Modernidade - república em Estado de exceção - Olgária matos

download Modernidade - república em Estado de exceção - Olgária matos

of 8

Transcript of Modernidade - república em Estado de exceção - Olgária matos

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    1/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 200346

    Modernidade: repblica

    em estado de exceo

    OLG

    RIAMATOS

    OLGRIA MATOS professora de FilosofiaPoltica da FFLCH-USPe autora de, entre outros,

    Os Arcanos doInteiramente Outro AEscola de Frankfurt, aMelancolia, a Revoluo(Brasiliense).

    usual reunir a experincia republicana

    e democrtica modernidade poltica,

    considerada esta como um conjunto

    de indivduos aos quais se reconhece,

    no pelos governantes mas pela Lei, o

    ttulo de cidado. Tambm os concei-

    tos de liberdade, direitos, responsabili-

    dades, justia, direitos humanos, direito

    a cultura, direitos da natureza (1) par-

    ticipam dessa dramaturgia em que to-

    dos so iguais porque todos igualmen-

    te agentes na esfera pblica e, nessa

    condio, igualmente legisladores. As-

    sim, a qualidade de uma democracia

    no depende dos vcios ou virtudes dos

    governantes mas da qualidade de suas

    instituies, observando-se as interse-

    es da dimenso poltica, social, eco-

    Por motivos editoriais as notas en-contram-se no final deste artigo.

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    2/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 2003 47

    nmica, jurdica, moral e psquica da

    coeso social. Do ponto de vista da

    cultura moderna, sua caracterstica axial

    a secularizao, o racionalismo, a cin-

    cia, em suma, a separao entre o teo-

    lgico e o poltico. Que se pense aqui

    nas monarquias europias da Idade

    Mdia, na representao do Prncipe

    vicrio de Deus, que retira do cristianis-

    mo os recursos da fundamentao es-

    piritual para a soberania temporal,

    mesclando o mundo sobrenatural e o

    mundo dos homens. Se o teolgico-

    poltico a experincia da heteronomia,

    a repblica democrtica tem a marca

    da autonomia: o fato de que ningum

    possa apresentar-se como detentor do

    conhecimento da ordem social e dos

    fins da conduta humana, escreve

    Claude Lefort, resulta do desem-

    bricamento do teolgico e do poltico.

    Acontecimento considervel, j que in-

    duz a admitir a legitimidade de crenas,

    opinies e interesses mltiplos, at

    mesmo opostos, desde que o conflito

    no ponha em risco a segurana co-

    mum. Ao contrrio de apag-la, a de-

    mocracia desvela a dimenso do outro

    na experincia da vida []. [Trata-se]

    de um mundo que se subtrai ao ponto

    de vista do sobrevo, e ter acesso a ele

    supe, ao contrrio, que se aprenda

    dele os meios de nele orientar-se(2).

    Modernidade , tambm, a sociedade

    de consumo de massa, da tecnologia,

    da mdia, do espetculo correspondente

    linhagem epicurista de emancipao

    do medo e realizao do homem tanto

    como indivduo quanto como ser so-

    cial. Costuma-se, ainda, associar demo-

    cracia e economia liberal (3) e, nesse

    caso, predomina a ideologia da racio-

    nalidade tecnolgica, em que todas as

    decises de poltica econmica passam

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    3/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 200348

    prio Romano na Baixa Antigidade sen-

    do a parania coletiva de morte sua mani-

    festao mais visvel. E Peter Sloterdijk

    comenta: as grandes religies e as ima-

    gens de mundo universalistas surgiram para

    represar o sentimento de que toda morte

    era [] obra de estranhos malignos. Quer

    dizer, de espritos externos, aos quais se

    subordina uma animosidade irreconcili-

    vel; teria sido mrito espiritual das ima-

    gens do mundo das grandes civilizaes

    produzir, atravs de interpretaes no

    paranicas da morte, novas manifestaes

    da alma e respectivas ars moriendi (8).

    Para o filsofo, a contemporaneidade cor-

    responde a uma parania tnica mero-

    vngea, no esgaramento do lao social

    entre antigos conhecidos a tal ponto que

    qualquer um pode tornar-se assassino dos

    mais prximos, e isto ocorre quando gru-

    pos sociais no conseguem encontrar uma

    conformao depois de submetidos ao

    estresse do mundo externo para o qual es-

    tavam despreparados tanto psquica quan-

    to institucionalmente. A perda do sentimen-

    to de pertencimento ao mundo sinonmia

    da conservao de chances de vida pro-vm de desregulamentaes polticas. Nes-

    se mbito, bem como na desvalorizao de

    todos os valores e sua queda em valor de

    troca, nacionalismos, religies, funda-

    mentalismos religiosos e dios tnicos pro-

    curam conferir sentido a um mundo que o

    perdeu (9).

    O fim do poltico ou da dignidade da

    poltica o diagnstico do moderno; o

    estado de exceo define o moderno pela

    suspenso das leis positivas em nome do

    bem comum, da guerra justa e da paz (10).

    Eis por que a cena contempornea suscita

    refletir acerca do eclipsamento democrti-

    co na relao entre modernidade, globali-

    zao e estado de exceo. A modernidade

    a exceo em permanncia: o estado de

    exceo, anotou W. Benjamin, a re-

    gra. Em suas reflexes sobre o fascismo e

    a guerra (11), o filsofo enfatiza as afinida-

    des entre cultura poltica e cientfica (12),

    e estado de exceo, a partir do jurista

    Carl Schmitt (13), soberano aquele que

    decide o estado de exceo. Benjamin o

    por decises tcnicas. Na despolitizao do

    poltico, a economia traz consigo a figura

    do especialista competente, e o que resta

    do iderio da liberdade transfere-se para o

    consumo: a liberdade do consumidor de-

    pende da hierarquia das mercadorias a que

    pode ter acesso, desviando-o dos assuntos

    comuns plis e da organizao da vida

    coletiva. Frustraes e decepes passam

    ao domnio do privado, incapazes de en-

    contrar sua expresso poltica. Moder-

    nidade significa globalizao econmica,

    liquidao do poltico pela economia (4).

    A modernidade democrtica contempo-

    rnea associa, de uma maneira sem exem-

    plos no passado, valores pr-modernos,

    modernos e ps-modernos. Pr-modernos:

    tica do sacrifcio e sofrimento passivo,

    ordem social esttica como por interven-

    o divina. Modernos: o individualismo

    possessivo e os valores de mudana e pro-

    gresso. Ps-modernos: o Estado no ga-

    rante o bem comum, a proteo dos direi-

    tos sociais e civis considerada, melhor

    dizendo, um estorvo (5).

    O fetichismo da economia converte a

    poltica em bode expiatrio: a democraciasubstituda por lobbies eo enfraquecimen-

    to da dimenso simblica da Lei resultam

    em indiferena poltica; o fim da democra-

    cia como esperana d-se sob os auspcios

    do capitalismo tardio. Este substitui a de-

    mocracia da pluralidade por aquela da di-

    ferena: ao negar-se a pluralidade e re-

    conhecer-se a diferena, escreve Josep

    Ramoneda, fratura-se a sociedade pela via

    do gueto ou da tribo [], construindo so-

    ciedades etnicamente homogneas e, como

    se sabe, a pureza de sangue, de esprito ou

    de conhecimento, est na origem de todas

    as barbries. Foi a academia srvia de cin-

    cias que proclamou o srvio como sujeito

    tnico. Croatas, albano-kosovares, bsnios

    muulmanos, todos vo se constituindo

    sujeitos tnicos em uma atitude identica-

    mente excludente das demais. Ter sofrido

    num momento dado o papel de vtima no

    d direito impunidade (6).

    Fragmentao poltica encontra-se em

    todas as pocas de transio (7), j

    detectvel nos Estados perifricos do Im-

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    4/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 2003 49

    analisa segundo o direito pblico, ou me-

    lhor, a partir de seu desvelamento. O esta-

    do de exceo inconsciente de si pois

    mobiliza conceitos cujas razes e fundamen-

    tos permanecem escondidos em razo de

    uma amnsia social: pertencem ao campo

    teolgico secularizado. Eis por que Schmitt

    escreve que o estado de exceo na poltica

    corresponde ao milagre na teologia, in-

    terveno divina ou domnio do acaso

    em ambas as circunstncias a poltica

    transcendncia. O descrdito no parlamen-

    to, nas instituies polticas de representa-

    o social, nas leis, na punio de sua vio-

    lao, em sua aplicabilidade faz com que,

    hobbesianamente, troque-se a liberdade por

    segurana. A perda de confiana na justia

    na Alemanha no ps-1918 gerava o des-

    conforto de que nada podia ser calculado e

    muito menos previsto com antecedncia.

    Clculo e previso haviam sido substitu-

    dos pela aposta, pela adivinhao, pelo

    acaso (14). Assim oReischtag, o parla-

    mento despolitizado (15), pois, onde no

    h poltica, governam a violncia e o terror.

    Se a fora da democracia e do povo encon-

    tra-se no reconhecimento de sua expressoe vontade, o palco barroco e o Reischtag

    so o espao da indiferena democrtica

    que prenuncia o pior: o absolutismo como

    regime de exceo que retorna na moderni-

    dade []. A sala do trono o crcere; a

    alcova, sepultura; a coroa, uma grinalda de

    espinhos; a harpa, o machado do carras-

    co a condenao ao poder e deciso

    na exceo. Diz morte e significa histria

    (16). Com tais caractersticas, o Estado per-

    de legitimidade e s fora dele haveria sal-

    vao (17). Seus parlamentos so o lugar

    da conversao infinita e da corrupo, e

    as verdadeiras decises ocorrem fora dos

    parlamentos, no segredo de aes e delibe-

    raes. A modernidade, schmittiana, con-

    verte o parlamentarismo em iluso a de

    que a conversao perptua leva, por si

    s, paz perptua. E, desqualificando as

    instituies democrticas de representao,

    o poder econmico faz da corrupo um

    negcio, uma vez que desloca a ateno

    para a classe poltica sob suspeita (18). Se,

    anteriormente sociedade de massa con-

    tempornea, aquela que era definida pelas

    classes sociais e identificava seu antago-

    nista no empresrio ou patro, agora a luta

    de classes cede sociedade de massa em

    que o bode expiatrio so os polticos.

    Schmitt o grande terico dos ressen-

    timentos de toda uma gerao, ressentimen-

    to em relao democracia de massa (19),

    Repblica, modernidade poltica. O

    artigo 48 de sua Constituio garantia ao

    presidente suspender as garantias constitu-

    cionais. Aproximam-se Benjamin e Schmitt

    no reconhecimento de uma fuso entre

    modernidade poltica, econmica e cient-

    fica e a noo de progresso, Schmitt con-

    vencido da ilegitimidade das democracias

    liberais, Benjamin concentrando sua aten-

    o na modernidade do fascismo, em es-

    treita relao com a sociedade industrial

    contempornea. Razo pela qual o filsofo

    prope a organizao do pessimismo:

    pessimismo em todas as frentes [].

    Desconfiana quanto ao destino da litera-

    tura, desconfiana quanto ao destino do

    homem europeu, mas sobretudo uma tripla

    desconfiana diante de qualquer acomoda-

    o: entre as classes, entre os povos, entreos indivduos. E confiana ilimitada ape-

    nas na I. G. Farben e no aperfeioamento

    pacfico daLuftwaffe (20). Antecipando

    as catstrofes do progresso, a ironia dessa

    confiana ilimitada na Fora Area Ale-

    m j prenunciava a destruio que ela in-

    fligiria s cidades e populaes civis e que

    aI. G. Farben pouco mais tarde viria a fa-

    bricar o gs Zyklon B, utilizado no geno-

    cdio, e que a mo-de-obra mobilizada para

    produzi-lo era a mesma dos campos de

    concentrao (21).

    Se o estado de exceo a regra,

    porque a poltica sempre se concebeu na

    oposio amigo/inimigo (22). O nazismo

    como mal radical o emblema do estado de

    exceo em que vive a modernidade. O

    Estado tem direito de vida, isto , de morte

    sobre os cidados, ao garantir a vida, desig-

    na a morte. A desvalorizao da vida coin-

    cide com a afirmao ideolgica de seu

    valor. Todos se encontram na condio do

    Homo sacer (23).

    Analogamente ao que ocorreu na Re-

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    5/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 200350

    pblica de Weimar, que, com sua Consti-

    tuio (24), viveu em estado de exceo, o

    estado de guerra permanente dos Estados

    Unidos da Amrica do Norte encontra-se

    em sua Carta Magna em nome das razes

    de Estado, tal como no sculo barroco teo-

    lgico-poltico. O filsofo italiano Dome-

    nico Losurdo (25) trata da Constituio da

    Filadlfia de 1787, sucedneo das Sagra-

    das Escrituras. Ela sancionava um verda-

    deiro golpe de Estado, construda para

    barrar e extirpar a agitao democrtica

    radical que se seguira Guerra de Indepen-

    dncia (26). Tambm Sloterdjik analisa-a

    do ponto de vista teolgico-poltico (27)

    como tradio ocidental de aprimoramen-

    to do Evangelho, que tem incio com Otfried

    von Weissenburg, o padre-poeta da Rennia

    que, no sculo IX, justifica a recomposio

    dos Evangelhos em linguagem popular,

    reescrita de uma Bblia poetizada para que

    os fiis tivessem acesso doura da Boa

    Nova com o que se poderia conseguir de

    maneira mais convincente o louvor a Deus.

    Sloterdijk mostra a posteridade desse em-

    preendimento quando os Evangelhos so

    refeitos, no mais no quadro da sacralidadepela linguagem potica do elogio e da

    autocelebrao mas nos Estados Unidos

    da Amrica, e cujo redator, Thomas

    Jefferson, foi protagonista da proclamao

    da independncia americana e, atravs dele,

    a mensagem crist ser adaptada s neces-

    sidades da glria americana.

    Conhecida como a Bblia de Jefferson,

    ela foi cuidadosamente produzida por re-

    cortes de tesoura e colagens, separando o

    til do desvantajoso, eliminando inmeras

    passagens dos Evangelhos histricos, con-

    fiscando tudo o que soasse incompatvel

    com seus valores republicanos. A Boa

    Nova passaria a responder racionalidade

    e sensibilidade contemporneas.

    Trata-se aqui de um abstract, uma usur-

    pao seletiva aplicada a um conjunto de

    dogmas e tradies. Essa redao das Sa-

    gradas Escrituras destina-se a vencedores

    de uma guerra de independncia e repre-

    sentante da razo das Luzes: discursos apo-

    calpticos e ameaadores de Jesus no po-

    deriam estar presentes. Em seu trabalho de

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    6/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 2003 51

    edio do texto, Jefferson coloca-se ao

    lado do imperativo dos tempos modernos:

    no lugar da lenda, algo novo, a substituio

    de agentes sagrados por heris terrenos, o

    prprio Jesus tornando-se heri romanes-

    co. Ao longo do tempo, esse evangelho pas-

    sou a ser, para os estadunidenses, uma das

    mdias a servio do narcisismo, no de

    Deus, mas de heris guerreiros. Nos ter-

    mos de Horkheimer e de Adorno, a socie-

    dade estadunidense a realizao mais

    perfeita da autoconservao (luta pela ma-

    nuteno da vida material pela dominao

    do outro) e da razo instrumental (utilit-

    ria, pragmtica, imediatista, antiintelectual

    e anticontemplativa; instrumento de poder

    e no desenvolvimento para fins de eman-

    cipao).

    Tudo ocorre como se a Constituio ti-

    vesse sido concebida tendo em mente o

    estado de exceo, e a energia republicana

    no passasse de um estado de exceo re-

    presado. E o 11 de setembro foi providen-

    cial para instaurar a cultura do pnico

    (28) e a expanso territorial a partir da

    Constituio americana de autolouvao

    evanglica. Desse modo, o problema noseria o presidente George W. Bush, mas a

    Constituio a permitir a violncia purifi-

    cadora, a retirada de todas as protees

    constitucionais, sendo o Executivo, agora

    abertamente, investigador, promotor de

    justia, juiz, jri, carcereiro e executor.

    Na Europa passa-se algo semelhante, com

    a adoo de regras de procedimento penal

    que derrogam definitivamente o direito co-

    mum e as leis positivas como, por exem-

    plo, a criao de um mandado de priso

    europeu, substituindo o princpio de extra-

    dio baseado na exigncia de dupla

    incriminao mais a prerrogativa de a au-

    toridade poltica de origem recus-la ou

    conced-la.

    Os Estados Unidos da Amrica do Nor-

    te, em guerra permanente, estariam acele-

    rando a histria na direo de um final glo-

    rioso, da mesma maneira que a limpeza dos

    hereges simplifica o caminho do triunfo da

    verdade redentora. Quando se acredita na

    posse da verdade, no a impor queles in-

    capazes de v-la um lamentvel retarda-

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    7/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 200352

    NOTAS

    1 A ecologia como crtica explorao descontrolada da natureza em suas conseqncias anti-humanas, o direito sexualidade homoertica ou bissexual,etc. atestam que a democracia exerccio de direitos e ampliao de direitos, inveno permanente (cf. Claude Lefort, A Inveno Democrtica, SoPaulo, Brasiliense, 1985).

    2 Claude Lefort , La Complication,Paris, Fayard, 1999, pp. 191-2.3 Refiro-me, aqui, sobretudo s ideologias que se fortaleceram com o fim do socialismo real e sua estatizao da economia, o monoplio por um partido

    nico dos meios de coero, informao e doutrinamento massivo.

    4 Globalizao manifesta, entre outras caractersticas, a metamorfose do cidado em Homo oecomomicus.Ela perverte apelos morais em competio ea produtividade.

    5 O capitalismo contemporneo define felicidade pelo consumo de bens materiais mas bloqueia o prazer que promete, pois gera desemprego e misria;o hedonismo, assim frustrado, fonte de mal-estar social. Lembre-se, a ttulo de ilustrao, que o leste europeu ruiu pela fora da mdia quando as TVsa cabo se instalaram pelo mundo, universalizando os desejos de consumo. A luta no se deu exatamente contra a opresso mas pela liberdade deconsumo. O capitalismo da revoluo microeletrnica e da financeirizao do capital requer um Estado mnimo. Este no um Estado fraco; ao contrrio,deve ser forte para fragilizar as aes sociais que procuram regulamentar limites superacumulao capitalista.

    6 Josep Ramoneda, Depois da Paixo Poltica,So Paulo, Senac, 2000, p. 128.

    7 Ende und Anfang. Von den Generationen der Hochkulturen und von der Entstehung des Abendlandes,Stuttgart, 1984.

    8 Peter Sloterdijk, No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica,So Paulo, Estao Liberdade, 1999, p. 70.

    9 No Livro de J,o poema bblico escrito em forma de dilogo, Antonio Negri reconhece uma descoberta fenomenolgica e a declarao metafsicado desastre a que conduz a razo instrumental: a tragdia investe o Ser e a dor atinge as fibras mais ntimas, a razo, fechando-se sobre si mesma,torna-se loucura []. A desmedida incessantemente se renova na histria, exasperada no presente: como crer na razo depois de Auschwitz e Hiroshima?Como continuar sendo comunista depois de Stalin? []. O problema do mal no foi ultrapassado, a teodicia no me parece um problema obsoleto(inJob, la Force de lEsclave, trad. Judith Revel, Paris, Bayard, 2002, p. 29).

    mento do final feliz. Sobre essa base se

    constri boa parte da paixo poltica norte-

    americana. S o Ocidente pode aspirar ao

    paraso, s a racionalidade tcnica nos dar

    o bem-estar definitivo. A ideologia norte-

    americana realiza com perfeio o Estado

    totalitrio em seu sonho de unir na terra

    o poder e o absoluto, o teolgico e o pol-

    tico (29).

    A democracia laica e desnaturaliza a

    violncia, e a poltica democrtica evoca a

    plis grega. Horkheimer escreve que a so-

    ciedade justa, livre e feliz dever ser a idia

    da plis grega sem escravos (30). Em

    Atenas, a arte oferecia aos cidados mais

    modestos o que faltava aos grandes monu-

    mentos que ornamentavam a cidade, pois a

    vida cotidiana dos cidados, que contava

    tanto para os gregos, deveria ter formas,

    abertas a todos, de beleza e de graa (charis).

    Na democracia ateniense, os antigos ideais

    aristocrticos transfiguraram-se, pois o que

    para outros consistiria em simples modo de

    vida aqui se tornou uma refinada obra de

    arte. O que de incio era um mero estilo de

    comportamento em pblico transformou-

    se em contedo e objetivo da ao poltica:a graa, escreve Christien Meier, foi

    amplamente apreciada na democracia.

    Enquanto os atenienses foram bem-suce-

    didos, livres, confiantes e generosos, vivi-

    am com toda graa. Suas festas, sobretu-

    do o cortejo pan-ateniense, em que os alia-

    dos da confederao naval tica apresenta-

    vam suas oferendas, o Partenon e sua arte

    demonstram-no sobejamente []. Todos

    se sentiam capazes de levar uma vida que

    convm a cidados livres [] a graa ma-

    nifestava o esplendor de Atenas (31). Puro

    classicismo ou utopia devem ser compre-

    endidos em sentido prprio: a utopia, no

    sentido empregado por Horkheimer, no

    significa o irrealizvel, mas os possveis da

    histria que podem florescer. Marcuse, por

    sua vez, refere-se a Schiller, que escreve:

    autores de reflexo filosfica e de beleza

    plstica, agindo com delicadeza e firmeza,

    os atenienses so um exemplo mpar da feliz

    unio entre a fantasia juvenil e a maturida-

    de da razo em uma humanidade triunfan-

    te (32). Por fim a palavra florescer, es-

    creve Sloterdjik, significa os momentos

    histricos de felicidade nos quais a socia-

    bilidade e refinamento (33) se associam,

    na tradio grega da leveza, elegncia, po-ltica e graa.

  • 7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos

    8/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 2003 53

    10 Cf. Giorgio Agamben, Homo Sacer, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002.

    11 Cf. Willi Bole (org.), Documentos de Cultura Documentos de Barbrie, So Paulo, Cultrix, 1984.

    12 Cf. tambm A Caminho do Planetrio, in Rua de Mo nica,So Paulo, Brasiliense, 1984.

    13 Cf. Politische Teologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Ssouveranitt,Berlin, Duncker-Humblot, 1990; Hctor Orestes Aguilar (org.), Carl Schmitt, Teologode la Poltica, Mexico, Fondo de Cultura Econmica, 2001.

    14 A. Dymetman, Uma Arquitetura da Indiferena,So Paulo, Perspectiva, 2002, p. 115. Walter Benjamin publica Origem do Drama Barro Alemodosculo XVII em 1928 pois reconhece nesse sculo surpreendentes analogias com o nosso.

    15 Se a aliana entre ao poltica e democracia procurava transformar tenses e interesses em conflito no espao pblico em rito, substituindo a violnciafsica pelo confronto verbal, a descrena no exerccio da poltica tomou a classe operria alem, dividida entre o Partido Social-Democrata e o PartidoNacional-Socialista, culminou no domnio do medo: medo que o sdito sente em relao ao poder desmedido daquele que exerce o estado de exceo,e o medo que o prprio soberano tem de, a qualquer momento, ser trado.

    16 A. Dymetman, op. cit., p. 146.

    17 A atualidade assiste onguenizao da sociedade, s instituies filantrpicas que tomam o lugar vazio deixado pelo absentesmo do Estado, asociedade rumando particularismos polticos.

    18 Horkheimer, por sua vez, reconhece tanto no nazismo quanto na sociedade estadunidense o advento de formas delinqenciais de vida social, entendidaa partir da fragmentao poltica e da desregulamentao da vida pblica que toma a figura do racketcriminal e econmico. O modelo dos rackets(gngsteres, cliques) presentifica-se na sociedade de dominao ps-burguesa. Os lderes do rackets negociam interesses privados, particulares erigidosem interesses universais. Tais grupos caracterizam-se por negligncia ou completa rejeio dos sistemas formais da Lei. Particularistas, exigem lealdadedaqueles aceitos no grupo e recebem proteo. Existem os rackets econmicos, polticos, empresariais, acadmicos, artsticos, etc.A teoria dos rackets, para Horkheimer, mais adequada para compreender o mundo contemporneo que a teoria das classes de Marx: em vez da ditadura do proletariado,Horkheimer temeu um outro fim para a sociedade burguesa: ela recai na barbrie, em que a mediao economicamente mediada da classe capitalistaannima substituda pela dominao imediata de fortes camarilhas que estruturalmente assemelham-se ao Racket[].Os exemplos de trnsitosrecprocos de Estado e gangue de rackets so legies e, na verdade, no apenas na Amrica Latina; na Itlia o compromisso histrico entre Estadoe mfia evocou a mais recente crise de Estado. E nos pases do liquidado socialismo de Estado, os rackets esto apenas no comeo de uma carreiraabrupta (Cristoph Trcke e Gerhard Bolte, Einfhrung in die Kritische Theorie, p. 51, apud Rafael Cordeiro da Silva, in A Percepo da Barbrie:Construo e Desmoronamento da Teoria Crtica de Max Horkheimer,doutorado no Depto. de Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2002, p. 105).

    19 Nesse horizonte, as massas, ao contrrio do que pensava Rosa Luxemburgo em sua militncia revolucionria contra a guerra, apoiavam a guerra,revelando-se mais apegadas ao nativismo que democracia.

    20 W. Benjamin, O Surrealismo, in Pensadores,So Paulo, Abril Cultural, 1978.

    21 W. Benjamin, como Adorno, Horkheimer e Marcuse, reflete sobre a cultura cientfica prpria a nosso tempo, bem antes de se constituir como ideologiade Estado. Cf. Benjamin, Documentos de Cultura, Documentos de Barbrie,op. cit.; Horkheimer, Eclipse da Razo, Lisboa, Labor, 1970; Adorno eHorkheimer,Dialtica do Esclarecimento,Rio de Janeiro, Zahar, 1984; Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, coletnea editada por Douglas Kellner,So Paulo, Unesp, 1999. Assim, o programa nazista de extermnio tnico ou de portadores de doenas mentais constituiu-se como um prolongamentolgico das doutrinas eugnicas que, de incio, nada tinham a ver com judeus ou ciganos, pois prosperaram na Alemanha anterior ao Terceiro Reich.Quanto perseguio da esquerda, comunistas, socialistas e simpatizantes, esta ligava-se angstia sexual e ao medo da contaminao venrea. W.

    Reich assim interpreta a proibio de casamento entre alemes e judeus a que correspondia promiscuidade de classes das esquerdas (cf. Psicologiade Massa do Fascismoe Escuta Ze-Ningum,em particular).

    22 Reservando ao opositor poltico o lugar do inimigo, ele aquele a que se tem o direito de matar. Recorde-se aqui Foucault e sua influncia no pensamentode Giorgio Agamben. A biopoltica do Estado moderno se arroga o direito de definir quais as vidas desprovidas de valor (cf. M. Foucault, A Microfsicado Poder;G. Agamben, Homo Sacer,op. cit.).

    23 No direito romano antigo, Homo sacerera o homem sagrado, aquele que podia sofrer o assassinato, crime impunvel, pois o sagrado era aqueleque se encontrava fora da condio humana. A figura do conspirador, perigoso agitador, inimigo interno ou externo significa, nos escritos de Schmitt,que, na Repblica atual alem (anos 1920), trata-se da falsa transparncia, escreve, pois aquilo que se v no o verdadeiro jogo decisrio quese d atrs dos bastidores, a portas fechadas. A poltica resume-se, pois, relao amigo-inimigo. O inimigo tem que ser eliminado fisicamente (op.cit., p. 131). Esse antagonismo supe derrotar o inimigo seja na oposio religiosa, moral, econmica ou tica. Aqui no se trata de discusso, masde deciso. A soluo schmittiana a ditadura; em uma democracia, ao contrrio, o adversrio poltico deve ser combatido politicamente e noperseguido, assassinado.

    24 Origem do Drama Barroco Alemo,de W. Benjamin, publicado no ano de 1928, ano da hiperinflao, do desemprego e da ascenso do nazismo.A repblica nasce no assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, nunca averiguados. Razo pela qual o filsofo encontra extraordinriassemelhanas entre o palco barroco e a contemporaneidade: traies, assassinatos, guerras, runas, promovidos pelos poderosos; passividade, impotncia

    e indiferena por parte dos governados. Referindo-se Escola de Frankfurt e a Horkheimer, Annie Dymetman observa: Horkheimer acrescenta uma novadimenso ao primado poltico da anlise do nazismo, o ethos tecnolgico, aquele que se utiliza permanente e ininterruptamente do terror e da coero.Cada vez mais interessado na racionalizao tecnolgica enquanto imperativo cultural, Horkheimer v nos mecanismos psicossociolgicos a garantiade submisso s fontes de violncia (Uma Arquitetura da Indiferena,op. cit., 2002, p. 38).

    25 Apud Paulo Eduardo Arantes, in Geocultura e Geopoltica do Novo Sistema Imperial, in O Esprito de Porto Alegre, So Paulo, Unesp, 2002 (II FrumSocial Mundial de Porto Alegre, 3 de fevereiro de 2001).

    26 A historiografia fala de contra-revoluo federalista.

    27 Cf. La Comptitiom des Bonnes Nouvelles: Nietzsche vangeliste, trad. Olivier Mannnoni, Paris,Mille et Une Nuits, 2002.

    28 Cf. H. Broch, Massenwahntheorie,Frankfurt, 1979; Jean-Pierre Dupuy, La Panique,Paris, 1991.

    29 Deve-se lembrar que o estado de guerra permanente deve-se ao estgio atual da superacumulao capitalista, considerando-se que o petrleo, diferenada produo ilimitada das demais mercadorias, um bem fssil, finito, de onde todos os pases que tm sua economia baseada nele terem uma vidapoltica instvel, dados os interesses dos pases hegemnicos.

    30Cf Autoritrer Staat,Amsterdam, Munter, 1967.31 Christien Meier, Poltica e Graa, Braslia, UnB, 1997, pp. 81-2.

    32 Cf. Schiller apud Christien Meier, op. cit., p. 90.

    33 Sloterdjik, No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica,op. cit.