história, deste modo, é a da es-piral, ao mesmo tempo curva e reta: para umolhar puramente retrospectivo, vista de cima, elase confunde com um simples círculo, pois cadafinal parece apenas voltar ao princípio; para umolhar somente comparativo, vista de lado, elatem um aspecto progressivo, de linha que não se

17 RH, 37 [35-36].

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dobra em repetições. A verdade não se reduz anenhuma destas perspectivas, embora elas es-tejam parcialmente corretas, mas se descobrecompletamente pelo ângulo complexo em que osopostos – curva e reta – se combinam. Hegel pro-põe, com isso, reconciliar inclusive as duas maisimportantes concepções de história, que aindase digladiavam no séc. XVIII: o decurso históri-co é tanto cíclico quanto progressivo, emboraambos movimentos se contrariem.

A transição à terceira categoria agora se per-faz. Considerando a história deste plano mais ele-vado, “o que pode nos trazer embaraço é a grandediversidade, ou mesmo oposição deste conteúdo”18.É interessante notar que Hegel aí apresenta asduas categorias anteriores como insuficientes,usando os termos da Lógica – diversidade e oposi-ção – e não exatamente os que havia utilizado pou-co antes na Filosofia da História – variação e reju-venescimento. Mas se assim explicita o rigor deseu raciocínio, ele caracteriza seu “embaraço” aseguir mais uma vez através da impressão de quemdaqui observa esta faceta do “rosto da história”:há um “cansaço diante do singular”, que leva àpergunta sobre “qual o termo de todas estas singu-laridades?”. Mesmo o ‘rejuvenescimento’ se res-tringe ao aspecto individual dos povos, emboraexponha a relação deles e explique a própria “sin-gularidade” de cada um. A forma da história en-

18 RH, 37 [36]

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quanto “sucessão infinita”, típica da ‘variação’, per-manece, contudo.

Já na concepção do “ocaso” como fundamento19, po-rém, o nexo entre o positivo e o negativo aparece comoum fim que não é simples negação do que veio antes,determinando-se como algo específico. O fim não émero encerramento indeterminado da história de umpovo, e sim também algo de positivamente constituí-do – um outro povo. Além disso, de acordo com a figu-ra da espiral, o que ‘rejuvenesce’ é de certa formamaior que o anterior, é mais abrangente, mais “uni-versal”, apesar de ainda ser um “princípio” determi-nado. Tal é o sentido da “sublimação, [da] elaboraçãode si mesmo” que constitui o processo de passagem deum povo a outro. O novo “princípio” é a figura parti-cular de algo mais “universal” do que a figura pretéri-ta; é o que Hegel chama de sua “finalidade”.

Na passagem de cada “princípio” a outro se re-vela já este conceito, e ao cabo de várias “sucessões”aparece o “fim último [Endzweck]” do espírito. Estaé a terceira e última categoria, “da própria razão”,que surge “da pergunta por um fim último em si epara si; ele está presente na consciência como cren-ça na razão que domina o mundo. Sua demonstra-ção é o próprio tratado da história universal; esta éa imagem e a obra da razão”20. Assim, a direção que

19 Ambos termos propositalmente jogam com o mesmo radical no alemão: o que“perece” (zugrunderichtet) é o que vai ao fundo, que tomba no sentido negativo; e o“fundamento” do novo é justamente o ‘Grund’, base da reconstituição. Mais uma vezesta relação se encontra explicitada na Ciência da Lógica, em que a contradição seabisma para resolver-se no fundamento. Cf. Wissenschaft der Logik, pp. 69-70.

20 RH, 37 [36].

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vai emergindo do movimento histórico só pode serexatamente uma “finalidade” se estiver “presentena consciência”: é algo determinado – um objeto –,mas também um objeto para a consciência, que sereconhece nele, tornando-o seu objetivo (Zweck).Não é uma racionalidade imanente ao real apenas,mas se apresenta na consciência, já que o real deque trata a história é o próprio espírito – ao mesmotempo ‘ser’ e saber deste ser.

O caminho preciso das categorias pelas quais seexpõe a história, portanto, alcança e simultanea-mente supõe o conceito de ‘espírito’, que a seguirtem de ser considerado. Da “finalidade” que o ca-racteriza se deduz o destino ou ‘telos’ histórico, fun-damental na filosofia hegeliana. Nele, o problemada contingência, relacionado à necessidade, adqui-re especial significado. Se o contingente é posto delado à medida que se passa da ‘variação’ ao ‘rejuve-nescimento’, ele volta a ter um papel na realizaçãoda “finalidade” e do destino, justamente enquanto“fim particular do espírito subjetivo ou do ânimo”,definição da “necessidade externa” em um dos pri-meiros textos de Hegel citados acima. Apreendidaem sua dialética, a oposição entre as dimensõesexterna e interna da necessidade histórica não per-mite descartar a primeira dimensão, devendointegrá-la à segunda como o negativo imprescindí-vel. Mas, atenção, levar em conta a contingência nãoimplica enfraquecer o vigor do argumento, já queela se reapresenta no contexto rigoroso da ‘oposi-ção’, e não como desvio ou caso excepcional. Trata-se apenas de reconstituir fielmente a rica e contra-ditória figura do espírito. Afinal, como dizia um

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outro texto também citado no começo deste traba-lho, “na história política, o indivíduo, na singulari-dade de sua índole, do seu gênio, das suas paixões,da energia ou da fraqueza de caráter, em suma, emtudo o que caracteriza a sua individualidade, é osujeito das ações e dos acontecimentos”.

II - O Processo do Espírito

Para além das condições naturais de existênciado homem, sua história ocorre no terreno do espí-rito. É ele que se modifica e ‘rejuvenesce’, com a“sublimação e elaboração de si mesmo”, num movi-mento espiral. Ele é o “universal”, enquanto tododeste movimento e simultaneamente espaço comumde relações sociais por cujo meio os indivíduos seconstituem. Mas a existência não se restringe àscondições naturais; o espírito também existe. Comose dá, entretanto, a existência de um “universal”?

Hegel afirma que “o universal tem de entrarna efetividade mediante o particular”21, pois só éefetivo ao se realizar numa forma particular deexistência. Não fosse assim, a universalidade se-ria uma instância abstrata, separada dos indiví-duos reais, definindo-se justamente por tal abs-tração, generalidade vazia de conteúdo específi-co. Criticando mais esta dicotomia, Hegel definecomo oposição o nexo entre “universal” e “parti-cular”, de modo que ambos permanecem diferen-

21 RH, 76 [85].

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tes, mas se diferenciam um pelo outro, pela refe-rência negativa a seu outro. O “universal” nãoexiste em si mesmo, tendo sempre de assumiruma forma “particular”, e esta nunca é mera par-ticularidade, mas forma “particular” do “univer-sal”. Ao contrário de uma generalidadeindeterminada, ele designa o processo “concreto”de determinar-se através de múltiplas oposições.

Portanto, “o espírito na história é um indiví-duo de natureza universal, mas que nela é de-terminado, isto é, um povo”22. Conceito básicona filosofia hegeliana da história, um “povo” é“universal” enquanto espaço de sociabilidadesconstitutivas, que têm, no entanto, um caráter“determinado”, diferente do de outros povos.Esta sua individuação se dá, assim, pelo conteú-do específico que nele assume a universalidadesob a forma de um princípio: e “porque os prin-cípios se diferenciam, assim são também os po-vos naturalmente diferentes. Cada um tem seupróprio princípio, a que ele aspira como a umafinalidade”23. O “princípio” o é pela dupla acepçãoem que tanto representa o caráter fundante emarcante da existência individualizada de umpovo, quanto, por isso mesmo, aparece no iníciode sua cronologia. Ele é o que ainda não se rea-lizou, sendo então “finalidade”. E é desta ma-neira que se deixa apreender a universalidade

22 RH, 56 [59]. Deste modo, a história “tem a ver com indivíduos que são povos”:RH, 40 [40].

23 RH, 60 [64].

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particular de um povo, pelo que “ele aspira” erealiza a partir daí, e não por uma escavaçãoarqueológica de começos sempre obscuros e am-bíguos. O princípio se descobre no fim.

A trajetória histórica de um povo será semprea realização paulatina de seu “princípio”, trans-formado em meta distintiva. Daí o objetivo ser “queele produza um mundo espiritual adequado a seupróprio conceito, que ele cumpra e realize sua ver-dade, que ele produza a religião, o estado, de talforma que eles sejam adequados a seu conceito,que sejam seus na verdade ou na idéia de si mes-mo – a idéia é a realidade que é apenas o espelho,a expressão do conceito”24. No percurso que vai do“conceito”, princípio a realizar, à “idéia”, princípiorealizado, um povo se define e distingue por criarinstituições e formas de expressão específicas dele,em que seus membros se reconhecem porque elastêm o seu caráter. A “adequação ao seu conceito”não é um critério de verificação epistemológica,portanto, mas a “verdade” como realidade resul-tante da ação do povo afirmando seu princípio.

De que modo ocorre exatamente, porém, estarealização? Ou ainda, como o povo alcança a “fi-nalidade” que lhe é própria, substancial, comodetermina o conteúdo particular de sua univer-salidade? Ou, finalmente, nas palavras de Hegel,“de que espécie, então, é a finalidade substanci-al, na qual o espírito chega a um tal conteúdo es-

24 RH, 58 [61].

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sencial? O interesse é de espécie substancial edeterminada, uma determinada religião, ciência,arte. Como chega o espírito a tal conteúdo, deonde vem tal conteúdo?”25. Mais do que apenasassinalar a necessidade da forma “determinada”,importa aqui conhecer o processo de determina-ção, pelo qual o espírito universal se particulari-za. A resposta começa a se delinear quando con-sideramos que “religião, ciência, arte” são produ-tos do espírito de um povo através dos quais elerepresenta para si seu caráter: por eles, o povose apreende e, nesta medida, faz de si o que “as-pira” ser26. Definido como este simultâneo sabere fazer, o espírito é autodeterminação, contrapar-tida de sua autoconsciência.

A realização do “conceito” como “ideal”, contu-do, não é linear, mas marcada justamente peladialética de ambos, da qual resultam três momen-tos principais. É por eles que se desenha concre-tamente o movimento espiral, com o círculo emque o fim retorna ao princípio e a elevação pelaqual cada círculo supera o anterior.

Os primeiros dois momentos são chamados porHegel, respectivamente, de ‘produção’ e ‘reflexão’.Assim, diz ele,

quando consideramos o período desta produção, des-cobrimos que o povo age para a finalidade de seu

25 RH, 51 [52].26 Ou seja, “sua religião, culto, costumes, usos, arte, constituição, leis políticas,

o círculo inteiro de suas instituições, seus acontecimentos e ações, isto é suaobra – isto é este povo”; RH, 62 [67].

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espírito e o chamamos de ético, virtuoso, forte, poisproduz o que constitui a vontade interna de seuespírito e defende sua obra, no trabalho de suaobjetivação, contra poderes externos. Aqui não serealizou a separação dos indivíduos em relação aotodo; ela só aparecerá mais tarde, no período dareflexão. Se o povo fez de si sua obra, então superoua cisão entre o em-si, o que ele é em sua essência, ea efetividade e ele se satisfez: erigiu como seu mun-do o que ele é em si. Nesta sua obra, seu mundo, oespírito desfruta agora de si27.

Examinemos com cuidado este importante texto.Se só no “período da reflexão” é superada a “ci-

são” entre a “essência e a efetividade” de um povo,então no período anterior havia tal cisão, e “produ-ção” significa precisamente a “superação” destehiato, a “efetivação” da “essência”. Este último ter-mo designa o que o povo é “em si”, ou seja,corresponde ao seu “princípio” ou “conceito”, comovisto acima. Por outro lado, se a “efetividade” chegaa realizar a “essência”, é porque nem sempre ela ofaz, isto é, ela indica em geral a dimensão não-es-sencial da realidade, enquanto a “essência” se defi-ne como o não necessariamente efetivo, como umideal ainda não realizado. Já vimos que a históriade um povo é a gradativa realização do seu princí-pio, construindo todo um “mundo espiritual” comsuas criações na “religião, ciência, arte” etc. Agora,

27 RH, 63 [67].

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porém, surge mais um elemento nesta dinâmica, a“efetividade”, apontando a esfera do real que não énem princípio nem ideal, mas as circunstâncias ime-diatas da existência do povo, nas quais o princípioestá apenas parcialmente realizado, até pelo menoso término da ‘produção’. Neste período, portanto, oideal ainda não-efetivo é finalidade de todos os mem-bros de um certo povo, diferenciando este povo eagregando seus componentes. Por isso, não há “se-paração dos indivíduos em relação ao todo” espiri-tual; todos o têm como meta comum, como um deverque os torna “éticos”, integrados ao todo, “virtuosos efortes”. O princípio característico do povo aparecepara seus membros como dever moral, que é deverporque ainda não está realizado, não é.

Na ‘produção’ o povo produz a si mesmo, “faz desi sua obra”, constrói “como seu mundo o que ele éem si”. O espírito é atividade, “produção”, autode-terminação. Uma vez “efetivado” o ideal, “supera-da a cisão entre a essência e a efetividade”, come-ça o segundo período, da ‘reflexão’. Aqui é impor-tante observar que na filosofia hegeliana o ‘ideal’não só pode como deve se realizar, pois já é algode real e, portanto, de realizável. Assim, encerra-se finalmente o conflito entre os dois termos“cindidos” e, conseqüentemente, também a oposi-ção entre o conceito e a sua efetividade, entre ouniversal e o particular, entre o dever e o ser. Opovo atinge plena consciência de seus ideais e detê-los alcançado, de modo que “chegou, como foidito, à fruição de si mesmo, que não é mais ativi-dade, e sim um deambular por si mesmo sem re-sistências. [...] Antes havia uma carência, uma ne-

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cessidade [Not]; ela é satisfeita através de umainstituição e não existe mais. Depois também a ins-tituição é superada e surge um presente sem ca-rências”28. A “carência”, a “necessidade” e o inte-resse têm em comum basear-se numa mesma es-trutura lógica – a oposição, cujo lado negativo é adistância entre o sujeito e o objeto da carência, poisaquele não possui o que lhe faz falta, e o lado po-sitivo é a determinação que faz daquilo especifica-mente o objeto capaz de satisfazê-lo. O fim do confli-to está presente na própria forma da oposição, queimplica a sua superação, levando à satisfação da ca-rência como a algo que se pode alcançar. Mas aí “avida perdeu seu maior e mais elevado interesse; poissó há interesse onde há oposição [...] O negativo nãoaparece então como cisão, luta”29. Junto com a ca-rência, desaparece inclusive o interesse: nada maishá para conquistar, o percurso espiritual ocorre “semresistências” e “não é mais atividade”.

Além disso, como o ‘ser’ agora é o que ‘deve ser’,este último perde sua característica de não-efeti-vo, de ‘dever’ propriamente dito. No período da‘reflexão’ se realiza “a separação dos indivíduosem relação ao todo”, desta maneira, porque nãoexiste mais um dever agregador, uma meta comum

28 RH, 63-64 [68]. Esta passagem começa retomando o raciocínio anterior: “Existeuma oposição na medida em que a efetividade não é ainda adequada ao seuconceito, ou na medida em que o conceito interno de si mesmo ainda não foilevada à autoconsciência”.

29 RH, 64 [68-69]. Sobre o interesse, diz um texto da Filosofia da História: “‘Interesse’ quer dizer: ser nele, estar junto dele”; e, em outro lugar, “Só tenhointeresse por algo enquanto ele me está ainda oculto ou é necessário para umfim meu, que ainda não se realizou”, RH, 74 e 63 [82 e 67], respectivamente.

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aos membros do povo, que não podem ser chama-dos de “éticos, virtuosos, fortes”. O que antes apa-recia a eles como um universal ainda não realiza-do é, na medida em que se efetiva, algo de pura-mente particular, despido da forma da universali-dade. Por isso este momento é denominado de ‘re-flexão’: “este pensar, esta reflexão, não tem maisrespeito algum perante o imediato, que ele conhe-ce como um espírito particular; surge uma sepa-ração entre o espírito subjetivo e o universal”30. Arealização do ideal determinado é uma “finalida-de” enquanto ele é ideal, um universal que se pro-põe como superior às particularidades; por outrolado, o particular é o meio da realização do uni-versal, até no sentido negativo: com a realização,o particular vê sua particularidade como tal e arecusa, não mais reconhecendo sua legitimidade.A base do dever distintivo de um povo, sua lei mo-ral, aparece para ele agora como simples máxima,que vale tanto quanto qualquer outra estabelecidapelos próprios indivíduos para si. Donde a cisãoentre o espírito subjetivo e o universal.

Esta nova cisão surge do deslocamento da an-terior. Se no primeiro momento ela correspondiaà oposição entre o ser e o dever, de modo a inte-grar os membros de um povo na realização de suafinalidade, agora ela se dá entre os indivíduos eseu povo, pois a identidade de ser e dever retiradeste a aparência de universalidade e, então, aforça unificadora. Na atual figura, o povo “não é

30 RH, 66 [71].

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mais atividade”, não é mais espírito, perde o fun-damento de sua dimensão universal. Por “espíritosubjetivo” também se designa a particularidade dopovo que se separa desta dimensão.

Todavia, “na medida em que temos de demons-trar a transição de um espírito de povo a outro,deve observar-se que o espírito universal em ge-ral não morre, mas como espírito de um povo quepertence à história universal tem de chegar a sa-ber o que sua obra é, e para isso tem de pensar-se”31. De acordo com as categorias acima examina-das, o ‘rejuvenescimento’ significa não só a passa-gem da vida à morte – do período da ‘produção’ aoda ‘reflexão’ – mas também o inverso, o surgimentode uma nova vida a partir da morte. É preciso ex-plicar, portanto, a determinação de outro “espíri-to de um povo” sobre a base da desaparição do an-terior. Este será o terceiro e último momento doprocesso que estamos analisando.

Decisivo em tal transição é perceber a diferençaentre o “espírito de um povo” em si mesmo, comouma figura particular do universal que morre ape-nas em sua particularidade, e o “espírito de um povo”enquanto momento do universal. Neste último caso,mesmo que tenha cessado sua atividade, o povo ain-da “pertence à história universal”, ao cumprir nela opapel de “chegar a saber o que sua obra” foi; “paraisso tem de pensar-se”, ‘refletir’ sobre si mesmo. Seneste “pensar, esta reflexão não tem mais respeito

31 RH, 66 [71].

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algum perante o imediato, que ele conhece como umespírito particular”, este aspecto negativo será, noentanto, o caminho para a auto-superação do povo.

Imediatamente, ocorre que “os indivíduos re-cuam para si mesmos e aspiram a seus própriosfins; já observamos que isto é a ruína do povo: cadaum põe para si seus próprios fins conforme suaspaixões”32. Como não há mais dever ou finalidadecomum, observa-se a perda da coesão moral e apulverização de deveres individuais, baseados emmáximas e correspondendo a interesses particu-lares. Mas também o fato de que os “indivíduosrecuam para si mesmos” indica que cada um seapresenta, a partir de sua própria consciência,como o legislador de seu dever e o crítico do queantes era aceito como universal. A “separação en-tre o espírito subjetivo e o universal” se dá no qua-dro de uma oposição, na qual a crítica do antigodever comum é o lado negativo, e a elaboração demáximas particulares é o positivo. A crítica recaiexatamente, porém, sobre a pretensão de univer-salidade daquele antigo dever, isto é, sobre a falsaaparência do particular. Ora, enquanto o “princí-pio” não havia sido plenamente realizado, no perí-odo da ‘produção’, a dimensão da particularidadeparecia associada apenas à esfera da existência efe-tiva do povo, dando ao dever o aspecto de purauniversalidade, como se ele não fosse já então tam-bém um dever determinado. Seu caráter necessa-riamente determinado permanecia encoberto pela

32 RH, 66 [71].

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aparência de pura universalidade, como se ‘este’dever fosse ‘o’ dever em si, válido não só para estepovo, mas para todos. É só quando ele se realizaque se descobre o específico, o lado particular queele sempre possuíra, e esta descoberta deixa nasombra agora sua dimensão universal. Mas elapersiste, mesmo que desvinculada da particulari-dade anterior, ou melhor, na desvinculação mes-ma, na crítica que simultaneamente busca outrodever, outra expressão do universal que não pare-ça determinada.

“Assim, o resultado deste andamento é que o es-pírito, ao objetivar-se e pensar este seu ser, des-trói, por um lado, a determinidade do seu ser, masapreende, por outro, o universal da mesma, e comisso dá ao seu princípio uma nova determinação.Deste modo se alterou a determinidade substanci-al deste espírito de povo”33. O que é criticado,“destruído” pela ‘reflexão’, é o aspecto específicodo dever. Mas na própria objeção está contida avalorização do universal, pois é sua presumidaausência no dever antigo que se critica. Aqui, adialética da “determinidade” e da “determinação”– do ser determinado e da busca por uma formadeterminada inevitável – retoma a impossibilida-de do universal existir sem ter um conteúdo par-ticular, já examinada acima. Lembremos que “o

33 RH, 66-67 [72]. Cf. também: “Ao abolir, com isso, por um lado, a realidade, aconsistência do que ele próprio é, o espírito ganha ao mesmo tempo a essência, opensamento, o universal do que ele apenas foi. Seu princípio não é mais este imediatoconteúdo e finalidade, como ele fora, mas a essência do mesmo”; RH, 65-66 [70-71].

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espírito do povo é, assim, o espírito universal emuma configuração particular, à qual ele é em sisuperior, mas que ele possui na medida em queexiste: com o ser-aí, com a existência, surge a par-ticularidade”34. É impossível que o novo dever nãose determine, sob pena dele simplesmente nãoexistir; bem como, ao contrário, obrigatoriamenteas máximas particulares serão formas de expres-são do universal, ou seja, terão a forma do dever.A recusa da “determinidade” da lei anterior serásempre, assim, a busca por uma nova “determina-ção”, por outra configuração do universal.

Contudo, não se trata nesta passagem do surgimen-to de um princípio apenas diferente do anterior, comose os círculos da história não tivessem ligação uns comos outros: “aqui reside o começo de um princípio maisalto. A cisão contém, traz consigo a necessidade daunificação, pois o espírito é uno. Ele é vivo e forte osuficiente para produzir a unidade. A oposição na qualo espírito entra com o princípio mais baixo, a contra-dição leva ao mais alto”35. A elevação que caracterizao movimento espiral, ascendente, do espírito, é aquiexplicada por Hegel. Se a crítica à universalidade fei-ta no período da ‘reflexão’ incide basicamente sobre oaspecto particular dela que agora se explicita, entãoo novo universal a que se aspira deverá se elevar so-bre a anterior particularidade. Necessariamente teráde existir sob outra forma particular, mas deverá sermais universal que a anterior, senão será objeto decrítica tanto quanto ela.

34 RH, 57 [60].35 RH, 66 [71].

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Este é o sentido da passagem lógica da “oposi-ção” à “contradição” no texto acima. Conforme aprimeira, os povos se contrapõem numa simetria,determinando-se mutuamente por sua recíprocanegação – a vida de um a partir da morte do outro.Embora o princípio anterior seja “mais baixo”,mais restrito na sua determinidade, para a sim-ples oposição ele é imediatamente apenas o outro,do qual ele se exclui. A seguir, porém, consideran-do que o que é negado no primeiro termo destaoposição específica é o que define este termo – suaparticularidade –, negá-lo significa não ser parti-cular, ou, pelo menos, ser menos particular queele. Assim o segundo termo inclui em si o primei-ro, ao mesmo tempo em que o nega, configurandologicamente a contradição em si. Ao incluir o ou-tro, o segundo termo o ‘rebaixa’ a simples momen-to de sua própria constituição. Por isso, o primei-ro é “mais baixo” que o segundo, sendo este neces-sariamente “mais alto”, mais abrangente. A rela-ção entre os princípios dos dois povos, desta for-ma, não é só de oposição, mas da contradição emque o posterior se eleva acima do anterior, inclu-indo-o e simultaneamente o negando.

Por outro lado, é importante notar que o movi-mento pelo qual “a cisão contém [...] a necessidadeda unificação” não corresponde somente à lógicada oposição contraditória, em que a negação dooutro tem como contrapartida sua afirmação. Apalavra “necessidade” aqui empregada por Hegel– ‘Bedürfnis’ – designa, mais do que a relação lógi-ca, uma carência. Além do rigor, então, está emjogo a injunção espiritual pela qual a “unificação”

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se realiza. Ou seja, o indivíduo crítico dos velhosideais busca estabelecer um novo universal devi-do a uma necessidade que não é somente lógica, esim decorrente de sua percepção da carência es-pecífica de seu povo.

Na esfera da efetividade, aliás, todo este pro-cesso do espírito é feito pela ação dos indivíduos.O período da ‘reflexão’ justamente tem como ca-racterística a individuação, isto é, que aqui o indi-víduo se constitui através de sua oposição ao povoa que naturalmente pertence, na forma da críticapor ele exercida às leis morais que antes congre-gavam os membros deste povo e por isso o defini-am. E o indivíduo se afirma também, conseqüen-temente, pela criação de seus próprios deveresdistintos do comum do povo. Mas inclusive a tran-sição a um novo princípio é realizada por seu in-termédio, quando as máximas de um indivíduoconquistam a adesão dos outros, deixando de apa-recer apenas em sua particularidade e se reves-tindo explicitamente de um caráter universal. Oindivíduo que logra este feito é o assim chamado‘herói’, expressão que em Hegel apresenta resso-nâncias da Antigüidade grega: o herói é osemideus, aquele em quem converge a dupla natu-reza de particular – do ser mortal – e de universal– da imortalidade. Na história, é ‘herói’ quem con-segue passar da particularidade de sua máxima àuniversalidade que ela adquire ao ser reconheci-da como dever pelos outros, tornando-se nova leimoral, princípio constitutivo de um novo “espíritode um povo”.

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Das muitas páginas dedicadas pela Filosofia daHistória ao papel do indivíduo na efetivação doprincípio de seu povo e na criação de um novo prin-cípio, importa aqui retomar uma questão central.É que o universal do dever tem sempre de se asso-ciar à situação e ao interesse particular do pró-prio agente individual para ser realizada, definin-do o “direito infinito do sujeito”36. Apesar de meiopara o universal ganhar existência, a particulari-dade da situação individual não é completamentedeterminada por ele, tendo um caráter parcial-mente externo ao universal, independente dele;é, assim, contingente. E o será ainda mais no casodos indivíduos que trazem grandes inovações à his-tória, os heróis, que terão de enfrentar o univer-sal de seu tempo. Para eles, será necessário con-centrar “toda a energia de sua vontade e caráterem tais fins, sacrificando-lhes os outros que tam-bém podem ser fins ou, antes, tudo o mais” – o queé a “paixão”37. Mesmo que sua paixão os leve a su-cumbir na luta pelos novos ideais, e que nisto con-sista a “astúcia da razão”38, que move o espíritouniversal pelo conflito e morte do espírito subjeti-vo, a razão “permanece intangível e ilesa no fun-do”. É uma razão que inclui o seu oposto – o inte-resse, a paixão – mas que não se deixa nele incluir,

36 RH, 74 [82]. Ou seja, “os homens exigem então que, se têm de trabalhar poruma causa, esta lhes agrade, exigem em geral estar nela com sua opinião,convicção acerca da bondade da coisa, da sua legitimidade, da sua utilidade, davantagem para eles próprios, etc.”; RH, 75 [83].

37 RH, 77 [85].38 RH, 92 [105].

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de modo a não sucumbir com ele. Por isso mesmo,contudo, ela também não o determina completa-mente. O elemento particular pelo qual ela vemao mundo lhe é em parte externo, neste sentido.

Este retorno da contingência, aparentementeafastada no começo da investigação filosófica dahistória, é fundamental para uma compreensão maisprofunda do pensamento hegeliano. Tomado poralgumas de suas petições de princípio, ele soa paramuitos como um puro determinismo. Entretanto,ao tematizar a dimensão crucial do interesse e dapaixão do indivíduo, ele não a concebe como imedi-ata e cabalmente determinada pela razão. Nemtampouco como resultado do mero capricho das cir-cunstâncias ou do arbítrio da vontade individual,porém. O que aqui se configura é a superação desteconflito entre determinismo e acaso, entre umanecessidade causal e a vontade dela liberada. Tra-ta-se do conceito de uma verdadeira ‘liberdade’, re-conciliando, no indivíduo e na história, as dimen-sões opostas do universal e do particular. É a ne-cessidade totalmente interiorizada, que faz daefetividade expressão plena da essência, de talmodo que não há nesta mais nenhuma determina-ção que não tenha se realizado. Pela liberdade des-ta maneira definida, o homem supera de fato “a ci-são entre o em-si, o que ele é em sua essência, e aefetividade”, como dizia um texto citado acima. En-quanto sujeito livre, o homem não conhece maisconstrangimentos inibidores da manifestação e dodesenvolvimento completo de suas potencialidades.Assim, o espírito se perfaz, constituindo-se plena-mente enquanto atividade, autodeterminação.

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É evidente que para Hegel continuam existindocasualidades, condicionamentos, imprevistos e ca-prichos pessoais, podendo retardar e até impedirtotalmente a realização deste desenvolvimento doespírito. A história registra fartamente estes ca-sos, em que por vezes um povo se viu destruído an-tes de amadurecer seu “princípio”. Ele percebe que

de fato, o espírito está enredado em condições na-turais, internas e externas, que podem não só colo-car resistências e impedimentos no caminho, masaté causar o total fracasso de suas tentativas. Masentão ele declina na sua vocação de essência espiri-tual, para a qual a finalidade não é a obra, e simsua própria atividade, e garante pelo menos o espe-táculo de ter se comprovado como atividade39.

Imerso nas circunstâncias de sua existência erealização, o espírito nem sempre consegue cum-prir sua finalidade, tornando efetivo o conteúdode seu princípio. Mesmo assim, sua luta contra ascondições contrárias, o seu empenho no desenvol-vimento de suas potencialidades íntimas é, elepróprio, já a sua realização. Se o espírito é essen-cialmente atividade, para além de todo o conteú-do específico que esta tome como meta, ser ativo éa própria finalidade, o ‘telos’ do seu processo. Nestesentido, um povo sempre se realiza, mesmo queseus objetivos particulares não sejam alcançados.

39 RH, 37 [36].

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É esta autodeterminação pela qual ele luta quedefine sua liberdade. Um povo é, assim, livre ao seesforçar para sê-lo. Tendo isto como meta, a histó-ria não só caminha para o telos, mas já o tem sem-pre presente no próprio meio do caminho. Assim,cada formação espiritual permanece específica noconteúdo determinado de sua finalidade, que nãose reduz a nenhum outro conteúdo determinadoimposto por uma instância transcendente. Cadapovo tem seu valor e não só em referência a umideal externo. Pois o meio pelo qual está continua-mente buscando e, pelo menos parcialmente, alcan-çando sua meta se converte em fim. A forma se tor-na, então, conteúdo maior presente em todas ashistórias e as reúne numa teleologia dialética, cons-tituindo a verdadeira universalidade concreta.

Referências bibliográficas

HEGEL. Vorlesungen über die Philosophie derWeltgeschichte, 1º tomo. Hamburgo, Felix MeinerVerlag, 1994.

_____. Introdução à História da Filosofia, 4ª edi-ção. Coimbra, Arménio Amado editor, 1980.

_____. Razão na História. Lisboa, Edições 70, 1995.Em alemão, Vorlesungen über die Philosophie derWeltgeschicte, 1º tomo. Hamburgo, Felix Meiner,1994.

_____.“Wissenschaft der Logik” In: Hegels Werke.Frankfurt, Suhrkamp, 1986.

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A CRÍTICA HEGELIANA E A TAREFADA MODERNIDADE: A “Superação

Positiva” da Religião e da Filosofia deHegel.

JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA

O indivíduo não pode nem deve elevar-se aci-ma das leis do gênero humano. A essência dohomem é o seu ser supremo, o homem é oDeus do homem. (Ludwig Feuerbach)

crítica filosófica característica do Escla-recimento radical que se desenvolve naAlemanha, no campo do hegelianismo, a

partir da morte de Hegel, pode ser mapeada segundo ocaráter da negação/superação da religião e de seus pro-longamentos na Modernidade, representada por seusdiversos expoentes, entre os quais Bruno Bauer, MaxStirner, Ludwig Feuerbach e Karl Marx. A superaçãodos Novos Tempos e de suas contradições, a tarefa dosTempos Modernos e da própria História, pode estarna instauração - ou restauração - de uma verdadeiracomunidade humana e na realização da essência co-munitária ou social do homem, tomada agora como fun-damento forte ou medida universal e objetiva. Ou podeestar na radicalização do moderno princípio da subje-

A

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tividade livre (universal ou absolutamente “única”), en-volvendo a negação de qualquer novo sucedâneo do “sersupremo”, da religião, como na “crítica pura”, de Bauer,e no voluntarismo de Stirner. No primeiro caso, temosa “crítica positiva”, de Feuerbach, que dissolveria fal-sos e frouxos fundamentos, em nome do fundamentoverdadeiro e forte: o homem. Onde está Marx em meioa essas posições? Qual o sentido de sua nova concep-ção crítica, a concepção materialista da história, a esserespeito? É o que vamos ver, com a ajuda de algunselementos histórico-biográficos, além de elementostextuais.1

O subtítulo de A Sagrada Família, de Karl Marx eFriedrich Engels, de 1845, é “Crítica da Crítica, Con-tra Bruno Bauer e Consortes” - sendo estes, principal-mente, seus irmãos Edgar e Egbert Bauer, e mais al-guns seguidores. Ora, O Único e Sua Propriedade, deMax Stirner, obra também datada de 1845, e os artigosde Stirner e Bruno Bauer no nº 3 da Revista Trimestralde Wigand, publicados em Leipzig, ainda no mesmoano, constituem-se, por sua vez, num ataque não me-nos frontal e virulento “contra Feuerbach e consortes”.Contra o que poderíamos chamar de “o partido deFeuerbach”, do qual faziam então parte Marx, Engelse Moses Hess. Só que, a essa altura, o representante

1 Este texto completa-se com outros por mim publicados, sobre questões correlatas,como “O Homem Genérico como Telos Imanente da História, em Karl Marx”(Resgate, no.6, Unicamp, 1996), “Crítica Positiva e Crítica Negativa, DoisModelos Antagônicos da Crítica no Séc.XIX” (Universitas, no.40, UFBa, 1991) e“O Ateísmo Anti-Humanista e Anti-Feuerbachiano de Max Stirner” (Cadernosde Ética e Filosofia Política, no.3, USP, 2001).

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mais destacado do partido adversário – que antesfora Bruno Bauer - desponta como sendo MaxStirner, agora reconhecido como tal pelos integran-tes do “partido de Feuerbach” e sobretudo pelo pró-prio Marx. O Único e Sua Propriedade faz, antes deKarl Marx, uma crítica conjunta a Ludwig Feuerbach,Moses Hess, Wilhelm Weitling e Pierre JosephProudhon (que Marx defende na Sagrada Família,contra Edgar Bauer) - todos eles, então, elementosassociados a Marx, ao menos por oposição ao campode Stirner e Bauer.

Podemos até dizer que Stirner escreve sua “ideo-logia alemã” antes de Marx e Engels, porque, na suacrítica aos “filósofos alemães mais recentes”, procu-ra deixar para trás, além de seus adversários no cam-po hegeliano, também seus correligionários mais pró-ximos, como o próprio Bruno Bauer.2 E porque pre-tende estar rompendo, no Único, com o próprio cam-po da filosofia, em que se confrontam todas essasposições. Pretende estar rompendo com os domíni-os do “puro pensamento”, dos quais Hegel continu-ava sendo o grande senhor e patriarca.3 Além derepresentar o partido oposto, o cenário do lado deBauer e Stirner parece apresentar uma certa si-

2 No Único e no artigo Rezensenten Stirners, de 1845, do vol.3 Revista Trimestralde Wigand, Stirner crítica tanto Bruno Bauer quanto Ludwig Feuerbach, comoaparentados; do mesmo modo como critica Edgar Bauer e os demais pensadoresradicais citados, de ambos “partidos críticos” de que estamos tratando.

3 Como veremos, pode ser mostrado que Stirner tampouco deixa de manter elepróprio algum parentesco filosófico com o aliado a quem supera (Bruno Bauer),nem de guardar um débito para com o patriarca de ambas as “tribos”, que éHegel, o filósofo da história universal, do espírito e do idealismo absoluto.

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metria com o do “partido de Feuerbach”, no qualMarx, depois de A Ideologia Alemã, escrita em1845-46, vai passar a ocupar uma posição, análoga àde Stirner, de novo destaque e de ruptura. Será,porém, que essa obra, em que Marx, respondendoao Único e aos artigos polêmicos da Revista Tri-mestral de Wigand, trata de galgar a liderança doseu próprio campo e de deixar para trás a filosofia,tem ainda de algum modo o sentido de uma defesada plataforma filosófica de “Feuerbach e consortes”,contra o outro partido ou ala, rival, da críticahegeliana? E isso apesar do que sugere o subtítuloda Ideologia Alemã: “Crítica da Filosofia AlemãMais Recente na Pessoa de Seus Representantes,Feuerbach, Bauer e Stirner...”?4

A Ideologia Alemã pode ser lida, segundo pro-ponho, como uma resposta aos artigos polêmicosde Bauer e Stirner, de Leipzig, de 1845. E, juntocom isso, vários indícios sugerem que essa obranão é, de modo algum, um ataque ao autor de AEssência do Cristianismo, do tipo do que é condu-zido contra as figuras de Max Stirner e BrunoBauer. Não se trata apenas disso, porém. Marxinicia o “Concílio de Leipzig” (que é o título inicialda Ideologia Alemã, sem a seção “Feuerbach”, quelhe foi acrescentada por último e não constava doplano inicial da obra) precisamente denunciandode um “processo inquisitorial” aberto contra

4 O subtítulo completo da Ideologia Alemã é: “Crítica da mais recente filosofiaalemã nos seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismoalemão nos seus diversos profetas”.

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Feuerbach pelos “padres da Igreja” que são, naretórica de Marx, “São Bruno (Bauer)” e “SãoMax (Stirner)”. Processo que se estende, comoele diz, a “M. Hess” e aos “autores da SagradaFamília”5 O primeiro trecho da seção “São Bru-no”, na Ideologia Alemã (ou “Concílio deLeipzig”), leva o título de “Campanha contraFeuerbach”. E aí Marx (justamente com Engels),embora às vezes avançando, ele próprio, algu-mas reservas, procura claramente defender seumestre, da aparentemente enigmática acusaçãode “cavaleiro da substância”.6 Ainda por cima,Marx procura habilmente tomar as críticas daBauer ao pretenso “sensualismo” feuerbachiano(teoria do conhecimento que quer privilegiar oelemento sensível, contra a abstração e a espe-culação) como se fossem essencialmente conde-nações moralistas a um pensador audaciosa-mente libertino, e até lascivo, que só existemesmo na imaginação de Marx.7 As críticas aocaráter “religioso”, anti-emancipatório e ambí-guo do suposto materialismo feuerbachiano, sãoaí inteiramente minimizadas. Na verdade,Feuerbach está sendo acusado, por Bauer, no

5 A Ideologia Alemã (Dietz Verlag, Marx und Engels Werke, vol. 3, Berlim), p.79-80.Ou, na edição francesa de G. Badia (Editions Sociales, Paris), p.111-2. Nestaedição aparecem alguns trechos que estão ausentes na edição alemã. Algunsoutros trechos do manuscrito da – publicado, como sabemos, muito depois damorte de seus autores – aparecem, além disso, em seqüência diferente, nasduas edições.

6 Id., p.116ss., na edição francesa. Na edição alemã, p. 81ss.7 Id., p.121ss (edição francesa)

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artigode Leipzig, de 1845, de “consagrar a depen-dência do indivíduo, ao faze-lo perder-se na vidagenérica” e numa hipóstase (sua essência genéri-ca) comparável ao unificador espírito absolutohegeliano e ao ser supremo da religião.8 Apenasna medida em que a Ideologia Alemã vai progre-dindo, Marx procura diferenciar-se mais claramen-te de seu mestre humanista, como também deMoses Hess e de seu piedoso “socialismo verda-deiro” (criticado na última seção da obra). E o faz,como veremos, através do que pode ser entendidomais como um aprofundamento do que como umarejeição das posições filosóficas gerais do “partidode Feuerbach”. Podemos perguntar, então: Quaiseram essas posições?

Por aquela época, Engels - de comum acordocom Marx - tratava de comprometer Feuerbachmais expressamente com o comunismo como mo-vimento político-doutrinário. E até mesmo tenta-va convencê-lo a mudar-se para Bruxelas, onde jáse reuniam, exilados, Marx, Hess, Weitling e o pró-prio Engels, em torno do “Comitê de Correspon-dência Comunista”.9 Apenas um ano antes de co-meçar a redação da Ideologia Alemã, Marx acredi-tava que Feuerbach havia, em seus escritos, ofere-cido nada menos que o “fundamento filosófico parao socialismo”, o conceito de gênero humano (ou do

8 Ver Bruno Bauer, Charakteristik Ludwig Fuerbachs, Wigands Viertejahrschrifit,vol..3, Leipzig, 1845, p.96.

9 Cf. Franz Mehring, Karl Marx: The Story of His Life.

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homem como ser genérico, Gattungswesen).10 NaSagrada Família, obra imediatamente anterior àIdeologia Alemã, Marx e Engels colocam-se comentusiasmo ao lado de Feuerbach e no desenvolvi-mento de seu pensamento, declarando sua profis-são de fé no “humanismo real” do mestre. E, numaleitura atenta, pode-se verificar que não é simples-mente o materialismo feuerbachiano que atrai asimpatia dos nossos socialistas. Feuerbach, aliás,é aí considerado não exatamente como materialis-ta, mas como o filósofo que superou definitivamen-te “a velha contradição espiritualismo vs. materi-alismo”.11 Ele é antes quem estabelece solidamen-te o “homem real” como princípio, quando “a críti-ca destruidora”, na Alemanha, “buscava liquidartoda coisa determinada e todo o existente atravésdo princípio da consciência de si”12 – isto é, comodiria Hegel, da subjetividade infinita como princí-pio da modernidade.13 Assim, Feuerbach não é tan-

11 Ver A Sagrada Família, edição francesa (Editions Sociales) p.117.12 Id., p.50.13 Para Marx, entre outras façanhas, Ludwig Feuerbach, com seu novo princípio,

“o homem real”, tem a glória de “ter aniquilado a dialética dos conceitos” (LaSainte Famille, p.115), cuja capacidade “dissolvedora” é possivelmente o quemais lhe desagrada.

10 Como Marx declara, em carta ao “mestre”, de 11-08-1844. Aí, ele anuncia aFeuerbach seu plano de desencadear a crítica ao outro “partido”, de Bruno Bauere correligionários, crítica que resultou na Sagrada Família, uma defesa do“humanismo real” de linha feuerbachiana. E pede, como “extremamente preciosa”,a opinião de Feuerbach a respeito. Ainda aí, ele trata de testemunhar sua “maisalta consideração e afeição” para com o nosso humanista, a quem informa que, emParis, “os trabalhadores alemães emigrados, provavelmente várias centenas,acompanham cursos sobre vossa Essência do Cristianismo, dados por seus dirigentesclandestinos”. Marx está se referindo aos membros da “Liga dos Justos” - que veioa ser depois “Liga dos Comunistas”, para a qual foi escrito o Manifesto Comunista.

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to a influência que leva Engels e Marx a dei-xarem o idealismo - como Engels sugere, mui-to tempo depois, no Feuerbach e o Fim da Filo-sofia Clássica Alemã –, mas, sobretudo, é queminicialmente lhes oferece uma fundação teóricapara o seu ideal ou dever (Sollen) de superação doanticomunitário individuo moderno e das doloro-sas contradições da modernidade.

No seu artigo “Para uma Crítica da Filosofiado Direito de Hegel. Introdução”, de 1843-44, Marxjá havia adotado a famosa máxima feuerbachianasegundo a qual “o homem é para o homem o sersupremo”. Publicado nos Anais Franco-Alemães, emfins do 1844, Marx o enviou, antes da publicação, aoautor da Essência do Cristianismo, como “testemu-nho de afeição e alta consideração”.14 Nos Manus-critos Econômicos e Filosóficos, de 1844, que per-maneceram inéditos durante a sua vida, Marx dei-xava também perceber a forte marca do humanismofeuerbachiano e tomava expressamente partido deFeuerbach, contra o “hegeliano” Bruno Bauer.15 Poressas e outras razões, não deve surpreender que,no momento da publicação dos artigos de Leipzig,Marx fosse considerado publicamente comoum seguidor de Feuerbach. Ele próprio vaiadmitir, mais de vinte anos depois, que o “cul-to de Feuerbach” (o culto da essência do ho-

14 Carta de Marx a Feuerbach, de 11-08-44 (M.E.W., vol 26).15 A perspectiva filosófica mais geral esboçada por Feuerbach em sua Crítica da

Filosofia Hegeliana, de 1939, antecipa aquela que Marx vai assumir depois, epré-configura o divisor de águas com a outra parte da crítica hegeliana.

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mem como novo ser supremo), estava presen-te a inda na Sagrada Famíl ia , a qual , nãoobstante, acrescentava defensivamente, nãotrazia nada de que seus autores devessem en-vergonhar-se.16 Não é de admirar que um ali-ado de Bruno Bauer, Gustav Julius, tratasseMarx como “feuerbachiano dogmático”, no ar-tigo “O Conflito da Igreja Humana Visível coma Igreja Humana Invisível”, cujo subtítulo é“Crítica da Crítica da Crítica Crítica”, obvia-mente uma réplica à Sagrada Família. 17 Na“Caracterização de Feuerbach”, o artigo novol.3 da Revista Trimestral de Wigand, é a vezde Bruno Bauer sugerir que O Único é umarefutação do pensamento do autor da Essên-cia do Cristianismo tal como representado porseus discípulos comunistas Marx, Engels eHess, que são ali tratados por Bauer como sim-ples “conseqüências de Feuerbach.”18 A Sa-grada Família, segundo Bauer, serviu para mos-

16 Cf. Carta de Marx a Engels, de 24-04-67 (M.E.W., vol 31).17 Gustav Julius, “Der Streit der sichtbaren mit der unsichtbaren Menschenkirche

oder Kritik der Kritik der Kritik Kritik”, Wigands Vierteliahrschrift, v. 2,Leipzig, 1845. Na Sagrada Família, segundo Julius, Marx opõe um “humanismocatólico”, realista, ao “humanismo protestante” de Bauer, idealista. Juliusconsidera Marx como o profeta feuerbachiano de uma “igreja visível”, queanatemiza o egoísmo em nome da noção religiosa de “ser genérico” (de umaessência humana comunitária) e endossa cegamente a concepção “dualista” dohomem, de Feuerbach, que impõe a “essência” como medida universal e objetiva,acima dos indivíduos.

18 No mesmo Charakteristik Ludwig Feuerbachs, Bauer estima que cabe à sua“crítica pura” a superação de ambas as posições - a de Stirner e a dos “comunistasfeuerbachianos” - como dogmáticas. É o caráter, digamos, liberal-dissolvedor,não-comunitário, desse anti-dogmatismo, que irrita Marx.

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trar a que conduz necessariamente o pensamentode Feuerbach, e o que este diria se tivesse de lu-tar contra sua “crítica pura” (que, para Marx, aocolocar a “consciência de si” no lugar do “homem”,tornou-se “o mais perigoso inimigo do humanismoreal na Alemanha”).19

O fato é que, ainda na Ideologia Alemã, Marx con-tinua a dar testemunho de uma significativa proxi-midade ao autor da Essência do Cristianismo, aomesmo tempo em que procura dele se distinguir.Não apenas não o trata por “São Ludwig” (canoni-zando-o jocosamente, como faz com “São Bruno” e“São Max”), como também dá claramente a enten-der que Feuerbach, mesmo naquele momento, nãoé considerado um opositor, mas é distinguido comoum aliado. Pois, ao criticar, na seção “Feuerbach”, anoção feuerbachiana do mundo como algo dado detodo o sempre (em oposição à fecunda idéiamarxiana, do mundo como atividade sensível), Marxdeclara que aquele é um erro que “Feuerbach con-tinua a partilhar com os nossos adversários”20 - doque se depreende que Feuerbach, apesar de tudo,não é um deles. Isso, contudo, não é o mais impor-tante. Mais significativo é que Marx, na IdeologiaAlemã, trata de assumir sem regatear a críticafeuerbachiana da religião - a tese geral da Essênciado Cristianismo, como a ele entende -, como pres-suposto do seu próprio desenvolvimento e da suaprópria crítica. Marx aponta, no “São Max” (seção

19 São as palavras com que Marx abre o prefácio da Sagrada Família.20 L’Idéologie Allemande, p.74.

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da Ideologia Alemã, sobre Stirner), que foiFeuerbach quem abriu para a chamada teoria ale-mã “a via para uma concepção materialista do mun-do.” Sendo que o avanço nessa direção estaria porsua vez indicado, diz Marx, nos seus próprios arti-gos nos Anais Franco-Alemães, embora ainda “coma ajuda do vocabulário filosófico tradicional” - istoé, na linguagem abertamente filosófica do nossohumanista comunitário. Como é mesmo queFeuerbach preparou o caminho para esse avanço?Simplesmente, diz a Ideologia Alemã, “mostrandoque o mundo religioso é o reflexo ilusório do mun-do terrestre”. Diante do que caberia agora passar auma grande questão remanescente: “Como aconte-ce que os homens tenham essas ilusões?”, questãoque, segundo Marx, remete essencialmente ao es-tudo do real material.21 No entanto, fica uma outraquestão: Se isso não é avançar ainda carregando nascostas Feuerbach, ou mesmo o “mundo religioso”(remanescente no piedoso - segundo seus adversá-rios - humanismo feuerbachiano).22

Para alguns estudiosos do assunto, o comunis-mo que Stirner critica no Único, sob o inusitado ró-

21 Id., p.268. Die deutsche Ideologie, p.1722 É interessante observar como essa passagem é análoga à que Marx apresenta,

em linguagem francamente humanista, no “Para uma Crítica da Filosofia doDireito de Hegel. Introdução”, um dos artigos dos Anais a que ele se refere naIdeologia Alemã. Nesse artigo, Marx diz que, “superada a crença no que estáalém da verdade, a missão histórica consiste em averiguar a verdade daquiloque nos circunda”. E adianta: “A crítica da religião desemboca na idéia dohomem como ser supremo para si próprio; com a conseqüência do imperativocategórico de mudar todas as relações em que o homem é um ser humilhado,subjugado, abandonado e desprezível” (Marx, “Zur Kritik der hegelschenRechtsphilosophie. Einleitung,” p.257,.262.

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tulo de “liberalismo social”, é essencialmente aque-le de Moses Hess - filosófico, humanista efeuerbachiano. De um modo geral, o comunismopré-marxiano, como o de Wilhelm Weitling ou deEtienne Cabet. Que nada teria a ver com a concep-ção “científica” que Karl Marx veio a desenvolverdepois. A opinião de Henri Arvon, por exemplo, éaproximadamente essa: O Único é uma refutaçãodo socialismo alemão de base ética - o “socialismoverdadeiro”, esposado por Hess, de inspiraçãohegeliano-feuerbachiana -, que Marx pode ter abra-çado anteriormente, mas que abandonou por com-pleto na Ideologia Alemã.23 Para o marxista ÉmileBottigelli, os erros de Moses Hess e do “socialismoverdadeiro” representam exatamente “os momen-tos da consciência passada de Marx e Engels”- anteriores a 1845.24 Se é assim, o eclético efeuerbachiano Hess, que é considerado o paido socialismo alemão, pode bem representarum elo de Marx com o seu passado e com a fi-losofia alemã. De modo que uma olhada à suaevolução e às relações entre ambos permitiriaperceber melhor a posição de Marx no quadroda crítica (anti-) hegeliana. No entanto, é pos-sível, além do mais, que isso mostre, não ape-

23 Arvon, “Concerning Marx’s Epistemological Break”. In: The Philosophical Forum,Boston University, v. 8, n 2-4, 1978, p. 173-185. Outros autores chegam aoponto de afirmar que, já na Questão Judaica, Marx não tinha nada a ver com asconcepções de Feuerbach, como, por exemplo, Paul Thomas, em Karl Marx andMarx Stirner (Political Theory, v. 3, n2, p.162). Minha leitura é outra.

24 Émile Bottigelli. A Gênese do Socialismo Científico, Lisboa, Estampa, 1974, p.213.

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nas um passado, mas deixe antes apreender,na expressão menos elaborada e sempre maisingênua de Hess, um fundo que ainda se man-tém, apesar de tudo, no pensamento de KarlMarx, mesmo muito depois de 1845. Hess, porexemplo, entendeu - e Engels confirma suaimpressão - que sua crítica de O Único e suaPropriedade coincidia inteiramente com a queMarx primeiro esboçou.25 Ora, a crítica de Hess(Die letzten Philosophen), que foi publicada, fazrestrições a Feuerbach por sua posição inter-mediária ou ambígua, não entre materialismoe idealismo, como Marx vai-se exprimir publi-camente, na Ideologia Alemã, mas entre o in-dividualismo e as pretensões da subjetividademoderna, de um lado, e, de outro, o socialismoe a “comunidade” como dever-ser,26 que deve-riam resolver as contradições do mundo mo-derno e levar a bom termo a obra do Esclareci-mento, como sua superação.

Ademais de sua extraordinária capacidade teó-rica, Marx tinha uma habilidade polêmica muitosuperior à de seu companheiro de comunismo,Hess, que, como autodidata, não passou pela sofis-ticada formação acadêmica do nosso doutor em fi-

25 Hess se refere à resposta de Marx à carta de Engels, de novembro de 1844, estaúltima com comentários relativamente simpáticos ao argumento stirneriano. Acarta seguinte de Engels a Marx, onde aqueles comentários já foram abandonados,confirma a coincidência alegada por Hess (ver M.E.W., vol 27).

26 “Die letzten Philosophen”, republicado em Löwith, Die hegelsche Linke. Versãoem inglês: “The Recent Philosophers”, em The Young Hegelians, an Anthology,L. Stepelevich (ed.).

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losofia. Acrescente-se que Marx teve o benefíciode formular seu contra-ataque a Stirner-Bauer esua crítica defensiva a Feuerbach – os quais, so-mados, constituem o principal da Ideologia Alemã- com mais tempo e por sobre um material de ata-ques e respostas que lhe propiciou desenvolver seupensamento um passo adiante e resguardar ou mes-mo encobrir eventuais pontos fracos.27 Por essa ra-zão, se olhar em torno e escutar o que dizem osopositores de Marx naquele momento é não só umaexigência de justiça elementar como também da maiscomezinha objetividade, olhar para os aliados que eleestá deixando para trás - como Hess e Feuerbach -pode ser igualmente revelador dos aspectos ocul-tos e ocultados da peleja pelos rumos da críticahegeliana e pela definição da tarefa da moderni-dade. É possível que Marx apareça então com umparentesco mais próximo ou mesmo mais profun-do com tais aliados. De modo a que se o perceba,ainda na Ideologia Alemã, no mesmo campo e nomesmo “partido de Feuerbach”, agora como seurepresentante mais conseqüente.

Que o “socialista verdadeiro” Moses Hess foi um“companheiro de viagem” de Marx e, ainda no fimdos anos 1860, também membro da Primeira In-ternacional, são fatos. Bem como é fato que o pró-prio Ludwig Feuerbach morreu como um amigo

27 É verdade que ninguém naquela ocasião lhe pôde responder (pois A IdeologiaAlemã só veio a ser publicada já no séc. XX), e que a sua ficou sendo a últimapalavra – e, para nós, praticamente a única - sobre o assunto.

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celebrado do mesmo partido - político - de Marx,o partido social-democrata alemão.28 Mas o queisso pode significar em termos filosóficos? Desdeo seu encontro no segundo semestre de 1841, Hesssempre admirou a genialidade e a erudição de seujovem amigo Karl Heinrich Marx, para quemantevia uma carreira universitária e jornalísticade grande repercussão.29 A partir daquela data,até 1843, ambos colaboraram na Gazeta Renana,da qual Hess foi um dos fundadores e Marx che-gou a ser o editor. Depois disso estiveram nova-mente juntos nos Anais Franco-Alemães, publi-cados em 1844, em Paris, onde Hess, que tinhachegado antes à França, recebera o amigo de bra-ços abertos. Nos Manuscritos de 44, ele mereceuos elogios de Marx, sendo colocado ao lado deWeitling e Engels - que também incursionaramnesse terreno antes de Marx - como os socialistasalemães que produziram até àquela ocasião algode “substancial” e de “original” sobre a economia

28 “Milhares de trabalhadores, em grande parte militantes do partido socialdemocrata, ao qual Feuerbach aderira, acompanharam-no à sua última morada”(Arvon, Ludwig Feuerbach ou la transformation du sacré, p.17).

29 “Tanto pela sua tendência como pela sua formação espiritual filosófica”, KarlMarx, na opinião do entusiasmado Moses Hess, ultrapassa “não apenas Strauss,mas também Feuerbach”. Mais do que isso: “Pense em Rousseau, Voltaire,Holbach, Lessing, Heine e Hegel reunidos numa só pessoa e você terá o Dr.Marx” (Nicolai Lápine, O Jovem Marx, p. 78). Para um olhar atento, a lista decompanhias em que Hess põe Marx não constitui apenas um cumprimento à suagrandeza, mas uma indicação das posições filosóficas com as quais se alinham ouque pretendem sintetizar/superar.

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política burguesa.30 Em seguida à publicação doÚnico e Sua Propriedade e os artigos de Leipzig,nosso “rabino comunista”, como Hess foi apelida-do, saiu imediatamente em sua própria defesa ena de Marx, assumindo logo, sobre o livro deStirner, uma posição muito próxima, ou mesmoidêntica, à do seu amigo.31 E em meados de 1846,em Bruxelas, lá estava Hess novamente apoiandoMarx, na sua polêmica contra o comunismo “cris-tão”, mas revolucionário, de Weitling. Da mesmamaneira como o apoiaria, depois, na peleja contrao anarquista Michail Bakúnin, no interior da Pri-meira Internacional Comunista.

Tendo em vista a evolução do pensamento deHess, Bottigelli afirma que vários teóricos alemãesdo socialismo “seguiam a via que Marx havia per-corrido e da qual depois se afastara”.32 Isso, noentanto, é uma formulação no mínimo imprecisa.Embora permanecendo a vida toda preso às cha-madas posições socialistas “filosóficas”, “idealis-tas” e “éticas”, explicitamente normativas, Hess

30 Cf. Karl Marx, Manuscrits de 1844, Editions Sociales, p.2. Nos seus elogios,Marx estava certamente se referindo aos artigos em que Moses Hess estudavaas categorias do ter e do dinheiro. Hess, que era seis anos mais velho, proclamou-se comunista bem antes de Marx, buscando a partir daí combinar seu exame dasociedade com a filosofia hegeliana (Bottigelli, p. 211). Ele acreditava terconvencido de seu ponto de vista o jovem Engels, em companhia do qual chegaraa fazer propaganda do seu ideário comum, da mesma maneira que em companhiade Bakúnin.

31 A resposta de Moses Hess a Max Stirner, como A Ideologia Alemã, traz tambémsua crítica a Bauer e a Feuerbach e, como vimos, intitula-se “Os Filósofos MaisRecentes”.

32 Bottigelli, opus cit., p. 211.

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antecipou-se a Marx na tomada de posição a favordo comunismo, na busca de uma base teórica paraeste, e na investigação crítica acerca da economiapolítica. Como também, aparentemente, anteci-pou-se até mesmo na crítica ao pensamento deFeuerbach. Hess foi um dos patrocinadores do “so-cialismo verdadeiro”, humanista e feuerbachiano-hegeliano, mas, no seu artigo “Sobre o MovimentoSocialista na Alemanha”, escrito em meados de1844 e publicado em 1845, já observava que, quan-do “Feuerbach diz que a essência de Deus é a es-sência do homem e que a teologia é antropologia,deixa de acrescentar que a essência do homem é oser social e a sociedade”. Ou seja, deixa de dizerque a “antropologia” – isto é, o humanismoessencialista feuerbachiano – “é socialismo”. Domodo como está formulada por Feuerbach,dissociada dessa tradução política, acha Hess, anoção de ser genérico ou essência genérica perma-nece ainda “bastante mística”.33

O próprio “comunista cristão” WilhelmChristian Weitling, cujas posições estiveram de um

33 Daí Nicholas Lobkowicz concluir que foi Hess - e não o seu famoso companheiro- o “primeiro a superar o culto (feuerbachiano) do homem abstrato” (Lobkowicz,“Karl Marx and Max Stirner”, in Demythologizing, Marxism, p.66n). Pelo quese pode ver, então, temos um conjunto de posições que parecem formar, emdireção à Ideologia Alemã, uma gradação de tons, entre o róseo “socialismoidealista” e o rubro “socialismo científico”. Um continuum, em que Marx nãorepresenta sempre, nem tampouco Engels, a vanguarda clarividente ou o expoentedestacado, salvo numa história contada do fim para o princípio. Nesse conjunto,as diversas posições antes se revezam e se misturam, tanto quanto se distinguem,ao longo do curso de evolução do pensamento de um dos dois partidos da críticahegeliana, e até entre ambos.

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modo geral mais afastadas das de Marx, fora sau-dado elogiosamente por este, ainda no início de1844, pela sua entrada na cena literária do prole-tariado alemão, com Garantias de Harmonias eda Liberdade (1842), sua principal obra. Apesarde “igualitarista” e “utópico”, o alfaiate Weitling,que em seguida escreveu O Evangelho de um Po-bre Pecador, participou, com Marx, em Bruxe-las, do Comitê de Correspondência Comunista,onde os dois travaram calorosas discussões. Echegou a produzir uma crítica das utopias querecebeu depois a apreciação favorável de auto-res marxistas.34 A Liga das Justos, que foi trans-formada em Liga dos Comunistas, esteve de iní-cio sob a influência do comunismo desse arte-são,35 que, em 1843, tentou recrutar, FriedrichEngels, que recusou o convite em função do ca-ráter secreto e conspirativo da organização. Maisde um ano depois, entretanto, Engels ainda sereconhecia no ideal da “comunhão de bens” (quefazia parte do arsenal do “comunismo cristão” ejá fora criticado por Marx) e se gabava de ter,com sua propaganda comunista, conquistado umnúmero considerável de burgueses para a cau-sa.36 Em fins de 1844, é Engels - que parece, nes-sa questão, ter tido uma atitude mais decidida

34 Ver, por ex., Bottigelli, op.cit., p.208.35 Como se pode ver, na divisa da Liga, “Todos os homens são irmãos”,

substituída depois por “Trabalhadores de todos os países, uni-vos”.36 Ibid., ibid., p.209.

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do que Marx - quem critica as concepções deMoses Hess como idealistas e cristãs, associan-do as debilidades do “rabino comunista” à suaabsoluta rejeição do empirismo e das teses deMax Stirner.37

Moses Hess e W. Christian Weitling são os re-presentantes alemães do que Max Stirner chama,no Único, de “liberalismo social” - o comunismo e osocialismo de então. Sob tal rótulo, Stirner criticaainda o francês Pierre-Joseph Proudhon, até entãoaliado de Marx. São eles efetivamente os “liberaissociais” que Stirner teria de considerar na sua crí-tica, mas o que ele diz atinge igualmente Marx eEngels. Quanto a este, seu escrito mais importanteaté àquela oportunidade, o Esboço de Crítica daEconomia Política, publicando nos Anais Franco-Alemães em 1844, não mereceu a atenção expressade Stirner nem de Bauer. Tal trabalho, com queEngels se associou aos esforços de investigação deWeitling e Hess, Marx vai ainda considerar, no pre-fácio de sua Contribuição à Crítica da EconomiaPolítica, de 1859, como um “brilhante ensaio”, quevoltará a elogiar em O Capital. O ensaio contém,no entanto, uma condenação da economia políticaburguesa como “egoísta” e uma denúncia da pro-priedade privada pela “degradação” a que conduz ohomem.38 Quanto a Marx, podemos dizer que, nos

37 Cf. carta de Engels a Marx, de 19-11-44, M.E.W., v.27.38 Engels, “Outlines of a Critique of Political Economy” (em Stepelevich, The

Young Hegelians: an Anthology), p.278ss.

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Anais Franco-Alemães, ele ainda está bêbado dohomem feuerbachiano, e o rápido aceno que, no ar-tigo de Leipzig, Stirner lhe faz - e não propriamen-te como socialista ou comunista - parece efetiva-mente corresponder a sua imagem pública39 . As-sim, ao menos naquela época, a marca ética ehumanista, feuerbachiana, de todos esses comunis-tas e socialistas é bem visível, embora nenhum de-les precise ser chamado de feuerbachiano integral.Marx não é uma exceção, e Hess está longe de serum retardatário contumaz.

O autodidata Moses Hess, que, além de pai dosocialismo alemão, foi também “fundador do sio-nismo teórico”,40 publicou seu primeiro livro em1837, anonimamente. Era uma História Sagradada Humanidade, que ele, ainda no título, atribuíaa “um discípulo de Espinoza”. Em 1841, ele publi-cou A Triarquia Européia,41 em que, na seqüênciade outro jovem hegeliano, August Cieszkowiski,defendia uma “filosofia da ação” - que deveria con-duzir a uma sociedade comunista - contra o passi-vo e retrospectivo hegelianismo de direita. Foi comesse livro que Hess conquistou o reconhecimentodos integrantes do campo da crítica hegeliana emgeral. Depois disso, em 1844, teve uma profundainfluência sobre Marx, com seu trabalho Sobre a

39 Maximilien Rubel entende que permanece “uma forte tendência”, em Marx eEngels, mesmo nas obras posteriores, “para outorgar ao socialismo umamotivação ética” (Rubel, Karl Marx: Ensayo de Biografia Intelectual, p.139).

40 Stepelevich, op. cit., p.357.41 Die europaeische Triarchie, Leipzig, Wigand, 1941.

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Essência do Dinheiro. É a partir de elementos des-sa natureza que alguns autores, como Zvi Rosen, che-gam a considerar que foi antes Hess quem desbra-vou o caminho para Marx, e não o contrário.42 Se-gundo o mesmo Zvi Rosen, foi Hess que em primeirolugar (em 1843) chegou à noção do proletariado comoa classe revolucionária.43

Engels assinala que Hess foi o “primeiro comu-nista do Partido”, e também “o primeiro que che-gou ao comunismo pelo caminho da filosofia”. Elepróprio teria sido convencido por Hess de que osocialismo era a consequência lógica dohegelianismo. Como diriam outros, o comunismojá estava em Hegel, sob forma “esotérica”.44 De-pois do desencadeamento da crítica ao “socialis-mo verdadeiro”, por seus correligionários mais“científicos”, Hess empenhou-se mais a fundo noestudo da economia política,45 a ponto de seu es-crito posterior, “As Conseqüências da Revoluçãodo Proletariado”(1847), ser considerado por SidneyHook como uma análise essencialmente marxis-

42 Zvi Rosen, “The attitude of Hess to French Socialism and His Plans for Publishinga Series of Socialist Writings with Marx and Engels”, p. 320. vid McLellansustenta uma opinião semelhante, em Marx y los Jovenes Hegelianos).

43 Ao contrário do que dizem, por exemplo, historiadores do marxismo comoAuguste Cornu e Wolfgand Moenke.

44 Como a própria crítica da economia política, o comunismo também já se encontrariano interior do pensamento de Hegel, sob forma “esotérica”, e que assim Marx o teriaentendido. Essa é, por exemplo, a opinião de Robert Tucker, em Philosophy andMyth in Karl Marx, p.153.

45 Cf. carta de Hess a Marx, de 28-7-46, em M.E.W., v. 28.46 Por isso, Hook entende que as críticas a Hess no Manifesto Comunista não são

exatamente justas (Hook, From Hegel to Marx, p.186).

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ta.46 Hess teria sido, sucessiva ou ecleticamente,espinoziano, hegeliano, fichteano, feuerbachianoe marxiano, e essa confusão teórica certamentecontribuiu para diminuir a sua imagem. Nãoobstante isso, se ele chegou ao comunismo pela fi-losofia, assim também ocorreu com Marx, e aindacom Engels, os quais, quando formularam sua con-cepção materialistta da história, já levavam consi-go o ideal socialista a que ela deveria servir – comodisse Marx, “o imperativo categórico” de mudartodas as relações não conformes ao “humano”.

Sob esse ângulo, da “filosofia clássica alemã” aohumanismo e a sua tradução prática e política, nocomunismo, temos uma progressiva encarnação doideal comunitário, do homem genérico, que inclui-ria o próprio Marx em seu movimento.47 Na Situa-ção da Classe Operária na Inglaterra (1845), quefoi escrito logo antes da Ideologia Alemã, Engelsadmite abertamente que não foi o estudo do mun-do real que despertou nos “teóricos alemães” o de-sejo de “transformar a feia realidade”. Eles chega-ram ao comunismo exatamente “por meio da su-peração feuerbachiana da filosofia de Hegel”. Tan-tos anos mais tarde, em 1886, no Feuerbach e oFim da Filosofia Clássica Alemã, de Engels, é oser-genérico em negativo, o proletariado, como au-têntico “herdeiro da filosofia clássica alemã”, quedeve ainda abraçar esse legado e conduzi-lo à sua

47 “Na boca dos discípulos de Hegel, a doutrina (hegeliana) tomou uma forma maishumana” - é o que Engels atesta, em 1841, em “Schelling e a Revelação” (Marx& Engels, Opere Complete, 1980, vol. II, p.192).

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realização. Para Hegel, na conclusão de sua Histó-ria da Filosofia, “o objetivo e tarefa da filosofia éreconciliar o pensamento com a realidade”; para acrítica anti-hegeliana feuerbachiana, poder-se-iaaplicar o inverso. Hegel idealizou o mundo exis-tente, Marx e seus aliados feuerbachianos tratari-am de realizar o ideal de superação das contradi-ções da modernidade. Mesmo que a conciliaçãomarxiana do real com o ideal (e a dos outros tam-bém) queira ser uma conciliação da realidade con-sigo mesma.

Quando Feuerbach concluiu sua dissertação dedoutorado, em 1828, enviou a Hegel uma cópia euma carta em que, pretendendo acompanhar omestre, falava da tarefa dos novos tempos, deencarnar a razão no mundo, e fazer vir um futurode racionalidade para a humanidade. Muito de-pois, no primeiro parágrafo de seus “Princípios daFilosofia do Futuro”, ele insistia em que a tarefados tempos modernos tem sido “a realização e ahumanização da teologia em antropologia”, isto é,em humanismo comunitarista. Quanto a Hess, nasua réplica a Bauer e Stirner (“Os Mais RecentesFilósofos”), ele declara que aquilo que o socialis-mo pretende é a realização-abolição da filosofia48 -daquela filosofia que, em plena modernidade, re-cusando o empirismo, não abre mão de realizar,no mundo, o ideal. E a linguagem de Hess é, nesse

48 Diante disso, Stirner não perdoa: “Hess poderia acrescentar que o socialismoquer não somente “tornar real a filosofia”, como também a religião e oCristianismo” (“Rezensenten Stirners”).

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caso, bem aquela de Marx, na Crítica da Filosofiado Direito de Hegel. Mesmo com a ressalva mate-rialista, aí, de que “a teoria só se realiza numa na-ção na medida em que é a realização de suas ne-cessidades”. É esse, então, o “partido filosófico” aque se filia Marx?

Voltando agora ao partido adversário, o da cons-ciência de si, oposto à essência genérica como me-dida objetiva, e, a esse respeito, anti-substancialistae dissolvedor, ele dera seus primeiros passos aindaassociado ao programa comum, da críticahegeliana, de tradução ateísta e humanizante(antropologizante) do hegelianismo original. E, noplano político, ainda associado à plataforma co-mum de oposição ao ancién regime prussiano, aofeudalismo e à reação religiosa. No caso desse par-tido, porém, seu impulso emancipador, deradicalização da idéia iluminista de autonomia dosujeito, levou a crítica a investir contra os própri-os pressupostos da oposição política, em nome desua pureza e radicalidade, a favor da absoluta li-berdade da consciência de si esclarecida. E isso,em termos filosóficos, correspondia, segundo essepartido “livre”, a uma total superação do “pontode vista da substância”, ainda presente no interi-or do hegelianismo. Agora, a “crítica pura” inves-te igualmente contra o liberalismo e o comunis-mo, e contra o que julga ser seu dogma: o povo, oua “massa”, por ela considerada como imersa na ma-terialidade dos limitados interesses particulares.Para ela, seria ingenuidade fazer da massa o su-porte do projeto, emancipador, da crítica.

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É contra essas teses que Marx (com Engels) selevanta, na Sagrada Família e na Ideologia Ale-mã, contra o “concílio de Leipzig”. Denunciandoque, com sua alegada vitória “sobre o espinozismo”ou sobre a substância, Bauer apenas assume ple-namente o idealismo, radicalizando a deformaçãoidealista de Hegel e recaindo no “espiritualismocristão” - o arqui-inimigo do “humanismo real”.“Renunciando à substância”, Bauer chegaria “a umoutro monstro metafísico”: o sujeito entendidocomo ciosa consciência de si, como o homem su-postamente separado de seus laços materiais/co-munitários.49 Ora, tudo isso soa certamente mui-to materialista e ateu, mas aqui Marx está defen-dendo também sua preferência pela tradução“substancialista” do espírito hegeliano na “huma-nidade” e na “sociedade”, em vez de na soberana edissolvedora subjetividade moderna, que resulta-rá ser, em última análise, com Max Stirner, o in-divíduo dono de si e sem medida. Marx está igual-mente optando decididamente pelo ponto de vistada substância, contra o de um crítica radical – diría-mos hoje – anti-essencialista e anti-substancialista.

Por trás da oposição substância vs. consciênciade si, ou materialismo vs. idealismo, está uma ou-tra: a de um ponto de vista “positivo” (solidamen-te construtivo; fundacionista, diríamos hoje), emoposição a um ponto de vista dissolvedor (o da sub-jetividade livre) - para Marx, quase-niilista. Dan-

49 Marx & Engels, La Sainte Famille, p.163-164.

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do um passo além de Bruno Bauer, Max Stirner,inicialmente baueriano, surpreenderá Marx e em-baraçará sua refutação de tudo isso como“espiritualismo”, avançando, no Único e no artigode Leipzig, da consciência de si, para um capri-choso eu singular corpóreo, sem essência ou subs-tância. Stirner, pode-se dizer, traduz o espíritoabsoluto e a consciência de si no indivíduo corpóreoparticular tal queal ele existe. E Marx, o espíritoabsoluto e o ser-genérico no corpo social e no indi-víduo corpóreo social, antecipado nas relaçõesmateriais (de produção), enquanto genéricas, nãoparticularistas, não pessoais, trazidas pelamodernidade e pelo avanço do capitalismo. Nãoobstante isso, mesmo sob esses novos avatares, aluta entre a medida substancial e a autônoma cons-ciência de si vai ainda estar presente na concep-ção com que Marx supostamente supera Hegel eFeuerbach, e a própria filosofia clássica alemã.

Na obra de ruptura que é A Ideologia Alemã, naseção sobre Bruno Bauer (intitulada “Sankt Bruno”),Marx procura defender seu aliado, Feuerbach, con-tra a pecha de “cavaleiro da substância” ou da Hilé(matéria).50 Bruno Bauer, no seu ataque leipzigianoao então mestre materialista de Marx, dissera que,ou “a consciência de si consome-se no fogo da subs-tância”, ou “é preciso mostrar que a personalidade é

50 Marx & Engels, Die Deustsche Ideologie,p..82,79. Ou L’ideologie Allamande,p.116,112.

51 Bauer, Charakteristik Ludwig Feuerbachs, p.86-88. Citado por Marx na IdeologiaAlemã (Ed. Sociales, p.116; Dietz, p.82).

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a causa primeira de seus atributos e de sua essên-cia”, isto é, “que o conceito de personalidade implicaque ela põe seus próprios limites”.51 E a radicalizaçãostirneriana lhe parece – a Bauer – “um esforço real”,ainda que equivocado, “para aniquilar radicalmen-te a substância”.52 Mais do que o faz o próprioFeuerbach, no entanto, Karl Marx, sem o admitir,persegue na Ideologia Alemã precisamente a pri-meira solução (“substancialista”), mesmo que paraisso deva abrir inteiramente mão da “personalida-de livre” e da transcendência do “sujeito”. Pois qual-quer titubeio ou concessão nesse terreno parecedeixar uma brecha que pode ser forçada pelo “indi-vidualismo” e pelo “niilismo”, modernos, da consci-ência de si. Num primeiro momento, no “Sankt Bru-no”, Marx limita-se a atacar a proposição de Bauerpor seu fraseado hegeliano, e a considerar o pro-blema como uma questão “interna à especulaçãohegeliana”.53 Em seguida, porém, reconhece que afilosofia baueriana da consciência de si, na formaque foi tomando, evoluiu para uma filosofia da per-sonalidade que trata, na mesma linha de Stirner,de apresentar pretensiosamente o indivíduo “comosua própria obra”.54

Voltemos, então, ao começo, para concluir. Comosabemos, na “Introdução à Crítica da Filosofia doDireito de Hegel”, Marx apressara-se em dar porencerrada a crítica da religião, enquanto ela deixa-

52 Charakteristik..., p. 126.53 Die deutsche Ideologie, p. 82; L‘Idéologie Allemande, p.116-7.54 Id.,respectivamente, p. 83 e p. 118.

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va ainda subsistir um fundamento – mais - sólido,universal e objetivo, “positivo” e “substancial”, umamedida universal e objetiva: o “homem”. “No quediz respeito à Alemanha”, Marx afirma, “a críticaradical da religião está no essencial concluída”; “serradical não é outra coisa senão atacar o problemapela raiz”, e “na raiz” – felizmente – “está o homem”.Assim, a crítica da religião, no seu desenvolvimen-to, não deságua no nada ou na consciência de si; eladesemboca no homem do “humanismo real”, “de-semboca na doutrina de que o homem é o ser supre-mo para o homem”.55 A preferência de Marx pelacrítica feuerbachiana da religião – pois é dela quese trata- decorre, portanto, de ser ela “positiva” enão lhe deixar sem um “ser supremo”, um funda-mento forte, um valor universal e positivo. “O radi-calismo da teoria alemã” – Marx argüi pro domosua – está em saber partir da “superação positiva(grifo J.C.S.) da religião”.56 Nos Manuscritos de 44,no prefácio, ele refere-se a si mesmo e a Feuerbachcomo “críticos positivos”, em oposição ao crítico “ab-soluto” que é Bruno Bauer.57 E admite que “a críti-

55 Cf. Marx, Karl. Zur Kritik der hegelsches Rechsphilosophie. Einleitung. In:Loewith, Karl, Die hegelsche Linke. Stuttgart: Formman, 1962. p.262. Para umatradução em português, ver Marx, K. A Questão judaica. Rio de Janeiro:Laemmert, 1969, p.117ss.

56 Id., ibid.57 Marx, Manuscrits de 1844, p.99.58 Marx remete aí expressamente aos Princípios da Filosofia do Futuro (1843), e às

“Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia” (1842). Nestas últimas, Feuerbachjá estabelecia as bases para o que ele mesmo chama de uma filosofia “positiva”,cujo novo princípio seria o “homem”, enquanto ser essencialmente genérico ecomunitário (§§ 58 e 60). Ambos os textos estão reproduzidos nos ManifestesPhilosophiques de Feuerbach, editados por Louis Althusser.

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ca positiva em geral” – incluindo, nota bene, a pró-pria “crítica da economia política” – deve seu fun-damento “às descobertas de Feuerbach”,58 que, aopromover a superação positiva das contradições dohegelianismo e da modernidade, é o fundador da“crítica humanista e naturalista positiva”.59 Nãoobstante procurar fugir à discussão nesses termos,Marx, ainda na Ideologia Alemã, acaba por decla-rar expressamente que repudia a supressão de um,commo ele mesmo diz, “tertium comparationis”,universal e objetivo, para os indivíduos. Depois deBauer, Marx acrescenta, com reprovação, “nossoinocente Sancho (Max Stirner), tirando o homemda cabeça, não deixa qualquer critério objetivo paraos indivíduos”.60 Algo de inaceitável para a críticapositiva marxiana, e para a superaçãocomunitarista da modernidade liberal.

59 Cf. Marx, Manuscrits..., p.2-4. Enquanto isso, para Bauer, fora de sua crítica“pura”, toda outra crítica padece dos limites da crítica do século XVIII, ou seja,dos limites do materialismo (substancialista) francês (id., ibid.).

60 Die deutsche Ideologie, p. 417-18; L‘Idéologie Allemande, p. 475-76.60 Die deutscheIdeologie, p. 417-18; L‘Idéologie Allemande, p. 475-76.

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BENEDETTO CROCE: Entre a Filosofiada História e a Teoria da Historiografia

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s controvérsias e ambigüidades emtorno da Filosofia da História, pro-longam-se por quase duzentos e cin-

qüenta anos. Sabe-se que a expressão foi cunhadapioneiramente por Voltaire (1694-1778), na obraEssai sur les mouers et l’esprit des nations (1756),para designar o novo gênero histórico de inspira-ção iluminista, que se debruçava sobre a interpre-tação dos acontecimentos históricos, das mudan-ças, da sucessão dos fatos e, sobretudo, da origeme da evolução das sociedades das nações.1 Toda-via, no contexto da historiografia dos séculos XIXe XX, o termo foi aplicado, indiscriminadamente,a uma série de planos especulativos acerca dogênero histórico, construídos por uma miríade deautores tão diversos quanto Tucídides, Santo Agos-tinho, Ibn Khaldun, Bossuet, Vico, Hegel, Marx,Gramsci, Spengler, Toynbee e, inclusive, Croce.Assim, sob o ponto de vista de diversos estudiososcontemporâneos, as chamadas “filosofias da histó-

1 Cf. RAMA, Carlos M. Teoria da História. Coimbra: Almedina, 1980, p. 49.

A

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ria” possuem em comum - na maioria das vezes - opropósito de oferecer uma exposição completa doprocesso histórico, sob uma perspectiva finalista,de forma a se poder ver que aquele “faz sentido”.2

Entretanto, a noção de “sentido”, aplicada aopassado, apresenta nuanças obscuras e suscetíveisdas mais variadas interpretações. Uma coisa é su-por que a história tem um significado, no sentidode que tudo o que aconteceu ou irá acontecer foi(ou é) anteriormente ordenado por intermédio dealguma “mão invisível” – a exemplo da noção deProvidência de Vico ou da astúcia da razãohegeliana; outra, bem diferente, é apenas sugerirque o curso da história, até a atualidade, manifes-tou uma tendência em determinada direção e (tal-vez) prever, com base na inclinação observada,como será o seu desenvolvimento futuro; e, final-mente, algo mais distinto ainda, é pretender queos acontecimentos históricos se ajustem a leis cau-sais particulares, em função das quais se podemexplicar os acontecimentos do passado e predizeras modificações do futuro.3

Assim, mesmo nos tempos atuais, existe umaextrema dificuldade em delimitar uma fronteiranítida entre o gênero histórico em questão e ou-tros domínios ligados à especulação ou à investi-gação científica, a exemplo da sociologia, da meto-dologia ou da história propriamente dita. Em se-

2 Cf. GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995,p. 7-8. Ver também LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed.Unicamp, 1994, p. 77.

3 Cf. GARDINER, Op. cit., p. 8.

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gundo lugar, seria enganoso se falar da existênciade um campo de estudo único denominado “A Filo-sofia da História”, para a construção do qual diver-sos pensadores, localizados em contextos espaciaise temporais distintos, deram suas respectivas con-tribuições. Portanto, existiriam filosofias da (ou,ainda, sobre a) história.4

A própria ambigüidade do termo em discussãorevela que as fronteiras entre a filosofia e a histó-ria ainda não estão estritamente traçadas ou, emúltima hipótese, não são passíveis de delimitação.Por outro lado, tanto o desconhecimento dos tra-balhos históricos por parte dos filósofos da histó-ria quanto o correspondente desprezo nutrido pordiversos historiadores ao conhecimento filosóficonão facilitaram o diálogo entre os dois campos emdiscussão.5

I

A partir das observações supracitadas, resta-nos, então, discutir, rapidamente, alguns elemen-tos da complexa relação entre Benedetto Croce,uma explosiva mistura de historiador e sofista, ea filosofia da história. Cabe-nos considerar, inici-almente, que a crítica croceana ao gênero históri-co em discussão emergiu nos seus primeiros es-critos teóricos, a exemplo do ensaio Sulla forma

4 Idem, ibidem.5 Cf. LE GOFF, Op. cit., p. 20, 77.

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scientifica del materialismo storico (1896), no quala expressão “fazer filosofia da história” foi utiliza-da como sinônimo para a elaboração de históriafantástica, artificial e, por vezes, tendenciosa. Emsubstituição às filosofias da história - identificadascom a redução conceitual dos diversos elementosda realidade histórica às noções de Providência edesenvolvimento - Croce propunha uma atitudecrítica frente ao conhecimento histórico, um filo-sofar sobre a história. Esse juízo anunciava, pre-cocemente, uma distinção que se transformaria emum elemento central da obra croceana: a diferen-ça entre a filosofia da história e a teoria dahistoriografia. No que diz respeito à primeira, iden-tificava-se com a descrição de uma história uni-versal, ao feitio hegeliano, e com o apriorismo, istoé, a dedução do desenvolvimento histórico a par-tir das noções de necessidade natural ou mecâni-ca. Já a segunda, relacionava-se às reflexões decunho teórico-metodológicas e aos demais proble-mas relacionados à prática historiográfica.6

Um exame mais detalhado das principais tesessustentadas pelo jovem Croce acerca da filosofia dahistória pode ser encontrado no volume Materialis-mo storico e economia marxistica (1900). Assim, aocontrário do seu mestre Antônio Labriola, que via

6 Cf. CROCE, Benedetto. Materialismo histórico e economia marxista. São Paulo:IPÊ, 1948, p. 18-9. Consultar também CRISTOFOLINI, Paolo. Las cienciashumanas y la filosofía da historia entre Vico y Marx (Croce, Labriola, Sorel y la“filosofía da historia”). In: TAGLIACOZZO, Giorgio (compilador). Vico y Marx:afinidades y contrastes. México: Fondo de Cultura Económico, 1990, p. 311-2.

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no materialismo histórico a última e derradeira fi-losofia da história, Croce vislumbrava exatamenteo inverso: o chamado materialismo histórico não éuma filosofia da história. Lembrava que mesmo aliteratura recente que aparecia enquadrada sob essarubrica, da qual a obra de Labriola era um notávelexemplo, não desejava ressuscitar o antigo gênero.As obras que se apresentavam sob o título de Filo-sofia da História, objetivavam apenas uma atitudeque se reduzia a um filosofar sobre a história.7

Para Croce, o materialismo histórico, na formaapresentada por Labriola, liberto das concepçõesmetafísicas e abstratas, abandonou praticamentetoda a pretensão de estabelecer “a lei da história”,de encontrar o conceito a que se poderiam reduziros complexos fatos históricos. Assim, o melhor elo-gio que se podia tributar à concepção materialistada história não seria denominá-la “a última e defi-nitiva filosofia da história”, mas afirmar francamen-te: ela “não é uma filosofia da história”.8

No que diz respeito à interpretação concedida porCroce à teoria da historiografia, uma aproximaçãosugestiva pode ser vislumbrada no ensaio Les étudesrélatives à la théorie de l’histoire en Italie pendant lesquinze dernières années (1902). Nesse texto, emborarepudiasse a tentativa de construir qualquer filoso-fia da história, nosso autor não se opunha ao que de-nominava teoria da historiografia. No trabalho emdiscussão, o pensador italiano argumentou que a teo-

7 Cf. CROCE, Op. cit., p. 18.8 Idem, p. 20-4.

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ria da historiografia (ou metodologia histórica) se pre-ocupava em estabelecer os critérios através dos quaisos historiadores davam às suas narrativas forma, uni-dade e conteúdo apropriados. Por seu lado, a filoso-fia da história buscava descobrir supostas leis pelasquais as ações humanas assumiam necessariamentedeterminadas formas em tempos e lugares distintos.9

II

A crítica croceana às filosofias da história atin-giu seu ponto culminante em Teoria e storia dellastoriografia (1915). O editor alemão Mohr havia so-licitado do autor um livro sobre “filosofia da histó-ria”. Recebeu, em contrapartida, um trabalho que pro-clamou a “morte” daquele gênero histórico e a sua“dissolução” no âmago da historiografia. Assim, paraCroce, a própria concepção de uma filosofia da his-tória trazia em si um contra-senso: não existia a filo-sofia da história, mas história que é filosofia e vice-versa. Entretanto, sublinhava, mesmo após a “mor-te” da filosofia da história, nada impedia que se con-tinuasse falando de um filosofar sobre a história, paraexpressar a exigência de determinada elaboraçãoteórica a respeito de dado problema histórico. Con-tudo, doravante, as investigações sobre gnoseologiahistórica se resolveriam não mais em uma filosofiada história, mas da historiografia.10

9 Cf. CROCE, B. Primi saggi. Bari: Laterza, 1951. Ver ainda WHITE, Hayden. O queestá vivo e o que está morto na crítica de Croce a Vico. In: _____. Trópicos dodiscurso. São Paulo: Edusp, 1994, p. 224.

10 Cf. CROCE, B. Teoria e storia della storiografia. Bari: Laterza, 1941, 53-69.

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Contra a filosofia da história, argumentou, ain-da, que esse gênero representava a concepçãotranscendente da história (teleológica e utópica),ao tempo em que preconizou a sua dissolução noâmbito da historiografia. Sustentando a identida-de entre filosofia e história e o caráter simples-mente metodológico representado pela primeiraface à segunda, Croce destacou que a filosofia dahistória não era senão um momento negativo eabstrato, que jazia em sua positividade, de manei-ra idêntica a todas as demais doutrinas transcen-dentes. Contudo, nada impossibilitava que se con-tinuasse a falar de uma “filosofia da história” e deum “filosofar sobre a história”, expressando a exi-gência de melhor elaboração desse ou daqueleproblema histórico. Nem sequer estava vedado sedenominar “filosofia da história” as investigaçõesde “gnoseologia histórica”, se bem que, nesse caso,elaborava-se a filosofia não propriamente da his-tória, mas da historiografia.11

Assim, durante os primeiros quinze anos do sécu-lo XX, Benedetto Croce, tanto deu vida ao seu pró-prio sistema filosófico – a autodenominada Filosofiadello Spirito – quanto pretendeu redigir o epitáfio dafilosofia da história. Objetivando combater a ingerên-cia desse gênero e das metodologias derivadas dasciências naturais nos territórios do conhecimentohistórico, na perspectiva de reafirmar a idéia de au-tonomia da história, buscou resolver as dúvidas e asperplexidades que atormentavam os historiadores

11 Idem, p. 68-9.

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contemporâneos e seus predecessores no interior deuma teoria da historiografia. No âmago desse NovumOrganum, história e filosofia identificavam-se e, aomesmo tempo, distinguiam-se. A filosofia represen-tava o papel de metodologia da história. E, finalmen-te, sua teoria da historiografia apresentava como tesecentral a idéia de que toda verdadeira história é his-tória contemporânea.12

III

Não obstante, uma mutação decisiva se registrouno alinhamento político croceano durante a meta-de da década de 1920, com influxos igualmente sig-nificativos para sua produção historiográfica: nos-so autor transitou de um apoio inicial ao fascismopara a oposição ao regime. Assim, o despertar doliberalismo de tradição que adormecia em Croce foiconseqüência direta da tirania que se abateu sobrea Itália. Consolidada a ditadura fascista, a inspira-ção liberal-conservadora croceana transformou-se,gradativamente, numa teoria historiográfica e po-lítica do liberalismo, originando uma verdadeiraconcepção de História como história da liberdade.Entre 1925 e 1940, Croce tornou-se a consciênciamoral do antifascismo italiano, o filósofo da liber-

12 Sobre a tese relativa à contemporaneidade da história em Croce, ver MOREIRA,Raimundo Nonato Pereira. Toda verdadeira história é história contemporânea: ahistoriografia como passado-presente na obra de Benedetto Croce. Campinas:[s.n.], 1999. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduaçãoem História Social do IFCH/UNICANP, em 1999.

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dade. Assim, o pensamento dos primeiros quinzeanos do século, marcado por um enfoque apolítico emesmo antipolítico, metamorfoseou-se numa obrapoliticamente comprometida.13

A arquitetura da obra croceana, composta du-rante a vigência do regime fascista, pode ser seg-mentada em dois grandes blocos: os trabalhos his-tóricos de caráter “ético-político” e os ensaios fi-losóficos e historiográficos de inspiração liberal. Noprimeiro, incluem-se Storia d’Italia dal 1871 al 1915(1928) e Storia d’Europa nel secolo decimonono(1932). No segundo, destacam-se La storia comepensiero e come azione (1938) e Il caratere dellastoria moderna (1941). No conjunto desses volu-mes, exaltou as conquistas do liberalismo europeue italiano no século XIX e criticou, por uma viaindireta, os principais equívocos teóricos dos pen-sadores fascistas (irracionalismo, ativismo cego eautoritarismo), que advogavam a tese relativa àmorte do ideário liberal. Ademais, Croce elevou oliberalismo ao patamar de religião da liberdade edoutrina metapolítica, concepção total do mundoe da realidade, fio condutor e princípio explicativodo passado e do presente, além de guia do futuro.Em síntese, escreveu, a História do século XIXcomo a história da liberdade.

No decorrer da Storia d’Europa nel secolodecimonono, por exemplo, reafirmou o princípiohegeliano segundo o qual a marcha da história se

13 Cf. BOBBIO, Norberto. Perfil ideológico del siglo XX en Italia. México: Fondo deCultura Económico, 1993, p. 225-30.

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confunde com a caminhada da liberdade. Critican-do os pressupostos fascistas, Croce assinalou quea liberdade foi o espírito animador das diversasépocas históricas, o princípio fundamental e o fiocondutor das lutas no curso da história. Aos his-toriadores, lembrou que o liberalismo proporcio-nava à historiografia um critério seguro de inter-pretação do processo histórico, no qual a liberda-de aparecia como o próprio sujeito e a força cria-dora da história. Para concluir, asseverou que oliberalismo não havia perecido, como equivocada-mente pressupunham os fascistas, estando desti-nado a renascer, mesmo quando se apresentasseincompreendido e esquecido.14

IV

Religião da liberdade, doutrina metapolítica, con-cepção total de mundo, história como história da li-berdade. Os termos são inequívocos. Na perspectivade combater o fascismo, Croce procedeu uma (re) apro-priação dos princípios clássicos da filosofia da histó-ria, o mesmo gênero artificial e fantasioso cujo óbitofora atestado em 1915. As preocupações fundamen-talmente epistemológicas da fase anterior cederamlugar a uma postura historiográfica militante, anco-rada nas teses aprioristas e teleológicas da velhaadversária. A esse respeito, uma recriminação ca-bível à atuação política do Croce opositor diz res-

14 Cf. CROCE, B. Storia d’Europa nel secolo decimonono. Bari: Laterza, 1965, p. 7-21, 307-16.

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peito ao fato de o mesmo nunca ter proposto umasaída clara para superação do fascismo, preferin-do entregá-la à ação da misteriosa Providência enão às mãos dos homens. Daí o porquê da sua con-cepção de História como história da liberdade seressencialmente fatalista.15

Esse rapidíssimo sumário das principais fasesda produção intelectual de Benedetto Croce pos-sibilita melhor situar o que nos parece ser umadas características fundamentais presentes na suaobra: o impasse entre a construção de uma teoriada historiografia e o apelo à filosofia da história.Se, por um lado, o historiógrafo politicamente con-servador buscou inovar a metodologia da históriae construir um domínio quase inexistente no pa-norama do conhecimento histórico dos primórdiosdo século XX, por outro, o filósofo da liberdade,buscando desmentir as sentenças fascistas relati-vas à morte do liberalismo, lançou mão dos esque-mas finalistas e providencialistas de feiçãohegeliana – anteriormente repudiados e detratados.Contudo, o recurso às teses da filosofia da histórianão modificou os juízos negativos do autor sobre ogênero em questão. Nas páginas de La storia comepensiero e come azione, por exemplo, Croce reafir-mou o princípio de que as filosofias da história apre-sentavam um caráter mitológico e transcendente,que todas elas objetivavam descobrir e revelar o

15 Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. Reconsideración de B. Croce (1866-1952). In:_____. Ensayos de historiografía antigua y moderna. México: Fondo de CulturaEconómico, 1993, p. 296.

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Weltplan (desenho do mundo), desde o seu nasci-mento até a morte, ou ainda do seu aparecimentono tempo à entrada na eternidade, assumindo oaspecto de teofanias ou cacodemonofanias.16

Para concluir, resta-nos sublinhar a hipótese deque a obra de Benedetto Croce localiza-se num pontode interseção entre a teoria da historiografia e a filo-sofia da história. Nessa perspectiva, durante os pri-meiros quinze anos do século passado, os esforçoscroceanos no intuito de construir uma teoria ou umametodologia da história objetivavam tanto absorver afilosofia no interior do conhecimento histórico quan-to eliminar os resíduos metafísicos e teológicos doseio da historiografia. Entretanto, tal qual a Fênix, afilosofia da história renasceu nos anos de chumbo dofascismo e tomou de assalto a sua historiografia éti-co-política. Eis mais um dos paradoxos da sinuosa tra-jetória intelectual de Croce! Não obstante, pode-sevislumbrar nessa questão um fecundo campo paratodos os pesquisadores que se debruçam sobre as re-lações entre a filosofia e a história.

16 CROCE, B. La storia come pensiero e come azione. Bari: Laterza, 1943, p. 138.

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A CRÍTICA HEIDEGGERIANADA MODERNIDADE

JOÃO BOSCO BATISTA

fio condutor que deve nortear a pesqui-sa é o mesmo que perpassa a obraheideggeriana em suas duas fases: a ques-

tão do sentido do Ser. Já desde a Introdução deSer e Tempo que a preocupação com o resgate e arestauração do sentido do Ser constitui o leitmotivda ontologia do filósofo alemão. A tese do autor éa de que o problema do Ser originário (Physis eEinai) permaneceu encoberto pela história dametafísica ocidental. É a partir de tal postura queo filósofo submete a metafísica da subjetividade(moderna) ao crivo do novo pensamento ontológicoque busca alcançar a questão do Ser em sua rela-ção originária com o ser do homem (Dasein). Paraisso impõe-se a ele a tarefa de superar a subjetivi-dade da época moderna que, segundo ele, nada fezsenão recrudescer o pensamento metafísico de es-quecimento do Ser e de, conseqüentemente, des-viar o verdadeiro problema da essencialização dohomem.

A crítica heideggeriana dos tempos modernostoma como fio condutor uma “destruição” do con-ceito de sujeito e das noções dele provenientes de

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liberdade e autonomia. Essa destruição é aprecondição necessária de seu esforço de apresen-tar uma nova concepção do homem correlata coma questão da restauração do sentido do Ser(GUILEAD, 1965, p.67).

A destruktion que pretende abalar “a rigidez eo endurecimento de uma tradição petrificada”, nãotem necessariamente um sentido negativo (este éimplícito e indireto), ao contrário, ela é movidapor uma “intenção positiva” de levar a cabo o per-curso da metafísica, retomando criticamente oscaminhos perdidos que se desviaram de uma ver-dadeira problematização do sentido do Ser e deuma ontologia do ser do homem como Dasein(HEIDEGGER,1988, p. 51).

É por essa via da história da metafísica, comoesquecimento do Ser e como ignorância da essên-cia ontológico-existencial do homem, queHeidegger entabula um diálogo com os pensado-res modernos, diálogo que se caracteriza como for-ma de desconstrução da subjetividade, em buscade uma nova tarefa para o pensamento.

A filosofia dos tempos modernos representapara o pensador alemão, o estágio final dametafísica como história do Ser. Enquanto “épocado triunfo da subjetividade”(GUILEAD, op.cit.,p.70), a modernidade configura uma importan-te etapa da história destinal do Ser e, por isso,mereceu de Heidegger uma atenção especial. Dospensadores dessa época, o filósofo dedica-se prin-cipalmente à análise daqueles que, segundo ele,representam melhor o estágio da metafísica dasubjetividade e prenunciam seu fim. São eles: Des-

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cartes e Leibniz, tidos como os fundadores dos tem-pos modernos; Kant, que ocupa um lugar interme-diário; Hegel e Nietzsche, cujos pensamentos ex-pressam o acabamento do triunfo da subjetivida-de e da metafísica em geral. Por fim, ainda no âm-bito da crise da metafísica dos tempos modernos,Heidegger dedica-se ao estudo da técnica moder-na, como o estágio da subjetividade decaída e dofim da metafísica.

O cerne da filosofia moderna da subjetividadepode ser representado pela proposição : Cogito,ergo sum (Eu penso, logo existo). Essa proposiçãoexpressa a síntese da doutrina cartesiana da des-coberta da consciência. A partir dela, toda consci-ência das coisas e do ente em sua totalidade reme-te à consciência-de-si, própria do sujeito humano,enquanto fundamento constante de toda certeza(HEIDEGGER, 1971, p.105). Toda verdade encon-tra-se fundada sobre a certeza que o sujeito (cogi-to) tem de si mesmo.

Com Descartes celebram-se o descobrimentoe a conquista de uma nova dimensão do pensa-mento até então desconhecida pela filosofia: osujeito (res cogitans). Em outros termos, Descar-tes inaugura a metafísica da subjetividade mo-derna. Com ele a metafísica apresenta-se comoantropologia. E, segundo Heidegger, com a an-tropologia inicia-se a passagem da metafísica aoprocesso de suspensão e interrupção de toda fi-losofia (HEIDEGGER,1979,p.88). A filosofia mo-derna interpreta o homem como o ente “supre-mo”, na medida em que se estabelece como sujei-to, diante do qual tudo se converte em objeto. A

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filosofia pensa agora o ente a partir da subjetivi-dade do sujeito.

A conseqüência direta da instauração da subje-tividade é o surgimento da “objetivação”. Esta “re-presenta o objeto ajustando-se ao ego cogito”(HEIDEGGER, 1979. p.211). É o ajustamento re-presentativo. O ego cogito revela-se comosubjectum. Pondera Heidegger que nessa perspec-tiva “o sujeito é subjectum para si mesmo; a essên-cia da consciência é consciência de si”. É por isso,continua o autor, “que todo ente é ou objeto do su-jeito ou sujeito do sujeito”(Op. cit., p.211). Maisadiante ele afirma que, com a supremacia absolu-ta da metafísica da subjetividade moderna, o ho-mem “suprime o ente no sentido de ente em si;pois a elevação do homem na subjetividade trans-forma o ente em objeto”. Com o triunfo do sujeitona modernidade “o homem se ergueu na egoidadedo ego cogito; com essa elevação, todo ente se tor-na objeto; o ente é engolido como objetivo, naimanência da subjetividade(Id. Ibid., p.216). Des-cartes, por meio do cogito, faz do homem o centroem torno do qual tudo gira. Pensar é, a partir deentão, representar (Vorstellen). Com o predomí-nio da representação, altera-se profundamente aatitude do homem diante do ente. Não se tratamais de des-cobri-lo, mas de apropriar-se delecomo objetivação.

Para o pensador francês e toda a metafísica mo-derna, a subjetividade, enquanto res cogitans,transforma-se em subjectum, hypokeimenon, ouseja, no fundamento primeiro de tudo o que é: “Omodo da cogitatio, da representação pensante, é a

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única forma segundo a qual o homem modernopermite que se lhe apresentem as coisas. A repre-sentação converte-se em juízo que julga sobre o serdo ente”(GUILEAD,op. cit.,p.73). As coisas não sãoreconhecidas, enquanto não se submetem ao juízodo cogito; enquanto não se convertem em ob-jetospara o sujeito. A relação sujeito-objeto converte-se na única comunicação do homem com as coisas.

Enquanto o único ente que permaneceu ergui-do em meio à dúvida hiperbólica (universal), o “eu”converte-se em fundamento de tudo o que por eleé pensado. Esse acontecimento assinala a rupturacom a noção antiga de verdade. O último funda-mento da verdade transforma-se em certeza. Cer-to é tudo aquilo que é concebido pelo intelectoatravés de idéias claras e distintas. Uma conseqü-ência fatal dessa “transfiguração da verdade e dapredominância da representação, será a de que omundo se transforma em visão de mundo(Weltbild)” (Id.ibid., p.73).

A instauração da subjetividade moderna comosua própria legisladora gera, segundo Heidegger,uma época de luta entre as diversas visões demundo. Não há mais medida comum, absoluta. Aautolatria da subjetividade transforma-se em ido-latria de diferentes ídolos contemporâneos comoraça, nação, classe. É a época da total falta de sen-tido. Por isso a época moderna pode ser chamadade época da Weltanschauung, porque nela a ver-dade se tornou ato do cogito e o ente tornou-seobjeto (Gegen-stand) que não possui ser algum forada atividade representadora e produtora do sujei-to. É o sujeito que tudo recolhe em si, como funda-

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mento; o único ser das coisas é plasmado pelo su-jeito que reduz e põe o ente como objeto diante desi. Weltanschauung passa a significar, então, o atode representar o mundo, isto é, o conjunto da na-tureza e da história, como nós o vemos; e tem-sepor certo que ele é tal, como nós o representamos.Weltanschauung, ou imagem do mundo, equivalea mundo concebido como imagem que o homemproduz, objetivando o ente diante de si.

Com a inauguração da subjetividade como prin-cípio e fundamento de tudo o que existe, muda-setambém o fundamento do dever e da obrigação (mo-ral). Com a subjetividade, cria-se uma noção total-mente moderna de liberdade e autonomia –centradas, evidentemente, no sujeito humano. Des-cartes é, assim, o iniciador de um novo conceito deliberdade: liberdade é sempre liberdade do sujeito(que pensa). Dessa forma, anuncia-se a época dohumanismo ilustrado com a pretensão de desenvol-ver-se ao máximo as potencialidades do homem ede seu domínio sobre a terra, sobre a natureza. Daíé que se extrai a idéia especificamente moderna deautonomia do sujeito. O homem não reconhece ne-nhuma medida e nenhuma dependência, além da-quela que ele mesmo se impõe.

O que vemos é que, com a mudança do conceitomoderno de verdade como certeza alcançada pelosujeito, a noção de liberdade inevitavelmente sub-mete-se às transformações ocorridas com ametafísica da subjetividade. Com o triunfo da sub-jetividade como res cogitans e consciência de si, ohomem “se liberta da obrigação normativa da ver-dade cristã revelada e do dogma da Igreja, tendo

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em vista uma legislação que repousa em si mesmae por si mesma” (HEIDEGGER, 1979, p. 94). Dessaforma, a essência da liberdade é posta de maneiradiferente. Ela encontra sua garantia na certeza docogito, enquanto a certeza “na qual o homem se as-segura e se torna certo do verdadeiro, enquantoaquilo que é sabido por seu próprio saber” (Id.ibid.,p.94). A obrigação (moral), enquanto quesito essen-cial da liberdade, passa a ser determinada pela ra-zão humana e sua lei, ou, então, pelo ente estabele-cido e ordenado no modo da objetividade, a partirda racionalidade (geométrica) do homem.

Temos enfatizado o tema da instauraçãocartesiana da subjetividade, por ser o pivô e, aomesmo tempo, a pedra de tropeço da crise dametafísica moderna. Interessa a Heidegger inves-tigar o (des)caminho metafísico que engendrou amudança da essência do homem em sujeito (cogito),em detrimento da relação ontológica originária como Ser e com o ente em sua totalidade. No bojo dopensamento da modernidade, encontra-se o homemcomo o verdadeiro subjectum, o ente sobre o qualtodos os entes se fundam quanto à sua maneira deser, isto é, quanto à sua verdade (Id. Ibid., p.94).

A filosofia moderna da subjetividade, parado-xalmente, ao subjetivizar o ente, submetendo-o aocritério racional das idéias claras e distintas, criatambém a objetivação do ente. A relação homem-ente é substituída pela bipolaridade sujeito-obje-to, que passa a determinar o real. Nesse sentido,diz Heidegger que “o ente não é mais simplesmen-te o que é presente, mas o que, na representação, éposto diante, é oposto, posto como objeto ”(Id.ibid.,

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p.95). Assim, o triunfo do sujeito vem acompanha-do do máximo de objetividade dos entes, que po-dem ser possuídos justamente na medida em quesão postos diante (ob-jecto) de um sujeito. Nenhu-ma época, como a moderna, exaltou tanto osubjetivismo; por outro lado, porém, é certo quenenhuma outra época elaborou, como a moderna,um objetivismo tão agudo. Existe um jogo recípro-co e necessário entre os extremismos (opostos) dosubjetivismo e do objetivismo. Na raiz dosubjetivismo, como do objetivismo, subsiste a con-cepção do pensar como representar. A represen-tação própria do sujeito já traz em si, como resul-tado, a objetivação. Para Heidegger, “os temposmodernos conduziram ao reino do subjetivismo”,mas é certo que também “tenha produzido umobjetivismo”; na essência da modernidade está ojogo entre subjetivismo e objetivismo.

Iniciamos nossa apresentação, afirmando queHeidegger posiciona-se criticamente diante docontexto da época que ele chama de metafísicada subjetividade, que caracteriza o pensamentocartesiano e, por extensão, toda a filosofia mo-derna até Nietzsche. A sua crítica é de cunho emi-nentemente ontológico e enreda o problema dapossibilidade da (des)subjetivação do homem pormeio da “destruição”(des-construção) dametafísica ocidental.

Motivado pela Seinsfrage (questão do Ser) e pelapremissa da relação originária entre Ser e homem,Heidegger expõe seu projeto de desconstrução dasubjetividade moderna que muda a essência do ho-mem para res cogitans. Deste modo, a metafísica

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da subjetividade, própria dos filósofos modernos,mantém-se no (des) caminho de esquecimentodo Ser e da essencialização ontológico-existencialdo homem. Referindo-se a Descartes, Heideggerdiz que com o cogito sum o filósofo francês preten-de dar à filosofia um fundamento novo e sólido, po-rém “deixa indeterminado nesse princípio ‘radical’omodo de ser da res cogitans ou, mais precisamente,o sentido do ser do sum” (HEIDEGGER, 1988,p.53). Para o filósofo alemão, Descartes não só omi-tiu a questão do Ser como também se achou dispen-sado da questão sobre o sentido do ser do cogito,pelo fato de ter descoberto sua “certeza” absoluta.Em suas Meditationes, o filósofo francês desenvolvesuas investigações fundamentais no sentido de apli-car a ontologia medieval ao ente como ens creatumem relação ao ens increatum (Deus). Este precon-ceito metafísico medieval impregna ainda o novoinício da filosofia e, por isso, esta omite uma aná-lise ontológica explícita da questão do Ser. Nestesentido, até mesmo Kant, na medida em que assu-me a posição ontológica de Descartes, omite umacoisa essencial: uma ontologia do Dasein e umaanalítica prévia das estruturas que integram a sub-jetividade do sujeito (Id.ibid., p.53).

O projeto filosófico de Heidegger de (des) sub-jetivação começa a consolidar-se no plano de suaobra prima Ser e Tempo. Com a analítica existen-cial, que constitui o cerne da obra, o autor preten-de superar a história da metafísica ocidental deesquecimento do Ser, elaborando a questão do sen-tido do Ser à luz da temporalidade e procurandoapropriar-se ontologicamente do sentido do ser do

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homem, por meio dos modos de ser (os existenci-ais) do Dasein. Com a analítica do Dasein comoessência ontológica do homem, Heidegger quer su-perar em particular a metafísica da subjetivaçãomoderna. A busca da essencialização do ser dohomem deve ultrapassar os quadrantes da filoso-fia que dimensiona o ser do homem a partir de suaidentidade representacional (como res cogitans).Na ontologia heideggeriana o ser do homem(Dasein) deve ser interpretado a partir datemporalidade e em sua relação (historial e tem-poral) com o Ser. O homem entendido em sua sub-jetividade deve ser precedido pela manifestaçãodo Ser que o engendra como clareira, abertura ecompreensão. É nessa relação originária com o Serque se deve determinar a essência do ser humanoe de sua liberdade. O homem é o ente privilegia-do, não por ser o sujeito que objetifica o ente, maspor ser o lugar da revelação, clareira do Ser.

Em poucas palavras, diríamos que buscando afundamentação da história da metafísica,Heidegger chega à conclusão de que ela primeiropensou o Ser como um ente (ontoteologicamente)e depois, na vertente moderna, acabou pensandoo ente a partir do sujeito (subjetivação). A sua pro-posta de superação de tal des-essencialização doSer e do homem, passa necessariamente pela exi-gência da negação do sujeito como sujeito repre-sentativo. Este deve fazer a experiência de sua im-potência, de sua incapacidade não somente de fun-damentar o ente, mas também de fundamentar-sea si mesmo. Esta é a precondição da instauraçãoda vigência do Ser.

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A razão de ser do embate desses dois tipos depensamento que se apresentam tão antagônicos,deve esclarecer-se melhor com a explicitação doaspecto niilista em que desemboca a tradiçãometafísica do Ocidente, notadamente comNietzsche, assumindo a forma do pensamento “cal-culador”, pensamento que cria as condições de ins-talação do predomínio da técnica moderna.

É na perspectiva de um “pensamento futuro” queHeidegger encaminha sua análise do niilismo. Opensamento niilista representa o acabamento dahistória da metafísica. Ele constitui o movimentonecessário da história da verdade do Ser. O “super-homem” nietzscheano representa o novo tipo dehomem chamado a determinar decisivamente a his-tória, enquanto reina a nova verdade do ser comovontade de poder e eterno retorno do mesmo.

O grande mérito de Nietzsche e o rasgo funda-mental de seu pensamento foi ter exposto de modoclarividente que o processo do pensamento ociden-tal necessitava de uma transição, evidenciando operigo em que se encontra o homem que tem exis-tido até o presente na superfície e no plano peri-férico de sua essência. Nietzsche foi o primeiro acompreender e meditar metafisicamente sobre operigo do niilismo que espreita a humanidade(HEIDEGGER, 1958, p. 59).

Para Heidegger, a temática do pensamentonietzscheano, principalmente o tema da metafísicacomo vontade de poder, não aparece por acaso, masé essencialmente engendrada pela metafísica dasubjetividade, iniciada com Descartes. Heideggerpropõe-se a pensar o niilismo, o que, segundo ele,

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não foi feito por Nietzsche, como o caminho no qual“se esboçam as maneiras de uma possível supera-ção do niilismo” (HEIDEGGER, 1969, p.46).

Niilismo e metafísica constituem temas essen-cialmente interligados: “A essência da metafísicarevela-se como o lugar essencial do niilismo”(Id.ibid.,p.48). Heidegger procura interpretar oniilismo a partir de sua identidade metafísica; asua essência é a mesma. A análise que alcança osentido essencial do niilismo é aquela que odimensiona em sua profunda conexão com a histó-ria do esquecimento do Ser.

O fenômeno niilista é explicitado, portanto,como resultante do processo histórico-metafísicodo esquecimento do Ser. Ele não é um mero apên-dice desta, mas a conseqüência necessária da ver-tente subjetivista da metafísica que na época mo-derna alcança o ápice de seu processo.

O esquecimento do Ser, na interpretaçãoheideggeriana, não é algo que se deva a nós ou àsgerações que nos precederam. Assim como a não-verdade pertence à própria essência da verdade,assim também o esquecimento do Ser, que consti-tui a metafísica, é um fato que incumbe ao Ser comotal. Isto determina o modo em que estamos exis-tencialmente constituídos; não somos outra coisasenão a abertura ao ser do ente.

O niilismo próprio da metafísica da vontade depoder, que na verdade é um movimento anti-metafísico, enquanto opera uma reviravolta nametafísica tradicional teísta (ontoteológica), ex-pressa-se numa frase curta, mas gravíssima:“Deus morreu”. Com esta frase Nietzsche não se

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refere apenas ao Deus cristão, mas quer desig-nar principalmente o “mundo suprasensível emgeral”. Mas Nietzsche vê-se ainda preso aos valo-res, em detrimento do questionamento do senti-do do Ser. Ele concebe ainda o ser como valor nointerior de uma estrutura metafísica, qual seja, avontade de poder.

Heidegger, em última análise, quer mostrar que,com Nietzsche, a metafísica da subjetividade, comocogito (ratio) representativo, atinge seu estágio fi-nal. O pensamento nietzscheano desacredita a sub-jetividade cartesiana que enfatiza a racionalidadecomo essência humana. Com Nietzsche, assistimosao deslocamento da essência da subjetividade comoquerer, isto é, como vontade de poder. Ao estilha-çar a subjetividade cogitante e individualista damodernidade, ele instaura, com seu movimentoniilista, o reino do super-homem sobre a terra.Com a apologia da essência humana como vontadeque se quer sempre mais, institui-se e justifica-semetafisicamente a dominação da terra pelo ho-mem. Heidegger vê no atual predomínio da técni-ca, a herança malfadada do esquecimento do Ser,que tem caracterizado a metafísica e sua história.O esquecimento do ser deixa um vazio que o ho-mem não pode preencher. E posto que nenhumente pode fazê-lo, resta ao homem a possibilidadeda produção técnica como satisfação de seu desejo(querer) insaciável de dominar a terra(HEIDEGGER.1979, p. 351).

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PARA INTERROMPER O CURSO DAHISTÓRIA: Uma Leitura das Teses Sobre

a Filosofia da História de WalterBenjamin

RENATO FRANCO

I

O texto e a crítica: desespero político ou “alarmede incêndio”?

s Teses sobre a Filosofia da Histó-ria e o ensaio sobre a reproduti-bilidade técnica da obra de arte são,

provavelmente, os textos mais célebres de W. Ben-jamin. Contudo, enquanto o estudo sobre o impac-to da técnica de reprodução na arte geralmente éinterpretado, pela maioria dos críticos, como ino-vador e capaz de oferecer uma interpretação con-vincente sobre grande parte das transformaçõesocorridas na arte e na experiência estética ou cul-tural da primeira metade do século XX, sua con-cepção acerca da História é freqüentemente obje-to de crítica feroz, formulada até mesmo por sim-patizantes de sua obra –embora seja preciso acres-centar que ela só ficou conhecida tardiamente, vis-

A

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to que a publicação dessas teses não causou im-pacto antes da década de 1960. A crítica mais co-mum a ela sustenta que sua elaboração foi deter-minada pelo acentuado sentimento de catástrofeque abalou decisivamente o cenário político-inte-lectual da esquerda européia logo após a assina-tura do pacto germano-soviético (23/08/39) e daconseqüente invasão da Polônia pelas tropas ale-mãs, fato que iniciou a Segunda Guerra Mundial(01/09/39). Com efeito, Benjamin as redigiu logoapós tais acontecimentos que não apenas congela-ram as esperanças dos intelectuais de esquerda –os quais, até então, acreditavam que a Rússia re-volucionária não abandonaria a classe operáriaalemã a sua própria sorte - como estimularam de-cisivamente o fim do relacionamento auspiciosoentre intelectuais e política revolucionária, rela-ção que vigorava desde o início do século.

Se, porém, em alguns casos, os críticos que sus-tentaram tais afirmações foram motivados dogma-ticamente por sua própria adesão ao marxismooficial ou às concepções dominantes entre os co-munistas, em outros eles assentaram a crítica nascircunstâncias dramáticas que envolveram a re-dação e a conservação desse texto, visto que Ben-jamin o redigiu à época em que foi forçado a fugirde Paris -então ameaçada pela invasão alemã -deixando-o com o amigo George Bataille, que oguardou em uma valise na Biblioteca Nacional,onde trabalhava, para só posteriormente fazê-lochegar a M. Horkheimer e T. Adorno, exilados emsolo americano. Assim, provavelmente, muitos deseus críticos tenderam a ver, no texto, a expres-

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são do desespero político-existencial do autor,obrigado a fugir atropeladamente e sem condições– financeiras ou físicas- do nazismo que, por fim,na fronteira com a Espanha, o levou ao suicídioem setembro de 1940. À tal espécie de crítica, queconsidera este complexo texto de Benjamin comoresultante do desespero político, junta-se aindaoutra que acrescenta à primeira o argumento deque ele não está diretamente relacionado às prin-cipais preocupações teóricas do autor e de que,deste modo, não se articula sequer razoavelmentecom o restante da obra. Na maior parte das vezesesses críticos acabam também por afirmar que aprodução benjaminiana é fragmentária e razoavel-mente desorganizada. Ou seja, que, por não ser sis-tematicamente constituída - à moda da prática fi-losófica tradicional - carece de orientação.

Entretanto, se examinarmos parte considerá-vel da extensa bibliografia dedicada à análise desua obra, veremos que muitos de seus intérpretesmais conseqüentes – já que movidos pelo objetivode iluminá-la a partir de suas próprias linhas deforça - insistem em relacionar essas teses sobre aconcepção de tempo à vários outros ensaios doautor. Desse modo, para muitos desses intérpre-tes, por exemplo, a projetada obra sobre as passa-gens de Paris está diretamente relacionada a taisteses. Eles também costumam sair em defesa daorientação de seu pensamento: nesta direção, sãodignas de notas tanto a obra de Pierre Missac,intitulada (sugestivamente) Passagem de W. Ben-jamin (1998), como a do biógrafo Bernd Witte(1998). Chryssuola Kambas, em Actualite politique:

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le concept de Histoire chez Benjamin et l’echèc duFront Populaire (1986) também relaciona a referi-da obra sobre as Passagens com as teses, tendocomo foco a concepção benjaminiana de ação revo-lucionária. Philippe Invernel, em Paris capitaledu Front Populaire ou La vie pósthume du XIXsiécle (1986), procura mostrar a coerência do iti-nerário intelectual de Benjamin nos anos 30, o qualtem como base sua concepção acerca da política eda história e culmina em seu texto derradeiro, jus-tamente as Teses sobre a Filosofia da História.

Em outra direção, Miguel Abensour (1986), es-tudando o impacto de Blanqui no pensamento deBenjamin, encontra nesse aspecto o elo entre vári-os de seus ensaios. Michael Löwy também se dedi-cou à análise minuciosa de toda a obra benjaminiana:em ensaio contido em Redenção e Utopia procuramostrar, contra as interpretações mais usuais quevêm nela ou a (má) influência de G. Scholem (B.Brecht) ou a do marxismo e de Brecht (Scholem) -influências que, de qualquer modo, seriam sinto-mas das mudanças de orientação de seu pensamen-to - que a originalidade de sua obra está assentadano fato de Benjamin assimilar ao mesmo tempo asinfluências do anarquismo, da teologia judaica, domarxismo e do romantismo anticapitalista, as quaisse imbricariam em seu itinerário intelectual sem,porém, reduzir seu pensamento a qualquer umadelas. Sua originalidade resultaria, portanto, do fatode estar no “meio de todas as correntes e em ne-nhuma delas”. Posteriormente, em ensaio dedica-do à análise das Teses sobre a Filosofia da História(1986), ressaltou que elas buscam a experiência da

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destruição do continuum histórico dos vencedorescomo modo de recuperar a experiência, que seria anoção central de seu pensamento.

Dentre esses intérpretes merece atenção, paranosso propósito, a tese sustentada por PeterOsborne em ensaio intitulado Vitórias de peque-na escala, derrotas de grande escala: a políticado tempo de Walter Benjamin. Para esse estudio-so de sua obra, ela apresentaria, apesar de algu-mas alterações de rumo suscitadas por sua ade-são à política revolucionária e à conseqüente atra-ção para formular o “projeto de uma historiografiamaterialista pedagógica”, uma orientação siste-mática mais ou menos bem definida, visto queBenjamin não recusaria absolutamente as idéiasgerais contidas em sua obra inicial mas, ao con-trário, as submeteria a um processo constante de“remodelação”. Assim, afirma:

A exposição inicial, esotérica, da estrutura da apre-sentação filosófica transformou-se lenta, esporádi-ca, mas sistematicamente, no projeto de um mate-rialismo histórico e cultural teologicamente enri-quecido à medida que Benjamin enfrentava os pro-blemas da apresentação inerentes a seu plano paraum livro sobre a história das passagens de Pariscomo um “fenômeno originário” do séc. XIX. O ga-barito desse plano, pelo qual deveriam passar aspressões de sua grande massa de material históri-co, era a elaboração de uma forma nova de histori-ografia: aquela “revolução copernicana do lembrar”a que Benjamin se refere em suas notas para o pro-jeto, e que encontra sua apresentação mais direta,

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ainda que um tanto oblíqua, no seu último textoconservado, as “Teses sobre o Conceito da História”(OSBORNE, 1997, p.74).

Para esse autor - que organizou um livro dedi-cado à análise de toda a obra de Benjamin com ointuito de explicitar o que chamou de o seu “pen-samento filosófico” - o ponto de viragem no itine-rário da reflexão benjaminiana foi o ensaio sobre osurrealismo (1929), que teria se tornado a “semen-teira” de sua própria obra. Contra a interpretaçãode G. Scholen e apoiado na biografia de Benjaminelaborada por Bernd Witte (1986), que afirma:

... quando, em seu magnífico ensaio sobre osurrealismo, ele investiga o despertar da consciên-cia política deste e seu engajamento em prol da re-volução proletária, está falando basicamente da his-tória de sua própria politização, que havia recebidouma expressão tangível em Rua de Mão Única(Witte. In: OSBORNE, 1997, p.111-2).

O pesquisador sustenta que todos os escritosbenjaminianos, após essa época, se voltam “para aexperiência da história no tempo do agora em que,no choque da imagem dialética, o continuum é ex-plodido por uma nova experiência do tempo”(p.74). Ou seja, para ele, o filósofo alemão desen-volve essa concepção não de forma explícita e di-reta, mas sim por meio da análise de diversas ex-periências culturais decisivas para a elaboraçãode uma concepção de história capaz de superar asformas historiográficas então dominantes, as quais

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Benjamin denomina indiscriminadamente de “historicismo”. Essas experiências culturais são asempreendidas por parte da vanguarda artística daépoca – a saber, por Proust, Baudelaire, Brecht, ojá apontado surrealismo (que para ele seria a maisimportante), por Kafka, além, talvez, de A. Doblin.

Osborne encaminha sua argumentação no sen-tido de destacar, não sem pertinência, a naturezaexplosiva da “carga secreta” que Benjamin teriaencontrado no surrealismo, procurando tanto apro-ximar a obra do filósofo às obras das vanguardasartísticas como desvendar quais seriam os termose “a estrutura conceitual e as condições de umaexperiência política da história adequada às exi-gências de um conceito metafísico de verdade”(p.75). Sua leitura parece assim estar ajustada -ou calibrada - de maneira a combater a moda queassola os meios universitários norte americanos,produzida pela onda pós-estruturalista, que pro-põe uma certa leitura “facilitada” da obrabenjaminiana (OSBORNE, 1997, p.14). Por maisfascinante que tal empreendimento possa ser, elese afasta de nosso propósito, que é o de analisar asTeses sobre a Filosofia da História, empreitadaagora possível, visto que já vimos como tal textonão é meramente determinado pela conjunturahistórica nem representa um abandono das ques-tões básicas de sua reflexão anterior. Aliás, nessamatéria, se fosse possível apontar um “lugar” paratal texto no interior do pensamento crítico ou po-lítico-filosófico europeu da primeira metade doséculo vinte, seria tentado a sugerir que estas fa-mosas teses representam, sintomaticamente, o

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ponto de enfraquecimento desse tipo de pensamen-to, cujos marcos iniciais são os textos de Lenin so-bre o imperialismo e, principalmente, História eConsciência de Classe, de G. Lukács (1923) dosquais emana acentuado “sentimento de proximi-dade da revolução”. O de Benjamin, ao contrário,é elaborado a partir do sentimento de que esta nãoserá possível se não revitalizarmos criticamente opróprio pensamento que outrora fora capaz de vis-lumbrar a possibilidade de transformar o mundoe que, à época da luta contra o fascismo, se olvidoudisso. Esse seu último texto é, desse modo, sinto-ma de um fracasso, mas não o de um tipo qual-quer: trata-se, aqui, de um fracasso dialético. Ou,na feliz expressão de M. Löwy, ele pode ser consi-derado como “alarme de incêndio”.

II

A política da nova historiografia

Teses sobre a Filosofia da História é texto com-posto por 18 teses e 2 apêndices, redigido em lin-guagem esotérica, e que lembra, em sua concep-ção, as famosas Teses sobre Feurbach, de K. Marx.Seu objetivo é formulado com clareza na tese oito:“a tradição dos oprimidos nos ensina que o “esta-do de exceção” em que vivemos é na verdade a re-gra geral. Precisamos construir um conceito dehistória que corresponda a esta verdade” (p.226).Seus principais temas são: 1) a crítica à concepçãode história originária do iluminismo, bem como à

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dos sociais-democratas e a do marxismo oficial (ouvulgar), que Benjamin indiscriminadamente atacacom o rótulo genérico de “historicismo”. Para ele, oque une estas várias tendências historiográficas éo fato de todas elas conceberem o tempo históricocomo “vazio, homogêneo e contínuo”, o que segura-mente invalida toda crítica que procura vincular opróprio pensamento benjaminiano ao historicismo;

2) Como decorrência desta crítica, Benjamin ela-bora rigoroso ataque à noção de “progresso”, quese desenvolve a partir de dois aspectos distintos,embora intimamente relacionados: por um lado, oconceito de progresso – básico tanto para ahistoriografia burguesa como para o marxismo ofi-cial- não apenas permite, para ele, conceber a his-tória como continua mas, sobretudo, supor que elacaminha para a constante superação da barbárieou do arcaico, sempre afirmando implicitamenteo moderno como o novo e o não-bárbaro: “O assom-bro com o fato de que os episódios que vivemos noséculo XX “ainda” sejam possíveis, não é um as-sombro filosófico. Ele não gera nenhum conheci-mento, a não ser o conhecimento de que a concep-ção de história da qual emana semelhante assom-bro é insustentável” (BENJAMIN, 1985, p. 226).Tal concepção, para Benjamin, é também apazigua-dora, visto que legitima a história e a sociedadeatual: nessa perspectiva, o fascismo é visto comoum “desvio”, uma recaída na barbárie, e não comouma ameaça real, concreta, permanente, típica dasociedade capitalista. A crítica a esta categoriapermite a ele colocar na alça de mira de seu racio-cínio explosivo não apenas –como já foi sugerido-

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a concepção de história do marxismo oficial, massobretudo a concepção comunista sobre a naturezae o desenvolvimento da luta antifascista levada acabo “em nome do progresso”: “... perceberemos quenossa tarefa é originar um verdadeiro “estado deexceção”; com isso, nossa posição ficará mais fortena luta contra o fascismo. Este se beneficia da cir-cunstância de que seus adversários o enfrentam emnome do progresso, considerado como uma normahistórica” (p.226) pois, assim concebida, a “luta nãobeneficiaria os adversários radicais do fascismo”.

A esta altura, parece claro que, se o objetivo in-telectual de Benjamin é o de “formular um novoconceito de história”, sua ambição política é a defortalecer –com o auxílio dessa nova concepçãosobre a história- a luta contra o fascismo. Maisprecisamente, seu objetivo político é o de “arran-car a política das malhas do mundo profano” (p.227),visto que ela estaria “enredada por aqueles trai-dores” que combatiam o fascismo movidos pela “ob-tusa fé no progresso”, pela “confiança nas massas”– conseqüentemente, pela certeza de que elas agi-riam de acordo com as recomendações propostaspela direção partidária ou pelo comando das “Fren-tes Populares”- por sua “subordinação servil a umaparelho incontrolável” (p.227). Dessa maneira,parece não restar nenhuma dúvida sobre o fato deque Benjamin nutria a ambição política deredimensionar a natureza da luta antifascista,recarregando-a com a carga explosiva do desejorevolucionário.

Por outro lado, ele critica a noção de progressoque, na prática econômica, viabiliza identificar a

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transformação modernizadora do aparato técnicode produção como fato benéfico para o trabalha-dor. Com isso, torna evidente que os interessesburgueses e proletários são conflitantes e que ainovação tecnológica no universo produtivo é, nomais das vezes, adversa ao trabalhador: tal pro-gresso técnico apenas o submete mais rigorosa-mente a esse aparato. Ou, como diz o autor: “é pro-gresso na dominação”. Esta observação, queaprofunda sua crítica à noção de progresso, tornavisível “os traços tecnocráticos que mais tarde vãoaflorar no fascismo” (p.228).

Cabe aqui uma observação: esta crítica benja-miniana certamente encontra ressonância entreseus colegas do Instituto de Pesquisa Social deFrankfurt. Ela, por exemplo, foi amplamente re-tomada por T. Adorno e M. Horkheimer naDialética do Esclarecimento (1946), obra em queos autores elaboram uma “teoria da dominação”complementar à teoria da exploração econômicaformulada anteriormente por K. Marx. HerbertMarcuse também a assimilou e a desenvolveu, par-ticularmente em A ideologia da Sociedade Indus-trial, embora cabe ressaltar que, já em 1941, emensaio intitulado Algumas implicações sociais datecnologia moderna (MARCUSE, 1998), ele abor-dou essa questão de um modo bastante próximoao de Benjamin, indicando que esta foi uma ques-tão comum para os membros do Instituto.

As críticas ao conceito de progresso e ao histori-cismo sustentam, por assim dizer, os andaimes desua visão e possibilitam a concretização de sua “re-volução copernicana” na historiografia, que, como

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já salientamos, almeja superar a visão de históriado marxismo oficial que informava a lutaantifascista, consubstanciada na formação das“Frentes Populares”, sugeridas então por Dimitrov.Benjamin percebia que a adoção dessa estratégiapressupunha uma retração da luta pela revoluçãoe, nesta medida, uma capitulação real frente ao sen-timento de catástrofe. Ou seja, ela, implicitamente,significava o reconhecimento do fracasso da revo-lução. Benjamin, ao contrário, tenta se opor a essaperspectiva por meio da construção de uma con-cepção radical do tempo histórico com o intuito derevitalizar o marxismo e re-orientar a lutaantifascista. Nesse sentido, Teses sobre a Filosofiada História é um dos mais importantes textos que,após os anos 30, ainda preservam o ideal revolucio-nário no pensamento político europeu. E, emboraseu ponto de partida seja o reconhecimento de quea conjuntura histórica era então catastrófica, seuhorizonte é o da retomada possível da revolução:portanto, ele sinaliza sua aspiração pela conquistada felicidade. Não deixa assim de ser irônico queseus críticos o qualifiquem de “pessimista” ou o to-mem como sintoma do desespero político reinanteà época do início da Guerra.

III

Marxismo e teologia

Para tornar claro o alcance das Teses sobre aFilosofia da História e esclarecer no que consiste

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sua “revolução copernicana” na historiografia éagora necessário examinarmos com maior atençãoalgumas dessas teses, visto que, assim proceden-do, talvez possamos explicitar melhor algumasnuances de seu campo temático, bem como clarifi-car os procedimentos benjaminianos e suasimbricações com o restante de sua obra.

A tese 1 tem até hoje surpreendido a seus leito-res. Em linguagem literária e elíptica, narra o quese passa em torno de uma mesa de xadrez. Um dosjogadores é um boneco “vestido à turca, com umnarguilé na boca.... chamado materialismo históri-co”. Ele ganha sempre. No entanto, suas mãos sãodirigidas “por um anão corcunda que se escondiadebaixo da mesa”. Este anão “era na realidade ummestre de xadrez”. Assim, o boneco “poderia enfren-tar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço ateologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feiae não ousa mostrar-se” (BENJAMIN, 1985, p.222).

Antes de qualquer outra coisa é preciso verifi-car que Benjamin elabora aqui uma narrativa ale-górica. No entanto, alegoria não pode ser entendi-da, neste contexto, de uma maneira tradicional.Alegoria, no sentido benjaminiano, diz mais res-peito à estratégia – inclusive imagética- de expo-sição do material. O texto alegórico é aberto,desconstrói a pretensa unidade – ou totalidade -acabada, fechada, típica dos textos não-alegóricos.Esse aspecto confere a eles uma natureza diversa,a qual apresenta conseqüências políticas: a recusada linguagem metafórica ou a implicada pela ex-posição cartesiana -que Benjamin parece conside-rar como apropriadas (isto é, aprisionadas) ao pen-

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samento político burguês. Em contraposição a este,o texto alegórico produz “um choque dialético”.Esta estratégia de construção é encontrada emmuitos dos ensaios do filósofo. Ademais, pode-seaqui verificar outro aspecto da estratégiaexpositiva do autor: ele se apropria de um textoliterário que considera como dos mais interessan-tes do período a que chama de “modernidade” - nocaso, um trecho de um conto de Edgar Allan Poe,arranca-o de seu contexto original e orefuncionaliza visando outros fins. Este procedi-mento é largamente adotado na projetada obrasobre as passagens parisienses e remonta ao en-saio sobre o surrealismo (1929).

Na narrativa alegórica, as “imagens dialéticas”produzem um efeito de choque: o condutor da des-carga da corrente é, aqui, o par boneco-anão cor-cunda, isto é, materialismo histórico e... teologia.A relação entre estes dois termos - que não cessade causar espanto ainda hoje - é outro dos aspec-tos surpreendentes da tese e de fato de todo o pen-samento benjaminiano. Ela implica duplo aspec-to: um teórico, outro político. O primeiro remeteao fato de Benjamin freqüentemente tomar da te-ologia judaica certas concepções que, arrancadasde seu contexto original, adquirem significaçõesinsuspeitadas que, relacionadas ao mundo políti-co e à experiência do tempo histórico, iluminam oque poderia ser uma experiência revolucionária.Elas ajudam a desconstruir a experiência da his-tória como continuidade e indicam que o presente“é visado por um passado específico”. O segundoaspecto da relação entre marxismo e teologia é de

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natureza política. Embora Benjamin recorra, usu-almente, à expressão alegórica, pode não ser in-teiramente concebível - nesse caso em que se tra-ta da perspectiva de futuro do marxismo, ou seja,da possibilidade de interromper o mecanismo quegarante a opressão por parte de todas as classesvencedoras até hoje - que ele a esteja utilizandosem referência alguma aos elementos da conjun-tura histórico-política de então. Entretanto, casofosse essa a orientação da tese 1, ainda assim po-deríamos pressupor que, contra a tradição mar-xista, ela efetivamente esteja propondo uma ali-ança entre os revolucionários e a teologia. MichaelLöwy, por exemplo, sustenta que esta tese deveser lida nesta direção e que ela profetiza movimen-tos como o da Teologia da Libertação.

No entanto, não é por demais inverossível ima-ginar que Benjamin, com tal formulação esotérica,estivesse de fato propondo uma relação entre osdois termos com base em alguns elementosconjunturais. É o que podemos supor a partir daanálise das correspondências entre Benjamin e seuamigo Fritz Lieb, um pastor militante, que foi mi-nuciosamente investigada por Chrissoula Kambas(1986). Lieb não foi apenas um teólogo preocupa-do com as questões tradicionais que tal matériasuscita: ele também uniu sua atividade de religio-so com a militância antifascista. Em França, orga-nizou atividades políticas de resistência aos ale-mães e publicou jornais engajados. Após fugir des-te país, se instalou na Suíça, onde chegou a defen-der a distribuição de armamento aos civis religio-sos com a esperança de aumentar consideravel-

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mente o combate aos nazistas, além de continuara editar jornais engajados nessa luta. Benjaminconhecia essas atividades e discutiu muitas daspropostas e da conduta de Lieb na correspondên-cia que com ele manteve, de modo que a união en-tre teologia e marxismo, por ele proposta nestatese, não era para ele uma novidade completa. Aidentificação da teologia com o anão corcunda -mestre no xadrez- indica que fora esta que preser-vara a sabedoria - a experiência -, mas os ataquesformidáveis que o século XIX produziu contra elafizeram com que aparecesse aos olhos do século se-guinte como feia e murcha e “não ousasse mostrarsua cara”, de maneira que a concepção alegórica dotexto tenta driblar essa má aparência e produzirum “choque dialético” no leitor. Fica, entretanto,registrado que, com tal postura, Benjamin não ape-nas se afasta da tradição do marxismo bolcheviquecomo, ao mesmo tempo, se aproxima da versão domarxismo proposta por seu amigo E. Bloch, autordo célebre Princípio Esperança, e se apropria doarcabouço teórico da teologia para utilizá-lo demodo profano.

IV

A revolução copernicana da rememoração

Na terceira tese, Benjamin afirma que: “O cro-nista... leva em conta a verdade de que nada queaconteceu um dia pode ser considerado perdidopara a história. Sem dúvida, somente a humanida-

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de redimida poderá apropriar-se totalmente de seupassado” (p.223). O que pode significar tal afirma-ção? Muito do ataque benjaminiano ao historicismo- ou aos diferentes tipos de historiografia que esteabrange-se deve à maneira como o presente conce-be sua relação com o passado e como pensa que podese apoderar dele. Esta não é uma questão de fácilsolução. De fato, para resolve-la, Benjamin combi-na o ataque-consumado nas Teses - aos modos comque o historicismo pensa alcançar tal conhecimen-to com a análise do modelo proustiano de recupe-ração “do tempo perdido”, a qual é levada a cabotanto no ensaio Por uma imagem de Proust como,principalmente, em um dos ensaios dedicados aoexame da poesia de Baudelaire, intitulado Sobrealguns temas de Baudelaire.

Nesse ensaio, Benjamin parte da investigaçãoda obra do filósofo H. Bergson, Matéria e Memó-ria, na qual este tenta demonstrar que a estruturada memória é decisiva para a experiência, para,em seguida, verificar como M. Proust assimila ealtera as formulações do filósofo nos oito volumesque compõem Em busca do tempo perdido: a “me-mória pura”, nesse romance, dá origem à concep-ção da “memória involuntária”. Esta, diferente-mente da “voluntária” - sempre dependente davontade intelectual - não está submetida ao apa-rato racional do indivíduo. Ao contrário: não sepode ter acesso a ela por um ato livre, por umadecisão intelectual. Ela depende de fatores quenão são diretamente controlados pelo sujeito. Ouseja: para esse escritor, o indivíduo não tem meiospara se apossar integralmente de seu passado:

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(este) encontrar-se-ia em um objeto material qual-quer, fora da inteligência e de seu campo de ação.Em qual objeto, não sabemos. E é questão de sorte,se deparamos com ele antes de morrermos ou sejamais o encontramos... fica por conta do acaso secada indivíduo adquire ou não um imagem de simesmo, e se pode ou não se apossar de sua própriaexperiência... (Benjamin, 1985, p.106).

Para Benjamin, portanto, Proust comprova oque Bergson percebera: os laços entre memória (in-voluntária) e experiência. Esta pode então ser en-tendida como: “Matéria de tradição, tanto na vidaprivada como na coletiva. Forma-se menos comdados isolados e rigorosamente fixados na memó-ria do que com dados acumulados e freqüentementeinsconscientes que afluem à memória...” (p.105). Eo autor acrescenta ainda: “onde há experiência, nosentido estrito do termo, entram em conjunção, namemória, certos conteúdos do passado individualcom outros do passado coletivo” (p.107).

Entretanto, em outro ensaio célebre dedicado a aná-lise da obra de Nikolau Leskov intitulado O Narrador,Benjamin já examinara como, da perspectiva da moder-nidade – de “tempo infernal do capital”- a experiênciaestava em baixa e já quase não era mais viável. Comotanto ela quanto a memória tendiam ao arrefecimentonas novas condições sociais, Benjamin não pode cons-truir uma teoria paralela - válida para a sociedade - doempreendimento proustiano, que é válido para a histó-ria individual. Afinal, a apropriação da totalidade dopassado pelo indivíduo depende do acaso. Se o mesmoocorresse com o passado coletivo, a política revolucio-

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nária não poderia ter um fundamento aceitável. Assim,foi obrigado, a partir da relação entre experiência e me-mória e entre a história individual e a vida coletiva, aelaborar uma historiografia que implica uma espécie de“revolução copernicana”. Esta é a história baseada narememoração, na construção social da memória, na ten-tativa de uma classe de romper o imperativo do esqueci-mento imposto pela história oficial: “o materialista his-tórico... considera sua tarefa escovar a história acontrapelo” (BENJAMIN, 1985, p. 225).

Esta concepção é obrigada a privilegiar - contracertas práticas historiográficas então vigentes, al-gumas delas ligadas ao marxismo militante - a rela-ção do presente com o passado e não com o futuro:“articular historicamente o passado não significaconhecê-lo como de fato ele foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja nomomento do perigo” (p.224). Tal formulação se deveao fato de Benjamin se desvincular - como já anotouM. Löwy - dos esquemas dominantes nos meios inte-lectuais marxistas, os quais tendiam ao mecanicismoe ao determinismo econômico. Benjamin, ao contrá-rio, concebe a história - ou mesmo cada acontecimentohistórico - como um campo de forças: a cada momen-to a história está grávida de ao menos duas possibi-lidades. Nela, enquanto local privilegiado da mani-festação da luta de classes, cada acontecimento é oresultado da vitória de um oponente sobre o outro.Nenhum acontecimento é necessário: a efetivaçãohistórica não se confunde com a necessidade. Issosignifica que sempre, a cada momento, a históriapoderia ter se realizado de outro modo. No entanto,se isso não ocorreu ainda é porque só os vencedores

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e os herdeiros que se beneficiam do mecanismo quegarante a opressão e o domínio de uma classe sobrea outra venceram até agora.

Todavia, isso indica também que o projeto ou asaspirações de uma classe - a dos derrotados desempre - foi constantemente abortado, transfor-mado em ruínas: “todos os que até hoje venceramparticipam do cortejo triunfal, em que osdominadores de hoje espezinham os corpos dos queestão prostrados no chão” (p.225). Nesse sentido,Benjamin indaga o quê pode significar ahistoriografia dos vencedores para os herdeiros dosderrotados do passado. Para ele, a única forma decombatê-la residiria na constituição de uma histó-ria assentada na memória, na rememoração daque-le acontecimento que um dia pode ser vislumbradocomo possível no céu da história, mas que não seefetivou devido ao poderio considerável da tradi-ção dos vencedores. Rememorar é, para o vencido,uma maneira de manter a identidade social e, por-tanto, sua tradição: ao mesmo tempo, forma fecun-da de golpear o inimigo e um modo de continuar afustigá-lo: “o dom de despertar no passado as cen-telhas da esperança é privilégio exclusivo do histo-riador convencido de que também os mortos nãoestarão em segurança se o inimigo vencer. E esseinimigo não tem cessado de vencer.” (p.224-5)

Nessa perspectiva, é sempre preciso atualizar opasado - conferir ao que um dia foi possível, umasegunda chance - para que, reanimado no “agora”,ele logre, por meio da vivificação de seu sopro vi-tal, romper o continuum histórico. Isto é possívelpelo fato de que cada geração é dotada de uma for-

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ça messiânica que pode torná-la capaz de “ouviros apelos do passado”: no entanto, “esse apelo nãopode ser rejeitado impunemente” (p.223). “Poisirrecuperável é cada imagem do passado que sedirige ao presente, sem que este presente se sintavisado por ela” (p.224). Exemplo fecundo dessa“atualização do passado” é encontrável nomemorialismo político de esquerda no Brasil. Umromance como Em câmara lenta, de RenatoTapajós (1976) é capaz de causar severos danos aosque, em todas as épocas, desejam apagar as mar-cas dos acontecimentos mais bárbaros - as váriasmanifestações do horror - que eles mesmos perpe-traram. Ao reconstruir - por meio de notável es-forço memorialístico para entender o nexo dosacontecimentos que o narrador foi obrigado a ex-perimentar por força da lógica repressiva etruculenta adotada pela ditadura militar - a facehorrível da história desse período recente de nos-sa vida política, esse romance não só atualiza aesperança que alimentou a ação dos que um diaousaram sonhar constituir uma outra experiên-cia histórica - em todos os aspectos bem diversada do atual presente -, dotando-a da capacidadede brilhar, ainda que fugazmente, no céu da his-tória, como desmascarou a ação bárbara dos mili-tares. Ao fazer isto, marcou o período militar como ferro em brasa da verdade, rebento rebelde damemória, evitando assim que tais atrocidades fos-sem para sempre esquecidas. Nessa matéria, o ro-mance impediu a vitória completa dos adeptos detal ditadura.

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Esse exemplo parece também fecundo para es-clarecer melhor a concepção benjaminiana. Paraele, embora cada geração seja dotado de uma forçamessiânica e se “existe um encontro marcado en-tre as gerações precedentes e a nossa”, isto nãosignifica necessariamente que cada nova geraçãoconsiga ouvir os apelos do passado. Isto pode nãoocorrer: está inscrito como possibilidade no hori-zonte da luta entre as classes. Desta maneira, acada vez que tal apelo se perder, a supremacia dosvencedores estará garantida. Esta é a razão pelaqual as classes vitoriosas de todas as épocas bus-cam impor aos derrotados o esquecimento do so-frimento ao qual estes foram - e continuam a ser-submetidos. Este esquecimento é produzido pelaapropriação dos bens culturais dos vencidos. Noentanto, Benjamin afirma que “as coisas refinadase espirituais não podem ser representadas comodespojos atribuídos ao vencedor” (p.224): na lutade classes, essas coisas produzem um efeito vindo“do fundo dos tempos” e “questionarão sempre cadavitória dos dominadores” (p.224). O que se podeaqui indagar é se Benjamin não está valorizandoem demasia “as coisas espirituais” em tal luta e seesta dimensão serve mesmo para explicar os mo-tivos reais que possibilitam a cada geração ouviros apelos do passado. Talvez a explicação não sejasuficiente e não seja uma alternativa para escapardo modelo proustiano - isto é, talvez seja o acasoque torne possível tal encontro de gerações. Pro-vavelmente é devido a isso que Benjamin recorreà imagem do perigo e da afirmação da necessida-de da ação: “o perigo ameaça tanto a existência da

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tradição como a dos que a recebem. Para ambos, operigo é o mesmo: entregar-se às classes dominan-tes, como seu instrumento” (p.224).

As Teses da Filosofia da História, de qualquermodo, apontam para a possibilidade da conquistada felicidade: esta é possível quando a humanida-de puder se apropriar da história inteira, coisa queexige a interrupção da continuidade da históriados vencedores - que não é a da humanidade, masapenas de parte dela.

V

A comuna de Paris, agora

Esta concepção histórica tem imensas conseqü-ências. Ela, efetivamente, altera os rumos da his-toriografia vigente. Tomemos alguns exemplos: ohistoriador “tradicional”, mesmo que utilize ins-trumental conceitual ou uma visão acerca do trans-correr histórico herdados da tradição do marxis-mo, ao narrar os episódios que teceram os fios con-dutores dos rumos da Comuna de Paris, os quaisdeterminaram seu desfecho, os toma como fatosdo passado e, como tal, irremediavelmente resol-vidos: o brilho deles não seria senão o da lápideonde jazem. Eles não apresentam nenhum interes-se especial para o tempo presente do historiador,que os narra apenas com a esperança de mostrarcomo de fato tudo teria acontecido e com a aspira-ção de que seus contemporâneos possam extrairde sua narração um conhecimento prático, instru-

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mental. Esse conhecimento serviria para que oserros do passado não mais se repetissem. Contu-do, para o historiador que se situe na perspectivados derrotados, sua narração tenderá àrememoração das motivações e das esperanças queanimaram, com o ardor das grandes labaredas queiluminaram por alguns dias a Paris dos insurretos,os homens que foram às ruas e provocaram a ex-plosão da Comuna. Ele ouvirá os segredos desseshomens, seus ânimos mais profundos, suas aspi-rações e, nessa tarefa, desvendará quais seriam asrazões sociais que desencadearam a revolta. So-bretudo, descobrirá que os motivos da insurreiçãonão desapareceram: nessa medida, ao narrar talhistória - que efetivamente poderia, se vitoriosa,ter interrompido a continuidade da história dosvencedores - ele a atualizará. Ainda uma vez, esta-rá ouvindo os “apelos do passado” e os inscreveráno presente: tais apelos exigem que aquela históriaseja retomada no presente, num “agora”. Esta pers-pectiva original nos ensina ainda que o tempo dosoprimidos não é semelhante à temporalidade cro-nológica dos vencedores - como o “tempo dos reló-gios não é semelhante ao tempo dos calendários”.Considera-se, a título de exemplo, o dia do traba-lhador: este dia é o da rememoração do sofrimento- do enorme dispêndio de energia, força e sacrifício- experimentado por todos os membros dessa clas-se em todas as épocas e, por esse motivo, é tambémdia de festa, no qual a carga desse passado de opres-são é objeto de rememoração, enquanto que o tem-po dos relógios não é senão o da labuta infernal - otempo sempre igual da lógica do capital.

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Outro exemplo: para um historiador comprome-tido - ainda que inconscientemente - com a con-cepção de tempo dos vencedores, narrar o adven-to da imprensa é narrar “as novas conquistas téc-nicas da humanidade” e apontar suas imensas con-seqüências em todos os setores da vida. Para o“materialista histórico” vislumbrado por Benjamina tarefa seria outra: a de apontar como a técnicada imprensa, enquanto parte constitutiva do capi-tal, ajudou a extinguir a possibilidade de qualquerum produzir cultura com o auxílio de meios “quenão custam nada, que estão aí grátis” e, deste modo,minou a autoridade de cada indivíduo para narrarsuas experiências. O advento da imprensa iniciouassim não só o processo de concentração dos mei-os de produção de cultura - fato que a conduziu adepender cada vez mais dos detentores do capital- como intensificou o declínio da nossa capacidadede transmitir experiências. O exemplo fica eviden-te se, ao invés de falarmos do advento da impren-sa, falarmos do advento das modernas tecnologiasde comunicação de massa. Vistos dessa perspecti-va, tais aparatos revelam-se profundamente rela-cionados com o declínio da experiência e, portan-to, com o da própria sabedoria. Enquanto capital,eles determinam a natureza da cultura, seus mo-dos de influência e de abrangência. Não seria as-sim temerário afirmar que eles são hoje os meiosmodernos - com finalidades arcaicas - de produ-ção do esquecimento: “E, assim como a cultura nãoé isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processode transmissão da cultura” (p.225). F. Jameson,inclusive, afirma que a verdadeira função dos no-

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vos meios técnicos de comunicação de massa nãoseria outra senão a de provocar uma “amnésia his-tórica” em todos os cidadãos. Elas serviriam paraminar o sentido da história e para impedir quecada nova geração se reconheça nas lutas da que aprecedeu.

VI

O Angelus Novus: a crítica à história enquantosofrimento

A mais famosa das teses é a de número nove,não sem razão. Ela condensa largamente o espíri-to de todo o texto. Primeiramente, porque ela é,como nenhuma outra exemplar da concepção ale-górica do texto benjaminiano: nem mesmo adedicada ao boneco e ao anão-corcunda, mestre doxadrez (tese 1), é comparável a ela. Ou ainda por-que, como a primeira, consuma um tipo de relaçãoentre o ensaio filosófico-historiográfico com a arte:se, na tese um, o texto apropriado e refuncionalizadopor Benjamin é o de um conto de E. A. Poe, nestaele concebe uma interpretação livre de uma gravu-ra de um dos expoentes da vanguarda artística -Paul Klee - intitulada Angelus Novus (ele a pos-suía e, após sua morte, ela foi entregue a G.Scholem, por vontade expressa de Benjamin). Essaapropriação serviu ao propósito do autor de ela-borar uma linguagem imagética carregada de ten-são dialética capaz de produzir o “choque” no lei-tor, semelhante ao choque experimentado pelo

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espectador cinematográfico, que foi matéria dereflexão no ensaio dedicado à reprodutibilidadetécnica da arte: linguagem, portanto, que obede-cia a uma política determinada - ou, talvez, a uma“política da linguagem”.

A tese interpreta a figura do Angelus Novuscomo “o anjo da História”. Ele parece representara classe “combatente e oprimida”, que é o sujeitodo conhecimento histórico (cf. tese 12). De qual-quer modo, trata-se do Anjo, não do Messias, jáque ele é, como se vê, impotente. Ele está com asasas abertas, pronto para o vôo, e olha fixamentepara a frente. Tem os olhos escancarados, a bocadilatada. A narração é elaborada a partir de suaperspectiva, embora o texto faça referência a ou-tra: “onde nós vemos uma cadeia de acontecimen-tos, ele vê uma catástrofe única...” (p.226). O “nós”,ao que parece, se refere ao social-democrata ou aoadepto do historicismo - em qualquer uma das suasvariantes - já que a paisagem da história é vistacomo “uma cadeia de acontecimentos”: tal ótica atorna palco de fatos interligados, em ordem cro-nológica, que faz tudo que nela ocorre parecer “na-tural” - ou não ser, ao menos, digno de espanto.Bem diversa, porém, é a visão do Anjo. Ele olhapara a frente - isto é, para o passado - e vê uma“catástrofe única”: quer parar “para acordar osmortos e juntar os fragmentos”. Ou seja, ele querinterromper o continuum da “cadeia de aconteci-mentos”: sua meta é a de eliminar a catástrofe erecompor a vida, “despertar os mortos” para, pormeio da reconstrução do que foi, poder almejar àfelicidade. No entanto, ele é impotente para tal

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ato: contra sua vontade, é impedido de fechar suasasas e impelido para trás - para o futuro - poruma “tempestade a que chamamos de progresso”.A ação que redimiria a si próprio e a todo cenáriode ruínas a que é forçado a contemplar - não semhorror - é a de deter o tempo, é a de “recuperar opassado e impedir que o futuro desse presente serealize. O Anjo da história experimenta dessa ma-neira uma situação paradoxal: se, por um lado,ele aspira à felicidade - visto que seu desejo é ode interromper o atual curso da história e assimredimir o passado -, por outro, à medida que éimpelido para o futuro pela tempestade - queimpede que cerre suas asas - ele desponta comoimpotente para realizar tal proeza. Nesse senti-do, ele talvez esteja bem mais próximo da figuraque denuncia o sofrimento do que daquele que ver-dadeiramente o suprime. Ou, em outras palavras,ele é a testemunha de acusação da barbárieimplicada na história dos vencedores e, enquantotal, aquele que impede o esquecimento das atroci-dades cometidas e, nessa medida, quem torna pos-sível esperarmos a ação efetiva capaz de redimirtodo o passado.

Esta concepção de História não é apenas umacrítica radical do progresso, visto que este é vin-culado à catástrofe - à morte e à ruína. É tambémcrítica às concepções de História que se rendem atal categoria e que por isso acabam até mesmo poraceitar o sofrimento e a barbárie como fatosconstitutivos da História. Nesse sentido, essas te-ses benjaminianas são a mais poderosa crítica for-mulada não só ao historicismo, mas sobretudo à

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concepção helegiana da História e a todas as filo-sofias da História dela tributárias: dentre estas,inclui-se certa vertente do marxismo.

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HISTÓRIA E PÓS-MODERNISMO

JOSÉ ANTÔNIO VASCONCELOS

I

A crise da modernidade

tua lmente, pelo menos no âmbitoaca-dêmico, não temos dificuldadeem reco-nhecer a idéia de progresso

como sendo mais um dos grandes mitos da culturaocidental contemporânea. Já não é possível acre-ditar que a história do gênero humano siga neces-sariamente um curso rumo a níveis cada vez maisaltos de desenvolvimento cultural. Os chamados“povos primitivos”, que já foram tidos como exem-plos de estágios atrasados de civilização, na ver-dade revelam estruturas sociais altamente com-plexas, como atestam as pesquisas etnológicas, demodo que se torna difícil um estudo comparativoem termos de superioridade ou inferioridade cul-tural. Podendo ser entendida como parte do lega-do otimista do Iluminismo, evidente em autorescomo Kant e Cordorcet, por exemplo, essa crençano progresso foi transformada, no século XIX, em

A

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lei inelutável da natureza e incorporada em gran-des sistemas filosóficos, em geral na forma de Fi-losofias da História, como a “marcha do Espírito”em Georg Wilhelm Hegel, ou a “lei dos três esta-dos”, de Augusto Comte.

Juntamente com a relutância em aceitar a idéiade progresso em História, hoje em dia olhamostambém com desconfiança o entusiasmo de gera-ções passadas com relação ao progresso da ciên-cia. De fato, não há mais como aceitar uma con-cepção linear do conhecimento científico, pois acontribuição de autores, como Michel Foucault ouThomas Khun, nos fez tomar consciência de que aciência é marcada pela ruptura, não pela continui-dade.1 Ao estudar a passagem da medicina clássi-ca à medicina moderna em O nascimento da clíni-ca, Foucault mostrou que a evolução do conheci-mento médico não pode ser tomada simplesmentecomo um refinamento de noções e que a oposiçãodos saberes moderno e antigo não pode serestabelecida em termos de verdade e erro, razão edesrazão, ciência e pré-ciência. Tratam-se de sa-beres distintos, cada um com seus próprios obje-tos, conceitos e métodos; em outras palavras, com

1 Na verdade a terminologia mais adequada, em se tratando de Foucault, seriadescontinuidade, e não propriamente ruptura. Porém, partindo da interpretaçãode Roberto Machado, que caracteriza a descontinuidade foulcautiana como umasérie de rupturas em diversos níveis do discurso, e para melhor evidenciar asemelhança – não a identidade! – entre Foucault e Khun, é que mantive o termo“ruptura”. A passagem de Roberto Machado a que me refiro está na introduçãoao livro de Michel Foucault, Microfísica do poder, 8. ed. Rio de Janeiro : Graal,1989, p. ix.

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sua própria positividade. Obras posteriores deFoucault, como As palavras e as coisas e A arque-ologia do saber tenderam a reafirmar essa tese ini-cial, estendendo a noção de ruptura para um en-tendimento cada vez mais amplo de ciência.Thomas Khun, seguindo um percurso diferente,também chegou à conclusão de que o desenvolvi-mento da ciência não pode ser concebido como umfluxo contínuo. Em A estrutura das revoluções ci-entíficas, Khun introduz a noção de paradigma, queconsiste em um modelo de explicação científicaaceito em determinada época e em determinadocontexto. O critério de legitimação de uma teoriacientífica, de acordo com Khun, não repousa embases transcendentais, mas na sua aceitação pelacomunidade científica. Um paradigma atualmen-te aceito não é mais nem menos verdadeiro queoutros paradigmas que o antecederam ou que osucederão no futuro, mas é válido na medida emque se articule com o corpo de conhecimentos con-vencionalmente aceito e na medida em que se apre-sente promissor ao acrescentar elementos novosao saber, tornando-o mais completo. Quando oparadigma não dá mais conta de cumprir essa fun-ção, é então descartado e substituído por outro,que possa servir como uma nova base convencio-nal para a investigação. Mais uma vez, portanto,ruptura, e não continuidade.

Assim como, ao longo do tempo, mudamos nos-sos padrões de comportamento – hábitos à mesa,vestuário, práticas de leitura, atuação na esferapública, etc. –, mudamos também nossas maneirasde pensar cientificamente. Essa conclusão, ainda

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que não seja assim tão difícil de ser aceita, não dei-xa de produzir repercussões desconcertantes noâmbito acadêmico. Os cientistas, trabalhando den-tro de um novo paradigma, sentem-se capazes deexplicar fenômenos que antes estavam fora de seualcance, sentindo por vezes um certo mal-estar comas declarações de epistemólogos contemporâneosque negam a noção de progresso nas ciências. Serámesmo que não estamos em melhores condições queos cientistas do passado? Será que não há maneirasmelhores e piores de pensar? Nesse sentido, nãohá como não ver com um certo alívio teorias como ade Claude Lévi-Strauss, acerca do pensamento sel-vagem. Para este autor os “povos primitivos” ope-ram com o pensamento mítico, isto é, uma organi-zação da realidade em que os elementos são unidossem um plano rigidamente estabelecido, à maneirade um bricoleur.2 É claro que, para Lévi-Strauss,os selvagens não são inferiores, mas apenas dife-rentes. Mesmo assim, em sua tentativa de dar sen-tido ao conhecimento humano, ele estabelece umadicotomia entre pensamento mítico e pensamentoconceitual que se revela em sintonia com a noçãode progresso. Numa perspectiva levi-straussiana,os selvagens não seriam inferiores a nós, mas nós

2 LÉVI-STRAUSS. “Raça e História”. In: Antropologia estrutural 2, Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1993, pp. 328-366. Este texto apresenta-se como umaapreciação violentamente crítica do senso comum e do etnocentrismo europeu,mas por vezes Lévi-Strauss tropeça na trama que ele mesmo tece ao afirmar,por exemplo, que “não é menos verdadeiro que [...] a civilização ocidentalmostrou-se mais cumulativa do que as outras”, p. 355, ou que “toda história écumulativa, com diferenças de graus [o grifo é meu]. p. 357.

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temos cientistas enquanto eles têm bricoleurs, nos-so pensamento é universal e conceitual, ao passoque o deles é particular e mítico. O pensamentodeles é bom, mas o nosso é ótimo.

Mas o fato é que chegamos em um momento denossa cultura em que não há mais como pensar asrupturas epistemológicas dentro de uma narrativacoerente. Por mais que teóricos como Lévi-Straussnos ofereçam um amplo esquema interpretativo doconhecimento, lentamente somos levados a crer quetodo esquema é insuficiente, que os modelos mo-dernos jamais nos garantirão aquela visãoabrangente e unificadora que dê conta damultiplicidade e da polissemia no pensamento con-temporâneo. Não quero dizer com isso que odissenso seja algo recente, pelo contrário, ele é pré-moderno. O que argumento é que a crítica às pre-tensões de objetividade da ciência em nossos diastem chegado a níveis sem precedentes. Não se tra-ta mais de opor antigo a novo, mito a conceito, erroa verdade, mas de perceber que os atuais critériosde legitimação podem dar aval a múltiplas inter-pretações, mesmo que conflitantes entre si.

As ciências humanas, e particularmente a His-tória, não se encontram imunes à crise epistemo-lógica que atualmente assola a modernidade. PeterNovick enfrenta diretamente essa questão ao tra-balhar a questão da objetividade na historiografiaamericana: “Para os pais fundadores da profissãohistórica, havia uma contradição entre, de um lado,os eventos singulares do passado (houve apenasuma Guerra Civil Americana), e de outro lado, aexistência da mais ampla variedade de versões

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desses eventos” (NOVICK, 1988, p. 4-5). A buscade um esquema que possa estabelecer de formadefinitiva a correta interpretação de um eventopassado é então vista por Novick como parte domito da objetividade no estudo da História. Mas apercepção de uma ruptura epistemológica nos es-tudos históricos é ainda muito anterior a Novick.Em 1979 Lawrence Stone já identificava um des-conforto para com os grandes modelos explicativos– a Escola de Annales, a História Econômica e So-cial de cunho marxista e a escola “Cliométrica”norte-americana – e um gradual retorno da narra-tiva na escrita da História.

Os historiadores atualmente são ainda confron-tados com uma crise de superprodução acadêmica,o que colabora para solapar a ilusão da objetivida-de e da unidade do conhecimento histórico. RusselJacoby, por exemplo, assim ilustra essa crise noâmbito da literatura e da História Intelectual:

Generalizações sobre disciplinas acadêmicas reque-rem audácia. Materiais abundantes e descobertas,mesmo em pequenos campos, comprometem, quan-do não refutam, as generalizações. Quem consegueacompanhar? Em um único ano (1987), professoresuniversitários publicaram 215 artigos sobre JohnMilton, 132 sobre Henry James, e 554 sobre WilliamShakespeare. [...] Afirmações sobre “a” direção dosestudos sobre Edmund Burke ou Shakespeare ine-vitavelmente parecem enganosos ou errados; inú-meros, talvez um número enorme de especialistas,contradizem um resumo do campo.

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Com a história intelectual não é diferente; genera-lizações sobre sua direção ou contornos parecemarbitrárias. Embora pequeno, o campo parece am-plo demais para permitir afirmações válidas comrelação à sua direção. Há uma virada no sentidodos estudos retóricos? Um renascimento da abor-dagem contextual de grandes figuras? Uma mudan-ça para idéias populares de grupos sociais? Essasquestões parecem sabotar respostas claras. Tudosempre parece depender de quem está olhando onde(JACOBY, 1992, p. 405).

A questão da superprodução é também tomadaem consideração pelo historiador F. R. Ankersmit.De acordo com esse autor, “estamos todos familia-rizados com o fato de que em qualquer áreaimaginável da historiografia, em qualquer especia-lidade, um extraordinário número de livros e arti-gos é produzido anualmente, tornando impossíveluma visão abrangente deles todos” (ANKERSMIT,1989, p. 137). Como resultado disso, os textos dosgrandes autores do passado deixam de serlegitimadores, e as discussões passam a se desen-volver em torno das interpretações desses grandesautores. Mas o número de intérpretes importantesé tão grande que uma vida humana é pouco paradar conta das leituras indispensáveis para umavisão completa de um campo de estudo. Somosobrigados a fazer escolhas que, em última instân-cia, sempre nos remetem a resultados parciais,inacabados, sempre sujeitos a revisão por parte dealguém que tenha lido um autor ou uma obra queignoramos. E, nesse caso, somos novamente con-

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frontados com a impossibilidade de estabelecer umaúnica interpretação correta de um texto clássico.

II

Como definir o pós-modernismo?

As reflexões em torno da crise epistemológicaque atualmente atinge todas as áreas do saber, eparticularmente as ciências humanas,freqüentemente fazem referência a uma consciên-cia de ruptura na sociedade e na cultura. Em ou-tras palavras, tais reflexões apontam para o fato deque estaríamos transitando para uma condição pós-moderna. O termo “pós-modernismo”, porém, en-frenta problemas sérios de definição. Ele denota,em verdade, um certo grau de insatisfação com asconquistas da modernidade, mas não existe consen-so quanto às mudanças que deveriam ser efetuadaspara superá-la. Além disso, a própria necessidadede definição é vista pelos pós-modernistas comouma obsessão da modernidade. Contudo, tentareitraçar algumas das características gerais do pós-modernismo, mesmo ciente de que, assim proceden-do, estarei assumindo um posicionamento decidi-damente anti-pós-modernista.

Em primeiro lugar, devemos ter em mente queo pós-modernismo constitui uma sensibilidade,não uma teoria geral da sociedade e da cultura,pois as teorias fazem parte das metanarrativas, alvoda crítica pós-modernista. “Teoria” é, na verdade,uma noção bastante problemática. De acordo com

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um dicionário, poderíamos defini-la como: “1. Co-nhecimento especulativo meramente racional. 2.Conjunto de princípios fundamentais duma arte ouduma ciência. 3. Doutrina ou sistema fundada nes-tes princípios” (FERREIRA, 1967, p. 464). Nenhu-ma dessas definições, porém, cabe ao pós-moder-nismo, pois este constitui uma sensibilidade que,quando expressada conceitualmente – seja em umadiscussão em sala de aula, em uma publicação ouem um relatório científico –, já deixaria de ser pós-modenismo, uma vez que o conceito exige as cate-gorias forjadas pela modernidade. Como diz StevenConnor, “o ato de conhecer está sempre condenadoa chegar tarde demais à cena da experiência”(CONNOR, 1994, p. 11). O que argumento, portan-to, é que existem “teóricos do pós-modernismo”, istoé, teóricos que se utilizam do aparato conceitual damodernidade para refletir sobre as questões levan-tadas pelo pós-modernismo, mas não teóricos pós-modernistas, já que o pós-modernismo exclui a teo-ria. A não ser, é claro, num sentido pouco convenci-onal do termo, qual seja, o de uma “atitude” relati-va à ciência na qual não se pode reconhecer qual-quer pertencimento essencial a uma disciplina es-pecífica. Segundo Frederic Jameson:

Uma indicação bem diferente desse esmaecimentodas antigas categorias de gênero e discurso podeser encontrada no que às vezes se denomina de te-oria contemporânea. [...] Hoje, cada vez mais,vemos um tipo de texto simplesmente chamado “te-oria” que é todas ou nenhuma dessa coisas [as dis-ciplinas acadêmicas] ao mesmo tempo. Esse novo

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tipo de discurso, geralmente associado à França e àpretensa teoria francesa, tem-se difundido muito, eassinala o fim da filosofia como tal. Deve a obra deMichel Foucault, por exemplo, ser chamada de filo-sofia, história, teoria social ou ciência política? Issoé impossível de decidir, como se diz hoje em dia; esugiro que esse “discurso teórico” também deve fi-gurar entre as manifestações do modernismo(JAMESON, 1996, p. 26).

De acordo com a crítica pós-modernista, a nar-rativa seria “o principal meio pelo qual uma cultu-ra ou uma coletividade legitima[ria] a si mesma,numa exigente tautologia” (Ibidem, p. 30). O co-nhecimento científico conceitual moderno, tentan-do escapar desse círculo, buscaria sua legitimida-de fora dos jogos de linguagem, na argumentaçãoe na demonstração empírica. Porém, segundo ospós-modernistas, os pensadores modernos acabamiludindo-se, pois “é somente por meio das narrati-vas que o trabalho científico pode receber autori-dade e propósito” (CONNOR, 1994 p. 31). Tais nar-rativas, legitimadoras do pensamento científicomoderno, constituiriam, então, as metanarrativas,assumidas de modo não questionado pelos teóri-cos da modernidade.

As metanarrativas identificam-se geralmentecom os ideais iluministas, como o otimismo emrelação ao papel da ciência, a crença no progressoou a busca de verdades e valores universais eatemporais. Jean-François Lyotard, por exemplo,em O pós-moderno, identifica duas narrativas quenorteiam a pesquisa científica moderna: a narra-

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tiva política, entendida como o discursoemancipatório da Revolução Francesa, e a narra-tiva filosófica, com base na obra de Hegel, que si-tua o conhecimento dentro de uma evolução histó-rica. A ciência moderna, apoiando-se nesses mitosfundadores, apresenta-se, então, como um saberque visa à autonomia do homem sobre as limita-ções que lhe são impostas pela natureza. E mais: aciência, sob esse ponto de vista, seria um sabercumulativo. Graças ao consenso propiciado pelasmetanarrativas, ela avançaria rumo a graus cadavez mais elevados. Ordem e Progresso, o grandelema positivista, configuraria, assim, o ideal de ci-ência da modernidade.

Sob a ótica dos jogos de linguagem, porém, a ci-ência assumiria um papel muito diferente daque-le que lhe fora outorgado pela modernidade. Osjogos de linguagem que, de acordo com os pós-mo-dernistas, constituiriam a própria matéria-primado conhecimento científico, são heteromórficos,não são redutíveis a regras gerais. Eles nãoobjetivam o consenso, mas a paralogia, isto é, aprodução e reconhecimento de verdades plurais.Na visão da modernidade, os grandes autores se-riam aqueles capazes de encerrar um debate, es-tabelecendo a verdade, um conhecimento objetivoe inquestionável. Para os pós-modernistas, pelocontrário, autores como Marx, Weber, Freud, sãograndes não por que forneceram soluções finaisaos problemas humanos, mas por que são focos, apartir dos quais, emergem feixes de discussões.

O discurso pós-modernista, denunciando o pa-radoxo da ciência moderna, que é legitimada por

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narrativas totalizadoras e, concomitantemente,confere legitimidade a essas mesmas narrativas,acaba comprometendo noções centrais para a pró-pria idéia de modernidade. Se não há um substratoúltimo, uma essência, a partir da qual se possaestabelecer uma relação entre o discurso e seuobjeto, se tudo se dissolve nos jogos de linguagem,então termos, como unidade, totalidade, finalida-de, causalidade, progresso, valores etc., perdemqualquer sentido. Numa perspectiva pós-moder-nista, portanto, não existe espaço para uma filoso-fia da representação. Tudo é simulacro. A repre-sentação pressupõe uma unidade essencial entrea linguagem e os conceitos ou as coisas por ela re-presentados. O simulacro, porém, conserva ape-nas uma identidade de aparências – que podemser múltiplas – e não de essência – que deveria serúnica. Desse modo, somos sempre confrontadoscom o espectro do relativismo epistemológico.

Frente aos dilemas colocados pelo pós-moder-nismo, parece-me inevitável uma sensação de déjà-vu. Afinal, não foi Maquiavel, sob muitos aspectos,inaugurador do pensamento político moderno, queintroduziu a idéia de que a moral é relativa, quehavia uma moral cristã e outra pagã, ambas legíti-mas, mas a segunda mais adequada a um príncipecom pretensões expansionistas? Não foram os ro-mânticos que, em pleno século XIX, propugnaramideais contra-iluministas, cultuando o Volksgeist,os valores locais, e denunciado a megalomania dosfranceses, que queriam fazer de sua cultura parti-cular um padrão universal e atemporal? E auto-res como Nietzsche, Schopenhauer ou

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Kierkegaard, com a valorização da vontade, do ir-racional e do dionisíaco, com seu feroz ataque aosmodelos totalizadores na sociedade e na cultura,não estariam eles em sintonia com muitas das te-ses advogadas pelos arautos do pós-modernismo?

Os pós-modernistas, apesar de seu entusias-mo iconoclasta, reconhecem de bom grado suadívida para com a modernidade. Linda Hutcheon,em uma frase de efeito, embora um tanto enig-mática, afirma que “o pós-modernismo paradoxalé, ao mesmo tempo, edipianamente oposicional efilialmente fiel ao modernismo” (HUTCHEON,1991, p. 121). De acordo com esta autora:

Certamente a natureza provisória e indeterminada,do conhecimento histórico não foi descoberta pelopós-modernismo. Nem o questionamento do statusontológico e epistemológico do ‘fato’ histórico ou asuspeita de aparente neutralidade e objetividade dorelato. Mas a concentração dessas problematizaçõesna arte pós-moderna é algo que não podemos igno-rar (Ibidem, p. 121).

E não só na arte. Também no âmbito acadêmicoo debate sobre o pós-modernismo dá mostras deser mais do que uma moda passageira. “Com o apa-recimento de La Condition postmoderne, de Jean-François Lyotard, em 1979, e com sua traduçãopara o inglês em 1984, esses diferentes diagnósti-cos disciplinares [acerca de uma ruptura com amodernidade] recebe[ra]m uma configuraçãointerdisciplinar e pareceu não haver mais espaçopara se discordar de que o pós-modernismo e a

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pós-modernidade tenham vindo para ficar”(CONNOR, 1994, p. 14). É verdadeiramente sur-preendente o espaço institucional que o pós-mo-dernismo vem conquistando.

III

O pós-modernismo e a escrita da História

Dentre as diferentes disciplinas acadêmicas,uma das que receberam mais confusamente o im-pacto do pós-modernismo foi certamente a Histó-ria. Entre os adversários do pós-modernismo, en-contramos freqüentemente a afirmação de que esteé avesso ao conhecimento histórico. Argumenta-se que o “pós-modernismo é uma visão irônica, tal-vez desesperadora do mundo, e em suas formasmais extremas oferece pouco espaço à Históriacomo até então se conhece” (APPLEBY; JACOB;HUNT, 1994, p. 207) Há ainda o reconhecimentode que, “independente da definição mais restritaque se dê àquilo que sob a designação de ‘pós-mo-dernidade’ inquieta a cabeça dos intelectuais, elarepresenta um desafio para a Ciência Histórica”(RÜSEN, 1989, p. 303). Mesmo entre autores quesimpatizam com o pós-modernismo, podemos no-tar repetidas afirmações de que a História éirrelevante, ou perigosa, ou que está em vias dedesaparecer. Frederic Jameson, por exemplo, as-sim se refere à questão:

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Creio que a emergência do pós-modernismo está es-treitamente relacionada com a emergência dessenovo capitalismo tardio, multinacional ou de consu-mo. [...] Só conseguirei, no entanto, demonstrar issono tocante a um grande tema, qual seja, o desapa-recimento do sentimento da história, o modocomo todo nosso sistema social contemporâneo co-meçou, pouco a pouco, a perder sua capacidade dereter seu próprio passado, começou a viver num pre-sente perpétuo e numa perpétua mudança queoblitera o tipo de tradições que todas as formaçõessociais anteriores, de um modo ou de outro, tiveramque preservar (JAMESON, 1993, p. 26).

Mais enfático ainda é Jean Baudrillard, outroautor que também discute o pós-modernismo:

A história era um mito muito forte, talvez o últimograde mito, a par do inconsciente. Era um mito quesubentendia ao mesmo tempo a possibilidade de umencadeamento ‘objetivo’ dos acontecimentos e dascausas, e a possibilidade de um encadeamento nar-rativo do discurso. A era da história, se se pode di-zer, é também a era do romance. É este caráterfabuloso, a energia mítica de um acontecimento ouuma narração, que parece perder-se cada vez mais(BAUDRILLARD, 1991, p. 65).

Do meu ponto de vista, contudo, acho temeráriocaracterizarmos o pós-modernismo como “a-histó-rico” ou “contra-histórico”, como se esse aspectofosse relevante para distingui-lo da modernidadeque o precedeu. A questão da relação entre pós-

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modernismo e História é mais complexa do que isso,pois “o pós-moderno realiza dois movimentos simul-tâneos. Ele reinsere os contextos históricos comosendo significantes, e até determinantes, mas, aofazê-lo, problematiza toda noção de conhecimentohistórico” (HUTCHEON, 1991, p. 122). Mas, claro,mais fácil que enfrentar esse paradoxo é simples-mente negar ou depreciar o papel da História naarte e na cultura pós-moderna.

Tomemos, por exemplo, o percurso de HaydenWhite em um artigo intitulado “The burden ofhistory”, publicado pela primeira vez em 1966,muito antes de as discussões acerca do pós-mo-derno ganharem espaço acadêmico. Nesse textoWhite defende a idéia de que a História, comovem sendo praticada institucionalmente, é vistapor intelectuais de renome, como sendo “um far-do real imposto ao presente pelo passado, na for-ma de instituições, idéias e valores obsoletos”. Enão só: “também o modo de ver o mundo que con-fere a essas formas antiquadas sua autoridadeespaciosa” é igualmente vista como um peso a sercarregado inutilmente, algo de que devemos noslivrar, o quanto antes, para que estejamos aptosa “enfrentar os problemas do presente” (WHITE,1985, pp. 39-40). O que há de original no pós-mo-dernismo, portanto, não é a suspeita do valor –moral ou epistemológico – do conhecimento his-tórico, mas uma incorporação crítica da Históriana crítica à modernidade. Em sua cruzada contraa afirmação de verdades universais e atemporais– herança do Iluminismo – o pós-modernismo in-voca a História para denunciar o caráter contin-

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gente de qualquer valor, de qualquer verdade, epara nos lembrar, uma vez mais, que toda repre-sentação é historicamente construída.

Uma das grandes dificuldades em percebermoso real impacto do pós-modernismo na escrita daHistória deve-se ao fato de geralmente não dar-mos suficiente atenção às problemáticas relaçõesentre História e Literatura, ou entre História emsentido amplo – englobando a História Política,Social, Econômica, Demográfica etc., e a HistóriaIntelectual e Literária em particular. Os pós-mo-dernistas, ao afirmarem que não há no passado umarealidade primordial a ser descoberta, mas um sen-tido a ser inventado, deixam os historiadores emgeral um tanto decepcionados, pois isso não re-presenta uma grande novidade para a historiogra-fia. Ainda que o historiador não possa prescindirde uma pesquisa empírica, ainda que a Históriaobjetive o acontecido e não o puramente inventa-do, a ele certamente é que cabe a tarefa de seleci-onar os dados do passado e ordená-los de formacoerente, o que, numa acepção mais ampla da pa-lavra, também não deixa de ser uma invenção.

Grande parte dos profissionais de História, de-vemos reconhecer, ainda é muito dependente dasmetáforas de verticalidade, características da con-cepção de ciência da modernidade. Muitos mar-xistas, por exemplo, ainda buscam explicar o cam-po cultural como se este fosse uma conseqüência di-reta, inevitável e inequívoca da base econômica dasociedade. Mas estes constituem a exceção, não aregra. Os historiadores costumam ser sensíveis aofato de que seus objetos de estudo não são relevan-

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tes por si mesmos, mas por uma escolha do pesqui-sador. Os historiadores, de modo geral, não têm difi-culdade em reconhecer que o documento não “falapor si mesmo”, mas que é trazido para um campo devisibilidade, porque o historiador decidiu fazê-lo.

Ora, aquilo que é visto de maneira não muito pro-blemática pelo historiador tem um efeito devasta-dor no campo da Filosofia e da Teoria Literária.Para o historiador em geral – é claro, sempre háexceções –, não há necessariamente uma priorida-de ontológica entre, digamos, documentos de arqui-vos, textos de jornais, depoimentos orais, ou sériesestatíticas. Além disso, em muitos casos, o histori-ador não busca o que o autor do texto “realmentequis dizer”, mas está mais interessado em ler nasentrelinhas, em tentar identificar o que, de fato, oautor da fonte não teve a intenção de dizer. Na Fi-losofia, porém, é um choque perceber que os textosdos autores clássicos não são autoritativos, e queas pesquisas acadêmicas não podem almejar senãoa produção – e não a recuperação – do sentido deum texto. É um choque saber que os textos de Hegel,por exemplo, possuem o mesmo statusepistemológico que os textos de seus discípulos maisobscuros. É difícil admitir que Platão seja um gran-de autor, não porque seus textos sejam excepcio-nalmente brilhantes, mas pelo excepcional consen-so dentro de nossa cultura em reconhecê-los comotal. Do mesmo modo, não é fácil, no campo da Teo-ria Literária, perder de vista as bases teóricas quenos permitiam distinguir os grandes autores e asgrandes obras da literatura universal e das litera-turas nacionais. Se Finnegan’s Wake só se impôs

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como uma importante obra literária por causa doconsenso que se estabeleceu a esse respeito, entãoestabeleçamos o consenso de que Sands of Timeapresenta uma qualidade literária incomparavel-mente maior e Sidney Sheldon superará JamesJoyce no cânone literário ocidental. Os críticos li-terários, em geral, não aceitam silenciosamente“disparates” dessa natureza.

Não pretendo argumentar, com tudo isso, que oshistoriadores “eram pós-modernistas e não sabiam”,ou que o impacto do pós-modernismo não diz res-peito à História. Meu objetivo, isto sim, é deixarclaro que o que mais ameaça a História não é orelativismo, embora o relativismo pós-modernistaseja realmente avassalador. O que, na verdade, as-susta os historiadores são duas outras tendênciaspós-modernistas: a insistência em submergir a His-tória no âmbito da Literatura, e o esmaecimento dadistinção entre texto e contexto.

A discussão sobre a identidade – ou não – dosdomínios da História e da Literatura foi objeto deum artigo da crítica literária Linda Orr, publica-do em 1986 e subsequentemente citado por inú-meros historiadores de orientação pós-modernis-ta. De acordo com essa autora, a Literatura cons-tituiria o Outro da História, aquilo que ameaçaabsorvê-la, comprometendo, assim, suaespecificidade e autonomia. Contudo, argumentaOrr, por mais que a História tente desvencilhar-se de seu Outro, o esforço é vão, pois, passado al-gum tempo, as grandes obras historiográficas aca-bam invariavelmente sendo incorporadas aocânone literário. É nesse sentido que Orr cita

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Voltaire, segundo o qual, “Toda História é recen-te”, para afirmar que “de outro modo ela se con-verte em Literatura.”(ORR, 1986, p. 5).

A relação entre texto e contexto constitui outradas questões que mais perturbam um entendimen-to tradicional de pesquisa historiográfica. Segun-do esse entendimento, a correta interpretação deum texto depende de sua articulação ao contextoem que foi produzido. Contudo, numa perspectivasemiótica, o próprio contexto não passaria de umtexto, também sujeito a interpretação à luz de umoutro contexto, que, por sua vez, seria ainda umoutro texto. Isso tudo nos leva à conclusão de quea interpretação definitiva torna-se uma meta ina-tingível. Um texto nos remete a outro, e este a maisoutro, formando uma cadeia infinita a que a teorialiterária chama de intertextualidade. Mas, se as-sim for, cai por terra qualquer pretensão de obje-tividade no estudo da História.

Outra questão que freqüentemente se presta aconfusões, diz respeito a quem devemos colocar norol de historiadores pós-modernistas. Jörn Rüsen,por exemplo, apresenta Emmanuel Le Roy Laduriee Carlo Ginzburg como historiadores pós-moder-nistas, o que é altamente contestável (RÜSEN, 1989,p. 316). Linda Hutcheon vai ainda mais longe e si-tua Fernand Braudel(!) na linha de frente do pós-modernismo, por sua problematização da noção detempo histórico (HUTCHEON, 1991, p. 130). Ora,é notório o envolvimento de Ladurie com a explo-ração quantitativa e cartográfica dos arquivos mi-litares franceses, um empreendimento inequivo-camente moderno, uma vez que se alinha aos “gran-

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des modelos explicativos”, de que fala Stone, ou às“metanarrativas” de que trata Lyotard. Ginzburg,por sua vez, alerta que a História, “vista de baixo”e microscópica com a qual trabalha, acabou inspi-rando pesquisas que foram longe demais. Nessesentido, ele se recusa abertamente a servir deícone a tendências pós-modernas. “Nada está maisdistante de mim”, nos diz Ginzburg, “do que a idéiade ter uma audiência composta de jovens estudan-tes de esquerda apaixonados pela história vistade baixo e aguardando de mim uma mensagemnessa direção” (GINZBURG, 1999). E finalmenteBraudel – será preciso dizer? – é visto atualmentecomo a ortodoxia da escola de Annales, frente à jánão tão nova História das mentalidades. Como épossível considerá-los pós-modernos? Ora, é ine-gável que a História Social, com seu diálogo com aEconomia e com a Sociologia, mesmo dentro de umparadigma moderno de ciência histórica, abriu ocaminho para os questionamentos pós-modernis-tas. Segundo Joyce Appleby et al:

Os historiadores sociais esperavam acertar oferecen-do uma visão mais complexa do passado, mas um deseus principais efeitos foi revelar como eram limita-das as histórias até então. [...] Portanto, a nova his-tória social pode ser usada (e às vezes abusada) poraqueles que insistem que a história não pode maisoferecer uma narrativa nacional, que ela é sempreparcial, sempre política, sempre propagandística, ede fato mítica. Ironicamente, então, o trabalho doshistoriadores sociais abriu espaço para o argumentode que a História jamais poderia ser objetiva. É como

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se os historiadores sociais, com sua paixão emdesmembrar o registro histórico, tivessem cavadoum buraco potencialmente fatal no qual a históriacomo disciplina pode desaparecer completamente(APPLEBY; JACOB; HUNT, 1994, p. 200).

E isto é ainda mais evidente com relação à cha-mada “Nova História Cultural”, que busca um diá-logo com a Antropologia e a Teoria Literária. Cadavez mais se discute o “perspectivismo” do histori-ador e cada vez mais a objetividade no estudo daHistória é posta em xeque. Historiadores comoLadurie ou Ginzburg não são pós-modernos, pois,por mais que o primeiro tenha estudado uma obs-cura aldeia nos Pirineus, e o segundo, um esqueci-do moleiro condenado pela Inquisição, esses his-toriadores buscam situar seus objetos de estudodentro da dinâmica de um contexto histórico maisamplo. Mas o fato é que esse empreendimento estáse tornando cada vez mais difícil, e talvez esteja-mos transitado para uma época em que não maisimportam as grandes tendências gerais, não im-portam os grandes modelos explicativos. Talvezestejamos tomando consciência de que Mennochiovale a pena ser estudado, não só porque ele nosajuda a compreender com mais profundidade umprocesso histórico mais amplo, mas porque é bomouvi-lo, porque conhecê-lo por intermédio de umhistoriador genial nos causa um prazer imenso.

O historiador F. R. Ankersmit descreve este mo-vimento da consciência histórica contemporâneaatravés de uma metáfora particularmente simpá-tica. “Comparemos a História a uma árvore”, nos

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diz ele, e perceberemos que a História da Históriasurgiu como um tronco, do qual saíram galhos, dosquais saíram ramos, e dos ramos saíram folhas. Asfolhas ainda fazem parte da árvore, ainda fazemparte de um todo. Porém as metanarrativas quemantinham a unidade da História não parecem sermais adequadas. Isso, de acordo com Ankersmit,seria um indício de “o vento frio que se levantou[...] por volta de 1900 simultaneamente no Oeste eno Leste, finalmente soprou soltando as folhas denossa árvore histórica, na segunda metade desteséculo [XX]” (ANKESMIT, 1989, pp. 149-150). Asfolhas não fazem mais parte da árvore, e, se deagora em diante elas formam algum padrão, se elasdevem fazer algum sentido, é o sentido que nósdermos a elas. O pós-modernismo anuncia, por-tanto, que algo está tomando forma no cenáriohistoriográfico contemporâneo, algo que pode sig-nificar uma renovação teórico-metodológica semprecedentes. Os teóricos do pós-modernismo inci-tam-nos a escrever “uma História que não digarespeito a autores mortos, mas a livros vivos, nãoum retorno de escritores antigos a seus contextoshistóricos, mas com uma leitura de trabalhos his-tóricos em contextos novos e inesperados, não àreconstrução do passado, mas fornecendo um ma-terial crítico pelo qual os trabalhos valiosos dopassado possam sobreviver a seu passado – sobre-viver a seu passado de modo a falar-nos acerca denosso presente” (HARLAN, 2000, p. 62). Que his-toriador há de resistir a este convite?

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ATÉ ONDE VAI O IMAGINÁRIO NAHISTÓRIA? Uma Crítica do Marxismo a

Partir de Castoriadis

FRANCESCO PECORARI

I

A crítica de Castoriadis à concepção marxistada história

o último quartel do século passa-do, fazendo um balanço provisó-rio do Marxismo, após 50 ou 60 anos

de sua chegada ao poder em vários países do mun-do, Cornélius Castoriadis, ex-militante e revolu-cionário comunista francês, foi obrigado a reco-nhecer que o movimento tinha fracassado redon-damente. O motivo principal dessa falência, en-tre outros, era que o Comunismo, onde se insta-lara, tinha se transformado, de uma teoria revo-lucionária da classe operária, numa ideologia fe-chada e acabada, com a qual pretendia-se expli-car toda a história humana. Escrevia ele, no seufamoso livro: L’instituition imaginaire de lasocieté: “Primeiramente o Marxismo é uma ideo-logia enquanto tornou-se dogma oficial dos poderes

N

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instituídos nos países chamados por antífrase “socia-listas”1. Era o caso da Rússia (URSS), China, Polônia,Iugoslávia, Cuba etc., onde a classe estatal dominan-te, divorciada do proletariado, mas em nome do regi-me marxista, “justificava” a manutenção do aparelhoestatal “nas formas mais rígidas e opressivas que seconheçam”2. De doutrina revolucionária e “práxis”transformadora da sociedade, o Marxismo tornara-semais uma ideologia totalitária e opressora. Além dis-so, segundo os novos teóricos do Marxismo, neste casofundamentados em Marx, com essa ideologia, deviaser lida e interpretada toda a história (pré-história)da humanidade. Quer dizer, o esquema marxista,dialético e materialista, devia ser aplicado a todos osgrupos humanos, dos mais primitivos à sociedade ca-pitalista atual. Chegava-se, assim, à visão globalizantee racionalista da história3.

Explicar toda a história humana nos moldes mar-xistas significa afirmar o seguinte: o fator econômico(forças produtivas e as relações de produção) consti-tui a base ou a “infra-estrutura” de toda sociedade.Essa “infra-estrutura” material determina a “super-estrutura” ou as formas espirituais da sociedade (insti-

1 CASTORIADIS, Cornélius. L’ institution imaginaire de la societé. Paris: Éditionsdu Seuil, 1975, p. 15. Nessa obra, o autor faz um balanço provisório doMarxismo, critica sua degeneração originária e já prevê a sua crise. Ela serácitada neste trabalho na edição original e a tradução das citações é nossa.

2 Ídem, ibidem, p. 16. Tendo em vista as épocas de Stalin, Mao-Tse-Tung, Tito,Fidel Castro, a crítica acerba tem toda a sua razão.

3 Entre os autores que mais contribuíram para esta transformação, o próprioCastoriadis cita Trotski (Em defesa do Marxismo – 1940) e Lukàcs, (O que é omarxismo ortodoxo ? In: História e consciência de classe – 1923). Cf.CASTORIADIS, op. cit. p. 57.

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tuições e ideologias) num relacionamento causal.O econômico e material precede e condiciona qual-quer forma de consciência. Do choque inevitávelentre as forças produtivas e as relações de produ-ção, choque exacerbado pela “super-estrutura”,nasce a dialética da história. Essa dialética é amola do progresso da história, pois, de contradi-ção em contradição, leva-la-á ao estágio mais per-feito, que é o socialista. O último estágio a ser su-perado é o da sociedade capitalista, cujas contra-dições, segundo as análises de Marx, eram tão gra-ves e insuperáveis, que a sua hora de morte játinha chegado. O estabelecimento de uma socie-dade socialista e, logo após, comunista, poderá de-morar, nos vários países, a depender de seu esta-do de evolução industrial e tecnológica, mas, deantemão, ele já está certo e inevitável. Cessará,então, a contradição entre as relações de produ-ção e as forças produtivas e instaurar-se-á umasociedade justa, livre e igualitária, proporcionan-do a todos riqueza, paz e bem-estar. Com o adven-to do comunismo terá início a verdadeira históriahumana.

A crítica de Castoriadis a essa teoria globalizanteda história é arrasadora e cabal. Inicialmente, partin-do de dentro do terreno do próprio Marxismo, isto é,da análise econômica do regime capitalista, ele mos-tra que Marx falhou de forma clamorosa. Com efeito,aquelas contradições internas do capitalismo denun-ciadas por ele, como o aumento das taxas de explora-ção, o acúmulo do capital, os baixos salários, o cresci-mento da pobreza etc. foram superadas e resolvidasdentro do próprio sistema capitalista. Houve refor-

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mas, acomodações e concessões, surgiram fatosnovos que Marx não previu e que excederam do seusistema e, conseqüentemente, o falsificaram.

Ainda nesta análise crítica, Castoriadis apontaconstatações inexplicáveis pela teoria marxista. Porexemplo, o registro de civilizações altamente desen-volvidas de um ponto de vista político, cultural e reli-gioso (Hebreus, Gregos, Hindus) e extremamente atra-sadas e pobres no tocante ao desenvolvimento técni-co de seus meios de produção. Isso significa que não ésempre verdade que o desenvolvimento econômicoprecede e determina o progresso espiritual e cultu-ral e prova que a “super-estrutura” (criações espiri-tuais) pode existir sem a decantada base material.

Essas críticas gerais ao Marxismo têm a finalida-de precípua de rejeitar a teoria globalizante da histó-ria nele contida. Segundo Castoriadis, a filosofia mar-xista da história se caracteriza, “em primeiro lugar esobretudo, por um racionalismo objetivista”4. Issoeqüivale a afirmar que: “o real é perfeitamente expli-cável”5 ou melhor, recordando e completando a famo-sa frase de Hegel: “Tudo o que é e será real, é e seráracional”6. De certa forma, Marx concorda com Hegel

4 CASTORIADIS. op. cit. p. 57. Isto significa que o objeto da história é parecidocom o objeto das ciências naturais, regido por leis necessárias e imutáveis etodos os fatos têm a sua explicação racional adequada e cognoscível.

5 Idem. ibidem, p. 58.6 A conhecida afirmação de Hegel é: “Tudo o que é real é racional e tudo o que é

racional é real” e recorre em várias obras, notadamente na Introdução daEnciclopédia das ciências filosóficas – 1817 e no Prefácio da Filosofia do Direito(1921). Cf. Hegel, Enciclopedia delle scienze filosofiche, p. 9. A complementaçãode Marx acentua a previsão do futuro e o determinismo que tal afirmaçãocomporta. Cf. também, MARX. Para a crítica da economia política, p. 25-26.

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de que “A razão governa o mundo e a história univer-sal é um processo racional” e que existe realmenteuma “astúcia da razão”7. Mesmo que essa razão nãoseja a mesma de Hegel, pois em lugar de abstrata eideal ela é concreta e de caráter econômico, o esque-ma não muda: toda a história, passada, presente e fu-tura, está completamente determinada por uma su-cessão de causas e efeitos perfeitamente adequados ecognoscíveis e sabe onde vai chegar. A estrutura e adinâmica da história não são mais mistério, já pode-mos compreender, explicar e até prever a história:pois suas causas, de ordem sócio-econômica, pareci-das com as leis físicas, são necessárias e infalíveis.

Castoriadis nega categoricamente essa visãoracionalista e determinista da história, apontandoinsistentemente o grande papel que o não-causalexerce no devir histórico. “É verdade – reconheceele – nós não podemos pensar a história sem a cate-goria da causalidade ..., no entanto, não podemoschegar a integrar essas dinâmicas parciais a umdeterminismo total do sistema...; o social (ou o his-tórico) contém o não-causal como um momento es-sencial”8. É essa a grande tese de Castoriadis: a his-tória não é algo de translúcido e transparente à ra-zão humana; sua constituição e seu processo nãosão explicáveis e predetermináveis, pelo fato de queo causal nela ocupa apenas uma pequena margem.Com efeito, afirma ele, apenas “alguns aspectos,alguns cortes do social se submetem ao determi-

7 HEGEL. Filosofia da História, p. 17 e 35.8 CASTORIADIS. op. cit. p. 59.

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nismo e mesmo estes mergulham num conjunto derelações não deterministas”9. Isto é, o não causal épreponderante e essencial na história.

Castoriadis prova sua tese em dois tempos: pri-meiro, recordando que a história é feita pelos in-divíduos e estes, excetuando alguns comportamen-tos típicos e regulares, agem de maneira totalmen-te livre e pessoal, impossibilitando qualquer pre-visão e catalogação; e segundo, ressaltando que,tanto os indivíduos, quanto os grupos, são semprecapazes de um comportamento criador e inovador.É exatamente essa a grande diferença entre oshomens e os animais: estes agem por instinto e deforma sempre igual; já aqueles, por serem dotadosde inteligência e liberdade, podem não apenas res-ponder de uma forma nova a condições e estímu-los velhos, mas até criar situações e estímulos no-vos. Tudo isso leva a concluir que existe muito de“imaginário” e totalmente imprevisível na histó-ria humana, que impede que ela seja pensada se-gundo um esquema determinista e globalizante.

II

O Imaginário individual e coletivo no processohistórico e seus limites

“A história é impossível e inconcebível fora daimaginação produtiva e criadora, daquilo que nós

9 Idem, ibidem . p. 60.

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chamamos de imaginário radical, tal qual se mani-festa simultânea e indissoluvelmente no fazer his-tórico e na constituição, antes de qualquerracionalidade explicita, de um universo de signi-ficações”10. Esse “imaginário radical”, do qual falaCastoriadis, podemos reconhecê-lo nos dois agen-tes principais da história: o indivíduo e a socieda-de. Não há dúvidas de que existe um imaginárioindividual, fruto dos atos livres, conscientes e in-tencionais de cada pessoa. Cada homem é diferen-te do outro e possui características próprias, in-clusive, suas idiossincrasias. Daí, são possíveiscomportamentos específicos, repletos decriatividade e variabilidade e até de extravagân-cias, totalmente imprevisíveis. Pensemos nacriatividade dos gênios, nas façanhas dos heróis,no “humor” e nas “loucuras” de tantos reis e impe-radores, na instabilidade da “fortuna” etc. e nosconvenceremos facilmente de que o “poder imagi-nativo” do indivíduo, no processo histórico, é pra-ticamente inesgotável.

No devir histórico propriamente dito, o “imagi-nário individual” que exerce maior influência éaquele dos líderes, dos chefes e dos heróis. Porexemplo: quem poderia ter previsto as conquistasde Alexandre o Grande, as proezas de Aníbal, asvitórias de Júlio César, os feitos de Carlos Magno,as campanhas gloriosas de Napoleão e as megalo-manias de Hitler? Isso, sem falar de tantos outrosexemplos. Face a essa importância dos indivíduos

10 Idem, ibidem, p. 204.

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nos fatos históricos, muitos historiadores têm-seperguntado se ela não é feita mais pelo herói doque pela coletividade. Embora a resposta mais co-mum a essa pergunta seja aquela de que o herói éfruto do meio e do momento histórico, temos quereconhecer o papel preponderante exercido na his-tória dos povos pelas decisões livres, personalísticase, às vezes, até arbitrárias de seus líderes políticos,religiosos e militares.

Também, não há dúvidas de que existe um imagi-nário coletivo, de certa forma, conseqüência e refle-xo do imaginário individual. Consiste no poder derenovação e mudança da sociedade. Poder, este, quese manifesta na instituição de novas formas de vidasocial, de novas normas e padrões comportamentais,novos valores, novas técnicas, novas regras jurídi-cas, éticas e políticas. Essas mudanças, muitas ve-zes, são totalmente novas, originais e imprevisíveis,apontando para um imaginário altamente criativo ede largas proporções. A título de exemplo, podemosindicar alguns casos recentes: o movimento hippiedos anos 60, com sua atitude anti-cultural e suas ex-travagâncias comportamentais; a revolução culturalda China de Mao-Tse-Tung, totalmente inconciliá-vel com a tradição milenar chinesa; e, por sugestãodo próprio Castoriadis, o nascimento da burocraciasoviética, completamente estranha e alheia à previ-são e à lógica marxista.

Porém, a maior dificuldade do problema para ainterpretação da história não está tanto em admi-tir esse imaginário coletivo e individual, e sim noestabelecer seus limites, isto é, em determinar atéaonde vai. Como o mesmo Castoriadis reconhece,

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esse inventivo, esse não-causal e, portanto, nãopredizível no processo histórico não pode ser con-cebido como absoluto e total. Pois existem umasconstantes, uma significação, uma coerência, umascausas no encadeamento dos fatos históricos. Onexo causal, as tendências comuns e uma certaexplicação racional são facilmente reconhecíveisem muitos fatos, épocas e culturas específicas,exemplo: idade média, renascença, revolução fran-cesa, as duas guerras mundiais, revolução russaetc. O causal e o inventivo, portanto, se misturame vão juntos na história: o que eqüivale a dizer,que o imaginário tem limites na história.

Mas a explicação que Castoriadis propõe dessasignificação histórica não nos parece muito convin-cente. Diz ele que, mesmo os indivíduos e os gru-pos agindo sempre segundo uma intenção definida,o resultado global e final não seria visado por nin-guém, seria sempre um produto de coincidênciasfortuitas e de circunstâncias imprevisíveis. Deve-ras ele afirma: “Cada indivíduo e cada grupo emquestão perseguem finalidades que lhes são pró-prias , ninguém visa à totalidade social como tal”11.E, entre outros, traz o exemplo do surgimento docapitalismo: essa espécie de “entidade histórica”superior que resultou pela conjugação de váriasintenções e fatos particulares , mas que ninguémseparadamente desejava ou previa. “Tudo se passacomo se esta significação global do sistema fosse

11 Idem, ibidem, p. 62.

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dada de qualquer maneira de antemão”12. E, aqui,ele faz até apelo ao acaso e cita, confirmando-a, umafrase de Marx: “se não existisse o acaso”, a históriaseria uma magia”13. Conclusão: o que Castoriadisquer dizer é o seguinte: “Esta significação é outradaquela efetivamente vivida pelos atosdeterminantes de indivíduos concretos”14. Ela é frutodo acaso ou colocada do exterior e “a posteriori”. E éexatamente por isso que essa significação ou coerên-cia interna da história não pode ser reduzida à cate-goria da causalidade. Isso confirma a sua tese, deque o “não-causal e o imaginário continuam sendo omomento essencial da história”.

Contra Castoriadis, nós afirmamos que o ima-ginário tem limites na história e não ocupa o lugarprincipal. Com efeito, tanto os indivíduos quantoas coletividades, juntamente com sua liberdade esua capacidade criativas, possuem, também, umasmotivações intrínsecas bastante constantes e dasquais não podem se esquivar. A primeira é a pró-pria razão ou “bom senso”, como a chama Descar-tes, que é comum a todos os homens e que está naraiz de todo agir humano15. É difícil pensar no ho-mem que não se deixa guiar pela razão nas suasdecisões e no seu comportamento. Mesmo se mui-

12 Idem, ibidem, p. 63.13 Idem, ibidem, p. 6314 Idem, ibidem, p. 6015 Cf. DESCARTES. Discurso sobre o método, p. 9. Embora este “bom senso” ou

razão sejam comuns a todos os homens, segundo Descartes os homens nãoagem de acordo com eles, por isso a história não pode ser uma ciência, porqueé irracional e só trata do particular.

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tas vezes sucumbe aos impulsos e às paixões, aracionalidade predomina em seus atos. A segundafonte de motivação constante pode ser encontra-da nas tendências básicas e comuns a todo ser hu-mano, como o orgulho, a auto-afirmação, a ganân-cia, a busca do poder, a sede das riquezas, do pra-zer e das comodidades da vida, os desejos da gló-ria, do sexo, da dominação etc. Quem poderá ne-gar a participação dessas tendências básicas nahistória humana, repleta de guerras, revoluções,conquistas, opressões e vinganças? Esse fatoinconteste, explica as conhecidas expressões:“Nada de novo debaixo do sol” (Eclesiastes), “ahistória se repete ou faz voltas”, “a história é umeterno retorno” como, também, justifica as afir-mações de vários historiadores, que falam de “fa-tores operantes básicos”, “tendências invariáveis”e de “leis históricas”16. Então, além de uma certalógica ou coerência interna, a história tem umasmotivações constantes, que permitem, de certa for-ma, explicá-la e prevê-la. Em outras palavras, émister reafirmar, que o imaginário na história temlimite e não ocupa o lugar preponderante.

Mas qual é este limite? É aqui que está a ques-tão! Sem dúvidas, é preciso rejeitar toda posiçãoradical e extremista. Assim, tanto Marx, quandoreduz toda a causalidade histórica ao fator econô-

16 O Professor Cheyney, da corrente positivista, propõe seis leis da história, citadase analisadas por Henry Steele Commager, no seu livro Iniciação ao estudo dahistória, Zahar, 1967, p. 117; Cf., também, MARITAIN, Sobre a filosofia dahistória Herder, 1962, onde ele expõe as chamada “Leis funcionais”e “Leis vectoriais”da história.

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mico, quanto Freud, quando explica todo o com-portamento humano pelo instinto sexual (libido),exageram e erram, porque absolutizam e simplifi-cam demais a complexa causalidade histórica. Naverdade, são muitos os fatores que intervêm nosfatos históricos e todos eles devem ser levados emconsideração, seja qual for sua natureza e sua or-dem. Talvez, alguns são mais fortes, como estesapontados por Freud e Marx, mas não podemosignorar nenhum deles, inclusive os que são total-mente imprevisíveis. Mas o problema permane-ce: a quem devemos atribuir mais espaço, à causa-lidade científica e racional ou ao imaginário? Vi-mos a posição de Castoriadis, mas a posição quenós defendemos é outra: não é o não-causal queocupa o momento mais importante na história, esim o causal.

III

É possível uma teoria globalizante da história?

Pela conclusão a que chegamos, poder-se-ia pen-sar que a crítica de Castoriadis à teoria marxistaé infundada e que uma visão globalizante da his-tória é perfeitamente viável. Mas não é essa a nos-sa opinião. Pelo contrário, Castoriadis está certoem negar o determinismo e a possibilidade de umaciência completa da história: apenas o motivo e afundamentação têm que ser retificados. Na verda-de, não porque o elemento imaginário e criativodomine na história e impeça a sua compreensão

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racional, mas porque o causal, que nela conti-nua preponderante, é complexo, isto é, hetero-gêneo, inesgotável, pluridimensional e, às vezes,inconsciente.

Os primeiros aspectos da causalidade históricaforam apontados e muito bem analisados porMichel Foucault e o último, como sabemos, porSigmund Freud. Foi exatamente Foucault que, noseu livro “A arqueologia do saber” (1969), mostrouque o acontecer histórico possui vários níveis oucamadas de saber, isto é, diferentes dimensões deinterpretação e de causalidade. Esses níveis desaber se sobrepõem de forma descontínua e se jus-tapõem com cortes e rupturas , impossibilitandouma visão plenamente racional e global. Por exem-plo, a interpretação de Marx tem seu valor, mas éapenas uma interpretação, um corte, um nível: é ahistória lida pela causalidade econômica, que éimportante, sem dúvidas, mas não é a única. A his-tória possui muitos outros níveis e aspectos que omarxismo deixa encobertos, como o religioso, oartístico, o ideológico, o psicológico, o político... eoutros sub-aspectos ou óticas específicas. Em cadaum desses níveis, às vezes interligados e outrasvezes irredutíveis, podemos individualizar um tipode causalidade ou uma composição homogênea devárias causas. É verdade que, como analisamos aci-ma, no processo histórico as grandes causas são fun-damentalmente as mesmas, decorrentes da estru-tura da pessoa humana e de suas necessidades einstintos vitais, mas é muito difícil e, às vezes, atéimpossível dizer, como se concretizaram, como seinterligaram, até que ponto concorreram e quantas

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intervieram na produção de um certo fenômeno. Éa multiplicidade causal, complexa e indecifrável,do agir concreto, tanto dos indivíduos quanto dascoletividades.

O que acontece numa teoria globalizante edeterminística? Geralmente privilegia-se uma óti-ca, uma camada, um tipo de causalidade, um inte-resse específico, uns aspectos particulares e es-quecem-se dos outros. Ou ainda, tem-se a preten-são de reduzir ao simples aquilo que, por nature-za, é muito complexo. Esse é o equívoco subjacenteà toda teoria geral da história: é uma visãounidimensional, unilateral e restrita da história.Em conclusão, podemos dizer, que esta é a falhacomum à teoria marxista, hegeliana, freudiana eaté cristã da história.

Essas considerações nos levam a concluir, comFoucault, que apenas são possíveis teorias parci-ais da história, isto é, análises de certos “cortes”,“camadas”, “níveis”, “sedimentos em profundida-de”, “séries” do complexo objeto histórico. Escre-ve Foucault

As velhas questões da análise tradicional (qualligação estabelecer entre acontecimentosdíspares? Como estabelecer entre eles uma se-qüência necessária? Qual a significação de conjun-to que acabam de formar? Pode-se definir uma to-talidade ou é preciso se limitar a reconstituir en-cadeamentos?) são substituídas, de agora em di-ante, por interrogações de outro tipo: quais estra-tos precisa isolar? Quais tipos de série instaurar?Quais critérios de periodização adotar para cadauma delas? Qual sistema de relações (hierarquia,

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dominância, escalonamento, determinação unívoca,causalidade circular) pode-se descrever de uma aoutra? Quais séries pode-se estabelecer?..17

Assim não há mais apenas história, mas histó-rias, como por exemplo: “A história dos caminhosmarítimos, histórias do trigo ou das minas de ouro,história da seca e da irrigação, história da rota-ção das culturas, história do equilíbrio, obtido pelaespécie humana, entre fome e proliferação”18.

Tudo isso, hoje, é claro e admitido por todos.Mas é preciso acrescentar outra consideraçãomuito importante: essas histórias parciais jamaisserão completas e translúcidas. Primeiro, porquesempre é possível acrescentar e aprofundar análi-ses desses e outros aspectos, que são praticamen-te infindáveis. E segundo, porque, após Freud, nãoé mais possível esquecer o grande papel do incons-ciente no agir humano. Quer dizer, trazer à tonatodas as motivações profundas do comportamentohumano, tanto individual quanto coletivo é umafaçanha que nenhum psicanalista conseguiria.

Antes de terminar o presente trabalho, pode-mos colocar mais uma pergunta: “Não seria possí-vel, pelo menos em linha teórica, juntar todasessas histórias parciais para construirmos umateoria global da história”? A resposta, no nossoentender, é negativa por vários motivos. Primei-

17 FOUCAULT, 1972. p. 9. Esta concepção de Foucault é sobremodo interessante,porque chama atenção ao objeto complexo e inesgotável do devir histórico esuas múltiplas abordagens e causalidades.

18 Idem, ibidem. p. 9 e ss.

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ro, porque essas visões particulares, esses “cortesverticais” ou “estratos horizontais”, possuem umconteúdo praticamente inesgotável e, por isso, se-rão sempre incompletas e imperfeitas. Segundo,e isso é mais importante, essas teorias parciaissão irredutíveis entre si, isto é, não existe umacordo ou uma continuidade lógica entre uma eoutra, pois o que está em jogo, são pontos de vistadiferentes, interesses específicos, partidarismos,nacionalismos e até, proselitismo religioso. Ter-ceiro, porque uma teoria globalizante e lógica dahistória, qual super teoria, não deixa de ser umaabsolutização de uma visão particular.

Tudo isso nos leva a concluir o seguinte: a his-tória é uma ciência inacabada e inacabável, maispela complexidade de seu fator causal do quepela magnitude do elemento não-causal ou ima-ginário nela contidos. Como diz Foucault, elanunca será uma ciência no sentido pleno, masapenas um saber ou conjunto de saberes. Jamaiso homem chegará a ter total consciência de suahistória. Em todos os seus níveis, ela é um purofazer-se e um eterno devir. Toda teoria ou “sa-ber” histórico, apesar de verdadeiro dentro deseus limites, abrangerá apenas uma época, umcapítulo ou mesmo um episódio do grande dra-ma humano, cujo desenrolar e cujo desfecho ja-mais saberemos.

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Referências bibliográficas

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DESCARTES, René. Discurso sobre o Método.Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus,1972.

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HISTÓRIA E HERMENÊUTICA –Para Pensar a Idéia de História

MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

I

m Verdad y Metodo, Gadamer nosapresenta uma dimensão dialética daverdade, baseada na reflexão sobre o

processo de compreensão, desenvolvendo uma crí-tica à consciência histórica, segundo a qual, o su-jeito deve eludir sua subjetividade para alcançarum conhecimento objetivo, reflexão obscurecidapela difusão da consciência metodológica naModernidade. Seu universo conceitual nos reme-te à tradição hermenêutica - ciência geral da in-terpretação, constituída como metodologia noâmbito dos estudos jurídicos ou teológicos desde oséculo XVII - interceptada nos séculos XIX e XXpor uma linha de reflexão histórico-filosófica, le-vando-nos a acompanhar o percurso desse pensa-mento nas elaborações de Wilhelm Dilthey (1833-1911) e Martin Heidegger (1889-1976).

Suas considerações sobre o que se encontra en-volvido no processo de compreensão são aquiprojetadas para a historiografia, uma vez que oconjunto de suas questões são próprias para uma

N

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reflexão sobre a idéia de história, levando-nos aconsiderar algumas questões, tais como: a relaçãoque estabelecem os historiadores com o mundo quedescrevem, como tudo o que se sabe e se esperadesse saber sobre a história do mundo chega a sersabido, inscrito na narrativa e transformado emdiscursos, ou seja, como esta consciência metodo-lógica e a sua crítica têm afetado a produção his-tórica. A questão não é procurar saber como nossaconsciência evocadora e atualizante pode conhe-cer e expressar de modo legítimo um fato da his-tória, mas estabelecer uma crítica a esta consciên-cia mesma.

Arno Wehling1 aponta como problema geral adissociação entre o trabalho empírico do historia-dor e uma discussão sobre seu fundamento e enten-de que o programa intelectual a realizar no estudoda epistemologia da história deve procurar respon-der ao desafio da ruína do paradigma newtoniano,lançando-se sobre os aspectos congnitivos, tais comoa relação de subjetividade, objetividade, a elabora-ção conceitual, a análise do discurso e a construçãoda lógica explanatória.

A metodologia, em muitos casos, reduz-se àfiliação à este ou aquele autor, representante deuma determinada linha de estudos, prescindindo-se da argumentação lógica que fundamenta cadauma das escolhas. A forma de apresentação de tra-balhos acadêmicos revela uma espécie de fratura:

1 WEHLING. Arno. A Invenção da História. Rio de Janeiro, Ed. Gama Filho/UFF,1994.

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uma introdução geral, carregada de explicaçõessobre os procedimentos metodológicos, filiaçõesintelectuais, citações (em cima, ao lado e sobretu-do, em baixo, em forma de notas abundantes) e emseguida, o trabalho empírico, que deveria ser o re-sultado direto da aplicação do método, mas que, emmuitos casos, formam partes desconectadas entresi. Deste modo, um princípio reflexivo se encontrapulverizado no campo puramente metodológico.

Trataremos a trajetória da disciplina histórica,a partir do momento em que, no século XIX, o mé-todo se coloca como problema, seguido dos princi-pais conceitos, a partir dos quais a crítica deGadamer é elaborada. Seguramente não responde-remos ao conjunto dessas questões, mas elas se apre-sentam aqui para uma enunciação geral do proble-ma que gostaríamos de tocar.

II

A História teve seus momentos fortes ao longodos séculos XVIII e XIX, quando a disciplina co-meça a viver uma ascensão como resultado dasespeculações da história filosófica de Vico, Herdere Dilthey que, ligados aos quadros do Romantis-mo e do Historicismo, vão tentar construir umaespecificidade do conhecimento sobre a cultura,pressionados pela ascensão das ciências naturais.Desde o argumento de Vico, de uma verdade his-tórica cognoscível porque feita pelo homem, esta-va colocada a possibilidade de se pensar o que ha-via de particular no conhecimento das culturas. Em

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Herder, a ruptura com a visão de mundo dos Ilus-trados, levou-o ao reconhecimento e valorização dasdiferenças culturais entre os diversos povos quecompunham a humanidade, concedendo a cada épo-ca seu próprio direito à existência. Mas, fora essereconhecimento da diversidade, seguiram vigentesíndices classificatórios, tais como as evoluções dospovos: infância, adolescência, juventude e idade vi-ril ou o estabelecimento de uma concórdia entre aevolução histórica e biológica do homem (ao consi-derar uma inoculação positiva a influêncianormanda sobre o povo inglês, por exemplo).

No século XIX a História está plenamente inte-grada na busca por sua cientificidade. A crítica à“consciência histórica”, tanto em Gadamer comoem Heidegger, foi dirigida essencialmente à esco-la histórica na Alemanha, a Droysen e Ranke, uni-camente por representarem o prolongamento dahermenêutica romântica, não no sentido literáriode Walter Scott, mas pelo esforço de empreenderuma história objetiva.2

O envolvimento da escola de Berlim, represen-tada por Leopoldo Ranke (1795-1886) com ametodologia, deu-se com um trabalho minuciosode tradução de documentação antiga que concen-trou a dedicação de três gerações de historiado-res e que pode ser tomado como uma tentativa depenetrar no espírito de outras culturas e outrostempos, provocando uma empatia existencial, mas

2 PALMER, Richard. Hermenêutica, Lisboa, Ed.70, 1986, p. 181.

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sem seguir o fluxo que tomava as indagaçõeshermenêuticas com Dilthey. Para Ranke, a lógicada História já era uma filosofia da História e, porisso, restava inaugurar um método para a Histó-ria, organizando a documentação histórica dispo-nível, segundo um critério que era então o maisadequado para garantir a diferença com as cons-truções literárias românticas. Apesar da difusãode seu método, entendemos que não é o melhorrepresentante da autoconsciência metodológicadesenvolvida no século XIX. No novo espaço inte-lectual que se configurava nesse século, foram bemmais os trabalhos de alguns de seus discípulos quese traduziram, sim, na história historizante - dassingularidades políticas, sem generalizações, epuramente fatual3 . De todo modo, uma outra ten-dência, fundada nas teorias cosmológicas, na pas-sagem do século XIX para o XX - a Revoluçãorelativista-, introduziu novas questões derivadasdo fim do primado da física newtoniana. O aban-dono da idéia de apreender a totalidade absolutado real para apreender a totalidade de umaperspectiva, acompanhou a história na descriçãodas singularidades.

3 WEHLING (1994), entende que o manual de Ranke, desenvolvido em 1824, aindanão está propriamente inserido nessa tendência metodológica que vigorou noséculo XIX. Tem-se atribuído a Ranke e a seus discípulos os fundamentos dopositivismo histórico. No entanto, Ranke não trabalhava com regularidades,nem buscava leis históricas ou postulou a responsabilidade de estabelecergeneralizações e parece que mesmo a sua verdade como realmente foi, despidada subjetividade do historiador, pode ser matizada em muitos aspectos, nessecaso, se a compreendemos sob o influxo da hermenêutica romântica.

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No entanto, a consciência metodológica deriva-da da exigência de cientificidade vai se apresen-tar de maneira mais evidente, quando estiver re-lacionada com as grandes doutrinas sociais, comoo positivismo, o evolucionismo e o marxismo, porvolta de 1850, e, então, a partir de etapas, fases,estágios, fins previamente estabelecidos, afirma-rá leis e reunirá os dados empíricos que levarão auma síntese geral. Sob o ponto de vista dahistoriografia propriamente, esta se desenvolviade acordo ou com a linha historizante posterior aRanke, ou se expressava de forma produtiva nosestudos em História da Cultura, como os de J.Burckhardt.

III

No final do século XIX, a fuga às generalizações,a questão da objetividade do conhecimento, o pri-mado das ciências naturais e a busca daespecificidade dos fenômenos da história e da cul-tura, foram reexaminados em várias frentes e seexpressaram, por exemplo, na divisão entre ciên-cias naturais, e ciências culturais, de Richert, nasciências nomotécnicas e ciências ideográficas, deWindelband, e no diálogo de Dilthey com a tradi-ção hermenêutica.

Dilthey, envolvido no desenvolvimento do pensa-mento humano e científico nas universidades ale-mãs e inquietado pela questão da verdade para asdisciplinas humanísticas, empenhou-se especialmen-te na conversão da história em ciência, uma vez quea ciência natural já o havia resolvido através de um

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método. Sua crítica à universalidade dos métodosdas ciências naturais baseava-se no reconhecimentode uma diferença entre a experiência da história eda natureza e na consideração de que elas possuíamum método e reflexão próprios e, nesse reconheci-mento estariam muitos pontos de sua teoria, inclu-sive a possibilidade de torná-la científica. Reflete dealgum modo o argumento de Vico, de uma verdadehistórica cognoscível, porque feita pelo homem, quan-do diz: “La primera condición de la posibilidad de laciencia histórica consiste en que yo mismo soy unser histórico, en que el que investiga la historia es elmismo que el que hace”4.

Os problemas levantados por Dilthey se constitui-riam como fundamento para o que se conformou comoas ciências do Espírito - as Geisteswissenschaften, lan-çando as bases para uma hermenêutica universal paraalém das particularidades e mantendo problemasainda para a hermenêutica contemporânea. Comoas Ciências do Espírito, que então se constituíam,entendem os processos de compreensão e como se dáo diálogo entre esta e a hermenêutica heideggerianado Dasein?

Parece-nos que os argumentos saem de manei-ra abundante do interior da noção de círculo her-menêutico. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, in-troduziu a expressão círculo hermenêutico, em con-traste com o ideal de raciocínio lógico. Para se co-nhecer determinado objeto que se pretende cien-

4 DILTHEY, W. Gesammelte Schriften, VII, 278; apud, GADAMER, H.G. (1992),Verdad y metodo. Salamanca, Sígueme, p.281.

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tífico, era preciso estabelecer uma relação siste-mática entre experiência, expressão e compreen-são. Experiência é o espaço que antecede sujeito eobjeto, onde o mundo e a experiência que temosdele são conjuntamente dados, onde a experiênciado contexto histórico é simultânea à experiênciainterior do homem. Não há compreensão sem pres-suposto: existe um contexto de pré-compreensãode algo que está diretamente ligado à experiênciado indivíduo. Como essência geral da experiência,sabemos que é válida, enquanto não seja refutadapor uma nova experiência, e isso tanto para a or-ganização científica quanto para a vida cotidiana.Esse é um processo negativo, isto é, é sempre ex-periência de que algo não é como havíamos supos-to. A experiência possui um papel muito impor-tante na lógica da indução nas ciências naturais efoi submetida a uma sistematização epistemológicaque diluiu seu conteúdo originário. Para esse ramodas ciências, existe a necessidade de tornar a ex-periência algo objetivo, daí a relação entre o fimde uma experiência e um resultado. Expressãoquer indicar uma idéia, uma forma social, uma lin-guagem e todas as coisas que representem a vidainterior do homem, levando à constatação de queas realizações humanas expressam algo mais doque suas considerações isoladas, individuais.

Explicamos quando transformamos em lingua-gem, em discurso, uma impressão inicial e assim,colocamos à prova (escutamos) o que foi dito e, aofinal do processo, podemos compreender. FerraterMora nos diz que explicar, em sentido geral eetimológico, implica demonstrar que algo podia ser

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esperado e é alcançado através de um proceso dedesenvolver o que estava envolvido, fazer presen-te o que já estava latente5. Essa definição nos mos-tra um sentido vital da explicação que pode signi-ficar o momento em que, com uma ruptura, o serde algo se revela e sua aparição faria parte de umapré-compreensão. Experiência e expressão confor-mam assim uma pré-compreensão, que envolve aidéia de mundo, onde a explicação é produzida.

Círculo hermenêutico sugere, portanto, a estru-tura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação dacisão entre sujeito e objeto na analítica transcen-dental do ser-aí, levada a cabo por Heidegger eque deve levar em conta o aspecto transitório eexperimental da realidade6 e nos leva ao conceitode historicidade.

O radical do termo historicidade nos remete di-retamente à ambigüidade da palavra história. Seusentido historiográfico, assim formulado, é o deefetividade, eficácia ou veracidade histórica, aquiloque torna um acontecimento criador de história(como em Heródoto, por exemplo, que não garantiaa historicidade de certos fatos que lhe eram narra-dos e que lhe pareciam demasiado fantasiosos ouirreais), um sentido existencial do passado mas semefeito sobre o presente, ou uma oposição à nature-za, ao considerar os vestígios dos entes passageiros

5 MORA, Ferrater. Diccionario de Filosofía. Buenos Aires, Ed. Sudamericana,1971.

6 GADAMER, H. G, «Texto e interpretación (1984)», en Verdad y metodo, 1992, p.320.

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do tempo, tornando-se assim parte da condição hu-mana. Com isso, poderíamos falar de umahistoricidade dos mundos moderno, azteca, antigo,helênico, cristão ou contemporâneo Todas asacepções tendem a concordar com essa idéia geralque acabou por divulgar-se através das mais diver-sas formas de relato, desde Heródoto, passando pelosrelatos dos viajantes do século XVIII, até as recentesou futuras notícias de como vivem outros povos.

A dimensão histórica instaurada com o cristia-nismo inaugura propriamente uma outra dimen-são da historicidade - o homem é um ser históricoporque suas possibilidades nela se realizam -,reconstruída pela tradição hermenêutica. Hegelcriou um fato lingüístico com o termo, usando-onas Lições de história da filosofia, para caracteri-zar, tanto a consciência grega de vinculação à ori-gem, falando da “livre e bela historicidade, damnemósine - o que eles são existe neles comomnemósine”, como para a figura de Cristo, expli-citação do espírito na história7 . O termohistoricidade aparece pela primeira vez, em fran-cês, com Charles Morazé, indicando que, além dageopolítica, comércio, artes, ciência, e todo o fluxode progresso, era preciso buscar a unidade huma-na, uma solidariedade vital. Essa palavra, que jáera corrente desde muito tempo em um sentidosimples, adquiriu o estatuto de conceito, especial-mente com o conde Yorck de Wartenburg, o amigo

7 GADAMER, H. G. Historicidade. Lisboa, Gradiva; LUCAS, Manoel Benavides.(1994), Filosofia de la Historia. Madrid, Sintesis, 1988.

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filósofo de Dilthey, e se pôs em circulação até al-cançar sua culminação na filosofia de nosso séculocom Heidegger e Jaspers.

Mas, como conhecer o homem em suahistoricidade? O primeiro movimento indicadopelo conceito é reconsiderar a relação entre sujei-to e objeto. Por mais que Dilthey quisesse encon-trar uma objetividade para as ciências do espírito,não podia compreender o sujeito que conhece - ohistoriador em seu movimento de compreensão dealgo - em frente a seu objeto, que é a própria vidahistórica, constituído como alheio a este. Só o po-dia compreender, sustentado pelo mesmo movi-mento dessa vida histórica. Para elevar o conheci-mento e experiência do indivíduo à experiênciahistórica, desenvolveu o conceito de vivência, quefundamentaria uma “filosofia da vida”, categoriaepistemológica que, aparentemente experiência dosenso comum, apontava para uma experiência su-perior, capaz de compreender a racionalidade daexistência, opondo a experiência vivida ao meca-nismo da civilização tecnizada. O suporteexplicativo e ontológico dos acontecimentos nãopodia ser alheio aos acontecimentos nem julgadosde um “lugar fora da história”. A vivência estabe-lecia essa relação do homem com o mundo.

Segundo alguns princípios básicos do conhe-cimento científico, como tem se desenvolvidono nosso século, essa perspectiva hermenêuticaseria inadequada. Tomando um livro sobre in-vestigação e método históricos, vemos que parao realismo, como hipótese filosófica, existe ummundo exterior ao sujeito: “Al contrastar una

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proposición con hechos para verificar si hayacuerdo entre proposiciones y hechos, estamos im-plicitamente suponiendo que existe algo fuera delmundo subjetivo del sujeto cognoscente” ou queum método científico é a forma de fazer esse obje-to mostrar-se, pois submete objetivamente a pro-vas muitas das afirmações, localiza falhas em seuinterior e as corrige8. Essa relação entre realida-de, objetividade e verdade parecerá enganosa a umolhar hermenêutico e talvez a um exercício de ló-gica, pois então a realidade estaria justamenteonde as subjetividades humanas, o homem, não es-tão, não podem entrar.

As questões sobre a forma de compreensão dopensamento hermenêutico não foram colocadasapenas no âmbito de diferenças radicais, mas tam-bém no interior da própria hermenêutica e de sim-patizantes. Emilio Betti entende que a apreensãoda história indicada por Gadamer não serve comometodologia ou como auxiliar de metodologia aosestudos humanísticos e coloca em risco o estatutode objetividade dos objetos de interpretação, tor-nando a própria interpretação discutível. Há dese afirmar a autonomia essencial do objeto paraassim estabelecer as diferentes interpretações nashumanidades e sistematizar seus princípios. Seisso não ocorre, o intérprete projeta sua subjetivi-dade no objeto, não reconhecendo o que o objetopossui de intrinsecamente sujeito. A reflexão so-

8 CARDOSO, Ciro F, Introducción al trabajo de la investigación histórica. Barcelona,Ed.Grijalbo, 1985, p.20.

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bre o que significa o presente não possuiria inte-resse para o historiador e sim para a interpreta-ção jurídica. Isso aproxima Betti do objetivo deDilthey, de fundamentar as bases metodológicaspara as ciências do Espírito, mas de fato o afastadas intenções de Gadamer, de uma compreensãomais profunda sobre as humanidades. Muitas ou-tras críticas se colocam em relação ao conceito detradição, normalmente entendido como aceitaçãodo mesmo.

Martin Heidegger retomou algumas questõeslançadas por Dilthey e pela fenomenologia deHusserl e desenvolveu uma ontologia fundamen-tal, a pergunta pelo Ser, superando as concep-ções até então aceitas na filosofia que ele sinteti-za como a tradição metafísica ocidental. Em suaobra Ser e Tempo projetou uma hermenêutica doDasein - o ser no mundo, a existência e o colocaem um contexto ontológico. A experiência é pen-sada por Heidegger, retomando o conceito de his-toricidade presente em Dilthey, como experiên-cia do mundo. Para Gadamer e Heidegger, a lin-guagem, a história e o ser não estão apenas inter-relacionados, mas sim misturados, de modo quea lingüisticidade do ser é simultaneamente a suaontologia - o seu “tornar-se ser” - e o meio da suahistoricidade.9 Aqui não é o mundo consideradoem sua concretude, como a totalidade de todos osseres, mas a totalidade em que o ser humano está

9 PALMER (1986), p. 181.

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mergulhado: “o mundo é desapercebido, pressu-posto, englobante, presente, transparente, iludin-do as tentativas feitas para o captar enquanto ob-jeto”.10 Algo deste mundo só nos aparece (e aí po-demos considerar uma objetificação como umaconstatação da presença do outro) quando há uma rup-tura e, assim, um fato significativo se revela, nos apa-rece seu sentido. Não será o olhar analítico que farácom que o ser de algo se revele. Existe o clássico exem-plo do martelo: um martelo partido mostra-se signifi-cativo no momento em que nossa mente se ilumina coma constatação do que um martelo é. Em todos os outrosmomentos em que esteve inteiro ele era uma das por-ções de coisas com as quais convivemos, estava diluídoem meio a todas as outras ferramentas e todos os obje-tos cotidianos.

Ao refletir em Ser e Tempo a experiência da histori-cidade, chegou a duas possibilidades compreensivaspara o termo. Como Geschichtlichkeit indica que todohomem possui uma história em eterno movimento daqual não se dá sempre conta, ainda que lhe sobreviva.Como Historizität envolve uma reflexão sobre um con-teúdo material que se crê atuante no presente, na his-tória.11 É portanto como Historizität que ela se abreà reflexão sobre as tensões éticas da atualidade.

O novo desse conceito se dá, quando ele apre-senta um elemento ontológico: não enuncia algo so-bre o modo de ser de uma estrutura processual e,

10 Idem, p.137.11 WEHLING, Tempo e História nas diferentes culturas, 1994, pp. 51-57, p. 53.

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sim, sobre o modo de ser do homem que está nahistória, que só pode ser compreendido a fundo emseu ser mesmo, mediante este conceito. Isso impli-ca que o homem se encontra determinado histori-camente e que a experiência do indivíduo é feita damesma substância que a experiência histórica e énessa determinação, que há de compreendê-lo.

A compreensão “existencialista” (ainda que ge-neralize muito os diferentes sistemas filosóficos pos-sivelmente incluídos nessa categoria, o termo nosparece bastante significativo para designar ahermenêutica, Heidegger, simpatizantes e toda aterceira inflexão do pensamento ocidental) compre-ende experiência como parte da essência históricado homem aonde não comparece a idéia de resulta-dos. Considerada desta maneira remete-nos à per-cepção dos limites do ser homem, tornando-se ex-periência da finitude humana. Tomemos seu exem-plo da dor. Com ela não se aprende isto ou aquilo,senão nossos limites para suportá-la. Aquele que éconsciente do limite entre o humano e o divino éum experimentado, pois conhece os limites da pre-visão e a insegurança de todo plano. Desse modo, oque a experiência nos ensina é a conhecer o real. Oautêntico resultado de toda experiência não é co-nhecer isto ou aquilo, mas reconhecer o que já nãopode ser mudado. Reconhecer o que é não é conhe-cer o que existe num momento, mas perceber seuslimites e as possibilidades.

A consciência “verdadeiramente histórica”, aopertencer ao mundo, reflete sempre uma experi-ência com a tradição, o passado entendido comouma continuidade do presente, ou seja, a tradição

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que nos chega fala sempre ao presente ou entãonão nos diz nada. Isso não significa que toda histó-ria é contemporânea ou que ela exista em si mes-ma como uma entidade, mas que o presente é umainflexão do tempo, que é notável porque é de ondeextraímos a “vivência”diltheana. ConformeGadamer:

quer se refira ao que aconteceu, conservando-o, ad-mirando-o, chamando à memória e glorificando-o,quer, pelo contrário, transformando-o e derruban-do-o, o homem é, simultaneamente, o ser do passa-do remoto e o ser que vive no seu futuro como gran-de horizonte de expectativa e vasto campo de proje-tos que o seu ser modelado pela sua história lheabre12.

Afirmar a tradição não significa a repetição domesmo, tampouco a negação de mudanças, pois éjustamente o confronto e a troca entre a tradição eo novo que causa as transformações históricas.Existe uma diferença entre o sentido de tradiçãocomo transmissão (Überlieferung) e o de tradição(Tradition) como coisa do passado. Neste, a exis-tência humana esquece sua responsabilidade, en-tregando-se ao historicamente acontecido, ou seja,os fatalismos, os determinismos. ComoÜberlieferung (transmissão) impede a santificaçãodaquilo que foi, pois considera que é justamente

12 GADAMER (1988), p. 103.

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partindo daquilo que está atrás de mim que se re-alizam as possíveis transformações, as possibili-dades de futuro. Félix Duque sintetiza uma refle-xão heideggeriana:

Un nuevo sentido del tiempo se anuncia- lo que “yase ha llegado a ser”, el peso histórico, no es el meropasado, algo definitivamente dejado atrás, sino laasunción de algo desbordante y a la vez posibilitador;un fenómeno que religiosamente es consideradocomo “gracia”, y que ulteriormente seráhernéuticamente comprendido como ‘transmisión deaquello que hace falta’: la viva tradición de aquelloque deja ser, el transfondo temporal del ser mismo13.

Não haveria, por exemplo, um ponto fora dosdiscursos sobre a Idade Média a partir do qual sejapossível construir uma Idade Média real, sobre aqual se possa dizer a verdade e, a partir do estabe-lecimento dessa verdade, medir a distância entrea Idade Média real e as imaginadas. Esta pode sercompreendida a partir das diversas interpretaçõesque se têm sobre ela, sem que isso anule as verda-des estabelecidas sobre esse período histórico eaferindo novas possíveis verdades, tal como nosleva a ver Gadamer nesta passagem:

En el historiador encontramos un montaje ydesmontaje de contextos de sentido y esto equivalea una constante retificación, una destrucción de

13 DUQUE, Felix (1993), p. 147.

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leyendas, un descubrimiento de falsificaciones enconstante início de construcciones de sentido ... enbusca del sentido latente, que quizás nunca se podráencontrar hasta la simultaneidad de una evidenciade sentido14.

Retomando a questão da relação perversa entreverdade e método, entendemos que há de existir umareflexão sobre o que se pretende alcançar com a apli-cação de um método, pois não é o olhar analítico quefaz com que o ser de algo se revele. Heidegger opõe aessa expectativa ou a esse objetivo das ciências o con-ceito de facticidade, algo carregado emocionalmen-te, frente à assepsia do objeto. Ao que seriam asobjetificações ele chama de “aparições”, como o quese desvela, quando se rompe algo do mundoenglobante. A questão da objetividade aparece aquicomo algo distinto da objetividade pretendida, sejapelas ciências naturais, por Dilthey, pela escola his-tórica alemã e em geral pelo pensamento pragmáti-co: “uma objetividade que consiste em deixar que acoisa que aparece seja realmente aquilo que é paranós”.15 Trata-se de um diálogo pensante com deter-minado texto que fará aparecer o ser escondido nonão-ser, uma interrogação que deve dirigir-se parao fundamento negativo, obrigando o ser a mostrar-se. Manter-se no nível do ser dos seres é manipula-ção, cálculo, explicação.16

14 GADAMER, H.G. (1992), vol. 2, p. 28.15 Idem, p. 183.16 Idem, p.154.

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IV

Mantendo-nos na tradição historiográfica a que aprodução histórica brasileira está adscrita, vimos queos intelectuais ligados à revista Annales desenvol-veram uma atitude crítica, superando, na primeirametade do século XX, o objetivismo positivista,revalidando o subjetivismo, ampliando materialmen-te a concepção de história com a integração de novosproblemas e temas históricos, estabelecendo, assim,uma postura crítica aos pressupostos do positivismohistórico liderarando a oposição à “obsessão fatual ehorror à generalização” e admitindo a identidadeentre sujeito e objeto.17

A escola francesa, por seu afastamento volun-tário das reflexões filosóficas, acabou não indo àsúltimas conseqüências na crítica à objetividade,mas construiu importantes inovações de perspec-tivas, tais como a passagem do conceito de conti-nuidade, presente na historiografia anterior, paraa percepção das descontinuidades dos processoshistóricos, sendo isso o que marca a maior dife-rença com a história filosófica. Das antigastemáticas relativas a política, instituições, biogra-fias, relações internacionais, passou para as no-vas, relacionadas a economia, sociedade, idéias ementalidades.

Aí se apresenta um dos grandes problemas le-vantados por Wehling. Estabelecendo os processos

17 WEHLING, 1994, p.52-53.

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de elaboração interna da disciplina, verifica que afilosofia da história esgotou seu objeto noIluminismo e a metodologia realizou no século XIXo programa da filosofia da História, continuando,no século XX, a orientar pragmaticamente a inves-tigação. Vemos, com isso, que a crítica à objetivida-de do conhecimento, então elaborada, não se deu apartir dos pressupostos epistemológicos que aí seencontram envolvidos, e, sim, no interior de umadiscussão metodológica, que tem trazido, comoconseqüência prática, uma lacuna entre pesquisa emetodologia:

...a objetividade reduziu-se a um problema metodo-lógico, não epistemológico. Este, aliás, é o fulcro daquestão na atualidade em algumas historiografiasnacionais: o divórcio entre o historiador empírico,concordando em que toda a história é contemporâ-nea, mas para quem o problema não tem maioresconsequencias profissionais, continuando a trilharum objetivismo de fato, e o metodólogo ou teóricoda história.18

A escrita histórica dos anos 90, caracterizadacomo a quarta geração dos Annales, retoma im-portantes reflexões vividas especialmente a par-tir dos anos 70, provenientes da crítica ao estru-turalismo e da aproximação com a fenomenologiae com o existencialismo e que mantém uma postu-

18 WEHLING, «Em torno de Ranke: a questão da objetividades» In: A Invenção daHistória, 1994, p. 125.

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ra crítica ao regime metodológico sobre o conheci-mento, recolocando no debate o diálogo com asperspectivas filosóficas, colocando-se assim nestaperspectiva criadora.

Estendendo-se em nossa atualidade como Histó-ria Cultural, tem incorporado, por vias muitas vezesindiretas e derivadas, essa dinâmica do pensamentoe isso se reflete na força de alguns conceitos. A pró-pria definição como Cultural, para os alinhados a essaperspectiva, - que pressupõe que as relações econô-micas e sociais não são anteriores às culturais, nemas determinam; elas próprias são campos de práticacultural e produção cultural, o que não pode ser de-dutivamente explicado por referência a uma dimen-são extracultural da experiência19 -, parece-nos in-dicar a recuperação da dimensão existencial aosprocessos de elaboração histórica.

A aproximação ao conceito de historicidade tam-bém se dá sobre a noção de realidade, onde o realsão os horizontes cambiantes de passado, presen-te e futuro, a historicidade em que o homem estáenvolvido e não um passado que se possa restau-rar. Daí a resignificação do conceito de represen-tação, que apresenta realidades de múltiplos sen-tidos e meio, a partir do qual, a realidade pode seranalisada. As representações do mundo social com-põem a realidade social.

Michel Foucault e Norbert Elias, romperamcom a distinção entre os graus de realidade (o que

19 CHARTIER Roger, A história cultural: entre práticas e representações. Rio deJaneiro, Difel, 1990. (Introdução)

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durante muito tempo fundou a oposição entre his-tória socioeconômica que atingia o real através dosmateriais- documentos -, e uma história dedicadaàs produções do imaginário) e se ocuparam em com-preender como a articulação dos regimes de práti-ca e das séries de discursos produz o que é lícitodesignar como a “realidade”, objeto da história. Adiversidade temática, como um movimento deaprofundamento em problemas históricos específi-cos, valorizando a intensidade do fenômeno, CliffordGeertz e a descrição densa, a retomada do conceitode experiência em Thompson, a teoria dadesconstrução20 (considerada por Gadamer como viaalternativa à “auto-domesticação ontológica dadialética”, por retomar o diálogo e a conversação),e muitos outros trabalhos, que seria ocioso enume-rar, revelam proximidade com esta inflexão do pen-samento que tem se identificado com a dinâmica dacrítica à modernidade.

A crítica estabelecida à ida voluntária ao micro,caracterizada como um novo historicismo, é muitasvezes equivocada, uma vez que consideramos que adescrição do singular, como resultado do encontroocorrido entre finais do século XIX de diversas ten-dências da época, como o novo paradigma relativistaou a dinâmica do historicismo historizante, passou poruma determinada experiência até nossa atualidade,de modo que, quando alcança descrever essa singula-ridade (expressa, seja em novas perspectivas biográfi-

20 GADAMER, H. G. Destruição e desconstrução (1986), 1992, pp. 349-351, 355.

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cas, ou em uma diversidade temática), ela já se tornoucomplexa com os aportes da psicanálise, da linguística,da antropologia e de toda a pressão avassaladora dosfenômenos do século XX, e então este singular já nãoé propriamente o factual. O que aparece é o sujeitoproblematizado, claudicante de nosso século, fugin-do assim de todas as fases características do histo-ricismo, exceto por certas semelhanças nos recor-tes temáticos.

Entendemos que o sentido maior que o pensa-mento de Gadamer toma é ético: considera a rele-vância da reflexão sobre os fundamentos do pro-cesso de compreensão para a construção do méto-do. Não a ética pragmática, do conhecimento se-guro e confiável das ciências exatas, mas uma quequer discutir a verdade num horizonte dehistoricidade: “Si existe alguna conclusión prácticapara la investigación que propongo aquí, no seráen ningun caso nada parecido a um ‘compromiso’acientífico, sino que tendrá que ver más bien con lahonestidad ‘científica’ de admitir el compromiso quede hecho opera en toda comprensión”21 .

Método é o ponto a partir do qual se desenvol-verá a pesquisa histórica, as diferenças temáticase de objeto. Gadamer parte da consideração de queo método não nos revela uma nova verdade, ape-nas explica uma verdade que o método construiu.A compreensão é o ato básico da experiência hu-mana e não mais um dentre os comportamentos do

21 GADAMER, H.G, vol. 1, 1992, p.10.

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pensamento humano que possa ser disciplinadopor um método. Seguindo nesse caminho e toman-do a pergunta pela objetividade que tem norteadoa explicação histórica, e como já disse PaulRicoeur22, a objetividade do historiador precisa,para ser objetiva, de sua subjetividade. Ou, con-forme Felix Duque:

A história é (...) radicalmente pessoal e só pela cons-ciência que tem o eu de sua realidade existencial emsuas diferentes manifestações (consciência históri-ca) é possível, derivadamente, ordenar a comunica-ção da coexistência em uma narrativa, estabelecidasegundo o jogo de causas objetivas (consciência his-toriográfica). Em uma palavra: a historicidade é ori-ginária. Vista como projeto comunicatório (sempreà beira do fracasso, sempre reiniciado), ela se desen-volve como história. Clarificada como objetividademundana, se apresenta como ciência histórica.23

22 RICOEUR.Paul, Historia y verdad. Madrid, Ed.Encuentro, 1990, p. 2423 DUQUE, Féliz. Historia e historicidad en el existencialismo y la hermeneutica, en

Reyes Mate, edit. (1993) Filosofía de la historia. Madrid, Ed.Trotta, p. 147.

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ERIC WEIL E A NOÇÃO DE“FIM DA HISTÓRIA”

INÁCIO HELFER

Introdução

s estudos de filosofia da história nor-malmente lançam a pergunta sobre aidéia do sentido da ou na história e, em

muitos casos, defendem a noção de uma progres-são de eventos ordenados por princípios no cam-po dos acontecimentos humanos. Eric Weil se in-sere nesta perspectiva.

A questão do sentido da história apela à pro-moção de uma reflexão aprofundada. No campo fi-losófico, colocam-se as perguntas sobre sua origem,seu desenvolvimento, seu conteúdo, a interroga-ção quanto aos princípios ordenadores sobre e comos quais pode-se especular em relação ao sentidoda história (por exemplo, se a história se desen-volve a partir de princípios determinados ouindeterminados?, naturais?, divino-transcenden-tes?, racionais humanos?, etc.) e, caso estes prin-cípios existam, temos ainda os questionamentos:estes princípios são cognoscíveis ao homem? emque direção se encaminha a história? qual a idéiade um termo final, entre outros assuntos.

O

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ERIC WEIL E A NOÇÃO DE “FIM DA HISTÓRIA”348

O tema do “fim da história” se apresenta comouma reflexão instigante. Trata-se de um estudo es-catológico, não no sentido como é elaborado pelateologia, mas segundo o ponto de vista filosófico.Quando os teólogos refletem sobre o fim do mun-do (e também sobre a ressurreição e o julgamentofinal), tratam do assunto numa perspectiva dacrença num ser ou ordem transcendente. Quandoo tema é circunscrito ao ponto de vista filosófico, ocritério de demarcação da reflexão se limita a umaformulação racional do sentido. O estudo escato-lógico em filosofia é uma reflexão na esteira daordem do pensamento que examina, criticamente,se a história da humanidade pode, ou não, ter umfim último; visa explicar em qual sentido este temapode ser compreendido; como o assunto se relaci-ona com as demais concepções de história, porexemplo, a história como progresso, como inven-ção, como referência para as novas gerações, comoluta de interesses – classes -, como campo de tra-gédias, como violência, como espaço da liberdade,entre outras. Assim, pode-se lançar a pergunta:qual o sentido que a noção “fim da história” teve etem para as comunidades humanas? Diante daconstatação de que viver a história, com interessee numa perspectiva construtiva, é primordial paraas comunidades humanas (pois do contrário se co-locaria em questão a unidade política, econômicae social de uma nação), tem algum significado pen-sar o “fim da história”?

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O problema do fim da história

Eric Weil entendeu que o tratamento do temaapresenta uma relevância primordial para a hu-manidade. Preocupado com aquilo que realmenteinteressa ao homem, pois, segundo ele, se uma filo-sofia quer ter um sentido, deve tratar daquilo quetodos pensam e daquilo que todos fazem, examinouo tema do fim da história por entender que ele fazparte do imaginário humano. Para ele, a importân-cia do assunto tem haver com a esperança humana:porque a humanidade sempre esperou e espera vi-ver num mundo onde a violência e o sofrimento se-jam banidos, ele é um assunto muito presente. Alémdo mais, o tema do fim da história é importante por-que ele aparece na perspectiva de um sujeito livreque escolhe a razão e, por isso, visa à coerência totaldo seu discurso. Ora, esta coerência somente éalcançada no final desse discurso. Se um discursovisa à coerência, ele evidencia a necessidade de fa-lar da totalidade, momento em que se está “dentro”do sentido pleno desse discurso. Como a filosofia secoloca a tarefa de falar sobre o sentido dos diferen-tes discursos, buscando o sensato, o racional e o coe-rente, a partir e com os demais discursos, uma vezelaborada tal explicação de conjunto, se atinge a to-talidade dos discursos: a história passa a expressar,concretamente, o sensato da vida. Nessa perspecti-va, o tema do fim da história também apareceria.

A expressão “fim da história”, mais divulgada nofinal desse milênio por Francis Fukuyama, identifi-cando-a com a vitória do modelo da “democracia li-beral” sobre seus oponentes e o sucesso da economia

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de mercado1 , traduz uma fase de apogeu desse ter-mo na virada do século XX ao XXI. Weil não a utili-zou neste sentido. Na sua época, o tratamento dotema aparecia nas análises do marxismo e, de certaforma, numa versão oriunda das interpretações dafilosofia hegeliana, a de Alexandre Kojève. A partirdelas, mas, também, indo além, o pensador elaborousuas reflexões para designar o fim dos tempos comoo momento em que seria superada a infelicidade dahumanidade, como o tempo onde a moral começassea imperar sobre a violência e o sofrimento.

Para entender mais aprofundadamente a ques-tão, mister se faz esclarecer algumas noções. Aexpressão “fim da história” reflete, principalmen-te, dois pontos de vista: de um lado, o fim da hu-manidade, com a extinção do único ser que narra ahistória de sua relação entre si e com a natureza;e, por outro, designa o fim da história na história.

Por “fim da história” pode-se imaginar que sesuceda, em primeiro lugar, a extinção do homem, osujeito da história. A humanidade poderia desapa-recer pela sua própria ação (por exemplo, median-te um colapso atômico), devido a uma força extra-humana (divina ou satânica), ou, simplesmente,devido a lenta transformação das condições natu-rais e do universo incluso, situação em que nenhumser sobreviveria. Nesta perspectiva, uma vez que ahumanidade desaparecesse, a história chegaria aoseu fim. Supondo que o universo continuasse a exis-

1 FUKUYAMA, Francis. The End of History and The Last Man. New York : The FreePress.1992.

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tir, e outros seres também, com a exclusão do ho-mem, a história também acabaria porque só o ho-mem possui uma história. A história natural só temum sentido para o homem – ao menos levando emconta que ele seja o único ser consciente existente.

A segunda maneira de compreender o tema, se-ria o de lhe conferir a perspectiva de um fim dahistória na história, ou, como afirma Weil, na “pós-história”. Segundo Weil, esta definição foi elabora-da progressivamente durante a evolução do pensa-mento ocidental até os dias atuais e constitui o so-nho de uma grande parcela da humanidade2. O fimda história, neste sentido, seria a situação em que:

nós não imaginamos a liquidação radical do tempo,nem a cessação dos acontecimentos, nem a morteuniversal, se fala de um fim da história como o deum acontecimento desejável, com conseqüênciasagradáveis e felizes. Se supõe, em conseqüência,que uma vez passado o momento decisivo, os sereshumanos estarão ainda aí para aproveitar osurgimento do que nós podemos, talvez, chamar depós-história.

Weil circunscrevia esta fase à condição de que:

não pode significar que nada mais acontecerá aosindivíduos: eles continuarão a nascer, viver e mor-rer, serão felizes e infelizes, insatisfeitos ou con-

2. Cf. Eric Weil, «La fin de l’histoire» In: Philosophie et réalité: derniers essais etconférences, Paris, Beauchesne, 1982, p. 169.

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tentes, se bem que as ocasiões de sua felicidade ede sua tristeza possam ser outras que o são paranós3.

As considerações de Weil apontam para algumasidéias: o fim da história seria um evento desejável,que aconteceria no tempo, e não, como uma pers-pectiva religiosa poderia sugerir, numa dimensãoa-temporal; outra idéia forte é a de que o fim dahistória ainda não se realizou em sua concretude,embora sob a forma de idéia, como um discurso co-erente, já esteja elaborado – argumento que é de-senvolvido mais adiante, na 3ª seção. O fim dos tem-pos, na prática, para Weil não era uma realidadepresente. Não se poderia falar ainda de sua pre-sença na forma de instituições políticas mais jus-tas, menos imorais, ou como organizações sociais eeconômicas dinâmicas e sensíveis ao desenvolvi-mento humano.

De um modo geral, seu ponto de vista realça quea civilização ocidental não imaginou o seu própriodesaparecimento4. A avaliação é contundente, pois,acontecendo a morte universal, um cessar dos acon-tecimentos, não haveria mais homens para fazer asua experiência e falar com sentido. Assim, sugereque haja a continuidade do tempo associada à pers-pectiva de um acontecimento desejável como a pós-história. O que a humanidade sempre quis é chegara um estágio onde as condições de seu sofrimento,

3. Ibid., p. 168-169.4 Uma afirmação duvidosa se pensamos no «Apocalipse» do evangelista São João.

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as fatalidades de seus problemas, no sentido maisgeral, pudessem terminar. O que a humanidade oci-dental jamais teria desejado é a entropia total ou onirvana. Segundo Weil, a humanidade “quer vivere assistir os acontecimentos, viver o tempo, seu tem-po, mas viver feliz”5. A história que os homens nãoquerem, portanto, é a má história. O que não se queré tudo o que contradiz o conteúdo dos projetos maissensatos que os homens elaboraram durante suaformação cultural.

Para Weil, a noção de fim da história sofreu, como início da história moderna, uma transformaçãoimportante. Antes das grandes mudanças que a hu-manidade conheceu com a Aufklärung, o homemesperava o fim da história pela intervenção de umacontecimento exterior, um milagre divino, quepromoveria o fim dos sofrimentos, o fim do mal – e,neste sentido, o homem esperava sempre algumacoisa, sem jamais poder concretizar seus sonhossobre a terra. Com o Iluminismo, o homem pela pri-meira vez, colocou em si a responsabilidade da pro-moção deste fim. O homem se impôs, senão indivi-dualmente, ao menos como membro da comunida-de humana, a responsabilidade da transformaçãoda contingência ou do mal no bem. O homem escla-recido se reconhece como o único responsável, comoo operário, o produtor, o transformador de sua pró-pria vida, o “mestre e senhor da natureza primeiro,da história em seguida”6.

5 Eric Weil, «La fin de l’histoire» In: Philosophie et réalité: derniers essais etconférences, Paris, Beauchesne, 1982, p. 169.

6. Ibid., p. 170.

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Com esta experiência o homem descobriu que,se a história continua, é graças a ele, e que somen-te ele pode ou deve mudar o curso da situação. Seo estado das coisas não é como deve ser, é porqueo homem mesmo não fez o necessário para que sejade outra forma: assim, a história, e não a pós-his-tória, é que existe. O homem encarregado da res-ponsabilidade de conduzir a história vê na sua açãoa possibilidade de construir o que ele imagina e oque ele chama de pós-história. É verdade que aexclusão do mal e do sofrimento foi sempre umdesafio para a humanidade. No entanto, esta ques-tão se coloca com mais intensidade quando, olhan-do para o seu passado, constata que este sofrimen-to pertence à condição humana e que nada a mu-dará – o que poderia tornar absurdo pensar o fimda história. No entanto, este mesmo homem fazcontinuamente a experiência do que Weil chamaum desejo onipresente de morar ou inaugurar o fimda história7. Por isso, quando ele olha para a suahistória, difícil é encontrar uma época, uma civili-zação, que não tenha conhecido o desejo ou nãotenha se dirigido em direção a este fim. O homemquer o fim dos tempos históricos, ele quer o fim daviolência, da injustiça e do sofrimento, do mesmomodo que ele age para que este desaparecimentoseja para sempre, portanto, que inaugure o fim dostempos indesejados.

7 Cf. Ibid.

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INÁCIO HELFER 355

O fim da vida imoral

No contexto desta temática se apresenta umtema importante à Weil que é o problema moral.Na sua visão, “o fim da história, é o fim da vidaimoral”8, não no sentido de impor uma moral posi-tiva aos homens para lhes oferecer a felicidade,mas no sentido de lhes fazer compreender que apossibilidade de uma vida não infeliz somente podeser engendrada no modo de agir e de pensar dehomens responsáveis de seus atos, isto é, de ho-mens morais. Afirma Weil: “O que visa a moral,por paradoxal que pareça uma tal formulação, éme liberar à liberdade, à responsabilidade, à pos-sibilidade de minha felicidade, possibilidade queco-existe com a de todos os outros”9. O fim da his-tória, vivido na pós-história, corresponderia à ins-tauração da vida livre do homem que, finalmente,poderia se dispor, em plena consciência de seusatos, a cultivar a felicidade de si-mesmo e da co-munidade.

A promoção da felicidade neste nível, no entan-to, não poderia ser identificada a um simples domí-nio das condições naturais que impedem o homemde gozar da felicidade. Realizar todas as condiçõesmateriais para ser feliz não significa conhecer a fe-licidade na sua vida. De fato, a felicidade pode nas-cer destes elementos, mas na condição de que ohomem se encontre como um ser livre. A vida imo-

8 Ibid., p. 172.9. Ibid., p. 173.

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ral da má história chega ao seu fim quando a razãoage livremente e deste modo produz somente mo-mentos felizes. Na visão de Weil, este seria o ho-mem que faz o que ele sabe dever fazer para a mo-ral da felicidade; ele vencerá a natureza exteriorcomo a interior; ele não será mais um animal, umapaixão cega ou um desejo irrefletido; na mesma me-dida que ele ajudará os outros, ele terá subjugado anatureza exterior para colocá-la ao seu serviço, nãodos interesses particulares, mas das “exigênciasracionais de todo homem que quer viver sua vida,na dignidade e no contentamento”10. O homem dapós-história, segundo Weil, viverá no contentamen-to de si mesmo numa comunidade regida por elemesmo, uma comunidade livre porque moral. E,quando a moral finalmente vencer a vida imoral, seentrará num modo de ser que vive na presença doque é. Para retomar uma expressão de todos os dias,enfim o homem viverá verdadeiramente, no presen-te, ele se preocupará com o que é o belo, o bom e osensato. Segundo Weil, estas coisas não estão longeou são desconhecidas. Elas fazem parte de tudo oque os homens já experimentaram, talvez de ummodo muito breve, nos momentos em que transcen-deram a cotidianidade das coisas para encontrar-se diante da beleza da natureza, da arte, da poesia,num sentimento de confiança no seu relacionamen-to com os outros, momentos onde o que conta é odesinteresse completo em relação às coisas, a sen-

10. Ibidem.

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sação de não ter mais medo, de nada mais esperar,de estar satisfeito.

Este estado de espírito, não como abstração, masenquanto efetivamente realizado, significa o fimdas opressões, de tudo o que impede os homens dese conduzirem livremente. Esta situação de con-tentamento, no entanto, não é uma saída da histó-ria dos acontecimentos ou da dimensão temporalde nossas vidas. Segundo Weil, a nova vida

não significa que não haja mais acontecimentos, ouque os homens não morram mais, ou que todos osamorosos sejam necessariamente felizes, todas ascrianças dotadas, todos os humanos bons e belos.Ela não significa, não menos ainda, que após o fimda história, não possa surgir mais tragédias e sofri-mentos para o indivíduo: ao contrário, o indivíduoé definido pelo fato que ele está sempre exposto aosconflitos, às decepções, ao que ameaça sempre umser que não seria mais homem se ele dependessesomente de si mesmo. No entanto, as infelicidadesdo homem livre e racional no mundo livre racionalserão suas próprias infelicidades: mesmo que este-ja na tragédia, é ele mesmo que se realizará, estaserá sua tragédia, não a das circunstâncias, das con-dições, das forças exteriores11.

A vida dos homens livres se desenrolará com aatitude de busca das condições que tornam possí-

11. Ibid., p. 175.

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vel uma vida sem conflitos. Para Weil, o homem nãoé um vazio e ele não se imagina vivendo numa con-tínua quietude ou numa repetição do mesmo. Nosconflitos, com os desafios, o homem livre estariaem si mesmo, porque, por mais fortes e ameaçado-res que pudessem ser os problemas, eles seriam seusproblemas e ele os venceria ou seria vencido estan-do “em si mesmo”. Neste último caso, a tragédianão seria a tragédia de um outro que o venceria,mas ela seria o desafio livremente escolhido, com acerteza de ter escolhido o que é12, ou seja, a presen-ça de si completa, em plena consciência.

Tendo presente a síntese das idéias de Weil so-bre o tema do fim da história, cabe investigar comoele chegou a elas. Leitor atento da história da filo-sofia, pode-se supor que tenha sido na tradiçãoaristotélica, cristã, kantiana e hegeliana que es-tas idéias germinaram. Mas, de que forma ele aselaborou e qual a consistência dos argumentos?

O acesso a uma outra história: o Espíritoabsoluto em Hegel

Com o intento de entender melhor as origensdo tema do “fim da história” em Weil, restringir-se-á a parte final desse estudo à abordagem que o

12. Eric Weil nos oferece um bom esclarecimento sobre o assunto ao afirmar que« o fim da história não significa que nenhum homem será mais infeliz; istosignifica apenas que o infeliz terá querido a sua infelicidade e que todo ohomem, sob a única condição de querer (não de o desejar ou de o sonhar), seráfeliz, porque nada o impedirá de querer o ser » (Ibid., p. 176).

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comentador deu à filosofia de Hegel. Supõem-seque o pensador de Berlim tenha exercido uma for-te influência sobre o intérprete.

Leitor atento do idealismo alemão, Weil sabeque o Estado moderno em Hegel é a condição parao Espírito absoluto. Assim, a grande questão queWeil se colocava era: a idéia do Estado racionalhegeliano é a última determinação da evolução dosentido histórico do Espírito, ou é uma determi-nação que, enquanto determinação de uma época,será no futuro ultrapassada?

Weil, com certeza, apresentou duas respostas àquestão. Ambas giram em torno da concepção deEstado em Hegel, formuladas em etapas distintasde sua leitura do tema.

Em 1950, ao tratar do assunto em seu Hegel etl´État, Weil afirma que Hegel era:

O filósofo do Estado moderno sob o qual elaborou aanálise correta, indicando com precisão em que con-siste a liberdade no Estado, quais são as condiçõesque o Estado deve cumprir para ser o Estado da liber-dade, Estado que realiza o pensamento moderno.13

Mas, ao mesmo tempo, restava para Hegel, se-gundo Weil,

um problema mais importante, talvez dentre todosos problemas, o mais inquietante: se a análisehegeliana está correta, não cai a mesma, por isso

13 E. Weil, Hegel et l’Etat, 6 éd. Paris, Vrin, 1985. p. 72.

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mesmo, sob a crítica a mais grave, a mais decisiva?Se Hegel esboçou, se o mesmo quis apresentar oEstado em si, a idéia do Estado, não é possível con-cluir que para ele a história terminou produzindoum Estado que satisfaz a razão, a vontade livre,que não há mais nada a fazer neste mundo, que ofuturo é somente a continuação vazia e monóto-na?14

Em 1950, Weil havia respondido, em sua primei-ra alternativa, que “Hegel justificou o Estado naci-onal e soberano como o físico justifica a tempesta-de: compreendendo o que há de racional no fenô-meno...”15 O que a história empírica da Prússia daépoca de Hegel permitia compreender nas suasdeterminações as mais evoluídas (a corporação nasociedade civil ou a constituição no Estado), seria amanifestação da razão em seu trabalho histórico deuniversalização da particularidade. Para Weil, noentanto, o que se revela na figuração deste fenôme-no político do retorno do conceito em sua identida-de substancial, não seria ainda a presença consci-ente do conceito a si como culminação última, ter-minal, de seu retorno à si. Esta determinação seriatambém histórica, passageira, e uma nova determi-nação tomaria, no futuro, o seu lugar. Assim, se re-ferindo ao Estado moderno, ele escreve:

14 Ibid. p. 72-73.15 Ibid. p. 78.

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Hegel pensa que o espírito não terminou a sua mar-cha, que Berlim de 1820 não é o término da histó-ria e que o que ele nomeia de idéia, a negatividadeque quer se realizar como liberdade positiva, comoa presença da satisfação e reconhecimento do infi-nito valor de todo homem, que esta idéia não seproduziu inteiramente diante da consciência.16

Segundo ele, para Hegel:

O espírito não chegou ainda à claridade na qual eleserá completamente consciente de si, ele ainda nãoperfez seu retorno em si mesmo na liberdade daexistência real, os espíritos particulares dos povoscontinuam a lutar: o julgamento último não foi ain-da pronunciado.17

Weil observa ainda que:

Hegel justificou o Estado moderno, o Estado repre-sentado pela Prússia de sua época; sim, trata-se daPrússia que produziu a consciência desta etapa dodevir do espírito, da realização da liberdade. Sim, aPrússia foi justificada enquanto Estado do pensa-mento – justificado e, por isso mesmo, condenado; oespírito se apronta para fazer um novo passo,18 [por-que] (...) o Estado hegeliano morre: a prova é que afilosofia hegeliana do Estado é possível. Porque esta

16. Ibidem.17. Ibid., p. 79.18. Ibid., p. 103-104.

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forma terminou, porque ela penetra a realidade, eladeve ceder o lugar; o Espírito, no seu trabalhoinsconsciente e subterrâneo, tende em direção a umanova Wirklichkeit.19

Assim, Weil conclui que sua filosofia

contém uma predicação, um julgamento sobre a ten-dência da história: a reconciliação e a mediação totalvai se realizar: do contrário, a história seria absurda, aluta do homem com a natureza não terminaria, anegatividade não conseguiria superar (digerir), por seutrabalho, o imediato, o acaso, e não existiria razão realpara o homem.20

Mais tarde, em 1976, tratando ainda do mesmo temano artigo intitulado “ ‘La philosophie du droit’ et laphilosophie de l’histoire hégélienne”, Weil responde,entre outras coisas, a este mesmo “problema mais im-portante”, e, nesta ocasião, com uma mudança de pers-pectiva. Ao tratar do Espírito absoluto e de seuengendramento na história, conclui que a infinitudejá se mostrou em sua plenitude para o pensamentohumano através do Estado racional. Na sua ótica:

O que há de eterno, fora de todo tempo, se mostra, no fimdo percurso da finitude humana, tal como ele é em si,mas em si do sujeito, do para-si, ao qual ele se revela eque o compreende e se compreende nele. Isto está além

19. Ibid., p. 103.20. Ibid., p. 78.

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do Estado; mas isto somente é acessível ao indivíduo nonível do Estado racional que a história fez nascer.21

No mesmo artigo, sem falar de um “fim da histó-ria”, Weil admite que, “para os fins do pensamento, oEstado moderno da liberdade racional existe”22 , sen-do Hegel o primeiro filósofo a expô-lo na sua Filosofiado Direito. Na sua interpretação,

o Estado, neste sentido, é visto por Hegel como ‘ima-gem e realidade orgânica desenvolvida da razão efeti-vamente real’, ele é esta realidade somente ‘para aconsciência de si’, e não é pois vivenciado no ‘senti-mento e na representação desta sua verdade comoessencialidade ideal’, que é só reservada à religião, enão é, de um ponto de vista mais forte da razão, ‘oconhecimento livre e compreendido da verdade (isto é,como essencialmente ideal)’, que somente existe pelofato da ciência, a filosofia.23

Ora, para Weil, que pensa o tema vinte e cincoanos após o famoso texto de 1950, a história do Es-pírito parece ter chegado ao seu fim sob a formacomo ela se “mostra no fim do percurso da finitudehumana” para o filósofo Hegel. Ele é quem compre-

21. Eric Weil. « La ‘Philosophie du droit’ et la philosophie de l’histoire hégélienne ».In:___. Philosophie et réalité: derniers essais et conférences. Paris: Beauchesne,1982, p. 158. O artigo em questão foi publicado pela primeira vez em Hegel etla philosophie du droit, sob direção de Guy Planty-Bonjour, Paris: P.U.F., 1979.

22. Ibid., p. 162.23. Ibid., p. 160.

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endeu o que é a Weltgeschichte enquanto históriapolítica da “realização da razão no domínio do aci-dental e da necessidade exterior”24 . Mas, também,de um modo geral, é o filósofo – abstraindo do fatode ser Hegel - , e somente ele, rememorando o per-curso do tempo pelo pensamento do conceito, agin-do desde suas primeiras determinações até seu re-torno completo a si como Espírito universal, quechega a compreender a possibilidade da Idéia e suaprópria aparição histórica. Embora o Espírito abso-luto seja obra da arte, da religião e da filosofia, so-mente esta última é capaz de elaborar a apreensãocompleta da história da Razão no mundo rumo à am-pliação de sua consciência da liberdade. Se cabe àfilosofia este papel, no entanto, há uma filosofia quemelhor elabora esta apreensão. Para Weil, e Hegelassim o entendeu também, entre todas as formula-ções filosóficas, a filosofia especulativa hegeliana se-ria a mais completa. Segundo sua avaliação, ela mos-tra corretamente as

mudanças essenciais que fazem suceder os quatroimpérios históricos que, enquanto tais, são (...) ostraços da ação livre do Espírito em sua marcha emdireção à compreensão dele mesmo por ele mesmoe em direção da sua liberdade absoluta como Espí-rito absoluto.25

24. Ibidem.25. Ibid., p. 163.

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Weil admite, assim, que é pela consciência desi do filósofo que “se elevou acima de sua prece-dente encarnação e exteriorização, mais precisa-mente a do Estado moderno-racional”26, que o es-pírito chega à sua reconciliação efetiva, não maishistórica, como um simples degrau mais alto deseu percurso de concretização, mas como a identi-dade de si como conceito: “é aí que o Espírito estáem si, satisfeito e repleto (apaisé)”.27 Se Weil ad-mite com Hegel que o Espírito, em sua objetivida-de, não será jamais liberado de sua negatividade,por que o Estado real (não “em direito de pensa-mento”) que se encontra elaborado é finito e estásubmetido ao acidental que permanece não-eliminável no ambiente da natureza, ele parececomungar da interpretação hegeliana segundo aqual é “a partir do conceito do Estado racional esomente a partir dele, [que] pode ser pensado eprocurado, exigido e progressivamente realizado,a liberdade concreta racional.”28

Percebe-se, pois, que, passado este tempo, Weilmudou de opinião com respeito ao tema do fim dahistória. Com Hegel, ele reconhece que a históriada razão no Espírito objetivo culmina com a forma-ção da Idéia do Estado racional, única condição paraque o pensamento, enfim liberado, ultrapasse a con-tingência de organizações políticas que não ofere-cem o mínimo necessário para o crescimento da arte,

26. Ibid., p. 158.27. Ibidem.28. Ibid., p. 162.

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da religião e a filosofia, e consiga pensar a históriapolítica em sua universalidade, isto é, consiga sepensar, como ser compreendido. O Estado racionalse produz, então, na história política que terminaem sua efetuação como “idealidade” do conceito. Aesse respeito afirma Weil:

a compreensão última se alcança somente sobre oplano que situa todos os planos sem ser ele mesmosituado, o do pensamento puro, do conceito que se vêrealizado em Idéia no mundo e se compreende ele-mesmo, uma vez que elevou este mundo à idealidadereduzindo o todo do finito à sua substância, na qualele se preservou, ao mesmo tempo que é negado emsuas pretensões à uma existência irredutível, ondeele é, pois, reduzido e justificado como momento.29

O pensamento de Hegel teria, deste modo, aber-to a mais importante das vias para a compreensãoda razão que, enquanto Idéia eterna, se faz de umamaneira contínua na história dos homens. Antesdessa inauguração era impossível pensar

como este intemporal entrou no tempo, como os se-res finitos, que somos, por um lado, que é não-eliminável de nossa natureza, tocou o eterno de umasubstância que deve bem ter sido em nós, mas deve-ria se du-plicar para ser para nós, homens do comume filósofos sempre enfronhados na existência do dia-a-dia, do comum, mesmo que no âmbito da filosofia.30

29 Ibid., p. 161.30 Ibidem.

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Ora, para Weil, somente a “filosofia da histó-ria” de Hegel tornou possível a assimilação dessaperspectiva pelo fato de que ela

mostra como a liberdade, essência da humanidadedo homem, primeiro agindo de uma forma bran-da, inconsciente de sua natureza e de sua presen-ça, vem a se compreender e a se pensar, não seprojetando num além inacessível e ineficaz, mastransformando o mundo dado de modo que liber-dade e razão, neste sentido, ajam em conjunto eque a liberdade (...) se veja reconhecida, intra-mundana, nas instituições e constituição do Esta-do moderno.31

Uma vez que a humanidade tenha feito a expe-riência da liberdade se sabendo a si mesma no seraí do Estado moderno, Weil reconhece que estesaber político de si se põem como a condição detoda a compreensão da história. Chega-se, assim,ao presente não mais histórico. Ele se torna o pre-sente do sentido, a presença intemporal da lógica.O ensinamento da filosofia da história hegelianarevela que o “devir do Espírito sobre o plano polí-tico” é a expressão de “um só movimento {que} con-duz ao Estado moderno e à tomada de consciênciada liberdade concreta que é alcançada”32 . Nestafiguração, “o movimento somente abre o acesso àuma outra história, não mais Weltgeschichte, mas

31. Ibid., p. 161-162.32. Ibid., p. 166.

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história do Espírito absoluto, em suas diferentesdimensões de arte, de religião, de filosofia.”33 Umsaber absoluto que, sem precisar mais valer-se doespírito mundano, fase em que ele se mostra no planorelativo da história e é submetido ao seu julgamento,não é mais afetado por ele e não pode mais “receberdele – que seria bem incapaz de o oferecer – umensinamento qualquer”34 .

Por isso, o Espírito absoluto, ou a “compreen-são última, (...) nasce num Estado histórico em seuprincípio livre e racional e, a partir de condiçõespolíticas que não se encontram nele”35, é o saberque ultrapassa o histórico na medida em que se com-preende a si mesmo. Para Weil, como para Hegel, ahistória mundana continuará e outras compreen-sões se engendrarão: “a Weltgeschichte filosófica dodevir político não é a última, ela permanece sem-pre a ser compreendida”36 . Esta realidade, no en-tanto, não modificará em nada o saber do Espíritoabsoluto que, enquanto “compreensão última, ab-soluta, se compreende a si mesma”37 .

A nova leitura de Weil, de certa forma, mostraque só se compreende de uma forma mais abran-gente e correta o hegelianismo, pressupondo aconcepção da manifestação histórica do Espíritoabsoluto que faz o retorno a si no fim da históriado Espírito, como o saber final. Como afirma en-

33. Ibidem.34. Ibidem.35. Ibidem.36. Ibidem.37. Ibidem.

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faticamente Weil: “a partir do conceito do Estadoracional, e somente a partir dele, pode ser pensa-do, pois procurado, exigido e progressivamente re-alizado a liberdade concreta e racional.”38 O leitorfinalmente reconhece que se a história do Espíritonão chega a se realizar em seu modo objetivo comosentido final conhecido do desenvolvimento políti-co de sua evolução, ela não pode ultrapassar, en-quanto tal, a sua verdade de Saber absoluto. A con-dição do sentido não é a relatividade do sentido, oua relatividade das apreensões do saber na históriacomo um movimento sempre levado adiante. A con-dição do sentido é a sua própria auto-posição comosaber absoluto: ou seja, para Hegel, se trata sempreda Idéia, quer ela esteja “fora de si na natureza”39,ou como “Idéia retornando, de seu ser-outro, nelamesma”40. Weil dirá: “um único movimento... con-duz ao Estado moderno e à tomada de consciênciada liberdade concreta que é alcançada.”41 Nestaperspectiva complementa o comentador que:

se a história tem um sentido e uma direção, é, pois,em última instância, porque ela forma a base indis-pensável à realização do Espírito absoluto, Saberque transcende a história, mas que o faz (e se faz)através da história, a transpassa e assim vive nela.42

38. Ibid., p. 162.39. Ency III, Add. 381, p. 391.40 . Cf. Ency III, Add. 382, p. 392.41. WEIL, Eric, « La «Philosophie du droit» et la philosophie de l’histoire

hégélienne ». In: _____. Philosophie et réalité: derniers essais et conférences.Paris: Beauchesne, 1982, p. 166.

42. Ibid., p. 158.

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Aquele que fez esta descoberta fundamental é ofilósofo do Estado racional, que, a partir desta de-terminação mais alta do Espírito em suaobjetivação, pôde ultrapassá-la pelo pensamentoque tomou consciência de sua finitude. A história,o Espírito objetivo, como afirma Weil,

se ultrapassa naquele que, chegando ao Saber, seaproximou de sua própria finitude, ou melhor, que,em sua finitude, pensando a finitude, atinge assimo infinito, e pode então escrever a história verda-deira, a do devir do pensamento livre porque abso-luto, absoluto porque livre.43

É por intermédio da filosofia especulativa queo sentido se elevou em sua “simplicidade imanente”como o saber resultante do desenvolvimento damediação que se recolhe em si, porque, de fato,por ela, o finito tem a significação de um ser su-primido. Uma mediação que se estrutura como umasucessão temporal e exterior, mas, também, e so-bretudo, como a integração das determinaçõesconceituais anteriores: o absoluto hegeliano é umresultado, mas o resultado dele mesmo. É o Espí-rito absoluto que se reconhece como livre por in-termédio de sua própria ação.

43. Ibidem.

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Considerações Finais

O pensamento de Weil sobre o tema do “fim dahistória” tem raízes profundas. Por maisdesconcertante que pareça falar hoje sobre o “fimda história” no ambiente pós-moderno, que rompecom as linhas de continuidade do pensamento edesestrutura discursos, mostrando sua vagüidadee falta de sentido, quando se valoriza a perspecti-va de busca do sentido, com o cuidado de bem fun-damentar o discurso, encontram-se bons motivospara valorizar o esforço de Weil. O tema do “fimda história” aqui apresentado realça a seriedadedo procedimento, resistindo à tentação de pensaro tema sob uma ótica influenciada pelo marxismoe procurando uma via que, com certeza, era muitomais exigente.

A argumentação mais profunda que serve de su-porte ao discurso de Weil é encontrada em Hegel.Embora o comentador tenha modificado sua interpre-tação ao longo das leituras sobre o assunto, a argu-mentação predominante consegue alcançar uma den-sidade elevada. É com Hegel que ele dialoga e elabo-ra suas próprias conclusões. Um questionamento des-sas proposições, portanto, não pode prescindir de umareleitura crítica do hegelianismo.

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ERIC WEIL E A NOÇÃO DE “FIM DA HISTÓRIA”372

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ANDRÉA DA ROCHA RODRIGUES 373

A MODERNIDADE, O CONHECIMENTOHISTÓRICO E OS IDEAIS DE VERDADE

E OBJETIVIDADE

ANDRÉA DA ROCHA RODRIGUES

I

A modernidade

iscorrer sobre uma modernidade impli-ca assumir que as sociedades organi-zam-se segundo elementos comuns du-

rante um período, e que essa estrutura organiza-cional destoa de outras elaboradas em momentoshistóricos diferentes. É portanto, pensar as soci-edades em sua historicidade, mas é também afas-tar-se da apreensão das diferenças existentes, tan-to entre as estruturas sociais, como dentro de umaúnica estrutura. Mais ainda, é suprimir a capaci-dade do indivíduo de elaborar e reelaborar a pró-pria estrutura em que está inserido. Da mesmaforma, o conceito de modernidade é diretamenteassociado ao ideal de homem civilizado ocidental,o que faz com que esse conceito esteja relacionadoa unidades temporais e espaciais específicas. Foipensando dessa maneira, que Nobert Elias, no seulivro O processo civilizador, fez a seguinte afirma-

D

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ção: “O homem ocidental nem sempre se compor-tou da maneira que estamos acostumados a consi-derar como típica ou como sinal característico dohomem civilizado” (ELIAS, 1994, p.13). Elias ana-lisa as mudanças dos costumes operadas no oci-dente e constata que uma observação mais nítidadessas mudanças só puderam ser sentidas, a par-tir dos séculos XIV e XV, quando, motivados pelaascensão das guildas de ofícios e de elementosburgueses, bem como, quando da adoção de mode-los de comportamentos originários da aristocra-cia de corte pelo círculo burguês, os costumes ad-quiriram outra feição1 .

Cardoso, da mesma forma que Elias, identificaa existência de um paradigma iluminista nas soci-edades ocidentais. O modelo iluminista, segundoesses autores, estava diretamente imbricado como conceito de civilização, muito embora reconhe-çam que havia diferenças entre a França e a Ale-manha na maneira de conceituar e compreender oideal civilizatório. O ideal civilizatório francês, ini-ciado desde o Renascimento, esteve interligado auma perspectiva evolucionista e otimista, quan-do, então, em, aproximadamente, 1968, houve uma“vitória do corte interpretativo de origem alemãsobre o de origem francesa, sintetizando o que mui-tos pensadores contemporâneos vêem como um fimde uma longa fase na história dos homens e suas

1 Elias, no segundo volume – O processo civilizador. Formação do Estado ecivilização – demonstra que, a partir da formação dos Estados nacionais naEuropa e do gradativo declínio das sociedades de Corte, impõe-se uma novasensibilidade no ocidente, a sensibilidade do homem moderno e civilizado.

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visões de mundo, começada com o Renascimento eintensificada com o Iluminismo: donde a designa-ção usual deste fim de século como inaugurandoum período pós-moderno” ( CARDOSO, 1997, p.2).A alternativa : Hegel e Marx, de um lado, e Kant,do outro, inseridos no grande âmbito doracionalismo moderno, além do predomínio de in-terpretações globais do social que buscavam im-primir um sentido à história, teriam marcado omodelo iluminista.

Na tentativa de compreender o conceito de mo-dernidade e seus supostos efeitos nas estruturassociais do ocidente, além da representação que associedades “contemporâneas’- para alguns pós-mo-derna- fazem desse período, recorremos a autoresque não somente refletem acerca da modernidadecomo da pós-modernidade. Lyotard, por exemplo,busca discutir quais as características presentes noparadigma pós-moderno e que fazem oposição amodernidade. Esse autor acredita que houve trans-formações no campo do saber das sociedades pós-industriais, ou seja, existiu um deslocamento no dis-curso sobre a verdade no final do século XIX. ParaLyotard, a modernidade caracteriza-se pela idéiade que a sociedade forma um todo orgânico, “a soci-edade é uma totalidade unida, uma unicidade”(LYOTARD, 1998, p.21). Assim, para esse autor, oque está em jogo nas epistemes denominadas de mo-dernidade ou pós-modernidade são as regras quedefinem o discurso da verdade científica Há, por-tanto entre as duas epistemes, uma “crise dos rela-tos”. A ciência busca, além de enunciar regularida-des úteis, estabelecer uma verdade que necessita

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de um discurso de legitimação. A modernidade te-ria recorrido a metadiscursos que traduziram-se emdiferentes formas, tais como, “a dialética do espíri-to, a hermenêutica do sentido, a emancipação dosujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimentoda riqueza...” (LYOTARD,1998, p.XV). ContinuaFrançois Lyotard:

É assim, por exemplo, que a regra do consenso en-tre o remetente e destinatário de um enunciadocom valor de verdade será tida como aceitável, seela se inscreve na perspectiva de uma unanimida-de possível de mentalidades racionais: foi este orelato das luzes, onde o herói do saber trabalha porum bom fim ético-político, a paz universal(LYOTARD, 1998, p.VX-XVI).

Tais argumentos, portanto, relacionam o discursocientifico da modernidade ao contexto de produçãodos ideais de racionalidade, humanidade e progres-so, ou seja, ao discurso das luzes, identificado nas so-ciedades ocidentais, entre os séculos XV e XVIII.

Alguns historiadores, entretanto, questionaram-se sobre essa cultura iluminista, o seu predomíniopor todo ocidente e seu suposto caráter burguês.Robert Darnton, no seu texto, “um burguês orga-niza seu mundo: a cidade como texto”, mantémbasicamente esse objetivo. Darnton se propõe in-vestigar o pensamento francês do século XVIII e aassociação direta com o mundo burguês. Dialogan-do com a produção dos historiadores sociais quese detiveram no estudo do período conhecido pormodernidade e, ao mesmo tempo, interpretando

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documentos, como a descrição de Montpellier, es-crita em 1768, por um cidadão anônimo, este histo-riador chega a conclusão de que não se pode fazerassociação mecânica entre pensamento do séculoXVIII e burguesia. Os estudos dos historiadoressociais sobre a França têm demonstrado que essepaís, comparado com a Inglaterra, não atravessouuma revolução industrial. Pergunta-se, então, oautor: “Onde fica a noção de um século que ‘pensa-va com a burguesia’? Uma vasta análise sociológicados principais centros de pensamento, as academi-as provincianas, mostrou que os pensadores per-tenciam a uma elite tradicional de nobres, padres,autoridades estatais, médicos e advogados...os pró-prios escritores vinham de todos os segmentos dasociedade, exceto o industrial” (DARNTON, 1986,p.148), concluindo que os homens que compunhama “intelligentsia” da maioria das cidades provincia-nas francesas “pertenciam à burguesia do AntigoRegime”, ou seja, simplesmente cidadãos de umacidade. Assim, autores como Darnton, salientamque o sistema capitalista, sistema que caracterizoua modernidade e formou o pensamento europeu,deve ser analisado, levando em consideração a exis-tência de realidades sociais distintas e, da mesmaforma, sem apegar-se a modelos fechados.

Elias, Cardoso e Lyotard representam o vastocorpo de intelectuais que pretenderam interpre-tar e explicar as sociedades a partir da noção demodernidade e, ou da oposição entre modernidadee pós-modernidade. Temas como: corpo, sexuali-dade, família, cultura, constituição de saberes,entre outros, vão ser estudados em diferentes pers-

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pectivas e abordagens presentes nas disciplinasacadêmicas. É o que podemos verificar com os tra-balhos de Michel Foucault, autor que fomenta umatradição de estudos na filosofia e na história acer-ca do corpo, da sexualidade, da família, das insti-tuições (penal e psiquiátrica) e do saber médico ecientífico. Descrevendo as mudanças existentes nosistema de punição dos crimes, do suplício à disci-plina dos corpos, Foucault identifica tal desloca-mento punitivo com o surgimento dos Estadosmodernos (século XVI) e o processo de intensifi-cação do controle do corpo social, processo esseque se estende até o final do século XIX, deixandoevidente que a sociedade moderna, caracterizadapelo predomínio do sistema capitalista, propícianovas formas de controle social. Essa hipótese tra-duz-se muito bem, através da afirmação de que:

Com as novas formas de acumulação de capital, derelações de produção e de estatuto jurídico da pro-priedade, todas as práticas populares que se classi-ficavam, seja numa forma silenciosa, cotidiana, to-lerada, seja numa forma violenta, na ilegalidade dosdireitos, são desviadas à força para ilegalidade dosbens....a economia das ilegalidades se reestruturoucom o desenvolvimento da sociedade capitalista(FOUCAULT, 1997, p.80).

Assim, Foucault, da mesma maneira queNorbert Elias, constata que os elementos princi-pais da sociedade moderna não são mais a comu-nidade e a vida pública, mas os indivíduos, priva-dos por um lado, e o Estado, por outro.

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Seguindo os argumentos foucautianos e, algu-mas vezes criticando-os, Anthony Giddens anali-sa a construção de discursos sobre a sexualidade eo amor nas sociedades modernas. De acordo comGiddens, Foucault, tanto em sua História da sexu-alidade, como em seus escritos anteriores, consi-dera a “vida social moderna como intrinsecamen-te vinculada à ascensão do poder disciplinar” e asexualidade como estreitamente ligada a esse po-der. Fato que teria feito com que a sociedadeinstituisse “uma ciência da sexualidade”(GIDDENS, 1993, p.25-29). Esse novo padrão desaber sobre o corpo e o sexo, teria, segundoFoucault, surgido mediante uma “associação doprincípio da confissão com o acúmulo de conheci-mento sobre o sexo”, perdurando, portanto, desdea Contra Reforma até o século XIX, século em queo sexo torna-se objeto de discussão e investigaçãode diversos saberes do social – médico, psiquiátri-co, pedagógico e jurídico. Dessa forma, mudançasdos costumes e das atitudes diante da vida, pre-domínio dos conceitos de razão, humanidade e pro-gresso, do domínio público sobre o privado, do so-cial sobre o indivíduo.

Por fim, o surgimento de um discurso unitário ecientífico sobre o social que se sobrepõe aos demaisdiscursos e que estabelece regras de comprovaçãode uma verdade, a partir dos conceitos acima cita-dos, são alguns dos elementos salientados pelosestudiosos da modernidade e que nos ajudam a com-preender a formação identitária do conhecimentohistórico e os deslocamentos interpretativos dessesaber sobre as sociedades ditas modernas.

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II

O conhecimento histórico e os ideais de verdadee objetividade

Ao discorrer sobre o conhecimento histórico,estamos implicitamente discutindo formação deidentidade e estabelecimento de fronteiras entresaberes diversos e da mesma forma, estamos anali-sando a construção de um ideal de cientificidadeno Ocidente. A identidade de um grupo social, deum povo ou de uma nação é garantida mediante aimposição de uma memória, memória essa que sur-ge do confronto de várias representações das expe-riências sociais. Sendo assim, a noção de passadotorna-se central na construção dessa memória.

Quando afirmamos que as obras históricas se-lecionam temas, ordenam e selecionam fatos dopassado com o intuito de compreender, ordenare produzir sentidos para o presente, estamos,na verdade, trabalhando com categorias teóri-cas que possibilitam delimitar o objeto de estu-do e formular uma metodologia específica. Abusca de definições para fato histórico e a ela-boração de sentidos para esses fatos, com o in-tuito de construção de memória, marca um tem-po e um espaço tradicionalmente definido pe-los historiadores, como modernidade ocidental.Uma modernidade que se iniciaria no século XVe atingiria seu ápice no século XIX, com os des-dobramentos da Revolução Industrial. Isso nãosignifica afirmar que as sociedades nos séculosanteriores não tiveram história (experiências)

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ou que não se preocuparam em formar identida-des coletivas. Apenas postulamos que a forma-ção de um saber especializado sobre o passadoformula-se, em alguns países do Ocidente, me-diante um longo processo que se estendeu do sé-culo XV ao XIX. O século XIX é consideradopelos historiadores como o século de formaçãode uma consciência histórica, de um saber his-tórico especializado, científico e do estatuto dehistoriador, muito embora o status científicopara o estudo do passado nem sempre tenha sidoobjeto de consenso, tanto dentro da própria his-tória, como da filosofia. É necessário. portanto,uma reflexão sobre como nós, historiadores,conceituamos ciência e como percebemos a dis-ciplina histórica, a partir desse corpo de saber,mais ainda, a historicidade desse conceito.Hobsbawm, por exemplo, define ciência da se-guinte forma:

A ciência é um diálogo entre diferentes opiniõesbaseadas em um método comum. Apenas deixa deser ciência quando não há método para decidir qualdas opiniões em contenda está errada ou é menosfrutífera (HOBSBAWM , 1998, p.184).

Para Hobsbawm, portanto, não existe um saberunitário portador de uma única verdade, porém osaber científico é possuidor de um método capazde se aproximar, o máximo possível, de uma ver-dade através da eliminação do erro. Dessa forma,o método é o mecanismo que separa um saber ci-entífico de um não científico. Devemos, entretan-

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to, nos questionar se essa compreensão éhegemônica entre os historiadores, bem como se oé sua historicidade.

Os séculos XVI e XVII corresponderam ao perí-odo de formação e predomínio de um saber científi-co acerca dos fenômenos naturais e físicos. As teo-rias galileanas e newtonianas a respeito das inter-pretações do universo, tornaram-se não apenas ob-jeto de credibilidade, como portadoras da verda-de. O sucesso e o prestígio das ciências físicas enaturais repercutiu no pensamento filosófico e noestudo das sociedades, de forma geral. Questiona-va-se, assim, se o estudo das sociedades humanaspossibilitava, tanto quanto nas ciências naturais,a obtenção de leis de regularidade dos fenômenose, conseqüentemente, sua previsão.

O pensamento humanista e racionalista, em quepese a heterogeneidade existente em ambos, ne-gava, em parte, a intervenção divina na produçãodo conhecimento e no curso dos acontecimentoshistóricos. Diante disso, a doutrina agostiniana,interpretação teológica e teleológica da história,que predominou no contexto medieval, foi siste-maticamente contestada pelos pensadores que ela-boraram sistemas universais de interpretação dassociedades, entre os século XV e XVIII. Filósofoscomo Vico, Voltaire, Herder, Kant e Hegel, apesardas diferenças entre seus sistemas filosóficos,enveredaram pelo universalismo racionalista ebuscaram uma visão humanizada da história. Ape-sar disso, é possível observar na estrutura dos re-latos históricos, especificamente entre os séculosXVI e XVII, um recuo nas interpretações globais e

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um predomínio de crônicas locais, centradas noestudo das dinastias e das guerras. Por outro lado,foi também nesse período que a erudição críticados documentos históricos se fez valer. Osquestionamentos acerca dos poderes temporal eespiritual da Igreja, através da Reforma, levoumembros dessa instituição a promover um estudoacurado de análise documental com o intuito decomprovar a veracidade dos seus argumentos edogmas. O documento oficial tornou-se então, uminstrumento para obtenção do fato histórico. Acrítica documental (erudição crítica) consistia emverificar a autenticidade do documento e extraira evidência de um acontecimento passado (o fatohistórico). Pode-se dizer que foram nessas basesque se estruturou o método histórico, posterior-mente fortalecido e organizado pelos historiado-res do século XIX. Nesse século incorporou-se oideal de cientificidade para o estudo do passado.

Na verdade, segundo Carr foi:

no fim do século XVIII, quando a ciência tinhacontribuído com tanto sucesso não só para o co-nhecimento do mundo como para o conhecimentopelo homem de seus próprios atributos físicos,começou-se a perguntar se a ciência não poderia tam-bém ir mais longe no conhecimento humano da so-ciedade. A concepção das ciências sociais - e da his-tória entre elas - desenvolveu-se gradualmente atra-vés do século XIX; o método pelo qual a ciência estu-dava o mundo da natureza foi aplicado ao estudo dohomem. Na primeira parte desse período, a tradiçãonewtoniana prevaleceu... Darwin então fez outra

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revolução científica; os cientistas sociais, partindoda biologia, começaram a pensar na sociedade comoum organismo (CARR , 1996, p. 91-92).

Uma contradição, então, se formava. Um estu-do científico baseava-se na observação, compara-ção, experimentação dos fenômenos, com o intuitode encontrar regularidades neles. Todavia, a his-tória, através do seu método de erudição crítica,buscava um fato passado, singular, que não se re-petia. Isso fazia com que o conhecimento históriconão seguisse as metas e os princípios atribuídos aum conhecimento científico pelas ciências físicase naturais. Afirmavam, então, os defensores do ca-ráter científico da história, que esta era uma ciên-cia ideográfica, ou seja, que tinha como objeto deestudo o fato singular e que o método, apenas, ométodo, garantia o status de cientificidade a esseconhecimento. O método possibilitava a descober-ta do “fato”, que, por sua vez, garantia a objetivi-dade do conhecimento, pois este representava umacontecimento já ocorrido porém testemunhado eregistrado. Assim, a fase da observação eraalcançada no conhecimento histórico através datestemunha ocular que vivenciava e registrava aexperiência. O passado portanto, podia ser resga-tado indiretamente.

O século XX, por sua vez, é tido como o períodode grandes transformações nas formas de estudare interpretar o passado das sociedades. Da Escolados Annales à história social inglesa de carátermarxista, a história cultural ítalo-americana, cons-tata-se uma contestação da noção de fato histórico

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singular, do predomínio de uma história política eda crença na produção de uma verdade única eabsoluta sobre o passado. Entretanto, o ideal decientificidade e do método, enquanto elementosnecessários e inerentes à disciplina histórica, per-manece. Muda-se, sim, da mesma forma que nasciências físicas e naturais, o conceito de ciência e,em função dessa mudança conceitual, o que se com-preende e o que se espera de um método científico.Contribuíram para isso, as transformações por quepassaram a sociedades ocidentais, duas grandesguerras mundiais e desilusão com o movimento re-volucionário socialista a partir do stalinismo. Taisconjunturas geraram em todo o corpo do saber aca-dêmico questionamentos acerca do supostoparadigma que fundamentava seus saberes, oparadigma da modernidade. E, com ele, os ideaisde razão, humanidade e progresso.

Tendências irracionalistas ou neo-racionalistasde interpretação da sociedade e, especificamente,das sociedades no tempo, vão se impor. Interpre-tações relativistas e questionamentos acerca daverdade, objetividade e do sentido da história vãose tornar muito comuns nos estudos históricos.Alguns historiadores, entretanto, tentaram respon-der tais questionamentos, considerados idealistas,mediante um maior esclarecimento e refinamentodo conceito de história, da teoria ou teoriasadotadas e do método histórico. Foi o que fizeramE. P. Thompson e Carlo Ginzburg nos seus respec-tivos livros A miséria da Teoria ou um planetáriode Erros: uma crítica ao pensamento de Althusser eMitos, Emblemas e sinais: morfologia e história.

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E. P. Thompson objetivou empreender umaanálise do marxismo althusseriano e dos pressu-postos dos seus supostos discípulos, bem comoda crítica especificamente antimarxista dohistoricismo. Porém, ao realizar tal tarefa,Thompson terminou por aprofundar questões ine-rentes à construção teórica e metodológica do sa-ber histórico; tais como, o objeto do conhecimen-to histórico (a complexidade do conhecimento esua especificidade), a intencionalidade das fon-tes históricas, a verdade histórica, o método e ocaráter científico desse conhecimento. Contestan-do as interpretações relativistas e o próprioAlthusser que pregavam o caráter ficcional e nãoobjetivo do conhecimento histórico, Thompsonsustenta que a evidência histórica tem:

uma existência real (determinante), independentede sua existência nas formas de pensamento, queessa evidência é testemunha de um processo histó-rico real, e que esse processo (ou alguma compre-ensão aproximada dele) é objeto do conhecimentohistórico (THOMPSON, 1981, p.37-38).

O autor, dessa forma, não apenas afirma o ca-ráter objetivo desse conhecimento, como delimitaseu objeto de estudo. Mas Thompson não se limi-ta a defender a objetividade do conhecimento his-tórico, pois procura explicar de que forma se pro-cessa a apreensão do “real’ pela disciplina históri-ca, privilegiando nos seus argumentos o conceitode experiência. Afirma Thompson:

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Mas a relação de conhecimento entre o real e oreal pode ainda perfeitamente ser uma relação reale determinante, isto é, uma relação da apropria-ção ativa por uma parte (pensamento) de outraparte (atributos seletivos do real), e essa relaçãopode ocorrer não em quaisquer termos que o pen-samento prescreva, mas de maneiras que são de-terminadas pelas propriedades do objeto real: as pro-priedades da realidade determinam tanto os proce-dimentos adequados de pensamento (isto é, sua ade-quação ou inadequação) quanto o seu produto(THOMPSON, 1981, p.27).

Resumindo, para Thompson, as propriedadesseletivas do real, manifestadas através das expe-riências do ser social, determinam as formas depensamento desse real assim como o seu conheci-mento, muito embora seja uma determinação li-mitada, pois “pensamento e ser habitam um únicoespaço, que somos nós mesmos”. E é nisso que con-siste o diálogo ente a consciência e o ser. Com estaafirmação, Thompson não somente rejeita comomodelo interpretativo o materialismo mecanicista,mas também o pensamento idealista. Para ele, nãohá dicotomia entre ser e consciência e entre real epensamento, pois o ser social passa por modifica-ções que interferem na experiência, que por suavez afetam e reelaboram a consciência.

Assim, segundo o autor, o ser não é uma “mate-rialidade grosseira da qual toda idealidade foi abs-traída, e que a consciência (como idealidade abs-trata) está ali. Pois não podemos conceber nenhu-ma forma de ser social independentemente de seus

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conceitos e expectativas organizadores, nem po-deria o ser social reproduzir-se por um único diasem pensamento”. Continua o autor: a experiên-cia é “uma categoria que, por mais imperfeita queseja, é indispensável ao historiador, já que com-preende a resposta mental e emocional, seja deum indivíduo ou de um grupo social, a muitos acon-tecimentos interrelacionados ou a muitas repeti-ções do mesmo tipo de acontecimento... A experi-ência surge espontaneamente no ser social, masnão surge sem pensamento. Surge, porque homense mulheres (e não apenas filósofos) são racionais,e refletem sobre o que acontece a seu mundo”(THOMPSON, 1981, p.16, p.27). De acordo comesses argumentos, constatamos que Thompsonenfoca a noção de dialética tanto para explicar arelação realidade- pensamento, como paraconceituar a categoria experiência. Verificamos damesma forma, que o conceito de experiência pro-posto por Thompson está diretamente fundamen-tado no pensamento racionalista, ou seja, na pre-missa de que o processo histórico é construído ra-cionalmente pelos homens.

Partindo, portanto, desses pressupostos,Thompson conclui que os fatos históricos são evi-dências de um real no tempo, em que pese o cará-ter intencional ou não dessas evidências, e que asmesmas são fruto das experiências sociais. Con-clui também que, embora história real e conheci-mento histórico sejam coisas totalmente distintas,a primeira pode manter uma relação objetiva e,de certa forma, determinante com seu conheci-mento. Para tanto, é necessário que a disciplina

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história elabore procedimentos de comprovação daverdade – metodologia- diferente da utilizada pe-las ciências exatas e naturais, mas que não deixede eliminar, em parte, o comprometimento ideo-lógico das evidências. Essa metodologia é deno-minada pelo autor de a “lógica histórica”. Essalógica é que permite ao historiador obter uma com-preensão aproximada da realidade passada ( quenão muda), pois o que muda são suas interpreta-ções, e garantir um conhecimento objetivo dessamesma realidade. Não obstante Thompson reco-nheça o caráter objetivo do conhecimento históri-co e de sua lógica, não identifica esse conhecimen-to com o status de cientificidade.

Já Carlo Ginzburg não tem dúvidas de que adisciplina histórica é um saber científico, muitoembora acredite ser ela sui-generis, haja vista acaracterística singular de seu objeto. Ginzburgafirma que, ao contrário das ciências nomotéticas,o conhecimento histórico estuda o acontecimen-to singular, que não se repete. O conhecimentohistórico, da mesma forma, adota uma propostade método interpretativo centrada sobre estudodos resíduos, dos dados marginais, de “pormeno-res considerados sem importância”, ou seja, no“minucioso reconhecimento de uma realidade tal-vez ínfima, para descobrir pistas de eventos nãodiretamente experimentáveis pelo observador”.Um método centrado no paradigma indiciário,semiótico e conjetural, que tem como operaçõesintelectuais envolvidas as seguintes fases: análi-se, comparação e classificação. Assim, de acordocom Ginzburg, é o método indiciário que permite

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ao historiador obter um conhecimento indireto,conjetural, objetivo e científico das realidades pas-sadas. Este autor, portanto, ao contrário deThompson, atribui ao método o caráter científicoda disciplina histórica. É a importância dada aométodo que o faz discorrer como emergiu, por vol-ta do século XIX, “no âmbito das ciências huma-nas um modelo epistemológico (caso se prefira, umparadigma)...” E que a “análise desse paradigma,amplamente operante de fato, ainda não teorizadoexplicitamente, talvez possa ajudar a sair dos in-cômodos da transposição entre ‘racionalismo’ e‘irracionalismo’ (GINZBURG, 1989, p. 152-153).Esse paradigma, estruturado no século XIX, noâmbito das ciências sociais e do saber médico, te-ria suas raízes no saber venatório do homem caça-dor, centrado na experiência. Um saber introjetadono aparelho cognoscitivo da humanidade que per-mitia, “a partir de dados aparentementeegligenciáveis, remontar a uma realidade comple-xa não experimentável diretamente” (GINZBURG,1989, p.152).

Por fim, diante de tantos argumentos díspares,mesmo entre aqueles que se identificam com umdeterminado modelo interpretativo das socieda-des, é mister salientar que tamanha diversidadenão significa problemas de identidade da discipli-na histórica e, sim, a capacidade que essa área deconhecimento possui para reavaliar e modificarseus pressupostos, assim como de flexibilizar osmodelos interpretativos, a partir das formaçõessociais estudadas.

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NOVA HISTÓRIA392

NOVA HISTÓRIA: ab(usos) eperspectivas

FLÁVIO CARVALHO

possível uma filosofia da história para anova história? Qual o impacto desse novojeito de fazer história? Qual o papel do

historiador, a partir dessa nova perspectiva? Atéque ponto as propostas da nova história são real-mente novas? Acerca dessas e de algumas outrasquestões pertinentes a esta nova tendência na his-toriografia contemporânea, tentaremos, a seguir,mostrar certa compreensão. A discussão preten-de abranger alguns dos aspectos mais relevantesdo discurso da nova história, com isso, esperamosatingir os seguintes pontos:

1. a ruptura proposta entre a historiografia tra-dicional e a nova história;

2. a questão das fontes e dos métodos;3. os limites que mostram ambos os discursos

historiográficos;4. as perspectivas que se descortinam com a pro-

posta da nova história;5. os principais conceitos da nova história: men-

talidade, imaginário, pluralidade, oralidade,entre outros.

É

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FLÁVIO CARVALHO 393

O percurso que tentaremos fazer segue por umavia de divergências, pois, comumente, se diz que anova história é tributária e herdeira de Annales,porém um outro questionamento é, se há essa he-reditariedade, que grau alcança essa herança? Nãoseria melhor falar em contribuição, uma vez que anova história não simpatiza com a idéia de evolu-ção, desse tipo de “hereditariedade”?

Segundo Peter Burke1, uma primeira pista dessa“contribuição” pode ser dada mediante uma peque-na retrospectiva: a partir da 2ª e 3ª décadas do sécu-lo XX, inicia-se um movimento de rejeição ao tipo dehistoriografia que se fazia, do tipo iminentementepolítico, que toma o homem sem uma análiseconjuntural e diversificada. Sob essa perspectiva,surge a revista Annales, cujas idéias diretrizessolavancaram o paradigma tradicional dehistoriografia, posto que lançava novas propostas detrabalho, as quais podemos sintetizar do seguintemodo: em primeiro lugar, defende-se a substituiçãoda história narração pela história problematizadaou temática; em segundo lugar, levanta-se a tese deque a história compreende toda e qualquer ativida-de humana e não apenas a esfera política; e, final-mente, incentiva-se a colaboração com as mais di-versas disciplinas, os diversos campos do saber. To-davia, essa colaboração não se resume a uma merainstrumentalidade – uma vez que o paradigma tra-

1 Cf. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa daHistoriografia. 5. reimp. Trad. Nilo Odalia. São Paulo: Fundação Editora daUNESP, 1997, p. 7.

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NOVA HISTÓRIA394

2 Cf. LE GOFF, Jacques et al. A História Nova. Trad. Eduardo Brandão. 4. ed. SãoPaulo: Martins Fontes, 1998, p. 26.

dicional já praticava –; desta feita, a proposta é cons-truir o discurso historiográfico pela fala dessas áre-as, ou seja, fazer uma história da arte, ou da sexuali-dade, ou ainda, da propaganda.

Todavia, essa mudança de paradigma não acon-tece sozinha, toda essa efervescência que aconte-ce no âmbito historiográfico não se desenvolve so-litariamente. Esse é um período marcado pelaemergência de novos campos do saber, ou mesmopela renovação dos já existentes. Três fenômenoscategorizam essa renovação: o primeiro fenômenodiz respeito à afirmação de diversas ciências, comoa demografia, a etologia, a ecologia, a semiologiaetc. Em segundo lugar, há o fenômeno da renova-ção de ciências tradicionais; atualização, geralmen-te, acompanhada da junção do termo “novo”, “neo”ou “moderno” ao respectivo nome da ciência. Dá-se, portanto, o incentivo ao trabalho interdiscipli-nar. Esse compartilhamento, esse consórcio, essedesenvolvimento da interdisciplinaridade no meiohistoriográfico resultou, inclusive, no surgimentode ciências compósitas, como por exemplo, ademografia histórica, a psicolingüística, entre ou-tras. Essa posição de interação dos campos do sa-ber transgride até as fronteiras criadas entre ci-ências humanas e ciências da natureza, surgindo,como por exemplo, áreas de estudo, como a mate-mática social ou a etno-psiquiatria.

Jacques Le-Goff2 remete, outrossim, a um outro

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movimento de revisão teórica, de um repensarconceitual, que se processou antes da revisão deAnnales, cuja atividade, possivelmente, influenciou,até certo ponto, o trabalho de Lucien Febvre e MarcBloch e Fernand Braudel. Ele se refere à atividadede pesquisadores como os geógrafos Vidal de laBlache, Jean Brunhes, Albert Demageon e JulesSimon, os quais viveram entre os séculos XIX e XX.Provavelmente, vem daí a influência nos estudosda história geográfica desenvolvidos na primeirafase da Escola dos Annales.

Porém, a despeito de todos esses antecedentes, nãoachamos conveniente falar em herança ou evoluçãode Annales para a nova história. Portanto, propomosque se fale em contribuição de Annales para a novahistória. Ora, é inegável que a Nouvelle Histoire temuma tradição própria, embora análoga à dos fundado-res da revista “Annales d’histoire économique etsociale”. Lucien Febvre dizia, em 1932, que o trabalhoa ser efetuado era o de derrubar as velhas paredesantiquadas, os amontoados babilônicos de preceitos,rotinas, erros de concepção e de compreensão, cons-tituídos na narrativa de acontecimentos, no discursofactual, no teatro de aparências que mascara o verda-deiro jogo da história. Opção esta, também, adotadapela nova história.

Nesse sentido, constrói-se uma das grandes críti-cas, tanto de annales, quanto da nova história, ouseja, a crítica ao fato histórico. A base dessa discus-são está em dois princípios, um de fonte e outro demétodo. Em primeiro lugar, quanto à questão da fon-te, observamos que não se pode pretender captar umarealidade histórica acabada, definida, que se entre-

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garia ao historiador para sua contemplação; em se-gundo lugar, quanto à questão do método, temos quecompreender que todo documento é construído e, porconseguinte, sua análise deve possibilitar certareconstituição, a compreensão do passado, porém,sem alcançar a objetividade científica.

Em poucas palavras, podemos dizer que tantoa proposta de Annales, quanto a da Nova histó-ria, é fazer entender e não explicar; é colocar osproblemas da história, a fim de proporcionar umahistória não-automática, mas problemática, paranos permitir viver e compreender, em um mundode instabilidade constante. É uma proposta derepensar toda a pesquisa histórica.

Le Goff3 faz uma retrospectiva que possibilita per-cebermos que esse processo de repensar a história éconstitutivo do próprio processo de construção dodiscurso historiográfico. Portanto, se quisermos es-tender o fenômeno da crítica historiográfica, pode-remos retroceder bastante e chegar, por exemplo, aalguns dos maiores nomes da história desde o séculoXVIII. Senão, vejamos: Voltaire, em sua obra “NovasConsiderações sobre a história” (1744), diz que “Tal-vez aconteça em breve, na maneira de escrever a his-tória, o que já aconteceu na física” [uma revolução].Podemos recorrer a Chateaubriand em “EstudosHistóricos” (1831), em que ele afirma: “Agora, a his-tória é uma enciclopédia: é preciso enfiar tudo nela,desde a astronomia até a química, desde...”. Dignode nota também é Guizot que em seu “Curso de his-

3 Idem, p. 37-41.

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tória moderna: história da civilização na Europa,desde a queda do império romano até a revoluçãofrancesa” (1828) sugere que “desde há muito e emmuitos países, utiliza-se a palavra civilização, e é osentido dessa palavra, seu sentido geral, humano,popular, que é preciso estudar”.

Por tantos movimentos anteriores a Annales éque muitos se perguntam até que ponto a sua crí-tica e, posteriormente, a da nova história, é umacrítica realmente “nova”.

Ora, Peter Burke4 afirma tacitamente que acrítica da nova história não é exclusividade dela.Obviamente, outras críticas similares foram fei-tas anteriormente. Ele nos fala acerca de um mo-vimento que talvez seja uma das mais antigas con-testações ao modelo de historiografia política.Esta foi realizada pelos “antiquários” no séculoXVII, que foram assim designados, por conta deque eles buscavam coletar documentos antigos, afim de comprovar os fatos históricos, contrarian-do os historiadores de então, que não se preocu-pavam com a veracidade dos fatos, limitando-seapenas ao relato da história da nobreza.

No século XX, há o protesto, em 1900 (aproxi-madamente), na Alemanha, de Karl Lamprecht,que contestava o modelo tradicional de historio-grafia. Doze anos depois era publicado um livrocujo título era “Nova história”, cujo autor, o norte-americano James Harvey Robinson, dizia, quanto ao

4 Cf. BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas, 3. reimp.Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,1992, p. 15-18.

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conteúdo, que “a história inclui todo traço e vestígiode tudo o que o homem fez ou pensou desde o seuprimeiro aparecimento sobre a terra”.

Peter Burke continua o registro de movimen-tos revisionistas anteriores a Annales e à nova his-tória, remetendo ao ano de 1867, quando o holan-dês Robert Fruin publica “A Nova Historiografia”,que na época tratava do paradigma rankeano [Umdia, até mesmo a história tradicional já foi “nova”!].Se voltarmos ao século XVII, teremos o registrode Jean Mabillon que formula novos métodos decrítica da fonte. E se arriscarmos ir mais longe,poderemos chegar até o ano 150 a.C., época em quePolíbio acusa alguns historiadores da sua épocade serem meros retóricos, não se preocupando coma dedicação que a pesquisa histórica requer.

Podemos tomar a contribuição de Maria LúciaPallares-Burke5, quando cita o historiador inglêsKeith Thomas, como um dos mais eminentes e ino-vadores do Reino Unido, de hoje, que representauma espécie de desbravador na historiografia, pois,quando a maioria dos historiadores estava centradana história política narrativa, ele investiu no estu-do sócio-cultural das sociedades do passado. Lem-bramos, outrossim, que Emanuel Le Roy Ladurie6,ao tratar da historiografia do clima, nos últimosdois séculos, cujo trabalho de recolher, testar, ta-

5 Cf. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. O revolucionário calado. Disponível em<http://www.uol.com.br/fsp/mais/fs.htm>. Acesso em 04.04.99, p. 1.

6 Cf. LADURIE, Emmanuel Le Roy. O clima: a história da chuva e do bom tempo. In: LEGOFF, Jacques (comp.). História: novos objetos. Trad. Terezinha Marinho. Rio deJaneiro: Francisco Alves, 1976, p. 11 - 12.

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bular e publicar inúmeras séries meteorológicas,sente-se na incumbência de dar destaque a GordonManley e aos pesquisadores holandeses (ainda daInglaterra e Países Baixos), dos séculos XVIII e XIX.

Ora, tantos outros nomes poderiam ser lembra-dos, como, por exemplo: Jacques Le Goff7 citaHenri Berr, que já em 1930, usava o termo “histó-ria nova”; Peter Burke8 lembra que em 1860, JacobBurckhardt já se concentrava na história cultural,detendo-se em descrever mais as tendências queos acontecimentos. E outros, ainda no século XIX,como Auguste Comte, Herbert Spencer e KarlMarx, que se interessavam por história, mas visa-vam às estruturas, não os acontecimentos. Maisanteriormente, temos os iluministas do séculoXVII, Voltaire, Gibbon, Robertson, Vico, Möser eoutros; ainda William Alexander e ChristophMeiners com os estudos da história das mulheres.

Nesse percurso, não podemos esquecer Michelet– cuja contribuição Le Goff9 relata – uma vez que noprefácio de sua “História da França” (1896) defendea tese de que deve haver “um apelo a duas orienta-ções essenciais da história nova: uma história maismaterial anunciadora da história da cultura materi-al, que se interessa pelo clima, pelos alimentos, pe-las circunstâncias físicas, e uma história mais espi-ritual. Uma história que seja a dos costumes”.

7 Cf. LE GOFF, Jacques et al, op. cit., p. 26.8 Cf. BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas, p. 18-20.9 Cf. LE GOFF, Jacques et al. op. cit., p. 41.

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Veja-se, então, a diversidade de elementos quepodem integrar o processo de constituição do dis-curso historiográfico – clima, alimentos, química,astronomia etc., etc. – Essa diversidade apontapara a afirmação de que, para a nova história, tudotem história. Remete a uma das idéias de Braudel,segundo a qual, em história, tudo é solidário comtudo, tudo está mesclado com tudo. Possivelmen-te, essa idéia constituirá mais um dos pressupos-tos para a nova história. Por conseguinte, modifi-ca-se a maneira de abordar os problemas, de ex-plorar ao máximo a informação oculta no fato his-tórico. Nesse sentido, cresce também a importân-cia da pesquisa das relações em detrimento dapesquisa de objetos. Assim sendo, como diz AndréLeroy Gourhan, “a constituição da genealogia dasdinastias de sílex ou de cerâmica é tão indispen-sável para a constituição do conhecimento histó-rico, quanto o é a genealogia das famílias reinan-tes no tempo da escrita”10. Continua sua exposi-ção, dizendo que o documento pré-histórico não éconsiderado como um calendário; antes ele serátomado como um texto. Acrescentados a esses da-dos, temos outra questão fundamental, que é nãoquerer fazer apenas uma reflexão interpretativasobre os objetos. Antes, essa leitura deverá ser efe-tivada dentro do campo no qual se deu a descober-ta, o achado ou o fato histórico. Leroy Gourhan ain-

10 LEROI-GOURHAN, André. Os caminhos da história antes da escrita. In: LEGOFF, Jacques (comp.). História: novos problemas. 2. ed. Trad. Theo Santiago.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979, p.

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da afirma que “a superfície do solo posta a desco-berto falará na medida em que o dado pesquisadorsouber torná-la legível”11. Dessa forma, os meios deuma pesquisa histórica e a atividade intelectual (crí-tica) do pesquisador estão, permanentemente, im-bricados de forma indissociável e contínua.

Um exemplo dessa imbricação entre o meio, asociedade, o documento histórico e a atividade dopesquisador, também, pode ser observada, porexemplo, segundo Jean-Paul Aron12 , na análise daconstituição do documento culinário, que reúneperspectivas heterogêneas, tais como, a biologia, amedicina, a sociedade, a economia, a administra-ção, entre outras. Segundo Aron o documento culi-nário é portador de três aspectos, a saber, a dimen-são de “documento acervo”, a dimensão de “redesinformacionais” e a dimensão de “leitura em corte”.

Enquanto documento acervo ele é capaz de re-gistrar a “história administrativa”, registrando, por-tanto, a relação “história e sociedade”; o texto culi-nário é, também, capaz de comportar uma relaçãoentre “história e biologia”, tomando, neste caso, oscritérios das necessidades alimentares qualitativase a distribuição desses gêneros naquela dada socie-dade. Enquanto comporta redes informacionais, odocumento culinário sustenta o interesse pelas con-frontações dos seus dados. E essa atividade nãoprocede da curiosidade ou da eventual sagacidade

11 Idem, p. 92.12 Cf. ARON, Jean-Paul. A cozinha: um cardápio do século XIX. In: LE GOFF,

Jacques (comp.). História: novos objetos, p. 160-185.

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do historiador; são de alguma maneira, regidas pelopróprio documento originário. O documento comoque se ramifica. Finalmente, o documento culiná-rio possibilita a leitura em corte, ou seja, o docu-mento comporta, permanentemente enquanto pos-sibilidade, sempre um outro tipo de leitura em ex-tensão e em compreensão.

Tal é a perseverança da nova história: ela per-segue, nos cardápios, os segredos confinados aosarquivos da história diplomática. Ela aí capta, emtodo caso, linguagens maiores, transforma objetosinsignificantes em signos pertinentes.

Ainda, nessa perspectiva da diversidade de fon-tes, insere-se a tradição oral, cuja extensão abran-ge tudo aquilo que é transmitido pela boca e pelamemória. Essa relação oralidade-memória reme-te-nos à questão da instituição social. Dessa for-ma, o material oral se submeterá a determinaçõesmais rigorosas que um material escrito, do pontode vista lingüístico, cultural e social, uma vez que,para que uma expressão seja recebida e conserva-da (memória), é necessário que o grupo ou os seusdirigentes a apreciem ou a utilizem, isto é, ainstitucionalizem.

Em meio a toda esta problemática que se inse-re quanto à questão das fontes, emerge tambémoutra questão, aquela de como abordar o objeto deestudo histórico, Pierre Nora13 pode nos auxiliar

13 Cf. NORA, Pierre, O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques (comp.). História:novos problemas, p. 179-193.

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neste esclarecimento. Ele propõe a retomada do fatohistórico, propondo que ele poderá ser tomado parao trabalho historiográfico, desde que sob novosparâmetros. Nesse sentido, dizemos que o aconte-cimento pode testemunhar, menos pelo que traduz,do que pelo que revela, menos, pelo que é, do quepelo que provoca. Isto é, sua significação é absorvi-da na sua ressonância; ele não é senão um eco, umespelho da sociedade, uma abertura. O aconteci-mento tem a virtude de unir num feixe significa-ções esparsas. Em suma, tão importante quanto osaber do objeto é o saber abordar o objeto.

Portanto, o trato com a fonte é demasiado fun-damental para um novo jeito de fazer história! So-mente um posicionamento compreensivo, aberto,capaz de dialogar com o diferente, pode auxiliarem algumas dificuldades que foram criadas ao lon-go da história para a historiografia, como, porexemplo, como comenta Jean-Paul Aron14, o tabudos domínios impuros, ou ainda, a questão do cor-po, do sexo, ou mesmo, os apetites e os desejos.Essa maneira de ser historiador aberto à diferen-ça é que possibilita uma visão topológica, quer doalto, quer de baixo. Talvez até tratar da ditaduradas antinomias operatórias: como a quantidadecontra a qualidade, o sistema contra o aconteci-mento, o signo contra o vivido. Enfim, tolerânciaparece ser uma das virtudes do novo historiador.

14 Cf. ARON, Jean-Paul. op. cit., p. 160.

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Ampliando nossa discussão, podemos trazer umdos materiais de mais difícil manejo, quando postoa serviço da produção de discurso historiográfico: alinguagem do cinema. Porém, a dificuldade não re-side na fonte e, sim, no modo como ela é abordadapelo historiador, diz Marc Ferro15. É o como partirda imagem, das tantas imagens! Não se deve pro-curar nelas somente exemplificação, confirmaçãoou desmentido de um outro saber. Segundo Ferro,alguns buscam respaldar a tradição escrita viadocumentos cinematográficos. O caminho a serfeito é o inverso, ou seja, primeiramente, deve-seconsiderar as imagens, tais como elas são, porém,com a possibilidade de apelar para outros sabe-res, a fim de melhor compreendê-las. E, para talatividade, é imprescindível, mais uma vez, que,ao estudar o filme, associemo-lo ao mundo que oproduz. Portanto, o filme, imagem ou não da rea-lidade, documento ou ficção, intriga autêntica oupura invenção, é história! Pois, as crenças, as in-tenções, o imaginário do homem, é tanto a histó-ria quanto à história! Essa constituição faz comque, um filme, qualquer que seja, sempre excedaseu conteúdo!

Como vimos notando, a valorização do aspecto so-cial do fato histórico, ou seja, a consideração de quetudo se dá num dado cenário social, numa dada soci-edade, é uma das tônicas da nova história. A históriadepende estritamente do lugar e da época em que

15 Cf. FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF,Jacques (comp.). História: novos objetos, p. 199-215.

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foi concebida. Michel de Certeau resume essa ten-dência em seu artigo “A operação histórica”, no qualele advoga a idéia de que a prática histórica é total-mente relativa à estrutura da sociedade16. E esseentrelaçamento constitutivo entre sociedade e his-tória repercutirá profundamente na concepção quese tenha de validade e de unidade do discurso histó-rico. Peter Burke chega a dizer que “nossas mentesnão refletem diretamente a realidade. Só percebe-mos o mundo através de uma estrutura de conven-ções, esquemas e estereótipos, e esse entrelaçamen-to varia de uma cultura a outra”17. Portanto, a resul-tante disso é que, do ideal de “voz da história”, va-mos para a “heteroglossia”, definida como vozes va-riadas e opostas, derrubando, dessa maneira, qual-quer possibilidade de se falar em validade universalou unidade absoluta nos discursos historiográficos.Essa heteroglossia corrobora e é auxiliada pela con-sideração da variedade da atividade humana, da di-versidade dos campos do saber, abrindo, desse modo,as portas à interdisciplinaridade científica. Com aheteroglossia nasce o que se costuma chamar confli-to de interpretações.

Nesse emaranhado, nessa teia em que se cons-trói a proposta da nova história, a partir da relaçãoentre história e sociedade, lançam-se as bases paraa micro-narrativa, ou seja, aquela narração de umahistória sobre pessoas comuns dentro do lugar de

16 Cf. CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques (comp.).História: novas abordagens. Trad. Henrique Mesquita. 2. ed. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1979, p. 17-48.

17 BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas, p. 15.

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sua vida cotidiana. Com esta opção, pode-se até fa-lar em perda na narrativa, mediante esse tipo deredução no recorte pesquisado, porém, não se podenegar que ela auxilie no esclarecimento das estru-turas. Inclusive Peter Burke diz que “seguindo esteestilo, as histórias podem ser encaradas como umdrama social, um acontecimento que revela os con-flitos latentes e assim esclarece as estruturas soci-ais”18. Por essa perspectiva, a tradição da históriaoral ganha força, pois, apesar de ela ter sua fonteno indivíduo, não se esgota nele, visto que sua refe-rência aponta para a sociedade. Nesse sentido,Henri Moniot dirá que “tanto as fontes orais, comoo material etnológico, ou seja, tudo o que se encon-tra inscrito nas memórias e nos comportamentosnão pode ser sequer recolhido, mas acima de tudodiscernido, medido, e, em seguida, avaliado e criti-cado senão na sociedade estudada”19.

A partir da consideração da diversidade do ma-terial com que o historiador se defronta, da amplidãode abordagens possíveis de serem feitas, sobretu-do da quantidade de relações que podem ser estabe-lecidas, a nova história advoga certas idéias, cujacrítica aos modelos tradicionais de historiografiaestá nelas embutida. Critica, principalmente, porcausa do caráter de unilateralidade destas escolas.Nesse sentido, por exemplo, a nova história defen-de a desconfiança do esquema simplificado da su-

18 Idem, p. 342.19 MONIOT, Henri. A história dos povos sem história. In: LE GOFF, Jacques

(comp.). História: novos problemas, p. 108.

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perestrutura, enquanto reflexo da infraestrutura.Propõe, em segundo lugar, que ao invés de causa-lidade simples, considere-se a noção de relaçõesmútuas, de co-rrelação. Outrossim, torna relevan-te o princípio de que tudo determina tudo e tudo édeterminado por tudo. Essa discussão, que é le-vantada inclusive por Duby, tende a considerarque o historiador deve recuperar o realpluridimensional e interrogar tal setor da ativi-dade humana, não somente a partir daquilo que sepode conhecer dele, como também, a partir dasoutras dimensões do real. Finalmente, é conside-rar que um outro objeto privilegiado da práticahistórica pode estar no plano das interferênciasentre o mental e o material.

Dessa consideração entre o mental e o material,emerge a discussão de dois pontos bastante comple-xos, quer se trate do campo da história, quer se tratede quaisquer outras áreas: a questão é como entendero que sejam o imaginário e as mentalidades na pers-pectiva da nova história. E ainda mais, como compre-ender o que faz um historiador que trabalha com asmentalidades.

Ora, mentalidade abrange além da história, trata-se de um nível diferente. Não pretendemos criar umconceito para mentalidade, mas compreendê-la a par-tir das seguintes afirmações. Ernest Labrousse20 , porexemplo, concebe que o social é mais lento do que oeconômico e o mental mais ainda do que o social. É

20 Cf. LE GOFF, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF,Jacques (comp.). História: novos objetos, p. 69.

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esclarecedor, por exemplo, quando Jacques Le Goff21

pergunta: o que seria das cruzadas sem a feudalidade?O que seria do capitalismo sem a mentalidade ligadaà ética protestante? E ainda exemplifica que os anti-gos especialistas em hagiografia interessavam-se pelosanto, ao passo que os modernos preocupam-se com asantidade, com o que a fundamenta no espírito dosfiéis, com a psicologia dos credos, com a mentalidadeda hagiografia.

Portanto, tratar de mentalidades é tratar, pri-meiramente, do “coletivo”, uma vez que a mentali-dade de um indivíduo histórico é justamente o queele tem de comum com os outros homens do seutempo, e em segundo lugar, com a instituição. Omodo de pensar-representar-dizer de uma socie-dade é socialmente instituído do pensamentocastoriadiano.

Outra afirmação, para colaborar com a compre-ensão de mentalidade, vem de François Dosse,quando diz que “o território do historiador deslo-cou-se recentemente para a exploração da psiquehumana, através da evolução dos comportamen-tos, sensibilidades e representações; é o alarga-mento epistemológico de Annales e a evolução dasmentalidades, que se tornou o objeto privilegiadoda nova história”22. Entretanto, ele aponta algunsproblemas que há nesse tipo de pesquisa, como,por exemplo, o fato de que certo número de traba-

21 Cf. idem, p. 69.22 DOSSE, François. A História em Migalhas: dos Annales à nova história. Trad.

Dulce da Silva Ramos. São Paulo: Ensaio; Campinas, SP: Editora da UniversidadeEstadual de Campinas, 1992, p. 201.

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lhos opera a partilha entre as determinações doreal e a visão do mundo. Ora, essa operação é im-prudente, segundo Dossie, pois as mentalidadesatravessam a história, não havendo como fazeressa separação. Porém, por trás dessa atitude, estáa tentativa de ocultação do universo social por de-trás da esfera mental. Ora, contra essa ocultação,podemos trazer a contribuição de Jacques Le Goff23

na sua afirmação de que, ao fazermos história dasmentalidades, devemos compreender que as repre-sentações estão numa totalidade histórica que ématerial e cultural também.

Outro fato que ajudou a tumultuar as pesquisasnessa área é que esse conceito de mentalidade sem-pre permaneceu muito vago, ampliando-se muitoa sua compreensão, até demais. Portanto, exige-se que ele seja utilizado com cuidado e com méto-do próprio. Pois, até em alguns casos, esse concei-to tornou-se um meio de escapatória do real, istoé, de cortar todo laço da infra ou da superestrutu-ra, com a instituição social etc. assim, a aborda-gem da mentalidade tornou-se refúgio no mundodo imaginário.

Ampliando a discussão, temos que a história dasmentalidades está em profícua relação com a ques-tão do cotidiano; e nessa compreensão, mentali-dade remete ao que escapa aos sujeitos particula-res da história, porém, mostrando-se comorevelador do conteúdo impessoal de seu pensamen-

23 Cf. LE GOFF, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF,Jacques (comp.). História: novos objetos, p. 78.

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to. Nesse sentido, Jacques Le Goff pôde, com pro-priedade, afirmar que “o discurso dos homens é,freqüentemente, um amontoado de idéias, de res-tos de culturas e de mentalidades de diversas ori-gens e de várias épocas”24. Dessa forma, a históriadas mentalidades alimentar-se-á de documentosdo imaginário dos indivíduos em suas dadas soci-edades. Não pode haver desvinculação entre o con-teúdo mental e o conteúdo social, pois eles somen-te existem no modo de ser da reciprocidade, istoé, coexistindo em interdependência um com o ou-tro. E, por causa desse remetimento recíproco, nãocabe tratar a história das mentalidades comobehaviorismo, numa espécie de psicologismo, re-duzindo-a a automatismos sem referência aos sis-temas de pensamento e de constituição e institui-ção sociais. Uma existência que compreenderia,aquilo que Castoriadis considera uma existênciaheteronômica, contrário ao que seria a tomada deconsciência dessa história.

A partir do que temos visto, até o momento épossível observarmos que a escola dos Annales e anova história operaram uma verdadeiradesconstrução da História conforme o paradigmatradicional, atingindo até mesmo o modo de serdesignada dentro dos campos do conhecimento.Assim, história passa a ser escrita no plural e cominicial minúscula: histórias e não História, comoforma de afastar-se do paradigma que tomava a

24 Idem, p. 72.

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história dentro da perspectiva das ciências moder-nas, únicas, universais e deterministas.

François Dosse25 faz uma coletânea de autores queautenticaram e influenciaram esse amplo movimentode revisão historiográfica, começando por JacquesRevel, de quem ele lembra o pensamento de que ohorizonte não é mais o mesmo da história total, mas oda construção totalmente articulada de objeto. A to-talidade se fragmenta numa miríade de objetos sin-gulares a serem especificados e construídos. Ressal-ta, nessa discussão desconstrutora, o papel relevantede Foucault, cuja fala recusava o pensamento uno, cen-tral, da ruptura significativa e da totalidade racional.A história passa a ser, então, a análise das transfor-mações múltiplas, localização, tanto das desconti-nuidades, como dos flashes. E diz mais: “o ser huma-no não tem mais história, ele se encontra embaraçadoem histórias que não lhe são subordinadas nem ho-mogêneas”.

Também vem de Foucault a idéia de substituir acausalidade pela desaceleração causal, um polimor-fismo que torna impossível toda instância global real,toda totalidade a ser restituída. Corroborando comas teses foucaltianas e na contramão da consideraçãoda história como ciência, Emmanuel Le Roy Laduriecaracterizará essa reação ao paradigma tradicional,operada por Annales e pela nova história, de “revolu-ção copernicana na história”. Para compreender me-lhor essa afirmação, vamos tentar sistematizar, sin-

25 Cf. DOSSE, François. op. cit., p. 182-185.

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teticamente, quais são as principais diferençasentre o paradigma tradicional e as tendências danova história. Falamos “tendências”, porque os ter-mos “paradigma”, “modelo” e seus similares aindaestão bastante carregados de tradicionalismo his-toriográfico. Enquanto que “tendência” remete amultiplicidade de abordagens e ao não fixismo emnenhuma dessas abordagens, pois todas são passí-veis de ser utilizadas como instrumental da pes-quisa historiográfica. Inclusive, até o momento,temos usado a denominação “nova história”, cominiciais minúsculas, por causa dessa compreensão.

Porém, antes de traçarmos tais diferenças, é im-portante ter em vista que o universo das histórias seexpande e se fragmenta. Mesmo dentro do movimen-to da nova história, em suas diversas tendências, oponto que há de comum na discussão entre elas são assuas contestações ao tradicionalismo metodológico,ao determinismo estrito, ao causalismo absoluto etc.Afora isso o que temos é uma multiplicidade de obje-tos, de abordagens e de problemas.

Uma primeira divergência pode ser compreen-dida na exposição de Peter Burke. Segundo ele, SirJohn Seeley, um dos representantes do paradigmatradicional, dizia: “a História é política, política é ahistória presente”26, compreendendo a história comoessencialmente política. Ora, como tivemos a opor-tunidade de ver até o momento, a nova história, aocontrário, se interessa virtualmente por toda a ati-vidade humana. Disse J. B. S. Haldane certa feita

26 BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas, p. 10.

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que: “Tudo tem história”27, frase que intitulava seulivro, publicado em Londres, ironicamente, o berçoda história tradicional. Maria Lúcia Pallares-Burkecorrobora com esse posicionamento, quando afir-ma que “tudo o que se refere à vida do cotidiano écentral, ao invés de periférico”28 .

Em segundo lugar, enquanto o modelo tradicionalassume um posicionamento “narrativo” dos aconteci-mentos, a nova história assume um posicionamento“analítico” das estruturas. Fique claro que o descarteda história narrativa não é absoluto. Pierre Nora29

considera ainda válida a utilização do estilo narrati-vo para a pesquisa histórica, desde que sob outra pers-pectiva, desde que leve em conta a variedade e a mul-tiplicidade de abordagens, objetos e problemas cons-tituintes à atividade do historiador. Segundo PeterBurke30 , a nova narrativa deve conseguir o em que atradicional falhou, passar para o leitor que aquela lei-tura não reproduz “o que realmente aconteceu”, tan-to o quanto representa de um ponto de vista particu-lar. Isto é, trata-se de uma voz dentre tantas outras,uma leitura dentre outras possíveis. O historiadorpode narrar, desde que fique bem clara a não-confiabilidade. Tanto a narrativa quanto a descriçãopodem ser fluidas ou densas. Jacques Le Goff31 insis-tirá, dizendo que a pretensão do historiador da nova

27 Idem, p. 10.28 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. O revolucionário calado. Disponível em

<http://www.uol.com.br/fsp/mais/fs.htm>. Acesso em 04.04.99, p. 5.29 Cf. NORA, Pierre, op. cit., p. 179-193.30 BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas, p. 337.31 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A história total. Disponível em <http://

www.uol.com.br/fsp/mais/fs.htm>. Acesso em 02.05.99, p. 2.

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história é insistir sobre a imensa dificuldade de al-cançar o indivíduo (como por exemplo, o rei LuísIX, sob a multiplicidade de papéis que a memóriacoletiva francesa foi lhe atribuindo ao longo do tem-po). As camadas de estereótipos do modelo idealacumulam-se sobre o “indivíduo”, sobre a sua me-mória. Ora, não adianta apenas mudar a opção, dedescrição para narração, ou seja, apenas ver essahistória por temas, com discurso antigo.

Uma terceira diferença que podemos apontar éque a visão da história tradicional parte semprede cima para baixo, isto é, visando aos “grandeshomens”, aos “grandes nomes” – governantes, reis,papas, conquistadores etc. Aos pequenos – mulhe-res, camponeses, operários, crianças etc. – cabe umpapel secundário. A nova história, por outro lado,abre-se para privilegiar a visão de baixo para cima,ou seja, a partir das pessoas comuns. Não invalidaa fala a partir dos “maiores”, todavia, não lhe atri-bui maior valor do que a fala a partir dos “meno-res”. Nesse sentido, desvia-se também da históriadas grandes idéias para a história das mentalida-des coletivas, privilegiando a história dos discur-sos ou das linguagens.

Seguindo o sentido dessa história vista de cima,Henri Moniot32 asserta que o modelo tradicional,excluía qualquer povo, além do europeu, como de-tentor de história, pelo fato de os outros povos nãoterem feito nada notável, nenhum produto durá-

32 Cf. MONIOT, Henri. A história dos povos sem história. In: LE GOFF, Jacques(comp.). História: novos problemas, p. 99-100.

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vel. Lembrava que, para muitos filósofos, as socie-dades que eram privadas de Estado ou que nãotrabalhavam numa construção desejada, conscien-te, progressiva, eram colocadas fora da história.

Outro ponto de importantes críticas remete aofato de que o paradigma tradicional baseia a cons-trução da história em documentos, primordialmenteos escritos oficiais. Legado este de Leopold VonRanke, cuja crítica apontava as limitações da nar-rativa, e defendia a necessidade dos documentosescritos oficiais, negligenciando outros tipos de evi-dência. Emerge, então, a quarta diferenciação, emque a nova história, enquanto movimento da histó-ria vista de baixo, afirma que esses registros ofici-ais podem ser suplementados por outros tipos defontes. Ora, se se visa à variedade de atividadeshumanas, deve-se examinar uma maior variedadede evidências (orais, visuais, estatísticos). Median-te essa situação, Jacques Le Goff33 afirma que a his-tória vive uma “revolução documental”, mantida sobnovas relações ambíguas; uma nova concepção dodocumento e da crítica que dele deve ser feita: com-preender que o que temos é uma multiplicidade dedocumentos. Na efervescência dessa reflexão – prin-cipalmente, no que tange ao método e ao conteúdo– Emmanuel Le Roy Ladurie34 pode dar a sua con-tribuição, ao tratar da história climática. Históriacuja preocupação não pretende explicar a história

33 Cf. LE GOFF, Jacques et al. A História Nova, p. 29.34 Cf. LADURIE, Emmanuel Le Roy. O clima: a história da chuva e do bom tempo.

In: LE GOFF, Jacques (comp.). História: novos objetos, p. 13-15.

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humana em seus fatos grandiosos. Às “bases” destahistória interessa, por exemplo, a cronologia da fomee das epidemias. E nesse estilo de atividade, o his-toriador se torna colaborador interdisciplinar comos cientistas da natureza (meteorologistas,glaciologistas, climatologistas, geofísicos etc.). Essaampliação de horizontes implicará uma ampliaçãode recursos humanos, pois, um empreendimentonesses parâmetros exigirá não somente um histo-riador profissional, mas uma equipe de especialis-tas, vindos de horizontes diversos.

Constituindo a quinta das diferenças que vimosexpondo, temos a crítica ao fato de que o paradigmatradicional busca a causa do acontecimento, semconsiderar a variedade de questionamentos quepodem emergir da pesquisa de vários historiado-res. Não há unilateralidade de abordagens do ob-jeto; logo não haverá unilateralidade nas respos-tas. A crítica, então, vai na direção de se conside-rar tanto os movimentos coletivos, quanto as açõesindividuais, tanto as tendências, quanto os acon-tecimentos. Nesse sentido, não haveria uma, masvárias respostas válidas.

Finalmente, um último ponto diferencial entre oparadigma tradicional e a nova história é a coloca-ção da história como passível de objetivação. A pro-posta de Ranke era apresentar os fatos como elesaconteceram realmente. Peter Burke35 recorda LordActon, representante da escola rankeana, que pro-

35 BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas, p. 15.

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punha narrar o fato histórico de modo que a batalhade Waterloo satisfizesse igualmente a franceses, in-gleses, alemães e holandeses. Para Peter Burke esteé um presunçoso manifesto à história sem tendênci-as viciosas. A proposta trazida da pela nova históriaé de que não podemos evitar olhar o passado de umponto de vista particular, nunca se está totalmentelivre dos preconceitos, portanto, o ideal de objetivi-dade absoluta está desconsiderado.

Resumindo esses diferenciais, cuja relação cons-titui a perspectiva da nova história, vemos que suaproposta remete aos conceitos de permanente mu-dança e alargamento de perspectivas. Todos esseselementos são acrescidos pelo posicionamento co-erente do historiador, isto é, não adianta o pes-quisador ver a história por temas com discurso an-tigo. Este é um dos papéis que o novo historiadornecessita exercer, uma das virtudes que ele preci-sa possuir.

Ora, o historiador encontra dificuldades de vá-rios tipos, a começar pelos problemas relativos àdefinição de conceitos, uma vez que os novos his-toriadores estão, cada vez mais, avançando em ter-ritório não familiar. Portanto, este trato com no-vos temas gera novas dúvidas, gera até dubiedadeconceitual. Um exemplo disso pode ser trazido dahistória da cultura popular, senão vejamos: quempode definir o que é cultura popular? Comoconceituar quem ou o que é o povo? Ou, ainda, comoestabelecer um conceito para educação? Outros-sim, quando estamos tratando do recorte da histó-ria vista de baixo, deve-se visar aos que estão ex-cluídos do poder ou tratar de uma política local ou

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regional? Se falamos da situação econômica, a op-ção deve ser tomar o ponto de vista do pequenocomerciante ou do pequeno consumidor?

Para Peter Burke36, uma noção ampla da cultu-ra é central à nova história. Talvez essa seja a cha-ve para atenuar a angústia do historiador, isto é,perceber que o objeto é amplo, logo, não cabe numúnico e determinado conceito.

Porém, as dificuldades não param por aí, pau-latinamente se ampliam. Temos, ainda, o proble-ma das fontes e dos métodos e este é ainda maiordo que o anterior. Ora, novos objetos, geralmente,vêm de novas fontes e requerem novos métodospara sua operacionalização. Essa tarefa é árduapois supõe, por exemplo, reler os documentos ofi-ciais com outros olhos, como costumamos dizer,“lendo as entrelinhas”. Também, faz parte dessasnovidades a tarefa de retratar o socialmente invi-sível ou ouvir o inarticulado, cujos princípios nãosão claros. Ora, mesmo a fotografia não é um re-gistro objetivo da realidade, a seleção que um fo-tógrafo faz carrega o peso dos seus interesses,crenças, valores, seu débito consciente ou incons-ciente. Peter Burke37 costuma dizer que os fotó-grafos não apresentam reflexos da realidade, masrepresentações da realidade.

Como terceiro problema para a atividade do his-toriador, temos a questão da explicação. Ora, medi-ante o fenômeno da expansão do campo do histori-

36 Idem, p. 23.37 Cf. idem, p. 25-27.

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ador, como não repensar a concepção de explicaçãohistórica? Não se pode analisar da mesma maneiratendências culturais e sociais de dez séculos atráscom os padrões de hoje. Não se pode, por exemplo,afirmar que as pessoas do passado pensavam e sen-tiam exatamente como nós (isto seria anacronismopsicológico). Por outro lado, não podemosdesfamiliarizar-nos tanto do passado, de modo queele se torne ininteligível. Segundo Peter Burke38,Pierre Bordieu é um daqueles que aponta para umapossível solução para essa dificuldade, ao proporque, ao invés da palavra “regra”, use-se o termo “há-bito”, uma vez que a compreensão deste conceitonão tolhe a liberdade individual, porque indica “pro-pensão a”, algo que pode efetivar-se dentro dos li-mites estabelecidos pela cultura abordada.

Finalmente, o que dizer quanto ao problema dasíntese? Ora, como um historiador pode falar em “sin-tetizar” no momento em que a história, enquanto áreado saber, está mais fragmentada do que nunca? Aquestão é que havemos de compreender que não sepode ter senão uma visão parcial de qualquer ques-tão, uma visão, sobretudo, pessoal do problema. Essefenômeno, ao mesmo tempo, que pode dificultar aconversa entre os historiadores, por outro lado, fo-menta a atividade interdisciplinar, que produz umaproliferação de disciplinas. Antecedendo este mo-mento efervescente, Lucien Febvre assertava, nosprimórdios de Annales, que os historiadores deveri-

38 Cf. idem, p. 34.

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am ser geógrafos, ser também juristas, sociólogos epsicólogos, como nos lembra Peter Burke39.

Segundo André Leroi-Gourhan40, a partir da ex-periência com a pesquisa pré-histórica, podemosver efetivamente a interdisciplinaridade, uma vezque a diversidade dos materiais que a pré-histó-ria disponibiliza levou os investigadores a procu-rar modelos de métodos, a partir de várias áreasdo saber, como a geologia e a paleontologia, atémesmo, a arquitetura. Aconteceu, também, a in-clusão das ciências físicas no domínio das ciênciasdo passado, a partir da radioatividade, dapalinologia nos estudos paleoclimáticos e crono-lógicos, analisando a evolução da vegetação atra-vés dos pólens fósseis. Ainda, têm-se as contribui-ções de análises radiofísicas e da sedimentologiamineral; sem esquecer do estudo físico dos sedimen-tos, em particular a pedologia, isto é, o estudo dosrestos de animais. E com a ajuda da estatística, che-gou-se a atualizar seqüências cronológicas impecá-veis. Este é um pequeno rol de disciplinas ou áreasdo conhecimento, que se consorciaram com a histó-ria para, juntos, construírem um discurso, eminen-temente interdisciplinar, acerca do passado.

Emmanuel Le Roy Ladurie41 diz que a palavrade ordem é interdisciplinaridade.

39 Cf. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa daHistoriografia, p. 12.

40 Cf. LEROI-GOURHAN, André. Os caminhos da história antes da escrita. In: LEGOFF, Jacques (comp.). História: novos problemas, p. 89-96.

41 Cf. LADURIE, Emmanuel Le Roy. O clima: a história da chuva e do bom tempo.In: LE GOFF, Jacques (comp.). História: novos objetos, p. 12.

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Concluindo as nossas observações, alertamosque o resgate que fizemos de tantos movimentosde revisão não pretende estabelecer relações cau-sais entre esses movimentos e a nova história; ape-nas, pretendemos expor certa compreensão de quea constituição da história, seu modo de ser, somen-te se dá no circuito da crítica e da revisão constan-tes. Sempre houve e, provavelmente, sempre ha-verá oportunidade para revisar mais pontos, poisnovos objetos, novas abordagens e novos proble-mas emergiram permanentemente.

Podemos propor como diferencial entre as revi-sões e as críticas precedentes à Escola dos Annalese a nova história, o fato de que, enquanto as outrascontestações tentavam estabelecer o seu paradigmacomo o padrão para a historiografia, dali em dian-te, a nova história não tem pretensão de estabele-cer paradigmas. Primeiramente, por que trabalhacom a concepção de tendências e, em segundo lu-gar, por que vê os paradigmas tradicionais comomais algumas tendências com pretensão de mode-los. Elas querem formalizar de modo absoluto o quenão pode sê-lo. O diferencial, portanto, que não per-mite à nova história estabelecer-se como modelopadrão de historiografia é que o seu modo de ser éde ampliação constante, renovação perene e tole-rância ao diferente.

Por ora, encerramos nossas discussões – sem,contudo, concluirmos de modo absoluto, sem fe-charmos deterministicamente nada... [típico danova história] – com uma proposição do PeterBurke que retrata bem o que poderia ser uma re-flexão acerca da nova história, caso não queiramos

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falar em “filosofia da história da a nova história”.Diz ele que a base filosófica da nova história é aidéia de que a realidade é social ou culturalmenteconstituída. Construída. Instituída. E como tal,fértil à emergência de novos objetos, novas abor-dagens e novos problemas.

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