Monografia Oficial Rafael.pdf

110
5/21/2018 MonografiaOficialRafael.pdf-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/monografia-oficial-rafaelpdf 1/110 1 Universidade de Brasília Faculdade de Direito O INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA E O DIREITO À PRESENÇA DO ACUSADO Rafael de Deus Garcia Brasília - DF 2013

Transcript of Monografia Oficial Rafael.pdf

  • 1

    Universidade de Braslia

    Faculdade de Direito

    O INTERROGATRIO POR VIDEOCONFERNCIA E O DIREITO PRESENA DO

    ACUSADO

    Rafael de Deus Garcia

    Braslia - DF

    2013

  • 2

    Rafael de Deus Garcia

    O INTERROGATRIO POR VIDEOCONFERNCIA E O DIREITO PRESENA DO

    ACUSADO

    Monografia apresentada Faculdade de

    Direito da Universidade de Braslia, como

    requisito parcial para obteno do grau de

    bacharel em Direito.

    Orientador: Evandro Charles Piza Duarte.

    Braslia - DF

    2013

  • 3

    GARCIA, Rafael de Deus.

    O Interrogatrio por Videoconferncia e o Direito Presena do

    Acusado. / Rafael de Deus Garcia Braslia: UnB/Faculdade de Direito, 2013.

    110 f. : il.

    Orientador: Evandro Charles Piza Duarte.

    Monografia (graduao) Universidade de Braslia, Faculdade de Direito, 2013.

    1. Interrogatrio por Videoconferncia. 2. Direito Presena. 3.

    Direito Processual Penal Monografia de Graduao. I. Universidade de Braslia, Faculdade de Direito. II. DUARTE, Evandro C. Piza, orient. III.

    Ttulo.

  • 4

    Folha de Aprovao

    O INTERROGATRIO POR VIDEOCONFERNCIA E O DIREITO PRESENA DO

    ACUSADO

    Rafael de Deus Garcia

    Matrcula: 09/52966

    Monografia apresentada Faculdade de

    Direito da Universidade de Braslia, como

    requisito parcial para obteno do grau de

    bacharel em Direito.

    Orientador: Evandro Charles Piza Duarte.

    Braslia, 01 de maro de 2013

    Banca examinadora:

    Prof. Dr. Evandro Charles Piza Duarte (UnB)

    Orientador

    Profa. Dra. Beatriz Vargas Ramos Gonalves

    de Rezende (UnB)

    Profa. Dra. Camila Cardoso de Mello Prando

    (UnB)

    Prof. Dr. Alexandre Bernardino Costa (UnB) -

    Suplente

  • 5

    Para minha me Cida, para meu pai Z Carlos e para minha irm Fernanda,

    verdadeiros responsveis por todas minhas conquistas.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Posso tranquilamente dizer que os cinco anos de minha graduao foram os mais

    felizes da minha vida. Antes de entrar na UnB, sabia que iria encontrar pessoas incrveis e

    apaixonantes, mas realmente no esperava ter uma vida to rica de bons relacionamentos e

    amizades. Conclu minha graduao com a sensao de que no poderia ter feito um caminho

    melhor. E ciente de que deixo escapar meno a pessoas que foram especiais para mim nestes

    lindos anos (e por isso peo desculpas), agradeo, com todo Amor que posso oferecer, por me

    acompanharem nessa prazerosa jornada que agora chega ao fim.

    Primeiramente, e primordialmente, minha me Cida e ao meu pai Z Carlos por

    tudo que sou e tenho. Devo-lhes a eterna gratido de um filho que espera um dia fazer jus ao

    Amor incondicional que depositam em mim. minha irm Dedei que, por ser a pessoa nesse

    mundo mais prxima de mim, merece no somente minha gratido, mas de todos os deuses.

    minha tia Claudinha, por ser uma voz companheira e de sabedoria na Academia.

    Ao meu querido orientador, Evandro Piza Duarte, presente em cada palavra deste

    trabalho, pela amizade, pela sabedoria, por me mostrar sempre os melhores caminhos e por

    saber tirar sempre a melhor potencialidade de mim. Ao meu mestre Alexandre Bernardino

    Costa, pelas oportunidades e por me mostrar a beleza da docncia. professora Bistra

    Apostolova por me mostrar que o Direito no precisa estar dissociado da arte nem do corao.

    Aos meus amigos e amigas de turma Luisa Anabuki, Gabrielle Fernandes, Juliana

    Atrock e Caio Lacerda, pelos cadernos, pelos sorrisos, pelas viagens, por cuidarem de mim e

    por ser meu melhor motivo para ir faculdade todos esses anos. Gabriela Ponte e ao

    Leonardo Azevedo por, cada um de seu jeito, me ajudarem a lembrar daquele meu lado

    esquecido por mim.

    Lara Parreira, exemplo de dedicao e de afeto, que foi quem estava comigo

    quando vi pela primeira vez a aplicao da videoconferncia. Inexperientes que ramos,

    fomos repreendidos por estar em conversa paralela em plena audincia, o que no acredito

    que teria acontecido se o ru estivesse ali de corpo presente.

    A todas as pessoas do PET, esse grupo maravilhoso, por me mostrarem que no

    existe nada mais gratificante do que a construo coletiva e por dividirem comigo o lado mais

    bonito do Direito.

    Ao Diego Nardi e Sinara Gumieri que, podendo vender sabedoria e inteligncia,

    me deram de graa. Ana Paula Duque por me dar um motivo para sorrir em qualquer

  • 7

    momento. Ao Diego Veloso, irmo de leite, pelos debates e pelo trabalho que dei. Ao Pedro

    Argolo pela coragem de desbravar os caminhos mais obscuros da mente e desta monografia.

    E aos meus amigos Joo Gabriel Lopes, Marcel Fortes e Marcos Vincius

    Queiroz, que, por estarem tanto ao meu lado, construindo e desconstruindo o mundo,

    ganharam lugares especiais na minha gratido e na minha alma.

  • 8

    Quis compreender, quebrando estreis normas,

    A vida fenomnica das Formas,

    Que, iguais a fogos passageiros, luzem...

    E apenas encontrou na ideia gasta,

    O horror dessa mecnica nefasta,

    A que todas as coisas se reduzem!

    Augusto dos Anjos Monlogo de uma sombra

  • 9

    RESUMO

    O presente trabalho uma anlise crtica transdisciplinar sobre o interrogatrio realizado pela

    videoconferncia no processo penal. A partir do levantamento doutrinrio e jurisprudencial,

    verificou-se a necessidade de ampliao do debate a partir de uma comunicao

    transdisciplinar com outras reas do saber. Para tanto, estudou-se como as Novas Tecnologias

    de Comunicao tem atuado na sociedade, ressignificando as concepes de representao e

    de alteridade; que tipo de discursos e racionalidades tem fundamentado a adeso das medidas

    virtuais no processo penal, bem como qual a importncia histrica do habeas corpus na defesa

    dos direitos contra o poder (inclusive biopoltico) estatal. Em sntese, pela reviso de

    literatura, a inteno a de contribuir para o debate trazendo novos elementos para a

    compreenso da complexidade fenomenolgica e discursiva do interrogatrio on-line,

    reafirmando o direito presena como uma forma de garantia dos direitos fundamentais e do

    Estado Democrtico de Direito.

    Palavras-chave: Processo Penal, Interrogatrio, Videoconferncia, Direito Presena.

  • 10

    ABSTRACT

    This study is a transdisciplinary critical analysis on the interrogation conducted by

    videoconferencing in criminal proceedings. The direction taken by researchers and courts

    showed the need to expand the debate from a transdisciplinary communication with other

    areas of knowledge. Therefore, I studied how the new communication technologies have been

    influencing society by giving new meaning to the concepts of representation and otherness;

    what kind of discourses and rationalities sustain adhesion of virtual mechanisms in criminal

    proceedings; and the habeas corpus historical importance as a means of defense against the

    power (including biopolitical) of the state. To sum, the intent is to contribute to the debate by

    bringing new elements for the understanding of the complexity of phenomenological and

    discursive online interrogation, reaffirming the right to be present as a way of guaranteeing

    moral rights and the Rule of Law.

    Key-words: Criminal Proceeding, Interrogation, Videoconferencing, Right to Be Present.

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................................................13

    Apresentao da temtica.....................................................................................................13

    Metodologia e marcos tericos.............................................................................................18

    1. O INTERROGATRIO.....................................................................................................21

    1.1. Interrogatrio como meio de defesa..............................................................................21

    1.2. A lei 10.792/2003. Aproximao Constituio Federal de 1988..............................24

    1.3. A videoconferncia antes da lei 11.900/2009..............................................................25

    1.3.1. Primeiro Momento: A inconstitucionalidade da lei estadual 11.819/2005 So

    Paulo................................................................................................................................26

    1.3.2. Segundo Momento: O habeas corpus 88.914/SP e o questionamento da

    materialidade constitucional da medida..........................................................................26

    1.4. A lei da videoconferncia 11.900/2009. O fim dos debates?.....................................30

    1.5. O posicionamento doutrinrio favorvel videoconferncia........................................33

    2. PARA ALM DA TORRE DE MARFIM. A SIMPLIFICAO E, PORTANTO, A

    NEGLIGNCIA DO DEBATE NA REA JURDICA...................................................38

    2.1. Uma crtica utilizao de termos de sentido aberto....................................................38

    2.2. Do significado de imagem.............................................................................................42

    2.2.1. Da Polissemia da palavra: Imagem como meio ou fim?.......................................42

    2.2.2. O Mundo-Imagem: Para uma compreenso da imagem na sociedade atual.........48

    2.2.3. A percepo do corpo na interao virtual............................................................53

    2.3. Percepo para alm da viso: A importncia do corpo...............................................55

    2.3.1. Fetiche: o olho como mecanismo sensorial dominante.........................................55

    2.3.2. Eros e Sexualidade: Reconhecendo que a existncia se realiza no corpo.............57

    2.3.3. A negao do Outro: Da sociedade imagtica assepsia judiciria......................59

    2.4. Da comunicao no-verbal..........................................................................................62

    2.5. Ignorando Merleau-Ponty? Ou como nos relacionamos com o mundo..............64

    2.5.1. Corpo, carne e objeto: O corpo como ponto de partida para a percepo.............66

    2.5.2. Horizonte e Perspectiva na explorao de objetos................................................67

    3. O DESENCONTRO EPISTEMOLGICO E O ENCONTRO COM O MONSTRO.70

    3.1. A lgica utilitarista.......................................................................................................70

    3.2. Neoliberalismo e eficientismo penal.............................................................................72

    3.3. Racionalidade Burocrtica e Exceo...........................................................................75

  • 12

    3.4. Distanciamento tico e o encontro com o Monstro.......................................................80

    4. HABEAS CORPUS SIGNIFICADO HISTRICO E A IMPORTNCIA DO

    DIREITO PRESENA CORPREA..............................................................................85

    4.1. A Origem.......................................................................................................................85

    4.1.1. O interdito romano Homine Libero Exhibendo.....................................................85

    4.1.2. A Magna Carta.......................................................................................................87

    4.1.3. Habeas Corpus Acts..............................................................................................88

    4.2. Significado de Corpus..................................................................................................90

    4.3. Corpus atrs da tela. O segredo das prises..................................................................93

    4.4. A formao Poltico-Jurdica do habeas corpus no Brasil............................................94

    4.5. Habeas corpus: o direito presena corprea como garantia da liberdade e do

    exerccio de defesa...............................................................................................................98

    CONCLUSO..................,,,,.................................................................................................100

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................104

  • 13

    INTRODUO

    Apresentao da temtica

    Conversando com meu querido orientador sobre os possveis temas da minha

    monografia, o professor Evandro Piza Duarte, sempre muito perceptivo, sugeriu o tema da

    videoconferncia no processo penal. Acolhi a proposta com entusiasmo.

    Aceitei prontamente porque a temtica da videoconferncia, motivo de importante

    debate doutrinrio e jurisprudencial, une tanto a questo do olhar quanto a questo do corpo.

    E para mim, membro do PET1, um grupo que procura reconstruir a importncia do corpo no

    Direito atravs do teatro, aprendi a no o menosprezar justamente por ser o mais significativo

    instrumento humano na representao do eu no mundo.

    No corpo se manifesta desde a menos evidente insegurana juvenil at o mais

    efetivo controle (bio)poltico. A libertao das subjetividades, a livre manifestao do ser no

    mundo, se d primeiramente e primordialmente pelo corpo. Dele no se deve subestimar. Dele

    no se pode fazer economia, devendo ser tido como instrumento poltico por essncia, pois a

    partir dele que a liberdade e os direitos efetivamente atuam.

    Se vendedores ainda preferem trabalhar no corpo a corpo, se os advogados ainda

    no se submetem a realizar as defesas orais pela tela, se a vibrao de um espetculo de teatro

    ainda no se substitui pela frieza das imagens; no podemos aceitar o interrogatrio (um dos

    principais instrumentos de defesa) on-line como um instrumento processual banal, fechando

    os olhos para a complexidade fenomenolgica das interconexes corporais, que ainda se

    mantm um verdadeiro mistrio para as grandes reas do saber.

    E no s o corpo que se esvai na virtualidade da videoconferncia. Tambm o

    olhar se transforma completamente, tanto para o juiz que v a imagem do ru, como para este,

    que visita a Justia pela tela, ainda ambientado pelo tom do presdio.

    Pois o olho no s v, ele v como. O olhar condiciona-se necessariamente ao

    meio, tanto ao corpo que olha como por onde olha. Sequer existe o ato de olhar sem estar

    necessariamente vinculado ao ato de interpretar. J advertia SARTRE, no h, no poderia

    haver imagens na conscincia. Mas a imagem um tipo de conscincia (2008, p. 137). Se

    acreditarmos que o olho mero receptor, ignoramos a ns mesmos como indivduos nicos,

    biologicamente distintos e com todo um aparato psquico contextualizado, atrelado

    1 Programa de Educao Tutorial em Direito da Universidade de Braslia.

  • 14

    inexoravelmente s nossas experincias passadas, que constituem nosso ser. como ensina

    Oliver SACKS,

    os processos perceptivos-cognitivos, enquanto fisiolgicos, tambm so

    pessoais no se trata de um mundo que a pessoa percebe e constri, mas de seu prprio mundo -, e levam a, esto ligados a, um eu perceptivo, com

    uma vontade, uma orientao e um estilo prprios. Esse eu perceptivo pode

    sucumbir com a paralisao de sistemas perceptivos, alterando a orientao

    e a prpria identidade do indivduo (SACKS, 2006, p. 139).

    Ento, se Nossa percepo chega a objetos, e o objeto, uma vez constitudo,

    aparece como a razo de todas as experincias que dele tivemos ou que dele poderamos ter

    (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 104), como a percepo e a experincia que um ru tem de

    uma Justia que visitada s virtualmente?

    O que significa a substituio do corpo material por sua representao na tela em

    um mundo onde a imagem se sobressai quilo que deveria representar, a ponto de a imagem

    ter sentido prprio e independente? Que significados pode ter a imagem em mundo em que

    dependemos cada vez mais de relaes exclusivamente visuais, e como isso pode significar

    uma alterao de ordem tica na relao com os outros?

    No filme Videodrome, de Cronemberg, o personagem estabelece uma relao

    orgnica com as imagens na tela, no conseguindo mais distinguir situaes de realidade,

    confundindo o mundo possvel das imagens com sua realidade corprea. Ao fim, chamado a

    se misturar definitivamente, devendo extirpar-se da materialidade do seu corpo.

    To become the new flesh, you first have to kill the old flesh. Dont be afraid.

    Dont be afraid to let your body die2. O corpo do ru, transformado de flesh em flash, um

    corpo morto. Sua presena prescindvel em seu prprio julgamento. Basta seu reflexo no

    2D, transformado em incontveis pixels, sem profundidade nem relevo. Sem humanidade.

    Se no atentarmos para o corpo dos seres humanos, certamente nossas

    pregaes de respeito aos direitos humanos, de liberdade e reconhecimento,

    morrero no nascedouro, pois a elas falta a dimenso originria, que a do

    reconhecimento da corporeidade, que em suas relaes recprocas d a base

    para outros patamares de construo social da liberdade e da conscincia

    (AGUIAR, 2000, p. 257).

    A voz, que j no sai mais pela boca, transmitida digitalmente por um aparelho

    que modifica invariavelmente suas microvibraes, tirando a possibilidade de sentir,

    principalmente no mbito do nosso inconsciente, a carga emocional da fala do outro, seja uma

    angstia, uma insegurana, uma certeza, um arrependimento. O juiz, insensibilizado diante

    dessa figura robotizada, garantir novo nome alteridade e, por consequncia, Justia.

    2 Para se tornar a nova carne, voc dever primeiro matar a antiga carne. No tenha medo. No tenha medo de

    deixar seu corpo morrer. (Traduo livre)

  • 15

    No podemos nos esquecer das consequncias ticas de uma cincia que se

    submeteu lgica de sua tcnica, que maximizou o afastamento emptico e permitiu

    verdadeiros massacres e destruies. No deveria a videoconferncia ser considerada como

    um possvel mecanismo de distanciamento tico, o qual pode dar margem para que o juiz

    possa proferir sentenas sem medir com a humanidade devida suas consequncias efetivas?

    Se h algo que se pode aprender com a histria recente da humanidade de que a

    relao com o Outro inescapvel. O Outro no pode ser ignorado, e trat-lo por nmeros ou

    por botes apenas escond-lo onde no queremos enxerg-lo. Do Outro no h escapatria,

    e se me recuso a aceitar essa relao, o preo a mutilao, a desconsiderao das

    subjetividades rumo homogeneidade totalizante.

    Instrumento tico que , a videoconferncia significa uma transformao

    inquestionvel na comunicao. Se o meio de dilogo muda, tambm o prprio dilogo muda.

    A linguagem j no a mesma. Na videoconferncia, olha-se para um olho que no responde,

    e nem tem como responder. Olha-se, antes de qualquer coisa, para a tela ou para a cmera,

    fazendo do encontro olho-no-olho algo impossvel. Seria possvel no reconhecer a diferena

    de se dialogar olho no olho?

    Na videoconferncia, o poder comunicativo do corpo diminudo, e quando

    observamos quem a medida procura alcanar (grupos vulnerveis pr-condenados), fica

    evidente sua condio biopoltica. Colocar o corpo para alm da tela um mecanismo de

    controle biopoltico na medida em que limita a potncia do corpo e do olhar enquanto

    linguagem, enquanto expresso. Nesse sentido, sobre os mistrios da linguagem, ensina

    MERLEAU-PONTY (2006).

    preciso reconhecer ento essa potncia aberta e indefinida de significar quer dizer, ao mesmo tempo de apreender e de comunicar um sentido como um fato ltimo pelo qual o homem se transcende em direo a um

    comportamento novo, ou em direo ao outro, ou em direo ao seu prprio

    pensamento, atravs de seu corpo e de sua fala (MERLEAU-PONTY, 2006,

    p. 263).

    Fala-se aqui do interrogatrio. O interrogatrio, antes de ser visto em seu contexto

    processual, o dilogo entre duas pessoas para que uma possa dar sua verso sobre

    determinados fatos outra. Trata-se, portanto, da mais imediata e inescapvel alteridade.

    Verso dos fatos tambm a verso da verdade. Como genialmente colocou

    Carlos Drummond de Andrade (em seu poema Verdade), sequer adiantou arrebentar a porta

    da verdade, pois l se descobriu que ela Era dividida em metades diferentes uma da outra, e

    cada um, sobre ela, optou conforme seu capricho, sua iluso, sua miopia. A poesia coloca

    de forma retrica o que a epistemologia tenta nos ensinar. como KUHN (2006) ensina:

  • 16

    Sero as teorias simples interpretaes humanas de determinados dados? A

    perspectiva epistemolgica que mais frequentemente guiou a filosofia

    ocidental durante trs sculos impe um sim! imediato e inequvoco. Na ausncia de uma teoria j desenvolvida, considero impossvel abandonar

    inteiramente essa perspectiva. Todavia ela j no funciona efetivamente e as

    tentativas para faz-la funcionar por meio da introduo de uma linguagem

    neutra parecem-me agora sem esperana (KUHN, 2006, 164).

    Ora, se nem as mais complexas teorias cientficas, com seus mtodos rigorosos,

    podem ter a pretenso da neutralidade, porque considerar a comunicao virtual em tela como

    mero mecanismo intermedirio e neutro? Outro efeito igualmente importante do contexto da

    ao burocrtica a desumanizao dos objetos da operao burocrtica, a possibilidade de

    express-los em termos puramente tcnicos, eticamente neutros (BAUMAN, 1998, p. 126).

    A consequncia de se desconsiderar eticamente os instrumentos burocrticos, tal

    como a medida da videoconferncia, a reduo da alteridade insensibilizao por eles

    causada. Nesse processo de considerao do Outro enquanto um ser desumanizado, perdido

    nos nmeros e nas categorias pr-definidas por uma racionalidade burocrtica que est a

    semente dos estados totalitrios.

    O ru tem no seu interrogatrio seu momento de defesa por excelncia. a partir

    desse contato direto com seu julgador que ele dar sua verso dos fatos, justificar sua

    conduta, confrontar testemunhas e acusao. o momento que ele tem se mostrar eloquente,

    de convencer, de fazer acreditar. No h suporte para tamanha responsabilidade com a

    videoconferncia.

    Ao se considerar as prticas rotineiras do sistema de Justia Criminal, percebe-se

    um esquema geral de tratamento dos provveis condenados. Esse ru, j preso, j colocado

    sob o estigma da alta periculosidade, tem no interrogatrio no somente a oportunidade de dar

    sua verso, mas de mostrar-se como ser real, como sujeito de direitos que sente na carne as

    mazelas da pena. Escondido atrs da tela, razo de insensibilizao e impessoalidade, o preso

    ter reduzidos os instrumentos de reivindicao de direitos. Direitos estes que vo desde a

    ampla defesa, como o de ter a oportunidade de denunciar ao juzo possveis violaes que

    sofre na carceragem.

    As telas so capazes de mostrar os sintomas de agresses, seja o da perna manca

    ou o hematoma? Como se sentir confortvel em denunciar o agente que se mantm ali, ao

    seu lado? Sentir que est no momento mais importante de sua defesa, ou sentir apenas a

    rotina de sua pena?

  • 17

    A discricionariedade policial e as pssimas condies das penitencirias so uma

    infeliz realidade no Brasil. Nesse contexto poltico de excluso e negligncia jurdica, qual o

    papel da videoconferncia? Seria a medida realmente uma garantidora de direitos ou apenas

    mais um instrumento para um poder estatal mais repressor? Teremos uma Justia que de fato

    sente a presena real dos sujeitos de direitos ou teremos uma Justia que se insensibiliza

    diante da imagem fria da tela?

    No difcil fazer uma ponte com o romance 1984, de George Orwell, no qual o

    Grande Irmo, lder poltico que comanda um regime totalitrio, se comunica com seus

    sditos (camaradas) somente pela tela. por meio dela que se cria uma relao de

    ostentao e idolatria para com o grande lder, o que se vincula necessariamente com a

    distncia decorrente de uma comunicao determinada por sua condio imagtica. Nessa

    comunicao, no somente se permite a adorao do ditador, como se permite tambm que os

    sujeitos sejam desconsiderados em subjetividade e em individualidade, perdendo-se na

    homogeneidade imposta por um modelo de sociedade autoritria e hierrquica.

    Por isso importante perguntar-se que tipo de relao se estabelece a partir de um

    mecanismo virtual. Com a videoconferncia, como o ru observar o judicirio? Sem visit-lo

    presencialmente, no estaria apenas contribuindo para sensao de uma Justia distante e

    inatingvel, cujo valor reduzido ainda mais frente ao sistema prisional? Do outro lado, como

    o juiz observar o ru? A presena fsica do ru, aos sentidos do juiz, pode ser substituda sem

    prejuzos pelo ligar e desligar da tela, ou isso pode significar apenas mais um elemento de

    distanciamento tico para com o outro?

    Questionava PLATO (2004, p. 226) como seria a realidade aos seres humanos

    da caverna que viam o mundo somente pala silhueta nas paredes. Aqui, problematiza-se como

    se d a percepo de um judicirio no presenciado, mas apenas observado em tela. Da

    mesma forma o juiz, que no mais sente a presena corprea dos rus que sentencia.

    Lembrando que a palavra sentena vem do gerndio do verbo sentire, questiono

    as possveis consequncias de um judicirio cujas sentenas so proferidas na ausncia (ou na

    alterao) do sentir-o-outro. Busco compreender que funes pode exercer um judicirio que

    cada vez mais afasta os sujeitos, e como a medida da videoconferncia deve ser analisada em

    um Estado Democrtico de Direito que tem no processo penal o instrumento garantidor das

    liberdades contra os Estados totalitrios como o descrito em 1984.

  • 18

    Metodologia e marcos tericos.

    A metodologia adotada neste estudo foi a reviso de literatura sobre matrias

    concernentes temtica da videoconferncia, com o objetivo principal de contribuir para o

    debate jurdico a partir da transdisciplinaridade, da comunicao entre diversas reas do saber,

    partindo da compreenso de que somente assim se pode entender a complexidade

    fenomenolgica do interrogatrio on-line.

    Este trabalho monogrfico, nesse sentido, tem a pretenso de responder algumas

    das questes acima colocadas. De demonstrar aos juristas a importncia de um corpo por

    muito esquecido e reificado nos discursos da modernidade. Sob os dogmas da celeridade e do

    baixo custo, as subjetividades so cada vez mais reduzidas ao tamanho dos pixels que

    desempenham o papel de representar o mundo.

    Este estudo nasce da vontade de ver o ator jurdico dar a mesma importncia ao

    corpo que o ator teatral. Procurou-se, portanto, ter a conscincia de que foi na dor corporal

    que se sentiu os pesares dos campos de concentrao, cuja possibilidade foi iniciada

    justamente pela incapacidade de se olhar para o Outro como um elemento igualmente vivo,

    mas como uma individualidade reduzvel e estigmatizada.

    Dessa forma, observando que o debate jurdico acerca do tema carecia de dilogo

    com outras reas do saber, tais como a filosofia e a psicologia, a metodologia escolhida foi a

    reviso de literatura, com o objetivo de contribuir discusso tentando trazer mais elementos

    de complexidade (MORIN, 2007, p. 6) temtica.

    Dessa maneira, no primeiro captulo, levantou-se o caminho trilhado pela

    doutrina, pelo legislativo e pela jurisprudncia sobre a constitucionalidade e legalidade da

    medida. Pela anlise do perodo que corresponde ao incio da aplicao da medida no Estado

    de So Paulo em 1996, passando pela edio da lei da videoconferncia em 2009 at os dias

    atuais, fica evidente que o dissenso doutrinrio e jurisprudencial est distante de um fim

    definitivo e sereno. Ao contrrio, o interrogatrio on-line marcado por uma profcua e

    intensa polmica, justificando a necessidade e a relevncia da pesquisa.

    Nesse levantamento, deu-se enfoque argumentao favorvel medida. Isso se

    justifica porque a partir dela que se evidenciou a necessidade de trazer elementos novos

    discusso. O que se prope, portanto, destacar que a Justia Criminal atua sobre um corpo

    vivo. Procura-se atingir esse objetivo a partir da contextualizao do debate jurdico com

    outras reas do saber, pois, de fato, elas so preteridas na argumentao da doutrina

    majoritria.

  • 19

    A partir dessa compreenso, no segundo captulo, foi vlida a contribuio de

    autores como J. L. Austin, filsofo da linguagem, com o objetivo de atentar para os perigos

    dos labirintos terminolgicos atinentes temtica, em que figura muito comum a utilizao de

    palavras de contedo fluido e indeterminado, como real, virtual, direto, indireto, imagem.

    Com autores como Paul Virilio, terico cultural, foi possvel trazer uma

    compreenso mais abrangente sobre o significado de imagem e de um mundo em que as

    representaes acabam sendo mais determinantes nas relaes interpessoais do que a coisa

    representada.

    Para esta crtica, destacou-se a contribuio do filsofo Merleau-Ponty, cuja obra

    Fenomenologia da Percepo (2006) tida por muitos como um dos mais importantes

    trabalhos sobre a percepo e o significado do corpo enquanto mecanismo sensorial.

    Contudo, diante dos estudos de Merleau-Ponty, mais especificamente na

    considerao do corpo como ser sexuado (captulo V da primeira parte de Fenomenologia da

    Percepo), vi-me obrigado a entrar na rea da psicanlise, que tangenciei com a ajuda, em

    especial, de Herbert Marcuse (A transformao da sexualidade em Eros, captulo 10 de Eros e

    Civilizao), Marcia Tiburi e Freud (Mal-Estar na civilizao).

    O objetivo foi o de apresentar consideraes da psicologia a respeito da

    linguagem no-verbal. A escolha se deve ao fato de que, na videoconferncia, comum o

    argumento de que se pode perfeitamente ouvir a fala do interlocutor sem prejuzos, como se

    tal fato fosse suficiente para justificar a medida. Nesse sentido, a psicologia fornece elementos

    de anlise para demonstrar que o prprio ambiente influencia nos nimos dos dialogantes, de

    modo que estando o ru no presdio e o juiz na sala de audincia, sequer h o

    compartilhamento desse nimo, o que evidencia mais uma forma de distanciamento entre eles.

    O segundo captulo, portanto, uma crtica inicial que tem o intuito de mostrar

    como o debate jurdico sobre o interrogatrio on-line negligente quanto sua verdadeira

    complexidade, e busca trazer elementos novos, ou pelos menos de uma nova maneira, para a

    discusso acadmica.

    No terceiro captulo, buscou-se identificar quais discursos fundamentam os

    argumentos que insistem na defesa de um modelo de Judicirio cuja eficincia se mede mais

    pela celeridade e pelo baixo custo, do que pela qualidade da prestao jurisdicional. Inserido

    no paradigma3 da modernidade, no difcil observar que tais argumentos se orientam em

    uma lgica utilitarista, incoerente com as disposies da ordem constitucional atual.

    3 Paradigma foi aqui utilizado no sentido dado por Thomas KUHN, em A Estrutura das Revolues Cientficas

    (2006).

  • 20

    Nesse sentido, analisou-se em que medida o discurso da defesa social acoplado ao

    neoliberalismo, normalmente associado diminuio do estado de assistncia e ao aumento

    do Estado punitivista e policialesco, contribui para a construo do sujeito enquanto monstro,

    enquanto inimigo do corpo social.

    A partir da anlise de um discurso que constri o Outro de maneira desumanizada,

    retomou-se os perigos da aplicao de uma racionalidade burocrtica (BAUMAN, 1998) que

    desqualifica os sujeitos enquanto seres humanos. O que possibilita o desenvolvimento de um

    verdadeiro estado de exceo (AGAMBEN, 2010), visto de forma concreta em nossa histria

    recente nos campos de concentrao nazistas, que dependiam intrinsecamente dessa mesma

    ideologia reificadora que hoje se utiliza para aplicao do sistema de videoconferncia.

    Diante do distanciamento tico decorrente de todo esse aparato ideolgico,

    procurou-se, mais especificamente em Lvinas, compreender a relao tica com o Outro4, na

    concepo de que a alteridade e a abertura para com o Outro condio necessria e

    inescapvel da justia.

    Isso se justifica porque o contato com o Outro pelos instrumentos tecnolgicos,

    aplicados na condio de o ru j estar qualificado como altamente perigoso, podem servir

    como um elemento potencializador desse distanciamento tico. Posiciona-se dessa forma por

    considerar que tambm as tecnologias, bem como a cincia, devem ser contextualizadas

    eticamente, sem incorrer na crena de dissociao completa entre meios e fins, entre moral e

    os instrumentos burocrticos (BAUMAN, 1998, p. 187), uma vez que estes cumprem a

    funo de intermediar relaes humanas efetivas.

    Por fim, no quarto captulo, retomando a origem do habeas corpus, no qual a

    presena do corpo era condio fundamental para a garantia do direito violado, entendeu-se

    que o writ apresenta-se, na histria do Direito, como o instrumento de limitao dos abusos de

    um sistema inquisitorial, invocando a presena do corpo diante do juzo como meio de

    garantia para a defesa contra ilegalidades.

    4 Optei por escrever Outro ora com maiscula, ora com minscula, a depender do sentido que pretendi usar.

    No minsculo, trata-se de um termo mais genrico, assemelhvel a indivduo ou pessoa. No maisculo, aproximando-se da compreenso de Lvinas (vide item 3.4), como aquele que garante significado alteridade,

    aquele que est sempre alm e fora de mim (Lvinas apud POIRI, 2007, p. 22) e, por isso, me questiona.

  • 21

    CAPTULO 1. O INTERROGATRIO.

    A Ideia

    (Augusto dos Anjos)

    De onde ela vem?! De que matria bruta

    Vem essa luz que sobre as nebulosas

    Cai de incgnitas criptas misteriosas

    Como as estalactites duma gruta?!

    Vem da psicogentica e alta luta

    Do feixe de molculas nervosas,

    Que, em desintegraes maravilhosas,

    Delibera, e depois, quer e executa!

    Vem do encfalo absconso que a constringe,

    Chega em seguida s cordas do laringe,

    Tsica, tnue, mnima, raqutica ...

    Quebra a fora centrpeta que a amarra,

    Mas, de repente, e quase morta, esbarra

    No mulambo da lngua paraltica.

    1.1. Interrogatrio como meio de defesa

    O artigo 5 da Constituio Federal de 1988, no inciso LXIII, garante ao preso o

    direito de permanecer calado e, de acordo com os preceitos constitucionais atinentes, esse

    silncio no pode ser interpretado contra o ru, sob pena de nos submetermos lgica de

    processo inquisitrio.

    O direito ao silncio se vale apenas como uma manifestao de outra garantia

    mais ampla, a do princpio do nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo no

    pode sofrer nenhum prejuzo jurdico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatria

    da acusao ou por exercer seu direito de silncio quando do interrogatrio (LOPES JR,

    2011, p. 625).

    A partir do nemo tenetur se detegere, FERRAJOLI aponta uma srie de

    corolrios: a) o fim do juramento do acusado; b) o direito ao silncio e tambm o direito de

    responder o falso; c) A proibio de se arrancar a confisso, seja por violncia fsica ou por

    manipulao psicolgica, a fim de se respeitar a integridade fsica e a inviolabilidade da

    conscincia; d) a negao ao papel decisivo da confisso, seja pela refutao de outras provas

    por outra situao de direito; e) o direito presena do defensor, de modo a impedir abusos ou

    violaes das garantias processuais (FERRAJOLI, 2010, p. 560).

    Esse princpio confere importncia basilar ao sistema democrtico. Dele surge a

    garantia da no produo de prova contra si mesmo, ou seja, trata-se de um direito que

  • 22

    impede a autoridade pblica de obrigar ou coagir o acusado de fornecer informaes que

    possam prejudic-lo e incrimin-lo.

    Nesse contexto, o interrogatrio, realizado de forma livre e espontnea, sem

    coaes ou obrigaes, no pode ser utilizado como meio de prova incriminadora, embora

    possa constituir fonte de prova, de modo que at mesmo a confisso dever ser corroborada

    por outros elementos do conjunto probatrio (LOPES JR., 2011, p. 622). possvel, portanto,

    que o ru, se de forma livre e desimpedida, conceda informaes que ajudem na constituio

    de provas, mas os fatos alegados em sede de interrogatrio devem sempre ser tidos sob o

    ponto de vista defensivo, partindo-se da presuno de inocncia, atinente ao artigo 5, inciso

    LVII, da CF/88, pelo qual ningum ser considerado culpado at o trnsito em julgado de

    sentena penal condenatria.

    Dessa forma, a infrutfera discusso sobre a natureza jurdica do interrogatrio

    no sentido de consider-lo essencialmente como meio de defesa, embora no deva ser negado

    seu valor probante na medida em que contribui para as apreenses do julgador na hora da

    sentena (LOPES JR., 2011, p. 622).

    A disciplina do interrogatrio no Direito Brasileiro passou por transformaes

    aps a CF/88. Nesse sentido, o Cdigo de Processo Penal (CPP), em seu artigo 400, includo

    pela Lei n 11.719/2008, j em coerncia com a Constituio em considerar o interrogatrio

    como meio de defesa, o colocou como o ltimo dos atos da audincia. E de forma diversa no

    poderia ser, pois esse o momento em que o ru deve se manifestar e se defender, aps as

    disposies colocadas pela acusao e testemunhas.

    Como sustenta FERRAJOLI,

    no interrogatrio que se manifestam e se aferem as diferenas mais

    profundas entre mtodo inquisitrio e mtodo acusatrio.

    (...)

    no modelo garantista do processo acusatrio, informado pela presuno de

    inocncia, o interrogatrio o principal meio de defesa, tendo a nica

    funo de dar vida materialmente ao contraditrio e permitir ao imputado

    contestar a acusao ou apresentar argumentos para se justificar

    (FERRAJOLI, 2010, pp. 559 e 560).

    O interrogatrio do acusado corresponde garantia da autodefesa decorrente da

    ampla defesa constitucional (SCARANCE FERNANDES, 2012, p. 265). Embora

    renuncivel, a autodefesa o direito exercido pelo prprio ru, somando-se defesa tcnica

    para constituio da ampla defesa. Ensina SCARANCE FERNANDES que

    Esse direito se manifesta no processo de vrias formas: direito de audincia,

    direito de presena, direito de postular pessoalmente.

    (...)

  • 23

    O direito de audincia consiste no direito do acusado a, pessoalmente,

    apresentar ao juiz da causa a sua defesa.

    (...)

    A segunda garantia da autodefesa o direito de presena, por meio do qual

    se assegura ao acusado a oportunidade de, ao lado de seu defensor,

    acompanhar os atos de instruo, auxiliando-o na realizao da defesa.

    (SCARANCE FERNANDES, 2012, pp. 265-6) [grifei].

    O interrogatrio , portanto, a manifestao mais importante para a autodefesa no

    processo penal. a oportunidade nica que o ru tem de confrontar diretamente as

    informaes contra ele impostas pela acusao e pelas testemunhas. a situao no processo

    em que o ru dirige-se diretamente na presena de seu julgador para expor-lhe seus

    argumentos e sua verso dos fatos, bem como de ter acesso aos autos e de acompanhar os atos

    processuais ao lado de seu defensor, o que impossibilitado pela medida da videoconferncia.

    Trata-se do momento em que o ru pode fazer uso da sua voz e mostrar-se como

    um ser real diante da Justia. Quase sempre como um terceiro, embora sendo o protagonista, o

    ru ouvido pela boca do Ministrio Pblico e pelo seu advogado, ficando essencialmente na

    posio de ouvinte em seu prprio processo.

    Incomodado com a situao de ser colocado margem de seu prprio processo,

    Meurseault, personagem de Albert Camus no romance O Estrangeiro, que responde por ter

    matado um rabe, no se reconhece na histria contada pelo promotor ou pelo seu advogado,

    sendo inclusive proibido de pronunciar-se ou de dar sua verso. Mas a mim parecia-me que

    me afastavam ainda mais do caso, reduziam-me a zero e, de certa forma, substituam-me

    (CAMUS, 2010, p. 95). Afastado, impedido de manifestar-se com palavras e com o corpo,

    transformou-se em leitor de sua prpria histria.

    Ora, como possvel a sentena, que dever modificar substancialmente a vida de

    algum, ser proferida sem que essa pessoa se manifeste? E mais, sem que essa pessoa se

    manifeste da melhor forma e condies possveis. No pode o judicirio processar algum e

    submeter essa pessoa aos pesares da indiferena e da insensibilidade, condenando-o

    previamente a ser estrangeiro de sua prpria histria.

    O interrogatrio tanto o momento em que o judicirio contata diretamente o ru

    quanto o momento em que este sente o judicirio. Sua presena sentida e sua voz ouvida,

    saindo do papel e do nmero dos autos para se mostrar como um ser vivo. E tambm o ru,

    saindo da penitenciria para seu julgamento, v no interrogatrio a oportunidade derradeira de

    esclarecer e de convencer o juiz.

    Qualquer economia desse momento, pilar no direito de defesa, um risco

    prpria democracia, seria reconhecer a inutilidade da defesa no julgamento. Da sua

  • 24

    importncia, portanto, emerge o dever de cuidado, no podendo ser tratado como mero

    procedimento formal. Seria reconhecer que o contato entre julgador e ru um fenmeno

    carente de complexidade ou at dispensvel, no considerando todos os elementos

    psicolgicos pertinentes.

    O juiz, reconhecendo a importncia de se estar aberto s sensaes sobre a pessoa

    que vai sentenciar, colhendo suas vibraes de forma inalienvel, no pode fazer economia

    desse instrumento de defesa. O julgador est submetido a infinitas maneiras de apreenso do

    outro, e a prpria alteridade que est em questo. No reconhecer a importncia desse

    dilogo e contato direto desconsiderar todos os aspectos de ordem fenomenolgica e

    psicolgica, tanto consciente como inconsciente. A complexidade dos sujeitos, principalmente

    no procedimento criminal, no pode ser reduzida a ponto de consider-los como mero objeto,

    reificados e desumanizados.

    Diante disso, questiona-se o uso de algemas e at da vestimenta de presidirio. O

    cenrio montado na audincia, onde o preso em vestes especiais entra algemado e sob

    vigilncia de pelo menos dois agentes armados, significa toda uma simbologia que vai de

    encontro com a presuno de inocncia. O instituto constitucional deve ser levado para alm

    do papel em que est escrito, mas para a realidade do judicirio, que deve reconhecer a

    influncia dessa simbologia na hora da sentena.

    Considerando toda essa complexidade fenomenolgica, a videoconferncia insere-

    se como mais um elemento de distanciamento, deslocando a alteridade para o nvel da

    virtualidade, cujas consequncias no podem ser negadas.

    Contudo, entrando nessa questo mais especificamente no segundo captulo, as

    prximas pginas se destinam a um esclarecimento mnimo sobre o caminho traado pelo

    legislativo, pela jurisprudncia e pela doutrina a respeito do interrogatrio efetuado por meio

    da videoconferncia.

    1.2. A lei 10.792/2003. Aproximao Constituio Federal de 1988

    A lei 10.792/03 alterou o Cdigo de Processo Penal no que tange ao

    interrogatrio, revogando os artigos de 185 a 196. As novas inseres se aproximaram do

    sistema acusatrio e da lgica atinente Constituio Federal de 1988.

    No modelo anterior, marcantemente inquisitorial, o CPP no previa a presena

    necessria do defensor e o ru era advertido de que seu silncio poderia ser utilizado contra

    sua prpria defesa, constituindo o interrogatrio ainda como a busca da confisso, sendo

  • 25

    utilizado mais como meio de prova e instrumento acusatrio do que propriamente um meio de

    defesa pleno.

    Ainda at a lei 10.792/03, o ru, negando as imputaes, era convidado a

    indicar provas da verdade de suas declaraes, mostrando que o sistema inquisitorial, no qual

    o nus da prova recai sobre a defesa, estava presente em nosso sistema infraconstitucional

    ainda neste sculo.

    Dessa forma, revogando os dispositivos flagrantemente inconstitucionais, a lei

    inseriu no Cdigo novas disposies, tais como a necessidade de presena do advogado (art.

    185), bem como a garantia de entrevista privada entre ru e defensor anterior ao interrogatrio

    (revogado art. 185 2). No mesmo sentido, inseriu o pargrafo nico do artigo 186, que

    dispe sobre o direito ao silncio, vedando a possibilidade de ser usado contra o ru em

    qualquer hiptese, desconstituindo o interrogatrio como instrumento da acusao, ao menos

    em tese.

    Contudo, no obstante seu evidente avano e conformidade constitucional, a lei

    foi marcada por seu laconismo, no versando sobre a videoconferncia mesmo havendo o

    debate jurisprudencial sobre o tema.

    1.3. A videoconferncia antes da Lei 11.900/2009

    A videoconferncia surgiu pela primeira vez no Brasil j em 1996, com o ento

    juiz de Direito Luis Flvio Gomes5. O doutrinador assume que se espanta com o tamanho da

    repercusso que a questo gera at os dias de hoje, e se afigura como um dos principais

    agitadores favorveis da medida.

    De 1996 at a lei 11.900 de 2009, o debate restringiu-se doutrina e

    jurisprudncia com exceo da Lei Estadual 11.819/05 de SP ora balanando para sua

    adeso, ora para sua rejeio. Para este estudo, escolhi dois momentos que nortearam o

    debate. O primeiro dele acerca do habeas corpus de nmero 90.999 de So Paulo, que

    pautou a discusso pela formalidade, qual seja, a de incompetncia legiferante por parte da

    Unidade Federativa sobre matria processual penal. O segundo momento escolhido foi o HC

    88.914/07 de So Paulo, que pautou a questo no somente pela ausncia de prescrio legal

    5 Como ele mesmo coloca: Quando, em 1996, realizei os primeiros 6 interrogatrios on-line do pas e da

    Amrica Latina -, na condio de Juiz de Direito (GOMES, 2009 p. 30 e 31).

  • 26

    sobre a matria, mas tambm sobre sua constitucionalidade material. A escolha desses

    momentos se justifica pelo impacto, em especial, nos tribunais6.

    1.3.1. Primeiro Momento: A Inconstitucionalidade da Lei Estadual 11.819/2005 SP

    At esse momento, a jurisprudncia tendia a pronunciar-se pela matria somente

    sob seu aspecto formal, pela falta de prescrio legal. Diante da inrcia do Congresso

    Nacional, os legisladores do Estado de So Paulo editaram a Lei 11.819/05, que possibilitava

    a utilizao da videoconferncia para o interrogatrio.

    No entanto, foi impetrado o HC 90.999/SP para anulao dos atos processuais

    decorrentes do interrogatrio on-line, tendo sido este realizado com suporte em lei que

    desrespeitava o princpio da legalidade. A alegao era de que a lei estadual afrontava o artigo

    22, inciso I, da Constituio Federal, pois que prev expressamente a competncia privativa

    da Unio para legislar sobre matria de Direito Processual Penal. O julgamento foi submetido

    ao plenrio do STF e apenas a ministra Ellen Gracie votou pelo indeferimento do writ.

    O ministro relator para o acrdo Menezes Direito conclui no seu voto vencedor:

    Enxergo, portanto, que a possibilidade de videoconferncia no caso, esbarra

    na disciplina constitucional brasileira, art. 22, I, e, se esbarra na disciplina

    constitucional brasileira, ao meu sentir, dispensvel ir adiante com

    qualquer outro raciocnio, porque o ato praticado na lei assim concebida

    padece de evidente nulidade (MENEZES DIREITO, pp. 762-3).

    Assim, a lei estadual em tela foi considerada inconstitucional por confrontao ao

    princpio da legalidade7. Embora quase sempre restritas em seu mbito formal, as discusses

    continuaram, aumentando-se a presso para que o Congresso Nacional suprisse a lacuna.

    1.3.2. Segundo Momento: O habeas corpus 88.914/SP e o questionamento da

    materialidade constitucional da medida.

    O HC 88.914/SP8, de relatoria do ministro Cesar Peluso, o mais importante

    marco jurisprudencial acerca da temtica da videoconferncia, mesmo depois do advento da

    Lei 11.900/09, por trazer vrios pontos que conferiram complexidade material questo.

    6 No se trata de momentos com alguma relao cronolgica especfica, mas de momentos que marcaram o

    debate de maneiras distintas, que merecem o devido destaque para a anlise. 7 EMENTA Habeas corpus. Processual penal e constitucional. Interrogatrio do ru. Videoconferncia. Lei n

    11.819/05 do Estado de So Paulo. Inconstitucionalidade formal. Competncia exclusiva da Unio para legislar

    sobre matria processual. Art. 22, I, da Constituio Federal. 1. A Lei n 11.819/05 do Estado de So Paulo

    viola, flagrantemente, a disciplina do art. 22, inciso I, da Constituio da Repblica, que prev a competncia

    exclusiva da Unio para legislar sobre matria processual. 2. Habeas corpus concedido.

  • 27

    Abaixo, alguns trechos pertinentes:

    4. No fujo realidade para reconhecer que, por poltica criminal, diversos

    pases Itlia, Frana, Espanha, s para citar alguns adotam o uso da videoconferncia sistema de comunicao interativo que transmite simultaneamente imagem, som e dados, em tempo real, permitindo que um

    mesmo seja realizado em lugares distinto na praxis judicial. certo, todavia, que, a, o uso desse meio previsto em lei, segundo circunstncias

    limitadas e deciso devidamente fundamentada, em cujas razes no entra a

    comodidade do juzo. Ainda assim, o uso da videoconferncia considerado

    mal necessrio, devendo [ser] empregado com extrema cautela e rigorosa anlise dos requisitos legais que o autorizam.

    No o que passa aqui.

    No existe, em nosso ordenamento, previso legal para realizao de

    interrogatrio por videoconferncia. E, suposto a houvesse, a deciso de

    faz-lo no poderia deixar de ser suficientemente motivada, com

    demonstrao plena da sua excepcional necessidade no caso concreto. (pp.

    13, 14)

    Fica evidente, a partir do supracitado trecho e da prpria ementa, a presso por

    parte do STF para a movimentao do legislativo, indicando-lhe, inclusive, que deveria haver

    exposio dos motivos para adoo da medida e que ru deveria ser devidamente citado. A

    argumentao do acrdo no se d somente pela carncia legal, mas pela ausncia de

    fundamentao por parte do juzo recorrido em adotar a medida.

    bom lembrar, ainda, que, instituda comisso para preparar sugestes

    sobre a realizao de interrogatrio on-line de presos considerados

    perigosos, o Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria lhe

    rejeitou a prtica, ao editar a Resoluo n 05, de 30 de novembro de 2002.

    (p. 15)

    Pertinente a meno resoluo mencionada (cuja referncia correta

    Resoluo n 05, de 30 de setembro de 2002). Em seu prprio teor, resolve: Art. 1. Rejeitar

    a proposta relacionada realizao de interrogatrio "On Line" de presos considerados

    perigosos, conforme pareceres dos Conselheiros Ana Sofia Schmidt de Oliveira e Carlos

    Weis, em anexo.

    A Resoluo n 05, de 30 de setembro de 2002, referente ao Processo CNPCP/MJ

    n 08037.000062/2002-86, que trata da Portaria n 15/2002, instituiu comisso para preparar

    8 EMENTA: AO PENAL. Ato processual. Interrogatrio. Realizao mediante

    videoconferncia. Inadmissibilidade. Forma singular no prevista no ordenamento jurdico. Ofensa a clusulas

    do justo processo da lei (due process of law). Limitao ao exerccio da ampla defesa, compreendidas a

    autodefesa e a defesa tcnica. Insulto s regras ordinrias do local de realizao dos atos processuais penais e s

    garantias constitucionais da igualdade e da publicidade. Falta, ademais, de citao do ru preso, apenas instado a

    comparecer sala da cadeia pblica, no dia do interrogatrio. Forma do ato determinada sem motivao alguma.

    Nulidade processual caracterizada. HC concedido para renovao do processo desde o interrogatrio, inclusive.

    Inteligncia dos arts. 5, LIV, LV, LVII, XXXVII e LIII, da CF, e 792, caput e 2, 403, 2 parte, 185, caput e

    2, 192, nico, 193, 188, todos do CPP. Enquanto modalidade de ato processual no prevista no ordenamento

    jurdico vigente, absolutamente nulo o interrogatrio penal realizado mediante videoconferncia, sobretudo

    quando tal forma determinada sem motivao alguma, nem citao do ru.

  • 28

    sugestes referentes realizao de interrogatrio "On Line" de presos considerados

    perigosos.

    Segue trecho do parecer (grifado por mim) de ANA SOFIA SCHMIDT DE

    OLIVEIRA:

    O que cumpre, enfim ressaltar, que se as garantias do processo e as

    formalidades que as sustentam no tm sido rigorosamente respeitadas na

    prtica, este fato no pode jamais ser utilizado como argumento a justificar

    inovaes ainda mais gravosas. Da ser a posio desta Comisso

    absolutamente contrria realizao de qualquer ato processual sem a

    presena fsica do ru preso. No de se cogitar a excepcionalidade da

    medida em se tratando de ru perigoso. A subjetividade do conceito j

    exige cautela. E se houver fato que impossibilite a apresentao do preso

    na sala de audincias do Forum, nada impede que o juiz se desloque a um

    anexo dos presdios de segurana mxima, se for o caso, nos termos do

    artigo 792 2 o CPP. importante que este local seja efetivamente um

    anexo sob administrao do Poder Judicirio e no apenas uma

    dependncia do estabelecimento prisional.

    Em suma, esta Comisso entende que a substituio da

    presena fsica do ru nos interrogatrios e audincias judiciais pela

    transmisso eletrnica de sua voz e imagem medida ilegal e

    desnecessria que ofende os princpios mais caros do devido processo

    legal.

    Continuando do voto do Ministro Peluso:

    Ainda que o preso deve, pois, o acusado comparecer perante a

    autoridade judiciria, seu juiz natural, para ser interrogado.

    A Conveno Interamericana de Direitos Humanos, o Pacto de So

    Jos da Costa Rica, prescreve, ademais, no art. 7, n. 5, que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, presena de um juiz ou

    outra autoridade autorizada por lei a exercer funes judiciais. No mesmo sentido dispe o art. 9, n. 3, do Pacto Internacional Civis e Polticos.

    Clara, portanto, a opo legislativa: na impossibilidade de o ru

    preso ser conduzido ao frum, por razes de segurana, o magistrado

    quem deve deslocar-se at ao local onde se encontre, para o interrogar. (pp.

    15, 16)

    No que se refere ao trecho acima, vale a meno ao Pacto de So Jos da Costa

    Rica, de 22 de novembro de 1969, do qual o Brasil foi signatrio pelo Decreto n 678 de 06 de

    Novembro de 1992, sempre trazido tona neste debate da videoconferncia. No art. 7, n 05,

    tem-se a seguinte prescrio legal:

    Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora,

    presena de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer

    funes judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razovel ou de ser

    posta em liberdade, sem prejuzo de que prossiga o processo. Sua liberdade

    pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em

    juzo. (grifo acrescido)

    Muito alm do mero aspecto formal, o voto do ministro Peluso questionou uma

    srie de vcios atinentes medida. Por exemplo, a videoconferncia impossibilita o acesso aos

  • 29

    autos, e at mesmo o defensor, dever este ficar onde, junto ao cliente ou junto ao juiz? O

    ministro questiona tambm a igualdade entre ru preso e ru solto, no podendo a medida ser

    adotada apenas para uma espcie de acusado. Tal diferenciao seria uma afronta ao artigo 5

    caput da CF/88 (p. 18).

    Um dos pontos mais relevantes o de o ru poder aproximar-se do juzo para

    denunciar possveis maus-tratos que lhe acometem no presdio, argumentando que o preso

    jamais ter a serenidade e a segurana suficiente para fazer o relato de seu tratamento to

    prximo dos agentes e de toda a hostilidade local (p. 18).

    O referido ministro coloca o interrogatrio no mais como mais um momento

    qualquer no procedimento criminal, mas o contextualiza com a complexidade devida,

    garantindo-lhe a importncia democrtica desse instrumento de defesa, invocando a

    necessidade da presena fsica e real diante do juzo, para uma apreenso mais precisa sobre a

    fala e expresso do acusado. Mais do que ver e ouvir, o interrogatrio evento afetivo, no

    sentido radical da expresso. Assim como em sesso psicanaltica, fundamental a presena

    dos participantes em ambiente compartilhado (p. 24).

    Sem a inteno de esgotar a argumentao levantada no voto, matria tambm

    deste estudo nos captulos que se seguem, o ministro, por fim, coloca que quando a poltica

    criminal promovida custa de reduo das garantias individuais, se condena ao fracasso

    mais retumbante (p. 23).

    A deciso influenciou toda jurisprudncia nacional. O prprio STJ, hoje, tem uma

    jurisprudncia consolidada a respeito da utilizao da videoconferncia que se deram antes do

    advento da Lei 11.900/09, no sentido de considerar nulidade absoluta do interrogatrio on-

    line e, logo, todos os atos processuais decorrentes dele. o que se pode observar nos

    seguintes julgados9. Por todos, o seguinte acrdo:

    2. A jurisprudncia consolidada nesta Corte Superior firmou-se no sentido

    de que a audincia realizada por videoconferncia, anteriormente

    vigncia da Lei n 11.900/09, ocorreu em afronta aos princpios

    constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.

    3. O ato processual realizado em infringncia norma constitucional

    processual de garantia absolutamente nulo. (...)

    (HC 162772 / SP HABEAS CORPUS 2010/0028548-5 Ministro ADILSON

    VIEIRA MACABU [DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ]/ T5 -

    QUINTA TURMA/DJe 28/06/2012)

    9 HC 231501/SP. Rel. Min. Laurita Vaz. 5T. Julgado em 21/06/2012. HC 191624/SP. Rel. Ministro GILSON

    DIPP, 5T, julgado em 22/05/2012. HC 166873/SP, Rel. Ministro SEBASTIO REIS JNIOR, 6T, julgado em 10/04/2012. HC 124811/SP Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ) 5T. Julgado em 27/09/2011. HC 193025/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI. 5T. julgado em 06/09/2011. RHC 25570/SP Rel. Ministro HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE) T6. Julgado em 07/04/2011.

  • 30

    1.4. A Lei da Videoconferncia 11.900/2009. O fim dos debates?

    A lei 11.900 de 08 de janeiro de 2009 veio finalmente prescrever a matria sobre a

    videoconferncia. Mantendo apenas o caput do art. 185, alterado pela lei 10.792 de 2003, a

    nova lei inseriu nove pargrafos inditos. O 1 prescreve que o interrogatrio do ru preso

    dever ser efetuado, em regra, em sala prpria e no estabelecimento em que estiver recolhido.

    O 2 do artigo 185 que versa especificamente sobre a videoconferncia. Foi

    inserido com o seguinte teor:

    Excepcionalmente, o juiz, por deciso fundamentada, de ofcio ou a

    requerimento das partes, poder realizar o interrogatrio do ru preso por

    sistema de videoconferncia ou outro recurso tecnolgico de transmisso de

    sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessria para

    atender a uma das seguintes finalidades:

    I - prevenir risco segurana pblica, quando exista fundada suspeita de

    que o preso integre organizao criminosa ou de que, por outra razo,

    possa fugir durante o deslocamento; (Includo pela Lei n 11.900, de 2009)

    II - viabilizar a participao do ru no referido ato processual, quando haja

    relevante dificuldade para seu comparecimento em juzo, por enfermidade

    ou outra circunstncia pessoal; (Includo pela Lei n 11.900, de 2009)

    III - impedir a influncia do ru no nimo de testemunha ou da vtima, desde

    que no seja possvel colher o depoimento destas por videoconferncia, nos

    termos do art. 217 deste Cdigo; (Includo pela Lei n 11.900, de 2009)

    IV - responder gravssima questo de ordem pblica. (Includo pela Lei n

    11.900, de 2009)

    evidente e inescapvel o termo inicial do dispositivo: Excepcionalmente.

    Seguindo a orientao encaminhada pela mais alta corte, a prpria lei prev que a medida s

    pode ser utilizada quando fundada necessidade e em carter excepcional.

    No entanto, peca com a vagueza e com a impreciso ao elencar as finalidades

    convenientes ao uso da videoconferncia. Os termos risco segurana pblica, ordem

    pblica, acompanhados das outras circunstncias, como risco de fuga e suspeita de

    integrar organizao criminosa, correspondem a uma impreciso tcnica incondizentes com a

    legislao penal de um Estado Democrtico. Tamanha vagueza um caminho curto ao

    decisionismo e arbitrariedade, tornando a condio de excepcionalidade mera letra morta.

    Interessante destacar o inciso III do artigo 185 e sua remisso ao artigo 217

    tambm do CPP. Ora, ao colocar a aplicao da videoconferncia como forma de evitar a

    influncia no nimo da testemunha ou da vtima, no estaria o prprio legislador admitindo

    que a medida seja de fato um instrumento de distanciamento e insensibilizao?

    O 3 dispe sobre a necessidade de intimao prvia de 10 dias para a utilizao

    do sistema de videoconferncia.

  • 31

    O 4, por sua vez, coloca a possibilidade de acompanhamento do ru a todos os

    atos da audincia nica de instruo e julgamento de que tratam os arts. 400, 411 e 531 do

    CPP. Vale ressaltar que a videoconferncia, como medida de acompanhamento processual,

    pode de fato se valer como um instrumento democrtico, na medida em que permite uma

    maior proximidade do ru com os atos de seu processo, muitas vezes realizados alheios de seu

    conhecimento. Dessa maneira, tem-se que, como instrumento de efetivar o contato do sujeito

    aos atos processuais a ele atinentes, a videoconferncia medida perfeitamente vlida.

    A videoconferncia, portanto, ao passo em que aproxima o ru de atos processuais

    normalmente afastados de seu acompanhamento, ou at de sua cincia, medida

    perfeitamente vlida para garantia mnima desse acesso aos atos, fator constituinte do direito

    presena (SCARANCE FERNANDES, 2012, p. 266).

    O 5 garante o direito de entrevista prvia e reservada do ru com seu defensor e,

    no caso da videoconferncia, dever haver meio disponvel para sua realizao. O contedo

    deste pargrafo questionvel. A relao imediata e fsica , sem dvida nenhuma, condio

    fundamental para o estabelecimento de um mnimo de confiana e da cumplicidade, fatores

    essenciais para o trabalho da defesa. Ainda que essa confiana j esteja estabelecida, como no

    caso de uma relao antiga, como o advogado, por telefone, poder ter a certeza de que o ru

    fala sem coeres do outro lado da linha? O estabelecimento dessa cumplicidade ainda mais

    sobrestado quando se tratar de defensor dativo, vindo a reforar ainda mais o afastamento

    burocrtico j presente na Justia. Confiar o ru em seu advogado constitudo se o primeiro

    contato com seu defensor se der por meio tecnolgico? No h dvida do prejuzo causado

    defesa por essa limitao drstica da comunicao, to essencial no trabalho do defensor.

    O 6 atribui o dever de fiscalizao da sala reservada para utilizao do sistema

    de videoconferncia ao juiz de cada causa, ao Ministrio Pblico e OAB. O 7 estipula que,

    no sendo cabvel a excepcionalidade no 2 ou a possibilidade de deslocamento do juiz ao

    presdio, o ru ser apresentado em juzo. O 8 estende a aplicao da medida a outros atos

    processuais, como a acareao, reconhecimento de pessoas e coisas, e inquirio de

    testemunhas ou tomada de declaraes do ofendido. Por fim, o 9 garante, na hiptese do

    8o, o acompanhamento do ato processual pelo acusado e seu defensor.

    A lei, como pode ser observado, supre to somente o problema formal, no

    adentrando as questes materiais, e mais pertinentes, da questo. Ao contrrio, por sua

    vagueza e impreciso, a lei d margem discricionariedade dos juzes, podendo fundamentar

    facilmente a necessidade da medida, tornando-a no excepcional, mas sim um procedimento

    padro.

  • 32

    O habeas corpus 88.914/SP, cujo relato do ministro Peluso deixou marcada a

    complexidade do tema, compilou uma srie de questionamentos de ordem constitucional que

    j estavam sendo arguidas por alguns estudiosos no Brasil. Dessa maneira, dizer que a lei

    11.900/09 sedimentou o debate, alm de reduzir o Direito a critrios apenas de legalidade

    formal, negligenciar a riqueza desse debate jurdico.

    Aury Lopes Jr., de forma esclarecedora, mostra a incoerncia do judicirio em

    recepcionar to serenamente a Lei 11.900/09 sem responder minimamente s intempries

    constitucionais que o prprio corpo judicirio denunciou. Logo aps citar um julgado do STJ,

    mostra sua irresignao.

    INTERROGATRIO JUDICIAL. VIDEOCONFERNCIA. NULIDADE.

    A Turma, alterando sua jurisprudncia, concedeu o writ, ao entendimento de

    que o interrogatrio realizado por videoconferncia, em tempo real, viola o

    princpio do devido processo legal, em que pese o papel da informatizao

    moderna do Judicirio. (Lei n. 11.419/2006). Outrossim, o interrogatrio

    judicial por videoconferncia pode gerar nulidade devido s carncias at

    ento insanveis, a exemplo da falta de controle nacional dos presidirios,

    de modo a dispensar a presena do ru perante o julgador. Ademais, por ser

    pea imprescindvel no processo penal, o interrogatrio o momento em

    que, de viva voz e pessoalmente, o acusado, confrontado frente ao julgado,

    relata sua verso dos fatos, para que se determine sua culpabilidade ou

    inocncia. (art. 185, 2, do CPP). (HC n 98.422-SP, Rel. Min. Jane Silva

    [Desembargadora convocada do TJ-MG], julgado em 20/5/2008).

    O ponto nevrlgico : a nova lei no resolveu os problemas nas decises do

    STJ e STF. E, mais do que isso, quando aplicada no caso concreto, pode se

    revelar substancialmente inconstitucional, por violar diversos princpios

    constitucionais.

    Portanto, ainda que a Lei n 11.900/09 tenha disciplinado o interrogatrio

    por videoconferncia, retirando assim o obstculo da inconstitucionalidade

    por ausncia de preciso legal, pensamos que a questo no est

    completamente solucionada e que nossa crtica ainda plenamente

    aplicvel, cabendo aos juzes e tribunais fazer o controle difuso da

    (in)constitucionalidade da Lei n 11.900, bem como reservando essa medida

    para situaes excepcionalssimas. (LOPES JR. 2011. p. 631)

    Luiz Flvio Borges DUrso e Marcos da Costa, no mesmo sentido de Aury Lopes

    Jr., indicam vrios vcios de constitucionalidade atinentes ao interrogatrio on-line. Sustentam

    que O advogado no conseguir, ao mesmo tempo, prestar assistncia ao ru preso e estar

    com o juiz, embora presente o canal telefnico, a relao cliente/defensor fica prejudicada

    (DURSO & COSTA, 2009, p. 33).

    Colocam, no entanto, como mais evidente prejuzo a relao do ru com o

    magistrado, sustentando que, alm de a cmera no ser fiel realidade, Falar diante da

    cmera j um fator inibidor para a maioria das pessoas, mas a capacidade de expresso

  • 33

    sofrer ainda com o fato de se encontrar o ru dentro do sistema carcerrio, local naturalmente

    hostil (DURSO & COSTA, 2009, p. 33).

    Por seu turno, o professor da Universidade de So Paulo Sergio Marcos de

    Moraes Pitombo, seno o mais citado doutrinador no voto do ministro Peluso no HC 88.914,

    posiciona-se tambm de forma avessa medida. Seus posicionamentos, ainda que proferidos

    antes do advento da lei 11.900/09, continuam atuais. No mesmo caminho, argumenta que a

    videoconferncia constitui ato atentatrio aos princpios da ampla defesa, da publicidade e do

    devido processo legal. Lembra, ainda, que tambm a proteo do preso fica em risco, pois

    sem o contato imediato com o juiz, este pouco consegue v-lo, alm de obstaculizar uma

    possvel denncia de agresso, uma vez que se entrevistado na carceragem no se sentir

    confortvel em denunciar eventuais violaes de direitos (PITOMBO, 2000, p. 01 e 02).

    No mesmo sentido, o professor Evandro Piza Duarte considera que o

    interrogatrio por videoconferncia corresponde vitria de um modelo de racionalidade que

    atua para restringir direitos e para perpetuar opresses a grupos estigmatizados. Argumenta

    que as medidas virtuais no processo penal devem ser aplicadas para ampliar e realizar direitos,

    devendo voltar-se para a qualidade da prestao jurisdicional (DUARTE, 2005).

    1.5. O posicionamento doutrinrio favorvel videoconferncia

    Sobre a questo, Eugnio PACELLI e Douglas FISCHER, com algumas poucas

    ressalvas10

    redao dada pela lei 11.900, manifestam seu posicionamento favorvel

    videoconferncia com os seguintes termos.

    Atente-se que, mesmo antes da edio da Lei federal, o interrogatrio por

    videoconferncia era realizado assegurando-se todas as garantias do ru-

    interrogado: presena de advogado ao seu lado no local onde se

    encontrasse, outro advogado na sala de audincias (a distncia), canal

    privativo de comunicao entre os advogados etc. S no havia a presena fsica do interrogado perante o juiz, que, porm, poderia perceber todas as suas reaes, como se presente fisicamente estivesse. Enfim: garantia-se a

    ampla defesa e maximizava-se a necessidade excepcional do ato. Malgrado

    todas essas consideraes, a jurisprudncia passou a entender que o ato

    malferia a ampla defesa (FISCHER & PACELLI DE OLIVEIRA, 2012, p.

    986).

    Damsio DE JESUS explica a disputa jurisprudencial e mostra seu posicionamento:

    Antes da entrada em vigor da Lei n. 10.792, de 1.12.2003, discutia-se a

    validade do interrogatrio realizado pelo sistema de videoconferncia. O

    STJ o havia entendido inadmissvel, a no ser que a sada do ru do

    estabelecimento prisional acarretasse algum perigo (STJ, HC 6.272, 5

    10

    Sua crtica sobre o pargrafo 2, em seu inciso I, do art. 185, afirmando ser inaceitvel o raciocnio da lei em

    inferir que a participao em organizao criminosa justificaria, por si s, o risco de fuga. (p. 371)

  • 34

    Turma, RT 742/579). No TACrimSP, havia decises em ambos os sentidos

    (pela validade: RJTACrimSP 33/377; pela invalidade RJTACrimSP

    33/382). Com o novo 1, entendemos superada a possibilidade de

    realizao de interrogatrio on line. Estando o ru preso, deve o

    interrogatrio ser realizado no estabelecimento em que ele est

    encarcerado, conquanto sejam garantidas condies de segurana.

    (...) Interrogatrio por videoconferncia aps a edio da Lei n. 11.900/2009:

    Cuida-se de medida vlida. O legislador, quando da elaborao da Lei

    acima epigrafada, que resultou na nova redao dada aos pargrafos do

    art. 185 deste Cdigo, atentou-se aos critrios definidos pelo Supremo

    Tribunal Federal a respeito do tema. Atualmente, portanto, admite-se a

    realizao, em carter excepcional, do interrogatrio pelo sistema de

    videoconferncia (JESUS, 2012, p. 203).

    O autor, em outra oportunidade, justifica seu posicionamento:

    A lei federal que autoriza esse sistema Lei n 11.900, de 8 de janeiro de 2009, em vigor desde o dia 9 daquele ms representou, a meu ver, notvel avano no sentido de modernizar e agilizar a prtica da Justia Criminal,

    evitando gastos e riscos desnecessrios, com deslocamentos de presos de

    alta periculosidade.

    Num sistema judicirio moroso e excessivamente coarctado por usos e

    costumes imprescindveis em outros tempos, mas perfeitamente suprfluos

    nas condies de vida atuais, h que se modernizar (JESUS, 2009, pp. 28,

    29).

    Fernando CAPEZ, por seu turno, no somente defende a utilizao da

    videoconferncia como uma poltica criminal pertinente, como afirma que a Lei 11.900/09 se

    estende a todos os atos processuais que dependam da participao de pessoa que esteja

    presa (CAPEZ, 2009, p. 32). O autor argumenta que a referida lei supriu os bices formais

    existentes antes de sua edio. Que a expresso presena da autoridade, no Pacto de So

    Jos da Costa Rica, merece uma interpretao adaptativa das evolues tecnolgicas, e

    argumenta, ainda, que a prpria lei j apresenta remdios contra uma possvel reduo do

    direito de defesa (CAPEZ, 2009, p. 32).

    Guilherme de Souza NUCCI apresenta-se bastante favorvel no somente

    utilizao da tecnologia de videoconferncia, mas afirma que qualquer modalidade de

    teleconferncia admissvel, ainda que, no futuro, a denominao se altere em virtude de

    equipamentos mais avanados e modernos (NUCCI, 2012, pp. 430 e 431).

    Interessante e contraditria, no entanto, sua argumentao a respeito da utilizao

    da videoconferncia no tribunal do jri, em que faz uma ressalva. Para NUCCI, a utilizao

    da tecnologia seria medida abusiva se no tribunal do jri, afirmando que os princpios da

    oralidade, imediatidade e identidade fsica do juiz, aplicados fielmente no Tribunal Popular,

    no se compatibilizam com esse instrumento tecnolgico (NUCCI, 2012, p. 433).

    Aparentemente, o motivo para essas duas medidas se deve ao fato de no Tribunal do Jri, a

  • 35

    deciso depender de pessoas leigas, o que implicaria diferentes sinais cognitivos ao juiz

    togado. Argumenta que

    Transformar o plenrio do jri em um programa de televiso, valendo-se da videoconferncia para ouvir testemunhas e ru, sem qualquer contato

    entre julgadores leigos e as peas principais do processo, significa ousadia

    superior ao que suporta a plenitude de defesa, garantia constitucional do

    acusado (NUCCI, 2012, p. 433).

    TOURINHO FILHO, por sua vez, tem posio moderada. Coloca-se dizendo que

    a medida uma tendncia a fazer desaparecer os custos do Estado com locomoo para as

    audincias. Diz ainda que a videoconferncia uma vivel alternativa para as audincias no

    presdio, embora coloque em risco o princpio da publicidade (TOURINHO FILHO, 2012, p.

    589).

    Adverte, no entanto, para que a exceo no vire regra, devendo a medida ser

    utilizada com bastante critrio, apenas para criminosos altamente perigosos e cuja sada da

    unidade prisional onde se encontrem possa acarretar perturbao da ordem pblica

    (TOURINHO FILHO, 2012, p. 587).

    Mas a voz que representa o coro da doutrina favorvel videoconferncia sem (ou

    quase sem) ressalvas a de Luiz Flvio GOMES que, enquanto juiz, foi o primeiro

    magistrado brasileiro a se utilizar do interrogatrio on-line. Citaes de Luiz F. Gomes:

    O Direito de presena em todos os atos processuais, de outro lado, pode ser

    garantido de duas formas: com a presena fsica direta na audincia ou

    mediante os modernos meios de comunicao (videoconferncia, por

    exemplo, que finalmente foi disciplinada pela Lei n 11.900/09) (GOMES,

    2010, p. 35).

    Aqui o autor no faz qualquer distino entre a presena fsica direta e a presena

    mediata, igualando as duas no que se refere ao direito de presena, dizendo que o sistema de

    videoconferncia uma nova forma de contato direto (pessoal), no necessariamente no

    mesmo local (GOMES, 2009, p. 30). O autor usa as palavras da ex-ministra do STF, Ellen

    Gracie, para sustentar seu argumento. Ela diz:

    Alm de no haver diminuio da possibilidade de se verificarem as

    caractersticas relativas personalidade, condio scio-econmica, estado

    psquico do acusado, entre outros, por meio de videoconferncia, certo

    que h muito a jurisprudncia admite o interrogatrio por carta precatria,

    rogatria ou de ordem, o que reflete a idia da ausncia de obrigatoriedade

    do contato fsico direto entre o juiz da causa e o acusado, para a realizao

    do seu interrogatrio. (GRACIE apud GOMES, 2009, p. 30)1112

    .

    11

    O mesmo artigo, com a citao da ex-ministra, pode ser encontrado nesta referncia: GOMES, Luiz

    Flvio. Videoconferncia: Comentrios Lei n 11.900, de 8 de janeiro de 2009. Disponvel em

    http://www.lfg.com.br. 12 de janeiro de 2009. Acesso em 04/09/2012. 12

    No se desconsidera a possibilidade de utilizao da videoconferncia para casos extremos, como de um ru

    preso que responde a processos em diversos Estados da Federao. Lembra-se de que a videoconferncia deve

  • 36

    Na argumentao da ex-ministra, possvel apontar dois pontos principais. O

    primeiro deles a equiparao sem ressalvas do contato realizado por um mecanismo virtual e

    sem a sua utilizao. O outro ponto a comparao do interrogatrio pela videoconferncia

    com o interrogatrio realizado por carta precatria.

    Em sua argumentao, rebate os opositores dizendo que eles se apegam

    demasiadamente ao mtodo, que chama de analgico, mas que o importante a forma, que

    deve estar preocupada com as garantias processuais. Alm disso, argui que o novo sistema,

    que acompanha o processo de informatizao do judicirio, uma questo de necessidade,

    sem o qual no se evitar a morosidade latente das decises (GOMES, 2009, pp. 30 e 31).

    Em notcia veiculada no site do Conselho Nacional de Justia (CNJ) em abril de

    201213, a respeito do painel Processo Penal e Impunidade no Encontro Nacional dos

    Corregedores de Justia, evidencia-se a posio dominante entre os participantes de que o

    principal elemento de morosidade no processo penal, e causa de impunidade, a necessidade

    de deslocamento do preso audincia. Destacaram, nesse concerne, a videoconferncia como

    alternativa de combate a essa morosidade e, logo, impunidade.

    Difcil negar o carter meramente formal e punitivista presente no discurso,

    marcadamente inquisitorial. Fazendo uma relao evidente entre rapidez processual e

    punio, apenas se refora o entendimento de que o interrogatrio corresponde mais a um

    elemento formal na persecuo criminal do que propriamente um momento de defesa. Fato

    que a videoconferncia se apresenta como instrumento de combate impunidade,

    evidenciando sua aproximao com a acusao e no com a defesa.

    Ainda a respeito do HC 88.914, importante atentar-se ao que se arguiu pelo

    Desembargador Ferraz de Arruda, cuja deciso foi impugnada no referido habeas corpus,

    concedido sob a relatoria do ex-ministro Cezar Peluso.

    No nos percamos em inutilidade ideolgicas como esta sob o falso e

    hipcrita argumento de que o ru tem de ser interrogado vis a vis com o

    juiz.

    Eu poderia escrever neste voto mil e uma inseguranas a respeito de um

    julgamento feito atravs do processo escrito, ou oral, tanto faz, at o ponto

    de demonstrar a impossibilidade filosfica de se punir algum por alguma

    ser medida em sua possibilidade de ampliao da defesa, devendo ser vedada quando ela significar, mesmo em

    hiptese, reduo de seu valor defensivo. A substituio do interrogatrio atravs da carta precatria pelo

    interrogatrio on-line j determinao do STJ, cuja notcia, de 28/11/2012, segue no site oficial do tribunal

    [Videoconferncia substituir carta precatria em toda a Justia Federal, disponvel em

    http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine., acesso em 23/01/2013].

    O que no pode ser aceito, no entanto, o argumento de que a existncia do interrogatrio por carta precatria

    a prova da disponibilidade do comparecimento pessoal em audincia. 13

    CONSELHO NACIONAL DE JUSTIA. Morosidade impunidade. 05/2012. Acessado em 10/02/2013. Disponvel em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/3863:morosidade-mpunidade

  • 37

    coisa que tenha feito contra a lei: portanto, tempo de dizer para esses

    pseudo-intelectuais, heris contemporneos da ideologizao de tudo, que

    se continuarem a insistir nessas teses incorpreas, doces e nefelibatas,

    teremos que simplesmente fechar a justia forense.

    O sistema de teleaudincia utilizado no interrogatrio do ru deve ser aceito

    medida que foram garantidas viso, audio, comunicao reservada

    entre ru e seu defensor e facultada, ainda, a gravao em Compact Disc,

    que foi posteriormente anexado aos autos para eventual consulta. Afinal, o

    ru teve condies de dialogar com o julgador, o qual podia ser visto e

    ouvido, alm de poder conversar com seu defensor em canal de udio

    reservado, tudo isso assistido por advogado da Funap.

    O meio eletrnico utilizado vem em benefcio do prprio ru medida que

    agiliza o procedimento. O contato com as pessoas presentes ao ato (Juiz,

    Promotor, Advogado, depoentes, etc.) se d em tempo real de modo que se

    pode perfeitamente aferir as reaes e expresses faciais dos envolvidos

    [grifei].14

    Curioso (e irnico) notar como o desembargador utiliza o termo incorprea,

    acusando para aquilo que seria a causa para o fechamento da justia forense. Argumenta que o

    discurso por detrs da crtica videoconferncia ideolgico, hipcrita e sem fundamento.

    Nesta argumentao, observa-se mais uma vez o apelo nula diferenciao entre o contato

    por meio da videoconferncia ou por meio direto, na presuno de que se bastaria visualizar,

    independentemente do canal, reaes e expresses faciais, somada possibilidade de

    dialogar, dos interrogados.

    Convm lembrar que bastante comum aos desembargadores que apreciam os

    recursos ignorarem o princpio da oralidade, raramente recebendo as partes, no interrogando

    o ru nem apreciando provas, manifestando-se atravs de autos mortos. Tal cenrio os coloca

    facilmente em uma posio de considerar o interrogatrio como um momento trivial no

    procedimento criminal, sem a chance de avaliar criticamente a medida da videoconferncia e

    suas possveis consequncias no julgamento recorrido.

    Em um sucinto resumo, pode-se dizer que os argumentos mais comumente

    utilizados so: reduo de custos; reduo dos riscos com o deslocamento de presos

    perigosos; celeridade processual; desnecessidade da presena corprea diante do juiz por se

    tratar de um contato igualmente direto, no qual as feies so percebidas da mesma forma.

    Nos prximos captulos, esses argumentos sero questionados e buscar-se-

    identificar as possveis consequncias de um processo penal pautado por uma argumentao

    que bambeia entre o simplismo e o evidente utilitarismo.

    14

    Sentena, do Desembargador Ferraz de Arruda, impugnada no HC 88.914, fl. 05.

  • 38

    CAPTULO 2. PARA ALM DA TORRE DE MARFIM. A SIMPLIFICAO E,

    PORTANTO, A NEGLIGNCIA DO DEBATE NA REA JURDICA.

    Neste captulo, procurar-se- demonstrar a complexidade da temtica do

    interrogatrio on-line a partir da comunicao com outras reas do saber. Como foi possvel

    observar no captulo anterior, o debate no mbito jurdico desconsidera a complexidade do

    fenmeno da videoconferncia, contribuindo para um quadro de juristas que conversam

    somente entre si, aprisionados em sua torre de marfim.

    Diante dessa simplificao, seja ela originada pela ingenuidade ou pela m-f,

    significa to somente a negligncia com o poder que uma medida como a videoconferncia

    tem de influenciar efetivamente na garantia de direitos fundamentais consagrados no nosso

    sistema constitucional. Nesse sentido, como j anunciado na Introduo deste estudo, a

    inteno contribuir para o debate com a transdisciplinaridade.

    2.1 Uma crtica utilizao de termos de sentido aberto.

    Na argumentao utilizada tanto pelos crticos quanto pelos defensores na

    questo de atos processuais realizados por meio das Novas Tecnologias de Comunicao

    (NTCs), a dicotomia diretamente/indiretamente um refgio terminolgico que se apresenta

    quase como uma condio bsica. Exemplo de perguntas que se colocam: o contato entre juiz

    e ru, na videoconferncia, se d de forma direta ou indireta? No Pacto de So Jos da Costa

    Rica, o termo presena, no art. 7, n. 05, deve ser interpretado como uma exigncia de um

    contato direto, ou bastaria o contato indireto? A necessidade de se estar perante o juiz

    restringe os meios (ditos) indiretos de contato?

    Ao que tudo indica, pelo menos na discusso que pode ser observada no mbito

    jurdico, o termo direto se refere quele tipo de contato que independe de qualquer meio

    tecnolgico, em que os sentidos recebem as mensagens sem utilizao de nenhum recurso

    externo que no sejam as prprias capacidades biolgicas. Na oposio, o termo indireto

    refere-se ao recebimento de mensagens que dependem de recursos tecnolgicos, sem os quais

    o contato seria impossvel, que o caso de conversas distncia permitidas pelo uso do

    telefone.

    Alguns autores, no entanto, tendem a argumentar que o contato, mesmo por meio

    de tecnologias, direto, pois os sentidos receberiam as mensagens da mesma maneira que

    aquele possvel sem a utilizao dos recursos. o caso, por exemplo, de Luiz Flvio GOMES

    (2009, p. 30), para o qual o direito de presena pode ser tambm realizado por meio das

  • 39

    NTCs, argumentao que no faz diferenciao do contato realizado com ou sem recursos

    tecnolgicos.

    Essa dicotomia terminolgica um vcio argumentativo muito difcil de escapar,

    pois fato que pauta o debate. Trata-se, portant