Modernidade - república em Estado de exceção - Olgária matos
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7/29/2019 Modernidade - repblica em Estado de exceo - Olgria matos
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REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 46-53, setembro/novembro 200346
Modernidade: repblica
em estado de exceo
OLG
RIAMATOS
OLGRIA MATOS professora de FilosofiaPoltica da FFLCH-USPe autora de, entre outros,
Os Arcanos doInteiramente Outro AEscola de Frankfurt, aMelancolia, a Revoluo(Brasiliense).
usual reunir a experincia republicana
e democrtica modernidade poltica,
considerada esta como um conjunto
de indivduos aos quais se reconhece,
no pelos governantes mas pela Lei, o
ttulo de cidado. Tambm os concei-
tos de liberdade, direitos, responsabili-
dades, justia, direitos humanos, direito
a cultura, direitos da natureza (1) par-
ticipam dessa dramaturgia em que to-
dos so iguais porque todos igualmen-
te agentes na esfera pblica e, nessa
condio, igualmente legisladores. As-
sim, a qualidade de uma democracia
no depende dos vcios ou virtudes dos
governantes mas da qualidade de suas
instituies, observando-se as interse-
es da dimenso poltica, social, eco-
Por motivos editoriais as notas en-contram-se no final deste artigo.
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nmica, jurdica, moral e psquica da
coeso social. Do ponto de vista da
cultura moderna, sua caracterstica axial
a secularizao, o racionalismo, a cin-
cia, em suma, a separao entre o teo-
lgico e o poltico. Que se pense aqui
nas monarquias europias da Idade
Mdia, na representao do Prncipe
vicrio de Deus, que retira do cristianis-
mo os recursos da fundamentao es-
piritual para a soberania temporal,
mesclando o mundo sobrenatural e o
mundo dos homens. Se o teolgico-
poltico a experincia da heteronomia,
a repblica democrtica tem a marca
da autonomia: o fato de que ningum
possa apresentar-se como detentor do
conhecimento da ordem social e dos
fins da conduta humana, escreve
Claude Lefort, resulta do desem-
bricamento do teolgico e do poltico.
Acontecimento considervel, j que in-
duz a admitir a legitimidade de crenas,
opinies e interesses mltiplos, at
mesmo opostos, desde que o conflito
no ponha em risco a segurana co-
mum. Ao contrrio de apag-la, a de-
mocracia desvela a dimenso do outro
na experincia da vida []. [Trata-se]
de um mundo que se subtrai ao ponto
de vista do sobrevo, e ter acesso a ele
supe, ao contrrio, que se aprenda
dele os meios de nele orientar-se(2).
Modernidade , tambm, a sociedade
de consumo de massa, da tecnologia,
da mdia, do espetculo correspondente
linhagem epicurista de emancipao
do medo e realizao do homem tanto
como indivduo quanto como ser so-
cial. Costuma-se, ainda, associar demo-
cracia e economia liberal (3) e, nesse
caso, predomina a ideologia da racio-
nalidade tecnolgica, em que todas as
decises de poltica econmica passam
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prio Romano na Baixa Antigidade sen-
do a parania coletiva de morte sua mani-
festao mais visvel. E Peter Sloterdijk
comenta: as grandes religies e as ima-
gens de mundo universalistas surgiram para
represar o sentimento de que toda morte
era [] obra de estranhos malignos. Quer
dizer, de espritos externos, aos quais se
subordina uma animosidade irreconcili-
vel; teria sido mrito espiritual das ima-
gens do mundo das grandes civilizaes
produzir, atravs de interpretaes no
paranicas da morte, novas manifestaes
da alma e respectivas ars moriendi (8).
Para o filsofo, a contemporaneidade cor-
responde a uma parania tnica mero-
vngea, no esgaramento do lao social
entre antigos conhecidos a tal ponto que
qualquer um pode tornar-se assassino dos
mais prximos, e isto ocorre quando gru-
pos sociais no conseguem encontrar uma
conformao depois de submetidos ao
estresse do mundo externo para o qual es-
tavam despreparados tanto psquica quan-
to institucionalmente. A perda do sentimen-
to de pertencimento ao mundo sinonmia
da conservao de chances de vida pro-vm de desregulamentaes polticas. Nes-
se mbito, bem como na desvalorizao de
todos os valores e sua queda em valor de
troca, nacionalismos, religies, funda-
mentalismos religiosos e dios tnicos pro-
curam conferir sentido a um mundo que o
perdeu (9).
O fim do poltico ou da dignidade da
poltica o diagnstico do moderno; o
estado de exceo define o moderno pela
suspenso das leis positivas em nome do
bem comum, da guerra justa e da paz (10).
Eis por que a cena contempornea suscita
refletir acerca do eclipsamento democrti-
co na relao entre modernidade, globali-
zao e estado de exceo. A modernidade
a exceo em permanncia: o estado de
exceo, anotou W. Benjamin, a re-
gra. Em suas reflexes sobre o fascismo e
a guerra (11), o filsofo enfatiza as afinida-
des entre cultura poltica e cientfica (12),
e estado de exceo, a partir do jurista
Carl Schmitt (13), soberano aquele que
decide o estado de exceo. Benjamin o
por decises tcnicas. Na despolitizao do
poltico, a economia traz consigo a figura
do especialista competente, e o que resta
do iderio da liberdade transfere-se para o
consumo: a liberdade do consumidor de-
pende da hierarquia das mercadorias a que
pode ter acesso, desviando-o dos assuntos
comuns plis e da organizao da vida
coletiva. Frustraes e decepes passam
ao domnio do privado, incapazes de en-
contrar sua expresso poltica. Moder-
nidade significa globalizao econmica,
liquidao do poltico pela economia (4).
A modernidade democrtica contempo-
rnea associa, de uma maneira sem exem-
plos no passado, valores pr-modernos,
modernos e ps-modernos. Pr-modernos:
tica do sacrifcio e sofrimento passivo,
ordem social esttica como por interven-
o divina. Modernos: o individualismo
possessivo e os valores de mudana e pro-
gresso. Ps-modernos: o Estado no ga-
rante o bem comum, a proteo dos direi-
tos sociais e civis considerada, melhor
dizendo, um estorvo (5).
O fetichismo da economia converte a
poltica em bode expiatrio: a democraciasubstituda por lobbies eo enfraquecimen-
to da dimenso simblica da Lei resultam
em indiferena poltica; o fim da democra-
cia como esperana d-se sob os auspcios
do capitalismo tardio. Este substitui a de-
mocracia da pluralidade por aquela da di-
ferena: ao negar-se a pluralidade e re-
conhecer-se a diferena, escreve Josep
Ramoneda, fratura-se a sociedade pela via
do gueto ou da tribo [], construindo so-
ciedades etnicamente homogneas e, como
se sabe, a pureza de sangue, de esprito ou
de conhecimento, est na origem de todas
as barbries. Foi a academia srvia de cin-
cias que proclamou o srvio como sujeito
tnico. Croatas, albano-kosovares, bsnios
muulmanos, todos vo se constituindo
sujeitos tnicos em uma atitude identica-
mente excludente das demais. Ter sofrido
num momento dado o papel de vtima no
d direito impunidade (6).
Fragmentao poltica encontra-se em
todas as pocas de transio (7), j
detectvel nos Estados perifricos do Im-
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analisa segundo o direito pblico, ou me-
lhor, a partir de seu desvelamento. O esta-
do de exceo inconsciente de si pois
mobiliza conceitos cujas razes e fundamen-
tos permanecem escondidos em razo de
uma amnsia social: pertencem ao campo
teolgico secularizado. Eis por que Schmitt
escreve que o estado de exceo na poltica
corresponde ao milagre na teologia, in-
terveno divina ou domnio do acaso
em ambas as circunstncias a poltica
transcendncia. O descrdito no parlamen-
to, nas instituies polticas de representa-
o social, nas leis, na punio de sua vio-
lao, em sua aplicabilidade faz com que,
hobbesianamente, troque-se a liberdade por
segurana. A perda de confiana na justia
na Alemanha no ps-1918 gerava o des-
conforto de que nada podia ser calculado e
muito menos previsto com antecedncia.
Clculo e previso haviam sido substitu-
dos pela aposta, pela adivinhao, pelo
acaso (14). Assim oReischtag, o parla-
mento despolitizado (15), pois, onde no
h poltica, governam a violncia e o terror.
Se a fora da democracia e do povo encon-
tra-se no reconhecimento de sua expressoe vontade, o palco barroco e o Reischtag
so o espao da indiferena democrtica
que prenuncia o pior: o absolutismo como
regime de exceo que retorna na moderni-
dade []. A sala do trono o crcere; a
alcova, sepultura; a coroa, uma grinalda de
espinhos; a harpa, o machado do carras-
co a condenao ao poder e deciso
na exceo. Diz morte e significa histria
(16). Com tais caractersticas, o Estado per-
de legitimidade e s fora dele haveria sal-
vao (17). Seus parlamentos so o lugar
da conversao infinita e da corrupo, e
as verdadeiras decises ocorrem fora dos
parlamentos, no segredo de aes e delibe-
raes. A modernidade, schmittiana, con-
verte o parlamentarismo em iluso a de
que a conversao perptua leva, por si
s, paz perptua. E, desqualificando as
instituies democrticas de representao,
o poder econmico faz da corrupo um
negcio, uma vez que desloca a ateno
para a classe poltica sob suspeita (18). Se,
anteriormente sociedade de massa con-
tempornea, aquela que era definida pelas
classes sociais e identificava seu antago-
nista no empresrio ou patro, agora a luta
de classes cede sociedade de massa em
que o bode expiatrio so os polticos.
Schmitt o grande terico dos ressen-
timentos de toda uma gerao, ressentimen-
to em relao democracia de massa (19),
Repblica, modernidade poltica. O
artigo 48 de sua Constituio garantia ao
presidente suspender as garantias constitu-
cionais. Aproximam-se Benjamin e Schmitt
no reconhecimento de uma fuso entre
modernidade poltica, econmica e cient-
fica e a noo de progresso, Schmitt con-
vencido da ilegitimidade das democracias
liberais, Benjamin concentrando sua aten-
o na modernidade do fascismo, em es-
treita relao com a sociedade industrial
contempornea. Razo pela qual o filsofo
prope a organizao do pessimismo:
pessimismo em todas as frentes [].
Desconfiana quanto ao destino da litera-
tura, desconfiana quanto ao destino do
homem europeu, mas sobretudo uma tripla
desconfiana diante de qualquer acomoda-
o: entre as classes, entre os povos, entreos indivduos. E confiana ilimitada ape-
nas na I. G. Farben e no aperfeioamento
pacfico daLuftwaffe (20). Antecipando
as catstrofes do progresso, a ironia dessa
confiana ilimitada na Fora Area Ale-
m j prenunciava a destruio que ela in-
fligiria s cidades e populaes civis e que
aI. G. Farben pouco mais tarde viria a fa-
bricar o gs Zyklon B, utilizado no geno-
cdio, e que a mo-de-obra mobilizada para
produzi-lo era a mesma dos campos de
concentrao (21).
Se o estado de exceo a regra,
porque a poltica sempre se concebeu na
oposio amigo/inimigo (22). O nazismo
como mal radical o emblema do estado de
exceo em que vive a modernidade. O
Estado tem direito de vida, isto , de morte
sobre os cidados, ao garantir a vida, desig-
na a morte. A desvalorizao da vida coin-
cide com a afirmao ideolgica de seu
valor. Todos se encontram na condio do
Homo sacer (23).
Analogamente ao que ocorreu na Re-
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pblica de Weimar, que, com sua Consti-
tuio (24), viveu em estado de exceo, o
estado de guerra permanente dos Estados
Unidos da Amrica do Norte encontra-se
em sua Carta Magna em nome das razes
de Estado, tal como no sculo barroco teo-
lgico-poltico. O filsofo italiano Dome-
nico Losurdo (25) trata da Constituio da
Filadlfia de 1787, sucedneo das Sagra-
das Escrituras. Ela sancionava um verda-
deiro golpe de Estado, construda para
barrar e extirpar a agitao democrtica
radical que se seguira Guerra de Indepen-
dncia (26). Tambm Sloterdjik analisa-a
do ponto de vista teolgico-poltico (27)
como tradio ocidental de aprimoramen-
to do Evangelho, que tem incio com Otfried
von Weissenburg, o padre-poeta da Rennia
que, no sculo IX, justifica a recomposio
dos Evangelhos em linguagem popular,
reescrita de uma Bblia poetizada para que
os fiis tivessem acesso doura da Boa
Nova com o que se poderia conseguir de
maneira mais convincente o louvor a Deus.
Sloterdijk mostra a posteridade desse em-
preendimento quando os Evangelhos so
refeitos, no mais no quadro da sacralidadepela linguagem potica do elogio e da
autocelebrao mas nos Estados Unidos
da Amrica, e cujo redator, Thomas
Jefferson, foi protagonista da proclamao
da independncia americana e, atravs dele,
a mensagem crist ser adaptada s neces-
sidades da glria americana.
Conhecida como a Bblia de Jefferson,
ela foi cuidadosamente produzida por re-
cortes de tesoura e colagens, separando o
til do desvantajoso, eliminando inmeras
passagens dos Evangelhos histricos, con-
fiscando tudo o que soasse incompatvel
com seus valores republicanos. A Boa
Nova passaria a responder racionalidade
e sensibilidade contemporneas.
Trata-se aqui de um abstract, uma usur-
pao seletiva aplicada a um conjunto de
dogmas e tradies. Essa redao das Sa-
gradas Escrituras destina-se a vencedores
de uma guerra de independncia e repre-
sentante da razo das Luzes: discursos apo-
calpticos e ameaadores de Jesus no po-
deriam estar presentes. Em seu trabalho de
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edio do texto, Jefferson coloca-se ao
lado do imperativo dos tempos modernos:
no lugar da lenda, algo novo, a substituio
de agentes sagrados por heris terrenos, o
prprio Jesus tornando-se heri romanes-
co. Ao longo do tempo, esse evangelho pas-
sou a ser, para os estadunidenses, uma das
mdias a servio do narcisismo, no de
Deus, mas de heris guerreiros. Nos ter-
mos de Horkheimer e de Adorno, a socie-
dade estadunidense a realizao mais
perfeita da autoconservao (luta pela ma-
nuteno da vida material pela dominao
do outro) e da razo instrumental (utilit-
ria, pragmtica, imediatista, antiintelectual
e anticontemplativa; instrumento de poder
e no desenvolvimento para fins de eman-
cipao).
Tudo ocorre como se a Constituio ti-
vesse sido concebida tendo em mente o
estado de exceo, e a energia republicana
no passasse de um estado de exceo re-
presado. E o 11 de setembro foi providen-
cial para instaurar a cultura do pnico
(28) e a expanso territorial a partir da
Constituio americana de autolouvao
evanglica. Desse modo, o problema noseria o presidente George W. Bush, mas a
Constituio a permitir a violncia purifi-
cadora, a retirada de todas as protees
constitucionais, sendo o Executivo, agora
abertamente, investigador, promotor de
justia, juiz, jri, carcereiro e executor.
Na Europa passa-se algo semelhante, com
a adoo de regras de procedimento penal
que derrogam definitivamente o direito co-
mum e as leis positivas como, por exem-
plo, a criao de um mandado de priso
europeu, substituindo o princpio de extra-
dio baseado na exigncia de dupla
incriminao mais a prerrogativa de a au-
toridade poltica de origem recus-la ou
conced-la.
Os Estados Unidos da Amrica do Nor-
te, em guerra permanente, estariam acele-
rando a histria na direo de um final glo-
rioso, da mesma maneira que a limpeza dos
hereges simplifica o caminho do triunfo da
verdade redentora. Quando se acredita na
posse da verdade, no a impor queles in-
capazes de v-la um lamentvel retarda-
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NOTAS
1 A ecologia como crtica explorao descontrolada da natureza em suas conseqncias anti-humanas, o direito sexualidade homoertica ou bissexual,etc. atestam que a democracia exerccio de direitos e ampliao de direitos, inveno permanente (cf. Claude Lefort, A Inveno Democrtica, SoPaulo, Brasiliense, 1985).
2 Claude Lefort , La Complication,Paris, Fayard, 1999, pp. 191-2.3 Refiro-me, aqui, sobretudo s ideologias que se fortaleceram com o fim do socialismo real e sua estatizao da economia, o monoplio por um partido
nico dos meios de coero, informao e doutrinamento massivo.
4 Globalizao manifesta, entre outras caractersticas, a metamorfose do cidado em Homo oecomomicus.Ela perverte apelos morais em competio ea produtividade.
5 O capitalismo contemporneo define felicidade pelo consumo de bens materiais mas bloqueia o prazer que promete, pois gera desemprego e misria;o hedonismo, assim frustrado, fonte de mal-estar social. Lembre-se, a ttulo de ilustrao, que o leste europeu ruiu pela fora da mdia quando as TVsa cabo se instalaram pelo mundo, universalizando os desejos de consumo. A luta no se deu exatamente contra a opresso mas pela liberdade deconsumo. O capitalismo da revoluo microeletrnica e da financeirizao do capital requer um Estado mnimo. Este no um Estado fraco; ao contrrio,deve ser forte para fragilizar as aes sociais que procuram regulamentar limites superacumulao capitalista.
6 Josep Ramoneda, Depois da Paixo Poltica,So Paulo, Senac, 2000, p. 128.
7 Ende und Anfang. Von den Generationen der Hochkulturen und von der Entstehung des Abendlandes,Stuttgart, 1984.
8 Peter Sloterdijk, No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica,So Paulo, Estao Liberdade, 1999, p. 70.
9 No Livro de J,o poema bblico escrito em forma de dilogo, Antonio Negri reconhece uma descoberta fenomenolgica e a declarao metafsicado desastre a que conduz a razo instrumental: a tragdia investe o Ser e a dor atinge as fibras mais ntimas, a razo, fechando-se sobre si mesma,torna-se loucura []. A desmedida incessantemente se renova na histria, exasperada no presente: como crer na razo depois de Auschwitz e Hiroshima?Como continuar sendo comunista depois de Stalin? []. O problema do mal no foi ultrapassado, a teodicia no me parece um problema obsoleto(inJob, la Force de lEsclave, trad. Judith Revel, Paris, Bayard, 2002, p. 29).
mento do final feliz. Sobre essa base se
constri boa parte da paixo poltica norte-
americana. S o Ocidente pode aspirar ao
paraso, s a racionalidade tcnica nos dar
o bem-estar definitivo. A ideologia norte-
americana realiza com perfeio o Estado
totalitrio em seu sonho de unir na terra
o poder e o absoluto, o teolgico e o pol-
tico (29).
A democracia laica e desnaturaliza a
violncia, e a poltica democrtica evoca a
plis grega. Horkheimer escreve que a so-
ciedade justa, livre e feliz dever ser a idia
da plis grega sem escravos (30). Em
Atenas, a arte oferecia aos cidados mais
modestos o que faltava aos grandes monu-
mentos que ornamentavam a cidade, pois a
vida cotidiana dos cidados, que contava
tanto para os gregos, deveria ter formas,
abertas a todos, de beleza e de graa (charis).
Na democracia ateniense, os antigos ideais
aristocrticos transfiguraram-se, pois o que
para outros consistiria em simples modo de
vida aqui se tornou uma refinada obra de
arte. O que de incio era um mero estilo de
comportamento em pblico transformou-
se em contedo e objetivo da ao poltica:a graa, escreve Christien Meier, foi
amplamente apreciada na democracia.
Enquanto os atenienses foram bem-suce-
didos, livres, confiantes e generosos, vivi-
am com toda graa. Suas festas, sobretu-
do o cortejo pan-ateniense, em que os alia-
dos da confederao naval tica apresenta-
vam suas oferendas, o Partenon e sua arte
demonstram-no sobejamente []. Todos
se sentiam capazes de levar uma vida que
convm a cidados livres [] a graa ma-
nifestava o esplendor de Atenas (31). Puro
classicismo ou utopia devem ser compre-
endidos em sentido prprio: a utopia, no
sentido empregado por Horkheimer, no
significa o irrealizvel, mas os possveis da
histria que podem florescer. Marcuse, por
sua vez, refere-se a Schiller, que escreve:
autores de reflexo filosfica e de beleza
plstica, agindo com delicadeza e firmeza,
os atenienses so um exemplo mpar da feliz
unio entre a fantasia juvenil e a maturida-
de da razo em uma humanidade triunfan-
te (32). Por fim a palavra florescer, es-
creve Sloterdjik, significa os momentos
histricos de felicidade nos quais a socia-
bilidade e refinamento (33) se associam,
na tradio grega da leveza, elegncia, po-ltica e graa.
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10 Cf. Giorgio Agamben, Homo Sacer, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002.
11 Cf. Willi Bole (org.), Documentos de Cultura Documentos de Barbrie, So Paulo, Cultrix, 1984.
12 Cf. tambm A Caminho do Planetrio, in Rua de Mo nica,So Paulo, Brasiliense, 1984.
13 Cf. Politische Teologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Ssouveranitt,Berlin, Duncker-Humblot, 1990; Hctor Orestes Aguilar (org.), Carl Schmitt, Teologode la Poltica, Mexico, Fondo de Cultura Econmica, 2001.
14 A. Dymetman, Uma Arquitetura da Indiferena,So Paulo, Perspectiva, 2002, p. 115. Walter Benjamin publica Origem do Drama Barro Alemodosculo XVII em 1928 pois reconhece nesse sculo surpreendentes analogias com o nosso.
15 Se a aliana entre ao poltica e democracia procurava transformar tenses e interesses em conflito no espao pblico em rito, substituindo a violnciafsica pelo confronto verbal, a descrena no exerccio da poltica tomou a classe operria alem, dividida entre o Partido Social-Democrata e o PartidoNacional-Socialista, culminou no domnio do medo: medo que o sdito sente em relao ao poder desmedido daquele que exerce o estado de exceo,e o medo que o prprio soberano tem de, a qualquer momento, ser trado.
16 A. Dymetman, op. cit., p. 146.
17 A atualidade assiste onguenizao da sociedade, s instituies filantrpicas que tomam o lugar vazio deixado pelo absentesmo do Estado, asociedade rumando particularismos polticos.
18 Horkheimer, por sua vez, reconhece tanto no nazismo quanto na sociedade estadunidense o advento de formas delinqenciais de vida social, entendidaa partir da fragmentao poltica e da desregulamentao da vida pblica que toma a figura do racketcriminal e econmico. O modelo dos rackets(gngsteres, cliques) presentifica-se na sociedade de dominao ps-burguesa. Os lderes do rackets negociam interesses privados, particulares erigidosem interesses universais. Tais grupos caracterizam-se por negligncia ou completa rejeio dos sistemas formais da Lei. Particularistas, exigem lealdadedaqueles aceitos no grupo e recebem proteo. Existem os rackets econmicos, polticos, empresariais, acadmicos, artsticos, etc.A teoria dos rackets, para Horkheimer, mais adequada para compreender o mundo contemporneo que a teoria das classes de Marx: em vez da ditadura do proletariado,Horkheimer temeu um outro fim para a sociedade burguesa: ela recai na barbrie, em que a mediao economicamente mediada da classe capitalistaannima substituda pela dominao imediata de fortes camarilhas que estruturalmente assemelham-se ao Racket[].Os exemplos de trnsitosrecprocos de Estado e gangue de rackets so legies e, na verdade, no apenas na Amrica Latina; na Itlia o compromisso histrico entre Estadoe mfia evocou a mais recente crise de Estado. E nos pases do liquidado socialismo de Estado, os rackets esto apenas no comeo de uma carreiraabrupta (Cristoph Trcke e Gerhard Bolte, Einfhrung in die Kritische Theorie, p. 51, apud Rafael Cordeiro da Silva, in A Percepo da Barbrie:Construo e Desmoronamento da Teoria Crtica de Max Horkheimer,doutorado no Depto. de Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2002, p. 105).
19 Nesse horizonte, as massas, ao contrrio do que pensava Rosa Luxemburgo em sua militncia revolucionria contra a guerra, apoiavam a guerra,revelando-se mais apegadas ao nativismo que democracia.
20 W. Benjamin, O Surrealismo, in Pensadores,So Paulo, Abril Cultural, 1978.
21 W. Benjamin, como Adorno, Horkheimer e Marcuse, reflete sobre a cultura cientfica prpria a nosso tempo, bem antes de se constituir como ideologiade Estado. Cf. Benjamin, Documentos de Cultura, Documentos de Barbrie,op. cit.; Horkheimer, Eclipse da Razo, Lisboa, Labor, 1970; Adorno eHorkheimer,Dialtica do Esclarecimento,Rio de Janeiro, Zahar, 1984; Marcuse, Tecnologia, Guerra e Fascismo, coletnea editada por Douglas Kellner,So Paulo, Unesp, 1999. Assim, o programa nazista de extermnio tnico ou de portadores de doenas mentais constituiu-se como um prolongamentolgico das doutrinas eugnicas que, de incio, nada tinham a ver com judeus ou ciganos, pois prosperaram na Alemanha anterior ao Terceiro Reich.Quanto perseguio da esquerda, comunistas, socialistas e simpatizantes, esta ligava-se angstia sexual e ao medo da contaminao venrea. W.
Reich assim interpreta a proibio de casamento entre alemes e judeus a que correspondia promiscuidade de classes das esquerdas (cf. Psicologiade Massa do Fascismoe Escuta Ze-Ningum,em particular).
22 Reservando ao opositor poltico o lugar do inimigo, ele aquele a que se tem o direito de matar. Recorde-se aqui Foucault e sua influncia no pensamentode Giorgio Agamben. A biopoltica do Estado moderno se arroga o direito de definir quais as vidas desprovidas de valor (cf. M. Foucault, A Microfsicado Poder;G. Agamben, Homo Sacer,op. cit.).
23 No direito romano antigo, Homo sacerera o homem sagrado, aquele que podia sofrer o assassinato, crime impunvel, pois o sagrado era aqueleque se encontrava fora da condio humana. A figura do conspirador, perigoso agitador, inimigo interno ou externo significa, nos escritos de Schmitt,que, na Repblica atual alem (anos 1920), trata-se da falsa transparncia, escreve, pois aquilo que se v no o verdadeiro jogo decisrio quese d atrs dos bastidores, a portas fechadas. A poltica resume-se, pois, relao amigo-inimigo. O inimigo tem que ser eliminado fisicamente (op.cit., p. 131). Esse antagonismo supe derrotar o inimigo seja na oposio religiosa, moral, econmica ou tica. Aqui no se trata de discusso, masde deciso. A soluo schmittiana a ditadura; em uma democracia, ao contrrio, o adversrio poltico deve ser combatido politicamente e noperseguido, assassinado.
24 Origem do Drama Barroco Alemo,de W. Benjamin, publicado no ano de 1928, ano da hiperinflao, do desemprego e da ascenso do nazismo.A repblica nasce no assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, nunca averiguados. Razo pela qual o filsofo encontra extraordinriassemelhanas entre o palco barroco e a contemporaneidade: traies, assassinatos, guerras, runas, promovidos pelos poderosos; passividade, impotncia
e indiferena por parte dos governados. Referindo-se Escola de Frankfurt e a Horkheimer, Annie Dymetman observa: Horkheimer acrescenta uma novadimenso ao primado poltico da anlise do nazismo, o ethos tecnolgico, aquele que se utiliza permanente e ininterruptamente do terror e da coero.Cada vez mais interessado na racionalizao tecnolgica enquanto imperativo cultural, Horkheimer v nos mecanismos psicossociolgicos a garantiade submisso s fontes de violncia (Uma Arquitetura da Indiferena,op. cit., 2002, p. 38).
25 Apud Paulo Eduardo Arantes, in Geocultura e Geopoltica do Novo Sistema Imperial, in O Esprito de Porto Alegre, So Paulo, Unesp, 2002 (II FrumSocial Mundial de Porto Alegre, 3 de fevereiro de 2001).
26 A historiografia fala de contra-revoluo federalista.
27 Cf. La Comptitiom des Bonnes Nouvelles: Nietzsche vangeliste, trad. Olivier Mannnoni, Paris,Mille et Une Nuits, 2002.
28 Cf. H. Broch, Massenwahntheorie,Frankfurt, 1979; Jean-Pierre Dupuy, La Panique,Paris, 1991.
29 Deve-se lembrar que o estado de guerra permanente deve-se ao estgio atual da superacumulao capitalista, considerando-se que o petrleo, diferenada produo ilimitada das demais mercadorias, um bem fssil, finito, de onde todos os pases que tm sua economia baseada nele terem uma vidapoltica instvel, dados os interesses dos pases hegemnicos.
30Cf Autoritrer Staat,Amsterdam, Munter, 1967.31 Christien Meier, Poltica e Graa, Braslia, UnB, 1997, pp. 81-2.
32 Cf. Schiller apud Christien Meier, op. cit., p. 90.
33 Sloterdjik, No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica,op. cit.