Monografia parte 3 texto completo até anexos - … · Ao discorrer sobre o universo das...

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1 INTRODUÇÃO Kumonosu-jô 1 ‘was perhaps the most successful Shakespeare film ever made’, even though ‘it had hardly any words, and none of them by Shakespeare’. Roger Manvell (IN: HINDLE: 2007, p. 37) Esta pesquisa de cunho intermidial insere-se dentro do âmbito dos estudos entre a literatura e as outras artes, mais especificamente, a relação da literatura com o cinema. Dentro deste amplo contexto, o enfoque desta pesquisa é estabelecer as equivalências (aproximação e distanciamento) 2 que existem entre o texto-alvo, o filme Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô) do diretor cinematográfico Akira Kurosawa 3 (1910, 1998), e o texto-fonte, a tragédia Macbeth de William Shakespeare. Além de ser uma tradução intermidial, este filme se caracteriza também como uma tradução cultural uma vez que a peça shakespeariana, ambientada no reino da Escócia é transposta para o mundo medieval e feudal japonês. Esta pesquisa irá se concentrar na análise dos pontos fundamentais que embasam estas duas formas de tradução. O profundo conhecimento que Kurosawa demonstra ter da obra trágica de William Shakespeare pode não ser imediatamente perceptível à primeira vista para um leitor de primeiro nível. (ECO: 1994, p. 50-51) Pretende-se nesta pesquisa expandir o conceito de leitor desenvolvido por Eco para o espectador de cinema. Apesar desta dificuldade inicial de percepção, a proximidade do diretor japonês com Shakespeare torna-se evidente nas três realizações fílmicas em que o diretor adaptou a obra do dramaturgo inglês: Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô, 1957) - baseada na peça Macbeth; Ran (1985) - baseada na peça Rei Lear e O homem mau dorme bem 4 (Warui yatsu hodo yoku nemuru,1960) – re-criação da peça Hamlet. Estes filmes são bastante 1 A romanização dos termos e nomes japoneses seguiu as regras do Sistema Hepburn. As vogais longas foram indicadas por meio do sinal circunflexo (ex. â, ô, û) que, nestes casos, não indica a sílaba tônica. 2 Os termos que envolvem o uso dos conceitos de aproximação e distanciamento não se referem à tentativa de estabelecer uma comparação entre as obras a partir de um critério de fidelidade. Sabe-se que uma tradução intersemiótica assegura um amplo grau de liberdade e de criatividade para aqueles que estão envolvidos no processo tradutório. Os conceitos que dizem respeito ao estabelecimento de equivalências entre os sistemas semióticos estão sendo aplicados no presente estudo conforme a proposta que é discutida por Thaïs F. N. Diniz. (2003: p. 27-42) 3 Os nomes na sociedade japonesa são invertidos, em relação ao Ocidente, o sobrenome antecede o nome, porque é essencial para a cultura japonesa uma indicação clara da origem das pessoas. As pessoas tratam- se usualmente pelos sobrenomes, por exemplo Kurosawa. O nome é utilizado apenas em situações de informalidade e intimidade extremas, como no relacionamento em família. 4 O homem mau dorme bem foi listado em terceiro lugar, apesar de ser anterior a Ran, porque ele está inserido no século XX em vez da época feudal japonesa, como os outros dois filmes. A tradução do título deste filme para o português não é exata, porque “Warui yatsu hodo yoku nemuru” significa literalmente “quanto pior o homem, melhor ele dorme”.

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INTRODUÇÃO

Kumonosu-jô 1 ‘was perhaps the most successful Shakespeare film ever made’, even though ‘it had hardly any words, and none of them by Shakespeare’. Roger Manvell (IN: HINDLE: 2007, p. 37)

Esta pesquisa de cunho intermidial insere-se dentro do âmbito dos estudos entre

a literatura e as outras artes, mais especificamente, a relação da literatura com o cinema.

Dentro deste amplo contexto, o enfoque desta pesquisa é estabelecer as equivalências

(aproximação e distanciamento) 2 que existem entre o texto-alvo, o filme Trono

manchado de sangue (Kumonosu-jô) do diretor cinematográfico Akira Kurosawa3 (1910,

1998), e o texto-fonte, a tragédia Macbeth de William Shakespeare. Além de ser uma

tradução intermidial, este filme se caracteriza também como uma tradução cultural uma

vez que a peça shakespeariana, ambientada no reino da Escócia é transposta para o

mundo medieval e feudal japonês. Esta pesquisa irá se concentrar na análise dos pontos

fundamentais que embasam estas duas formas de tradução.

O profundo conhecimento que Kurosawa demonstra ter da obra trágica de

William Shakespeare pode não ser imediatamente perceptível à primeira vista para um

leitor de primeiro nível. (ECO: 1994, p. 50-51) Pretende-se nesta pesquisa expandir o

conceito de leitor desenvolvido por Eco para o espectador de cinema. Apesar desta

dificuldade inicial de percepção, a proximidade do diretor japonês com Shakespeare

torna-se evidente nas três realizações fílmicas em que o diretor adaptou a obra do

dramaturgo inglês: Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô, 1957) - baseada na peça

Macbeth; Ran (1985) - baseada na peça Rei Lear e O homem mau dorme bem4 (Warui

yatsu hodo yoku nemuru,1960) – re-criação da peça Hamlet. Estes filmes são bastante

1 A romanização dos termos e nomes japoneses seguiu as regras do Sistema Hepburn. As vogais longas foram indicadas por meio do sinal circunflexo (ex. â, ô, û) que, nestes casos, não indica a sílaba tônica. 2 Os termos que envolvem o uso dos conceitos de aproximação e distanciamento não se referem à tentativa de estabelecer uma comparação entre as obras a partir de um critério de fidelidade. Sabe-se que uma tradução intersemiótica assegura um amplo grau de liberdade e de criatividade para aqueles que estão envolvidos no processo tradutório. Os conceitos que dizem respeito ao estabelecimento de equivalências entre os sistemas semióticos estão sendo aplicados no presente estudo conforme a proposta que é discutida por Thaïs F. N. Diniz. (2003: p. 27-42) 3 Os nomes na sociedade japonesa são invertidos, em relação ao Ocidente, o sobrenome antecede o nome, porque é essencial para a cultura japonesa uma indicação clara da origem das pessoas. As pessoas tratam-se usualmente pelos sobrenomes, por exemplo Kurosawa. O nome é utilizado apenas em situações de informalidade e intimidade extremas, como no relacionamento em família. 4 O homem mau dorme bem foi listado em terceiro lugar, apesar de ser anterior a Ran, porque ele está inserido no século XX em vez da época feudal japonesa, como os outros dois filmes. A tradução do título deste filme para o português não é exata, porque “Warui yatsu hodo yoku nemuru” significa literalmente “quanto pior o homem, melhor ele dorme”.

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relevantes na obra deste diretor, não apenas quanto ao fato de serem re-criações de

obras literárias shakespearianas mas também por contribuírem para a formação de uma

linguagem cinematográfica da produção de Kurosawa.

Diretor cinematográfico de origem japonesa de maior visibilidade no cenário do

cinema mundial, Akira Kurosawa teve dificuldades em produzir mais de um de seus

filmes, porque sua linguagem direta de denúncia da cultura e do governo japonês era

agressiva demais para seus compatriotas. Além disso, ele era conhecido por não fazer

concessões ao estúdio Tôho5 para o qual trabalhava, nem quanto ao cenário, nem quanto

ao conteúdo de seus filmes ou quanto aos prazos e custos de filmagem. Ele foi, por

esses motivos, boicotado pela indústria japonesa de cinema6, sendo preciso recorrer a

amigos diretores estrangeiros, George Lucas, Martin Scorsese, Steven Spielberg e como

Francis Ford Coppola, para conseguir custear a produção de algumas obras-primas de

sua filmografia.

Ao considerarmos o objeto de estudo desta pesquisa, Trono manchado de

sangue, é preciso salientar antes de mais nada que o título em japonês pode ser

traduzido como “O Castelo da Teia de Aranha”, sendo que este não é apenas o título do

filme, mas também o nome do feudo onde ele transcorre. Quanto à repercussão do filme,

Maurice Hindle, em sua obra Studying Shakespeare on film, afirma que alguns críticos

classificam-no na categoria de obra-prima. Ao discorrer sobre o universo das adaptações

fílmicas shakespearianas realizadas na mesma época, ele afirma que após a adaptação

do Otelo (1955) pelo russo Sergei Yutkevich, apareceram diversas adaptações em países

de tradição não inglesa. Segundo ele, o filme de Akira Kurosawa se destaca entre elas.

Dentro deste contexto, ele afirma que, afora os filmes Hamlet (1964) e Rei Lear (1971)

baseados em tragédias shakespearianas de Grigori Kozintsev, Trono manchado de

sangue foi o mais aclamado. (HINDLE: 2007, p. 36)

Hindle contrapõe-se, ainda, à opinião de diversos críticos que afirmaram que

Trono manchado de sangue é uma transmutação, um destilamento do tema Macbeth, e

não uma adaptação. Entretanto, ele afirma que se trata de um enredo produzido com

nuances tão dramáticas e de complexidade humana comparáveis às de Shakespeare,

embora pouco ou nada do texto original da peça esteja presente nas falas dos

5 A indústria cinematográfica japonesa apresenta uma conformação diversa da hollywoodiana. Em vez da dicotomia estúdio X diretores autorais, há diretores autorais trabalhando dentro de estúdios renomados, um exemplo desta situação foi Akira Kurosawa. 6 O fato de existir uma indústria de cinema consolidada é um ponto de diferenciação com o Brasil, no qual o cinema vivencia alternâncias entre momentos de estagnação e repentinos ressurgimentos.

3

personagens dentro do filme. (IDEM) Este fato enfatiza o aspecto de que uma tradução

intersemiótica e cultural engloba elementos muitas vezes sutis, como intencionalidades

e motivações internas contidas no texto original, que são transpostos para o contexto

cultural alvo.

Além dos atributos inegáveis que Trono manchado de sangue encerra, o filme

espelha, para Hindle, o mérito de re-trabalhar de uma maneira radical uma peça

shakespeariana para a grande tela a partir de uma cultura e história não-ocidentais. O

resultado não tem paralelos no gênero de filmes shakespearianos. (IBIDEM, p. 99) Esta

afirmação caracteriza o processo da tradução cultural ocorrida no Trono manchado de

sangue. Este filme faz parte da categoria de filmes autorais, ou seja, ele expressa uma

visão muito particular da tragédia shakespeariana da qual partiu.

Ilustração 1 – cartaz em japonês

do filme Trono manchado de sangue7

Informações pertinentes sobre as escolhas feitas por Kurosawa para elaborar a

tradução intersemiótica e cultural de Macbeth trouxeram um novo olhar para o objeto de

estudo desta pesquisa. Esclarecimentos sobre o processo de realização fílmica do

próprio diretor foram incorporados à pesquisa e enriqueceram a compreensão sobre a

forma como ele entendia o cinema, as diversas etapas do processo de realização fílmica

e, igualmente, o seu papel como artista e realizador.

Com o intuito de embasar esta pesquisa no que se refere tanto à tradução

intersemiótica quanto à tradução cultural, o principal teórico será Patrice Pavis. Sua

série de textualizações para o processo de tradução para o palco será adaptada e servirá

7 Este cartaz ampliado pode ser melhor visualizado no anexo 1.

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de ponto de partida para a análise do processo de tradução intermidial e intercultural

para o cinema e igualmente no que se refere ao processo de realização fílmico envolvido.

2 QUESTÕES TEÓRICAS

Translation is not only just a “window open on another world”, or some such pious platitude. Rather translation is a channel opened, often not without a certain reluctance, through which foreign influences can penetrate the native culture, challenge it, and even contribute to subverting it. André Lefevere

A tradução intersemiótica consiste no diálogo entre formas de arte distintas, ou

seja, entre sistemas semióticos diversos. Julio Plaza concebe “a Tradução intersemiótica

da seguinte maneira:

Tradução Intersemiótica como prática crítico-criativa, como metracriação, como ação sobre

estruturas e eventos, como diálogo de signos, como um outro nas diferenças, como síntese e re-

escritura da história. Quer dizer, como pensamento em signos, como trânsito de sentidos, como

transcriação de formas na historicidade. (PLAZA: 2003, p. 209)

O cinema, que é considerado uma forma de arte recente, apóia-se em outras artes

que lhe foram anteriores: a fotografia e o teatro. Antes de ser narrativo, o cinema

iniciou-se como forma documental, como fotografia em movimento. Do teatro, esta

forma de arte retirou a idéia da dramaturgia e de contar histórias ficcionais. Entretanto,

aos poucos, o cinema foi criando a sua própria linguagem e maneira própria de atuação.

Quando esta linguagem estabeleceu-se, a questão narrativa começou a ser intensamente

pesquisada, tanto no que diz respeito às imagens quanto aos sons. A seguir, a própria

montagem começou a ser elaborada de maneira ideológica com o diretor russo Sergei

Eisenstein, reforçando este caráter narrativo. Ao atingir este ponto ficcional, o cinema

aproximou-se da literatura, à procura de histórias para adaptar. O diretor Stanley

Kubrick, por exemplo, sempre baseava seus roteiros em obras literárias. Isto porque em

seus primeiros roteiros, escritos originariamente para o cinema, ele entendeu que havia

uma falta de densidade tanto nos personagens como nos enredos. O trânsito entre duas

diferentes mídias e linguagens torna-se muito enriquecedor em possibilidades de re-

criação.

5

A criação artística da contemporaneidade, ainda segundo Plaza se acha

drasticamente influenciada pelos meios de “repro-produção de linguagens. (IBIDEM, p.

206) Há uma profunda e radical transformação cultural devido à dominação dos

sistemas eletrônicos. Os recursos tecnológicos e eletrônicos, estreitamente ligados à arte,

têm íntima relação com o cinema. Na classificação deste autor sobre as formas de arte

em artesanais (do único), industriais (do reproduzível) e eletrônicas (intermídia), o

cinema estaria inserido nesta última categoria. Para ele, o “cotidiano, no caso de

comparação, encontra-se ‘empobrecido’ em relação à imagem ‘enriquecida’ pelos

‘efeitos especiais’ (cor, montagem, cenografia, iluminação, movimentos de câmera,

programas e softwares adequados”. (IBIDEM, p. 207)

A abordagem dada à tradução intersemiótica por Patrice Pavis em Theatre at the

crossroads of culture foi tomada como teoria principal que norteia esta pesquisa por

dois motivos: 1°) O autor enfoca a complexidade da tradução entre mídias distintas; 2°)

Pavis oferece uma reflexão sobre o processo das concretizações textuais desde o texto-

origem até a sua percepção no palco.

Para ele, a tradução de um texto para o palco deve prever a mise en scène que se

realiza plenamente a partir da contribuição de todos os envolvidos na realização do

espetáculo: o tradutor, diretor, os atores e demais criadores. Por esse motivo, o

fenômeno da tradução para o palco ultrapassa a tradução interlingual do texto dramático.

(PAVIS: 1992, p. 136) Ao lidar com as diferentes mídias, o tradutor deve, antes de

tudo, compreender os sistemas sígnicos e também entre as culturas nas quais o texto-

fonte e o texto-alvo, termos utilizados por Pavis (IBIDEM, p. 137) estão inseridos.

Dentro deste contexto, pode-se afirmar que há um entrecruzamento das situações

de enunciação, em que o texto traduzido se torna parte tanto do texto e cultura fonte

como do texto e cultura alvo. É necessário que se proceda a uma adaptação tanto

lingüística quanto cultural. Assume-se, então, que a transferência envolve,

simultaneamente, as dimensões semânticas, rítmicas, sintáticas, sonoras, dentre outras.

Segundo Pavis (IDEM), a tradução para o palco torna-se um processo mais complexo

para o tradutor, pois ele terá que lidar com aspectos que ainda lhe são desconhecidos. A

tradução para o teatro consiste em um ato hermenêutico, após uma ampla compreensão

do significado do texto-fonte, é necessário descobrir a sua significação a partir da

situação final de recepção, do ponto de vista da língua alvo. Ou seja, qual é o seu

significado no contexto cultural alvo?

6

Em Theatre at the crossroads of culture, este autor (IBIDEM: p.138-142)

apresenta uma série de concretizações textuais objetivando facilitar a compreensão das

transformações que um texto dramático sofre desde a sua concepção até a sua mise en

scène e recepção pela audiência:

Texto e Cultura Texto e Cultura fonte alvo

T0 T1 T2 T3 T4

concretização concretização concretização textual dramática para o palco

T0 refere-se ao texto-fonte, o texto ‘original’ que pressupõe as escolhas e formulações

de um escritor. O texto torna-se legível apenas em sua enunciação concreta,

principalmente, em suas dimensões inter e ideotextuais (estudos culturais).

T1 é a concretização textual dentro do processo de tradução, a partir da enunciação

inicial e virtual do T0, bem como da futura audiência (espectadores/leitores). Dentro

deste processo, o tradutor acumula os papéis de leitor e de dramaturgista e deve

empreender escolhas a partir do imenso potencial e indicações implícitas no texto-fonte.

Esta tradução deve incluir uma análise dramatúrgica do universo ficcional que está

incorporado no texto: enredo, personagens, tempo, espaço, atmosfera, tom visão autoral.

A organicidade e a coesão do texto-fonte devem ser examinadas. A tradução para o

teatro deve ainda contemplar a estilística e a cultura. A análise dramatúrgica torna-se

ainda mais necessária quando se trata da tradução de textos clássicos (a tradução será

mais legível que o texto-fonte), devido ao trabalho de adaptação.

T2 Um dramaturgista pode também atuar como intérprete para o tradutor e diretor no T2,

sistematizando escolhas dramatúrgicas úteis à futura mise en scène. Isto pode ser

realizado tanto através de sua leitura da tradução (T1), quanto mediante suas referências

ao original. O dramaturgista empreende um processo de concretização dramatúrgica do

texto fazendo, ao mesmo tempo, uma adaptação e um comentário a ele. A tradução para

o palco é mais do que um ato lingüístico, é um ato dramatúrgico. O tradutor no papel de

dramaturgista deve disponibilizar no texto as informações necessárias para que a

audiência compreenda o enredo, a ação, a caracterização e outros elementos. O tradutor-

7

dramaturgista pode fazer cortes, visando a compreensão imediata do texto pela

audiência. O texto deve ser adaptado às situações, necessidades e intenções no presente.

Desta forma, apaga-se a intenção original que é substituída pela atual.

T3 refere-se à concretização do texto pela sua enunciação no palco, o texto espetacular

ou performance text consiste em um teste no palco do texto inicialmente traduzido para

o T1 e o T2. É a etapa em que a enunciação é finalmente realizada; é formada pela

audiência na cultura alvo que, imediatamente, confirma se o texto é aceitável ou não.

T4 refere-se à concretização receptiva do texto encenado no palco, o T3. Este último

estágio poderia ser chamado a concretização do receptor ou enunciação,ele ocorre

quando o texto fonte atinge o seu destino final: o espectador. Este se apropria do texto

apenas no final do processo de concretizações que reduzem ou ampliam o texto-fonte,

que deve ser sempre redescoberto e reconstituído.

Este mesmo processo que descreve a transformação das sucessivas

textualizações na passagem de um certo texto para o palco, pode também ser aplicado

para a tradução intersemiótica de um texto literário para o cinema. Para a presente

pesquisa, pretende-se adaptar as conceituações de Patrice Pavis para o estudo da

produção fílmica realizada por Akira Kurosawa no Trono manchado de sangue. Dentro

deste processo, foi preciso adaptar a terminologia usada por Pavis para uma produção

fílmica e acrescentar um item aos já estabelecidos por Pavis, que se tornaria o T5. A

justificativa para isso é que o cinema compreende uma etapa adicional entre a

concretização fílmica (T3) e a sua recepção pelo espectador, que consiste da

concretização da edição8.

8 A pós-produção é tida como o momento em que ele se define como linguagem. Este é o momento em que as cenas, gravadas fora da ordem escrita no roteiro, tomam corpo. É a etapa em que se definem aspectos ocorridos na filmagem: se uma decisão sobre um enquadramento de câmera funcionou ou não, se há necessidade de dublagem, e como um diálogo deve ser montado (em plano aberto ou utilizando-se plano e contra-plano, ou com a alternação dos dois). Cada versão montada do filme é chamada de corte e é numerada. Na edição, os filmes podem ser refeitos, principalmente nos grandes estúdios, contrariando ou destruindo a visão do diretor, por decisão dos produtores.

8

Pré-produção Produção Pós-produção

T0 T1 T2 T3 T4 T5

concretização concretização concretização concretização textual do roteiro da filmagem da edição

Texto e Cultura Texto e Cultura Fonte Alvo

T0 corresponde igualmente ao texto-fonte, ou seja, o texto literário que servirá de base

para a adaptação fílmica.

T1 corresponde ao roteiro literário original ou adaptado. Deve-se partir de uma

transposição do texto-fonte em imagens, que prevê anteriormente não apenas a tradução

interlingual como a tradução intercultural, tendo-se como prisma a futura audiência.

Nesta fase, o roteirista e/ou o diretor, iniciarão o estudo de como transpor o enredo para

o cinema, uma vez que a fase que compreende o T1 prevê um estudo aprofundado do

texto-fonte objetivando exaurir o seu potencial de significados para o texto e cultura

alvos, antes da elaboração do roteiro propriamente dito. “O roteiro” literário, segundo

Syd Field, “é uma história contada em imagens, diálogos e descrições, localizada no

contexto da estrutura dramática” (FIELD: 2001, p. 2)

T2 corresponde ao roteiro técnico. É a fase em que se faz o detalhamento do roteiro

literário segundo decisões técnicas sobre a melhor maneira de contar a história em

imagens. O roteiro técnico segue a ordem do literário, que é dividido em cenas. Porém,

ele subdivide cada cena em takes, detalhando cada imagem com o plano da câmera, o

eixo da cena e a planta-baixa dos espaços. No decorrer desta fase, alguns cineastas e/ou

roteiristas elaboram um storyboard (composto de desenhos detalhados do filme cena a

cena, com cenário, atores, posicionamento de câmera e outros detalhes úteis durante as

filmagens. Assemelha-se visualmente a uma história em quadrinhos, mas é uma

indicação visual das decisões imagéticas tomadas durante o roteiro técnico, acrescidas

da ação e dos diálogos, que são indicados através de legendas). Tendo o roteiro e/ou o

storyboard como base, é elaborado o cronograma de filmagem, que se refere

distribuição das cenas para cada um dos dias de filmagem; e em seguida é feita a

9

decupagem que consiste no detalhamento os aspectos técnicos de cada uma das cenas,

como por exemplo, a luz e o enquadramento de câmera.

T3 corresponde à concretização do processo de gravação do filme, em imagens captadas

no set de filmagem a partir do roteiro T2. As cenas são gravadas de acordo com o que

foi estabelecido no cronograma, fora da seqüência narrativa do filme. As cenas são

registradas em mais de uma versão, as chamadas tomadas. São feitas anotações em uma

ficha de filmagem, com observações concisas (cena bem sucedida, vazamento de som,

falha no diálogo, dentre outras) sobre cada uma das versões numeradas de cada cena,

visando auxiliar o processo de montagem.

T4 corresponde à concretização da edição, à montagem do filme. Somente na fase da

montagem é que um filme deixa de ser um conjunto de fragmentos para ganhar uma

conformidade de todo. Neste momento, logo após a montagem propriamente dita, é feita

a pós-produção de som, que define a atmosfera final do filme9.

T5 corresponde ao momento da recepção pelo espectador nas telas dos cinemas. Apesar

de, hoje em dia, um filme precisar contar com a audiência em DVD (locadoras) e da

televisão, o objetivo final de uma adaptação fílmica é a exibição na grande tela dos

cinemas, em que há a recepção coletiva do filme pelo público. A exibição de grande

parte da filmografia realizada por Kurosawa, foi pensada exclusivamente para a sala de

exibição. Apenas filmes mais recentes, como Sonhos, Rapsódia de Agosto e Madadayo

tiveram que prever outras formas de exibição como complementares à das salas de

cinema10.

A realização fílmica engloba três fases de trabalho distintas e subseqüentes: a

pré-produção, a produção e a pós-produção:

• A fase de pré-produção inicia-se com a elaboração do roteiro (T2). A partir dele, é elaborado o

roteiro técnico, em que se dá a tradução do enredo em decisões que visem à produção de 9 Um evento recente de pirataria que consistiu na veiculação ilegal e antecipada do filme Tropa de Elite antes da estréia nos cinemas está diretamente relacionado à montagem e à edição de som no que se refere à sua primeira recepção. A montagem final do filme exibida nos cinemas exclui uma cena que caracteriza, possivelmente, os policiais como nazistas. Está sendo cogitado que a exclusão desta cena ocorreu devido a esta percepção negativa pela platéia “pirata”. Os espectadores ‘piratas’ saíram prejudicados quanto à edição de som, porque esta versão conta apenas com o resultado da captação direta de som. Esta versão é anterior à edição de som, na qual é realizado um tratamento de som (inserção de sons gravados, dublagem e outros elementos enriquecem o som final) quando é feita uma ambiência sonora para o filme que dá ao filme seu caráter dramático. 10 Havia uma defasagem de alguns anos entre o lançamento nos cinemas e a versão em VHS ou DVD mesmo nos filmes mais recentes. O prazo extremamente curto, com diferença de poucos meses, entre o lançamento de um filme nas salas de exibição e sua veiculação nas locadoras e lojas de DVDs é um fenômeno que se iniciou na última década e, portanto, após a morte de Akira Kurosawa.

10

imagens. Ela também engloba atividades como a preparação dos cenários, a escolha de locações

(o encaminhamento de pedidos de interdição de ruas, por exemplo), a escolha do figurino de

cada um dos personagens, a elaboração dos planos de filmagem do diretor e também das equipes

de fotografia e de som. Outros detalhes anteriores que precisam estar definidos para o momento

da filmagem também são decididos. O calendário dos dias de filmagem e os prazos para iniciar a

pós-produção devem ser estabelecidos já nesta fase. Alguns meses antes da filmagem iniciam-se

também os ensaios com os atores.

• A fase de produção consiste no momento da filmagem (T3). É o momento de captação das

imagens que se constituirão na pós-produção no produto final: o filme. É feita também a

captação de som direto, que será parcialmente utilizada na edição de som. O set de filmagem,

que não deve ser confundido com a equipe de produção.

• A fase de pós-produção engloba as edições de imagem e de som (T4) – há também atividades

ligadas à equipe de produção nesta fase, mas não ligadas ao material filmado, mas a questões

como a divulgação (a cargo da equipe de produção ou de uma agência de divulgação), a

distribuição do filme e o agendamento de salas para a estréia. A pós-produção imagem11 é uma

etapa “pouco conhecida do público”, mas atualmente, diz-se que este é o momento em que se

define o produto final. A “atividade do montador é peça fundamental no processo criativo de um

filme. Trabalhando com material recém-filmado ou com material de arquivo, ele é o grande

responsável pelo ritmo da narrativa, entre tantas outras coisas.” A montagem ordena as imagens,

linear ou não linearmente, e lhes dá sentido. Outra atividade primordial é a pós-produção de som

pois ela compõe a ambientação12, que muitas vezes é decisiva para o sucesso ou insucesso de

uma obra fílmica. Ela se constitui da gravação posterior dos sons necessários para dar

significado às imagens (batida de carro, tiro, canto de pássaros); da gravação sincronizada de

sons como passos, chamada foley – feita por um profissional que acompanha exatamente a

imagem do ator e reproduz seus passos e da dublagem efetuada pelos atores em algumas cenas

em que o som direto não pode ser utilizado.

Nesta atividade artística, há dois quadros hierárquicos possíveis para estas

equipes. O primeiro é o existente nos filmes produzidos pelos grandes estúdios, e que

tem na figura do produtor o topo do organograma, abaixo dele o diretor (funcionário do

estúdio), e abaixo deste as demais equipes acima citadas. No segundo, o cinema autoral,

o topo da escala de trabalho consiste na figura do diretor, que tem a seu comando um

11 Um material didático-explicativo sobre esta etapa da realização fílmica é o DVD 2 da nova versão de King Kong, que contém um documentário extra sobre como se deu o processo de pós-produção do filme. Guardadas as proporções entre uma mega-produção hollywoodiana e as demais, é assim que o processo ocorre. 12 Os tiros de cinema por vezes parecem mais autênticos do que os ocorridos na realidade, pois estes soam secos e rápidos demais para a nossa percepção mais acostumada aos tiros da ficção. Em alguns filmes, para produzir um som complementar à imagem, a composição utiliza além do som principal de tiro, fragmentos de sons metálicos para que a impressão final seja mais complexa.

11

produtor executivo (que lida com as adequações financeiras e outros detalhes

burocráticos), e as demais equipes.

Por se constituir em uma atividade essencialmente coletiva, o cinema possui

diversas equipes que devem estar a par do roteiro e possuir uma cópia dele. Estas

equipes constituem-se da direção (composta pelo diretor e por um ou dois assistentes de

direção); da direção de arte (cenografia, figurino, maquiagem); da produção

(alimentação, transporte, materiais, captação de recursos e divulgação); fotografia

(câmera, foquista, maquinista) e captação de som direto (técnico de captação de som

direto). Todas estas equipes devem estar afinadas e conhecer perfeitamente o roteiro.

Todos os profissionais envolvidos no processo de produção de um filme são

primeiramente leitores do T2, e posteriormente re-criadores, cada um segundo sua

função.

A partir dos pressupostos teóricos desenvolvidos anteriormente, ao tratarmos da

transposição fílmica de Trono manchado de sangue (T5), o texto-fonte (T0) é a tragédia

shakespeariana, Macbeth.

Ilustração 2 – Kurosawa pintando cena de storyboard.

Para este diretor, o T2 refere-se não apenas ao roteiro mas, principalmente, a um

storyboard. Ele preparava não apenas um roteiro, mas os pintava antes de todos os seus

filmes, cena a cena. Por ter tido uma formação sólida em pintura, antes de ingressar no

mundo do cinema, seus storyboards são verdadeiras obras de arte. Kurosawa entrou no

cinema quase por acaso, quando estava em uma encruzilhada profissional no campo da

pintura, sem saber ao certo que rumo seguir em sua carreira. Seus storyboards são

muito próximos da imagem final em película, uma vez que seus desenhos são muito

12

detalhados tanto em ambientação quanto no posicionamento e enquadramento de

câmera. Algumas imagens ilustrativas de seus storyboards estão dispostas a seguir:

Existe uma grande proximidade entre as pinturas elaboradas para o storyboard e

a imagem filmada. As duas imagens abaixo ilustram esta proximidade, embora sejam

partes de filmes diferentes13, a pintura faz parte do storyboard do filme Kagemusha

(1980) e a foto é parte do filme Trono manchado de sangue e apresenta o protagonista

após tomar posse do feudo:

Ilustrações 3 – A semelhança entre ambas as imagens faz pensar que se trata do mesmo personagem.

A formação inicial deste diretor em pintura transparece não apenas na beleza e

no detalhamento dos storyboards, verdadeiras obras de artes, mas no uso diferenciado e

intermidial do contraste e, posteriormente, da cor, em seus filmes. As locações e os

13 As imagens foram relacionadas por sua proximidade imagética e também porque não foi encontrada nenhuma amostra do storyboard do filme Trono manchado de sangue.

13

cenários dos filmes do cineasta são trabalhados de forma a comporem imagens

semelhantes às da pintura.

Nos filmes PB (preto e branco), por exemplo, o preto e branco era mais do que

apenas um suporte material para a história a ser contada, era tratado como suporte

estético para a criação artística. Eram enfatizadas visualmente as sombras e contrastes e

elementos interessantes como florestas, castelos, choupanas, vilarejos, névoa, vento e

chuva eram elaborados artisticamente, à pintura tradicional a nanquim, suibokuga.

Como enfatizou Donald Richie (RICHIE: 1984, p. 121), um estudioso da obra de

Kurosawa que será retomado ao longo desta pesquisa, em seu estudo sobre o filme

Trono manchado de sangue, “raramente se viu um filme branco e preto tão branco e

preto”. Este aspecto pictórico tem caráter narrativo no filme.

No caso dos filmes coloridos, este aspecto pictórico das cenas14 se fazia presente

de maneira diversa. Esta é uma característica marcante de Kurosawa desde seu primeiro

filme colorido, Dodes’ka-den (1970), que foi comparado à pintura de Mondrian. Outro

exemplo, desta vez diretamente relacionado às adaptações shakespearianas do diretor, é

Ran, que mostra a imensidão do céu azul, pintado com nuvens brancas, e o colorido

tanto da natureza quanto do figurino, representado pelos tecidos dos kimonos dos atores.

Ao analisarmos sua filmografia, percebe-se que Kurosawa produziu o mesmo

número de filmes em preto e branco (PB) e de filmes coloridos, o que evidencia que o

cineasta foi atuante em ambos os momentos históricos, ou seja, antes e depois do

advento da cor (ver filmografia, em anexo).

No momento da montagem15 (T4), uma cena não é cortada apenas no caso de ter

sido mal filmada, uma vez que cenas muito bem realizadas podem se revelar inúteis ao

enredo quando avaliadas durante o T4, acabando por serem descartadas. No caso dos

grandes estúdios hollywoodianos, a figura do produtor pode interferir na montagem do

filme, modificando o produto final.

14 As experiências com a cor começam em 1909. Por volta de 1933, a Technicolor aperfeiçoa um sistema de três cores, empregado pela primeira vez no Vaidade e beleza, 1935. O primeiro filme em feito totalmente em cores foi O Ladrão de Bagdad, 1940. A tecnologia dos filmes coloridos era cara, inviabilizando a utilização em produções modestas. Nos primeiros anos, mesmo os grandes estúdios continuavam com produções em PB e apenas poucas mega-produções coloridas. Pouco depois da filmagem de E o vento levou (1939) pela MGM, Alfred Hitchcock, contratado pelo mesmo estúdio, filmava em PB. Por isso, ele ironizava com a idéia da cor, inserindo nas falas dos atores referências a um anel verde que o espectador não poderia ver. Nos anos 50, o uso da cor generalizou-se tanto que o PB ficou praticamente relegado a pequenos filmes. 15 A montagem, ou seja, a edição de imagem tem várias versões, chamadas de cortes, que são numeradas da mesma maneira que acontece com o roteiro. Elas constituem-se em várias versões do filme, montadas de tal maneira que um diretor e/ou um produtor possam efetuar a escolha do melhor corte.

14

Um exemplo de uma cena que foi filmada apropriadamente, mas que acabou

sendo descartada durante o processo de edição de imagem ocorreu com Kurosawa

durante a edição do Trono manchado de sangue. Este fato foi testemunhado por Richie,

que o descreveu da seguinte forma:

O cenário atual representava o palácio provinciano do senhor Washizu, o personagem de Macbeth, e estava-se filmando a chegada de Duncan: soldados, estandartes, cavalos, um javali empalhado preso em hastes – uma procissão inteira. Quando um assistente deu o sinal, ela começou a avançar sob o sol do outono tardio. Acima de nós, numa plataforma, estava Kurosawa e seu câmera. Tínhamos conversado com o diretor anteriormente, e ele nos explicara seus planos para aquela cena. Agora, o observávamos em ação. Gastou-se a tarde inteira com as partidas e paradas daquela procissão distante. Partes da cena estavam sendo filmadas com lentes de foco profundo, depois eram refilmadas várias vezes. Meio ano mais tarde, quando vimos o filme pronto na sala de projeção, não encontramos nenhuma daquelas tomadas. Perguntei a Kurosawa por quê. As cenas ficaram boas, mas não eram realmente necessárias. Ademais, quebravam o fluxo do filme. Joe e eu ficamos estarrecidos. (RICHIE: 2000, p. 73)

O próprio Kurosawa escreve o que poderia ser uma resposta a esta surpresa

deste autor, no primeiro dos dois trechos abaixo sobre edição: “O requisito mais importante para a edição é a objetividade. Não importa quanta dificuldade você encontre para obter determinada tomada, o espectador jamais entenderá isso. Se não for interessante, simplesmente não será interessante. Você pode ter-se tomado de grande entusiasmo ao filmar determinada tomada, mas se esse entusiasmo não é transmitido na tela, você deve ser pragmático o suficiente para cortá-la.” (KUROSAWA: 1990, p. 282) Editar é um trabalho realmente interessante. Quando os copiões16 chegam, raramente os mostro à minha equipe exatamente como estão. Em lugar disso, vou para a sala de edição no fim do dia de filmagem e, com o montador, gasto três horas editando os copiões. Só depois disso mosto os resultados à equipe. É necessário mostrar esse resultado editado com o objetivo de despertar o interesse. Algumas vezes eles não entendem o que está sendo filmado ou por que têm de gastar dez dias numa tomada. Quando eles vêem a película editada e a confrontam com seu trabalho, tornam-se entusiasmados novamente. E editando da forma que edito, só tenho a montagem de detalhe a completar, depois de terminar a filmagem. (IDEM)

A recepção do filme pela platéia é realizada apenas no T5, quando o filme tem

sua estréia nas salas de cinema. Antes deste momento que representa o objetivo final de

uma realização fílmica, muitas decisões estéticas e técnicas foram tomadas em todas as

etapas acima explicitadas para que o filme se materialize na tela.

Para criar sua adaptação fílmica da peça shakespeariana Macbeth, Kurosawa

demorou alguns anos a mais do que pretendia para criar sua adaptação fílmica desta

16 Cópias brutas das imagens registradas em película durante as filmagens. Elas formam a base para a edição linear (em filme, cortando e montando os pedaços um a um) e, posteriormente, para o filme finalizado. Hoje, com as câmeras digitais, o filme é registrado em DVD ou no disco rígido da câmera, e depois montado no computador, o que é chamado de edição não-linear.

15

peça shakespeariana, porque outro diretor de renome filmou uma versão no ano de 1948,

a mesma época em que Kurosawa manifestou pela primeira vez esta intenção. Segundo

as próprias palavras do diretor: “Ao terminar Rashomon, eu queria fazer algo com

Macbeth de Shakespeare, mas justamente naquela época foi noticiada a versão de Orson

Welles e, portanto, adiei a minha.” (RICHIE: 1984, p. 116)

Durante o período que decorreu entre o término de Rashomon (finalizado em

1949 e lançado no ano seguinte) e as filmagens de Trono manchado de sangue (filmado

em 1956, lançado no ano seguinte), o diretor pôde amadurecer suas idéias. Ao transpor

a tragédia shakespeariana para o feudalismo japonês, o diretor empreendeu algumas

escolhas como a transformação do protagonista em um valoroso samurai no início do

filme. Esta decisão modifica a personalidade de grande parte dos personagens da

narrativa. Os elementos que contribuíram para a concepção fílmica de Kurosawa estão

explicitados abaixo:

Bushidô Intertextos

Macbeth tradução Concepção Trono

Shakespear p/ o Japonês Kurosawa Manchado de Sangue Teatro Nô. História e cultura japonesa

Esta linha de procedimentos textuais que estabelece uma relação entre o texto-

fonte e o texto-alvo, evidencia a inter-relação de diversos elementos que compõem a

produção fílmica final (T5). A partir desta reflexão, resta lembrar que como todo texto,

tal como percebemos pelo esquema acima, “é composto de escrituras múltiplas,

oriundas de várias culturas que entram em diálogo em paródia e em contestação umas

com as outras”, o leitor e/ou espectador é a entidade que irá ativar toda a duplicidade e

multiplicidade textual objetivando dar-lhes um significado. (MIRANDA: 2005, p. 147)

Como ocorre com todas as obras artísticas, diferentes espectadores terão percepções

diversas de Kumonosu-jô. Ao se tornar um ativador dos textos e intertextos, o leitor e/ou

16

espectador “situa o ‘locus’ do sentido textual dentro da história do próprio discurso”.

(HUTCHEON: 1991, p. 166)

Dentro desses pressupostos, Umberto Eco (ECO: 1994, p. 50-51) vale-se da

Filosofia da Composição de Edgar Allan Poe, para expor a tese de que há diferentes

níveis de leitura para o texto. Há o leitor-modelo um leitor ideal para o qual o texto é

pensado ao ser escrito. Entre os leitores empíricos, os leitores reais a se debruçar sobre o

texto, há um leitor de primeiro nível e um de segundo nível. O leitor de primeiro nível

ocupa-se exclusivamente da trama, da narrativa criada pelo texto. O leitor de segundo

nível esforça-se por desvendar os mecanismos de construção da narrativa, de quais

recursos estilísticos e formais o texto se utiliza para desenvolver sua trama.

Além da intenção do leitor, um conhecimento cultural prévio é indispensável ao

leitor de segundo nível. Em Trono manchado de sangue os aspectos ligados à história e

cultura japonesas são, neste caso, um tanto nebulosos para o espectador do Ocidente,

algumas vezes, mesmo em se tratando de críticos. Dois deles expuseram leituras

equivocadas sobre o assunto: Donald Richie compreendeu que o protagonista Washizu

“não é grandioso. Antes, ele é um possesso desde o início, é compulsivo, tão

profundamente medroso que mata para assegurar-se de não ser morto. É um

homenzinho desprovido de grandeza precisamente por não estar dividido entre duas

vontades”. (RICHIE: 1984, p. 118) Já para Silva Nobre, o senhor feudal do Castelo da

Teia de Aranha “vive numa época em que predomina a lei do mais forte, violenta, sem

escrúpulos, desprovida de proteção policial.” (NOBRE: 1964, p. 94)

Ambas as leituras acima não levam em conta os aspectos sutis que envolvem

uma tradução cultural tal qual é realilzada por Kurosawa, quando transporta o enredo

shakespeariano para a intrincada sociedade feudal japonesa, que retrata a casta guerreira,

em um delicado equilíbrio entre filosofia de vida e comportamento bélico. Tratam-se de

detalhes que, talvez, passem desapercebidos para um espectador ocidental e sem

conhecimentos mais aprofundados sobre a cultura e a filosofia japonesas. Todos estes

aspectos estarão sendo aprofundados ao longo desta pesquisa.

Na linha da tradução intermidial e cultural, o filme de Kurosawa revela-se como

obra de arte ao realizar uma apropriação bastante corajosa de uma obra escrita por um

autor canônico como William Shakespeare que é visto por certos críticos, produtores

e/ou diretores como intocável. Esta adaptação é realizada nos moldes da transescrita,

termo utilizado por Mário Jorge Torres, e que se refere àquela tradução que não é mera

“repetição de esgotados esquemas de transposição do literário, mas o que inova,

17

aceitando a contaminação de linguagens e praticando experiência de transescrita”.

(TORRES: 2000, p. 68) Este é o processo de tradução mais corrente na

contemporaneidade, que é capaz de gerar obras-primas em criatividade a partir de re-

criações.

O filme tipifica perfeitamente o conceito de relation transmédiale, uma forma

de transposição intersemiótica, termo cunhado por Leo H. Hoek, utilizado aqui em um

sentido mais amplo sugerido por Claus Clüver, que assim incluiria o cinema. O termo

designa uma “transposição de um texto em texto auto-suficiente num sistema sígnico

diferente” (CLÜVER: 1997, p. 44-45).

Como obra-prima que vai além da simples adaptação, o filme Trono manchado

de sangue de Kurosawa estaria, igualmente, em posição de equivalência com o Hamlet

de Grigori Kozintsev que muitos críticos afirmam ser, segundo Maurice Hindle

(HINDLE: 2007, p. 36), um triunfo de Shakespeare em película”. Hindle percebe a

singularidade do filme de Kurosawa entre as adaptações do texto de William

Shakespeare para o cinema, ao afirmar que Trono manchado de sangue se mantém

isolado como a única adaptação fílmica sonora de uma peça shakespeariana que não usa

os atores falando seu texto, ao invés disso contando quase exclusivamente com os

recursos cinemáticos para transmitir o drama. (IBIDEM, p. 37)

2.1 O CINEMA E KUROSAWA Há algo que deve ser denominado beleza cinematográfica. Ela só pode ser expressa em um filme, e deve estar presente em um filme para que ele leve esse nome. Quando essa beleza é muito bem expressa, vivencia-se uma emoção particularmente forte enquanto se assiste ao filme. Creio que essa é a qualidade que motiva a ida das pessoas ao cinema, e que é a esperança de obter esse resultado o que inspira o realizador a fazer a obra, em primeiro lugar. Em outras palavras, creio que a essência do cinema repousa nessa beleza cinematográfica. Akira Kurosawa

O diretor Akira Kurosawa faz algumas reflexões sobre as especificidades da arte

do cinema e também sobre a questão da relação do cinema com outras formas de arte

que são interessantes para introduzirem este capítulo da pesquisa:

18

O que é cinema? A resposta a esta questão não é simples. Há muitos anos, o romancista japonês Naoya Shiga apresentou uma redação escrita por sua neta como um dos textos mais marcantes de seu tempo. Ele o publicou numa revista literária. Era intitulado “Meu cachorro” e começava assim: “Meu cachorro se parece com um urso; também lembra um texugo; também se parece com uma raposa...” A composição seguia enumerando as características especiais do cão, comparando cada uma delas com as de outos bichos e desenvolvendo uma lista completa do reino animal. A redação, entretanto, terminava com um “mas, por ser um cachorro, ele mais se parece com um cachorro.” Lembro-me de ter caído na risada ao ler esse texto, mas ele toca num ponto sério. Cinema se parece com tantas outras artes. Tem muitas características literárias, mas também conserva especificidades teatrais, revela componentes filosóficos, traz itens de pintura e escultura e elementos musicais. Ainda assim, cinema, em última análise, é cinema. (KUROSAWA: 1990, p. 274)

Este questionamento sobre as especificidades do cinema e as semelhanças deste

com outras formas de arte é um ponto crucial quando se discute a tradução

intersemiótica, o que é o cinema e como deve ser analisado. No que consiste a sua

linguagem e no que difere de outras formas de arte com a qual compartilha elementos.

Neste capítulo, iremos discorrer sobre o processo de realização fílmica, com o objetivo

de entender melhor estas questões. Qual a sua relação com a literatura, no caso

específico desta pesquisa? Para tentar entender melhor estas questões, faz-se necessário

conhecer o processo de realização fílmica.

Nesta etapa de planejamento do que viria a ser o seu filme (T1), o diretor

decidiu-se por transformar esta tradução intersemiótica e cultural em um exemplo do

gênero que se denomina jidaigeki17 no Japão, filme de época que equivale ao western

americano no apreço que os gêneros gozam com os respectivos públicos. Por ser um

gênero muito popular no Japão, existe uma profusão de títulos comerciais e, por este

mesmo motivo, eles são banalizados como forma narrativa. Kurosawa se ressentia da

utilização deste gênero apenas como entretenimento sem qualidade ou

comprometimento histórico e artístico. Segundo suas própria palavras: “Sempre achei

que o jidai japonês era historicamente desinformado. Além disso, esse gênero nunca usa

técnicas cinematográficas modernas. Em Os sete samurais tentamos fazer algo a esse

respeito, e Trono manchado de sangue seguiu a mesma linha.” (RICHIE: 1984, p. 116)

A etapa T1, que envolve a escolha e a formulação de um projeto cinematográfico,

pode partir tanto de uma idéia original do diretor e/ou roteirista ou de uma obra a ser

17 Jidaigeki é o termo que define os filmes de época japoneses, que se referem especificamente à Era Medieval e se relacionam diretamente com a figura dos samurais (bushis). O sufixo –geki que indica encenação; o termo define-se por seu prefixo jidai– que significa época.

19

adaptada, o texto-fonte T0. Sobre este assunto, novamente recorremos ao próprio diretor

para que relate a sua experiência:

Quando começo a considerar um projeto cinematográfico, sempre tenho em mente uma porção de idéias sobre o que gostaria de filmar. De todas elas, há sempre uma que repentinamente germina e começa a se expandir; essa será a idéia que irei agarrar e desenvolver. Nunca levei adiante um projeto a mim oferecido por um produtor ou a uma companhia produtora. Meus filmes emergem de meu próprio desejo de dizer algo em particular, numa época particular. A raiz de qualquer projeto cinematográfico situa-se, para mim, no desejo interior de expressar algo. O que nutre essa raiz e a faz prolongar-se em uma árvore é o roteiro. O que faz a árvore produzir flores e frutos é a direção. (KUROSAWA: 1990, p. 275)

A elaboração do roteiro é um processo contínuo, que prevê a possibilidade de

alterações, principalmente durante o T2. Cada versão do roteiro é chamada de

‘tratamento’ e é numerada. A numeração dos tratamentos começa em 1 e segue até sua

versão final, que pode ser produzida a qualquer momento durante o processo de

filmagem, caso haja necessidade de alterações. Cada alteração no enredo, na ordem das

cenas ou por outro motivo qualquer, gera um novo tratamento. Algumas vezes, o roteiro

pode ser alterado em função da filmagem ou por outros problemas técnicos. Nestes

casos também, o número do tratamento é alterado. Dois trechos do diretor discorrem

sobre o roteiro, um o relaciona com a função da direção, outro com a literatura e com o

teatro:

Com um bom roteiro, um bom diretor pode produzir uma obra-prima; com o mesmo roteiro, um diretor medíocre pode fazer um filme passável. Mas com um roteiro ruim, mesmo um bom diretor não tem possibilidade de fazer um bom filme. Para obter a expressão cinematográfica verdadeira, a câmera e o microfone devem ser capazes de atravessar água e fogo. Um filme verdadeiro nasce assim. O roteiro deve ser algo com o poder de realizar isso. (IBIDEM, p. 276) Para escrever roteiros, deve-se antes estudar os grandes romances e as grandes peças teatrais que o mundo produziu. Deve-se procurar saber por que são grandes. De onde vem a emoção que se sente ao ler? Que grau de paixão o autor teve de perseguir, que nível de meticulosidade teve de impor para modelar os personagens e os fatos da maneira que fez? Deve-se ler inteiramente, a ponto de se compreender todas estas coisas. Deve-se também assistir aos grandes filmes. Deve-se ler os grandes roteiros e estudar as teorias cinematográficas dos grandes diretores. Se seu objetivo é tornar-se um diretor, você deve dominar a escrita dos filmes. (IBIDEM, p. 277)

Por esta última linha, depreende-se também que Kurosawa prescindia da figura

do roteirista, porque ele mesmo escrevia seus roteiros e os transformava a seguir em

storyboards de beleza e detalhamento singulares. E este foi o seu processo até 1940,

mas em outro comentário o diretor enfatiza a importância de trabalhar dom mais uma

pessoa na elaboração do roteiro para não cair em dois erros primordiais: a interpretação

20

unilateral de uma pessoa e, para um diretor, a condução do herói e do enredo por um

caminho que seja de maior facilidade de resolução para a direção.

Após a concretização do roteiro e também do storyboard, todas as equipes de

trabalho envolvidas desenvolvem seus trabalhos de acordo com esta abordagem. A

preparação feita em cada uma das áreas deve ser concluída antes da concretização do

texto no momento das filmagens (T3). São feitas reuniões periódicas entre todos os

diretores de cada área, juntamente com o diretor, para que o trabalho seja coeso e todos

estejam cientes do seu andamento. Cada uma das equipes deve se reportar Kurosawa,

pois ele é tido como um realizador que exige perfeição em todos os aspectos.

Antes das filmagens, na fase de pré-produção, o diretor e seus assistentes

também têm decisões a tomar. Eles elaboram o roteiro técnico, empreendendo uma

decupagem das cenas (detalhando os aspectos técnicos de cada uma), decidindo as

questões técnicas e estéticas de como fazer cada uma das cenas. A decisão de filmar

uma determinada cena usando um plano médio ou uma panorâmica, fazer um close ou

se valer de uma câmera subjetiva (vide glossário sobre termos de cinema em anexo),

todas estas decisões são tomadas pelo diretor e seus assistentes. Estabelecem também o

cronograma de filmagem, agrupando as cenas de acordo com os cenários ou locações

utilizados. Kurosawa, nesta fase, preocupa-se também com o som:

Desde o momento em que me tornei um diretor de cinema, penso não somente na música, mas nos efeitos sonoros que colocarei nos filmes. Mesmo antes de a câmera rodar, juntamente a todos os itens que considero, decido que tipo de som eu quero. Em alguns de meus filmes, como Os sete samurais e Yojimbo, uso diferentes temas musicais para cada personagem principal, ou para grupos diferentes de personagens. (IBIDEM, p. 281)

As decisões sobre a filmagem de cada cena devem ser repassadas para a equipe

de fotografia, para que ela tome as decisões técnicas sobre a filmagem. Um dos

membros desta equipe é o foquista, que é o responsável pelo foco da câmera. Outro

membro essencial é o maquinista, que se encarrega do maquinário necessário para a

gravação de uma determinada cena, como a grua ou o trilho (vide glossário sobre

termos de cinema em anexo). Esta equipe é responsável também pela luz necessária

para a gravação de cada cena. Algumas vezes, o diretor de fotografia pode discordar da

decisão do diretor sobre a forma de capturar uma cena. Esta discordância pode envolver

motivações estéticas ou financeiras, quando a decisão do diretor extrapola os custos de

filmagem.

21

A equipe de direção de arte, de posse do roteiro (T2), divide-se em grupos que

irão preparar, respectivamente, as locações e os cenários18 (Trono manchado de sangue,

segundo os relatos de Richie teve ambos), o figurino, a maquiagem e os objetos de cena.

Para isso, foi feita uma intensa pesquisa de época, segundo relatos do mesmo autor.

Depois que a direção de arte define as locações, por exemplo, a produção

empenha-se em conseguir autorizações de uso dos espaços escolhidos. No caso de

Trono manchado de sangue, uma das locações foi estabelecida no alto do Monte Fuji.

Quando há a necessidade de montar um ou mais cenários, a produção se encarrega

também disso. A verba para a produção de figurinos, compra de objetos de cena e

outros detalhes também é repassada à produção.

No set de filmagem (T3), todos os aspectos decididos na pré-produção devem

estar finalizados, para que a captura das imagens propriamente dita se faça. Os

imprevistos, entretanto, fazem parte do processo. Como Richie bem ilustra ao relatar o

motivo do atraso nas filmagens de Trono manchado de sangue: “Kurosawa se recusava

a usar um cenário já pronto porque tinha sido construído com pregos, e as lentes de foco

profundo que estava usando poderiam revelar as anacrônicas cabeças de prego.”

(RICHIE: 2000, p. 72) O diretor não poderia ceder neste ponto, porque uma de suas

preocupações se relacionava com a falta de veracidade histórica do gênero jidaigeki. E,

neste caso, os pregos indicariam uma falha nesta questão, porque a arquitetura da época

feudal previa apenas o uso de encaixes perfeitos entre as vigas.

Ilustração 4 – Kurosawa e equipe

no set de filmagem.

18 Locações se referem a lugares pré-existentes utilizados durante as filmagens, como um castelo. Cenários caracterizam-se por se constituírem em estruturas construídas especialmente para o filme, como a reprodução dos cômodos internos deste castelo recriadas com o intuito de facilitar as filmagens.

22

Durante as filmagens, Kurosawa captava as imagens com três câmeras. Esta

idéia surgiu durante o filme Os sete samurais, porque o posicionamento delas

possibilitaria captar uma gama maior de detalhes e ângulos nas imagens. O diretor

ressalta, todavia, que existem poucos diretores no Japão que se utilizam desta técnica

porque a decisão de como movimentá-las concomitantemente é complexo. Ele discorre

igualmente sobre a iluminação, que consiste em uma atividade em que a criatividade é

essencial, tornando-se imprescindível que o iluminador elabore um plano próprio, que

deverá ser discutido com o cameraman e com o diretor. (KUROSAWA: 1990, p. 280)

Há um outro tipo de imprevisto que deve ser previsto já na etapa de pré-

produção pelo diretor e seus assistentes. A chamada opção chuva, que consiste na

escolha de uma cena alternativa que pode ser filmada no lugar de outra ao ar livre, no

caso de chover exatamente nesse dia.

Durante as filmagens, um profissional é muito importante, o continuísta. Ele

“canta” para a câmera, ou seja, anuncia em voz alta qual é o número da cena e o número

da tomada desta cena. Depois de gravada cada versão, ele anota resumidamente se ela

foi bem sucedida ou não. No caso de haver algum problema, ele identifica o que

ocorreu: um ônibus entrou na frente da câmera, o foco estava ruim, a imagem ficou

tremida.

Neste estudo sobre o processo de realização fílmica, Akira Kurosawa, através de

seu Relato Autobiográfico, proporcionou um momento de aprendizado único. Além

disso, compreender com um detalhamento maior a sua postura como diretor e re-criador

tornou-se uma forma de nortear a análise sobre o processo de tradução intersemiótica e

cultural criada por ele no filme Trono manchado de sangue.

3 AS ADAPTAÇÕES SHAKESPEARIANAS DE KUROSAWA Uma boa estrutura para um filme é aquela de uma sinfonia, com seus três ou quatro movimentos e tempos diferentes. Ou pode-se usar a estrutura do teatro Nô, com suas três partes: Jô (introdução), Ha (destruição) e Kyu (aceleração). Se você se dedica integralmetne ao Nô, e obtém dele algo de bom, ele emergirá naturalmente em seus filmes. O Nô é uma forma verdadeiramente única de arte que não existe em qualquer outra parte do mundo. Creio que o Kabuki, que o imita, é uma flor estéril. Mas, em um filme, penso que

23

a estrutura sinfônica pode ser a mais acessível ao entendimento das pessoas de hoje. Akira Kurosawa

Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô) e Ran são traduções culturais

ambientadas no universo do Japão feudal, o que restringe os enredos de ambas as peças

à disputa de um único feudo. Tem-se em ambos a figura do samurai como elemento

fundamental no processo de tradução cultural em ambas as adaptações. Ran guarda uma

relação de proximidade com Trono manchado de sangue não apenas por serem ambas

adaptações fílmicas shakespearianas, mas porque Ran possui diversos elementos

encontrados na adaptação de Macbeth e que são re-trabalhados de maneira diversa.

Além disso, ambos os filmes são exemplos do gênero jidaigeki, já citado anteriormente.

No Trono manchado de sangue, o conjunto de preceitos de conduta que

deveriam ser seguidos pelo samurai e que estão contidos no Caminho do Guerreiro

(Bushidô) é imprescindível para a compreensão do contexto cultural. No segundo filme,

a divisão do reino entre os filhos do protagonista torna-se o foco para o início da ação

trágica, uma vez que no contexto feudal seria impossível evitar os conflitos mesmo os

de parentesco.

O objeto de estudo desta pesquisa, o filme Trono manchado de sangue, trata-se

tanto de uma tradução intermidial quanto de uma tradução cultural partindo do texto-

fonte, a tragédia shakespeariana Macbeth. Ele se constitui na primeira das adaptações

shakespearianas do diretor Kurosawa. A transposição do enredo shakespeariano para o

universo feudal se dá seguindo estas equivalências abaixo, que são resultados das

decisões relacionadas com a adequação ao contexto da cultura alvo:

Quadro de equivalências entre a tragédia Macbeth e a adaptação Trono manchado de sangue

Macbeth Trono manchado de sangue

Duncan, rei da Escócia Lord Kuniharu Tsuzuki Malcolm Kunimaru Tsuzuki Lenox e MacDuff conselheiro Noriyasu Odagura Macbeth capitão Takedori Washizu Lady Macbeth Lady Asaji Washizu Banquo capitão Yoshiaki Miki Fleance Yoshiteru Miki, um samurai adulto 3 bruxas 1 bruxa Cawdor Fujimaki, traidor (personagem apenas

24

citado) Noruega Inui, senhor feudal vizinho (apenas

citado) O conselheiro Noriyasu e o filho de Miki (correspondente a Banquo no filme) dividem o papel de vingadores das mortes de Tsuzuki e Miki, juntamente com Kunimaru Tsuzuki, o legítimo herdeiro do feudo.

O filme Trono manchado de sangue, objeto desta pesquisa, foi produzido em

película 35mm, em preto e branco (PB). Esta aparente limitação pictórica da mídia não

foi considerada por ele apenas como um componente técnico, mas primordialmente

como uma questão estética que intensifica o clima sombrio referente à peça. As

tonalidades de preto e acinzentadas permitem uma infinidade de matizes, à semelhança

da pintura a nanquim, que compõem a atmosfera sóbria na qual os personagens atuam.

Uma cena em que este aspecto pictórico do cenário é primordial acontece

quando da visita do senhor feudal Kuniharu Tsuzuki à Mansão do Norte. O quarto

principal é cedido para ele e os servos se dirigem para um outro cômodo da edificação

com a finalidade de arrumá-lo para os protagonistas. Este aposento é o quarto no qual o

antigo senhor a Mansão, o traidor Fujimaki, foi executado. Os servos vislumbram a de

sangue do traidor mancha impregnada na parede, que se assemelha a um quadro de arte

abstrata. Esta visão traz um caráter lúgubre não apenas para esta cena, mas para as

outras subseqüentes: estas cenas estão interligadas não mais unicamente à traição de

Fujimaki, mas se relacionam também à nova traição a ser perpetrada pelo protagonista

Takedori Washizu, sob a influência nefasta de sua esposa Asaji.

Ilustração 5 – A mancha deixada pelo sangue do traidor.

25

Trono manchado de sangue circunscreve o enredo de Macbeth ao espaço mais

restrito da disputa de um feudo, o feudo do Castelo da Teia de Aranha. O feudo do

Castelo da Teia de Aranha, dentro do qual o castelo homônimo se constitui na

construção principal em importância, é composto pelas seguintes edificações19: Forte

número V; Forte número IV; Forte número III; Forte número II, comandado pelo

capitão Yoshiaki Miki (Banquo); Forte número I, comandado pelo capitão Washizu

(Macbeth); Mansão do Norte, comandado pelo traidor Fujimaki; e Castelo da Teia de

Aranha, comandado pelo senhor feudal lord Tsuzuki. O senhor é muitas vezes

denominado apenas por tonosama20 ou simplesmente tono, e constitui-se no governante

de todo o feudo. Estas construções estão listadas em ordem crescente de poder

hierárquico.

V

IV Castelo III Floresta

I II M

M = Mansão do Norte Fortes = I, II, III, IV, V

De início, ocorre a traição de Fujimaki a lord Kuniharu Tsuzuki. Esta traição

gera uma revolta, que aparece em uma das cenas iniciais do filme. Esta traição e a

conseqüente revolta têm relação com as profecias feitas para o protagonista Washizu e 19 Os cargos referentes aos postos são Taishosama – posto dos comandantes dos fortes; Tonosama – utilizado para designar o comandante da Mansão do Norte; Ojôshisama – tratamento formal e cargo referentes ao senhor feudal. Além destas construções, havia ainda os Fortes III, IV, e V, mas que não entram diretamente nas disputas hierárquicas de Washizu e Miki. O Forte III aparece apenas na disputa final pela retomada do feudo, usurpado por Washizu. 20 Tonosama ou tono também pode ser utilizado para o senhor feudal, além de designar o senhor de uma mansão ou castelo; pode ser traduzido como nobre dignatário. O senhor feudal tinha, por seu caráter distintivo de importância, a denominação de ôdono, na qual o prefixo ô- significa grande e –dono é a variação fonética requerida pelo termo tono em função da partícula ô-.

26

Miki pela bruxa. Washizu se tornaria, primeiramente, o senhor da Mansão do Norte e,

posteriormente, o senhor de todo o feudo do Castelo da Teia de Aranha. Miki seria

inicialmente promovido ao posto, atualmente ocupado por Washizu, de comandante do

Forte I e, posteriormente, sua linhagem herdaria o feudo.

A profecia relacionada com Washizu e a realização da primeira parte dela geram

a ambição desmedida de sua esposa, Asaji Washizu. Ela decide concretizar a segunda

parte da profecia não importando os meios de que tenha que se utilizar. Asaji o tenta

com a ambição, mas falha. Então, passa a mentir e a induzir o marido ao engano ao

supor que corre risco de ser traído e morto pelas costas pelo seu senhor. Após a

obtenção do feudo, ela dá o golpe final, relatando sua gravidez ao marido para que este

mate Miki e o filho, Yoshiteru Miki. O motivo destas mortes é que Washizu havia

prometido o feudo ao filho de Miki por não possuir herdeiros.

Trono manchado de sangue também mantém um vínculo estreito de

proximidade com uma outra adaptação shakespeariana feita por Kurosawa, Ran. O

primeiro filme possui toda uma gama de elementos culturais que irão ser retomados e

desenvolvidos pelo diretor com maior profundidade nesta obra posterior, com oito anos

de intervalo. Até mesmo a imagem da(s) flecha(s), tão marcante em Ran, é recorrente,

uma vez que aparece em dois momentos do filme Trono manchado de sangue. O

primeiro momento ocorre logo no começo do filme, quando Washizu considera que foi

profundamente ofendido e ameaçado pela revelação da bruxa e, novamente, na cena

final, em que o protagonista é morto a flechadas. O interessante nesta cena é que ele é

morto por seus subordinados, tendo ao fundo a parede externa do Castelo da Teia de

Aranha.

Ilustração 6 – Imagem da flecha em Ran.

A cor viva e marcante de Ran, que se assemelha a uma sucessão de pinturas em

movimento na tela tem também caráter narrativo. A cor é um ponto de diferenciação em

27

relação ao Trono manchado de sangue. Este filme é considerado solar pelos críticos, por

conter elementos como a imensidão do céu incrivelmente azul, pintado com nuvens

brancas, e o colorido tanto da natureza quanto do figurino, representado pelos tecidos

dos kimonos dos atores.

No filme Ran, enfatizam-se as guerras entre feudos vizinhos e a anexação de

terras pelo vencedor, o protagonista Hidetora. O sacrifício do senhor feudal vencido e

de sua família é efetuada, e uma única mulher de cada um dos dois clãs inimigos ao de

Hidetora (uma das filhas de cada senhor feudal) é poupada para que a paz seja instituída

através do casamento de cada uma delas com os dois primeiros filhos do senhor feudal.

Gera-se com isto a segunda grande vilã de Akira Kurosawa, Kaede. Sedenta de

vingança, ela tem muito da ação trágica do filme em suas mãos.

Esta vilã posterior à Asaji do Trono manchado de sangue, tem para com ela uma

relação de retomada, pois ambas são as únicas grandes vilãs deste diretor, caracterizadas

em ambos os casos ligadas aos três elementos constituintes da tradução cultural ao

Japão Medieval: o feudalismo, o mundo samurai e seu código e o teatro Nô.

Visualmente, Kaede se assemelha muito a Asaji, como se a vilã criada no primeiro filme

fosse transposta para o segundo, realizado com um intervalo de quase três décadas. Em

ambos os casos, há uma ampliação do caráter malévolo destes personagens, que se

tornam vilãs de peso. Ao mesmo tempo, elas se revelam duas exceções no que tange à

representação das mulheres na obra fílmica de Kurosawa, que tende a retratá-las como

personagens melhores do que os homens.

Kaede se torna a articuladora da ação trágica no filme, intensificando as

discórdias dos dois filhos mais velhos com o pai, Hidetora e também destes entre si. As

mortes se sucedem por seu intermédio e uma disputa interna se instaura dentro do feudo.

Apenas o filho mais novo se acha imune aos encantos desta mulher que não mostra

limites no que se refere ao seu objetivo de aniquilar Hidetora e seu feudo.

O filme O homem mau dorme bem completa o conjunto de adaptações fílmicas

shakespearianas de Kurosawa. De acordo com o meu ponto-de-vista, o filme O homem

mau dorme bem poderia ser chamado de adaptação-problema, se tomarmos por

empréstimo a nomenclatura de peça-problema que é utilizada por alguns estudiosos de

Shakespeare para definir algumas peças que não se encaixam bem na classificação

utilizada para separá-las em tragédias, comédias e peças históricas. Por esta obra manter

muitos traços de semelhança com a tragédia Hamlet, seria inapropriado afirmar que se

trata de meras coincidências, apesar de ambas as obras diferirem em muitos aspectos.

28

A abordagem realizada pelo diretor neste terceiro filme é bastante diversa. Ele

ambienta esta trama nos anos 40 do século XX no mundo empresarial japonês com a

intenção clara de revelar a corrupção no mundo dos negócios. Kurosawa retrata de

maneira ácida a corrupção entre as empresas privadas e as estatais do governo japonês.

Neste filme o processo de recriação e apropriação envolve um maior

distanciamento com o texto-fonte e aproximações de caráter mais livre. As relações de

parentesco entre os personagens estão deslocadas: o personagem correspondente a

Claudius (vice-presidente Iwabuchi), além de não ser mais o tio de Hamlet (Koichi

Nishi), é pai dos personagens correspondentes a Ofélia (Yoshiko Iwabuchi) e a Laertes

(Tatsuo Iwabuchi). A ligação de Iwabuchi com o pai do protagonista (chefe-assistente

Furuya) estabeleceu-se no mundo dos negócios e a sua morte, ocorrida cinco anos antes,

foi atribuída a um suicídio. Sua ligação com Nishi não é conhecida por ninguém no

começo do filme. O protagonista torna-se secretário pessoal de Iwabuchi e o filme

inicia-se com o casamento dele com Yoshiko. Este casamento representa o mesmo

envolvimento de Hamlet com a Ofélia na peça shakespeariana, pois Yoshiko torna-se

um joguete de ambos os oponentes, Iwabuchi e Nishi e, ao final, enlouquece.

Outros dois pontos em que a re-criação se intensifica em relação ao texto-fonte

são a figura do fantasma e a peça-dentro-da-peça. O fantasma que aparece no filme é

falso; trata-se de um dos subordinados de Iwabuchi, o chefe-assistente Wada, salvo por

Nishi de se suicidar. Na realidade, o fantasma é um estratagema que se destina a

assustar o superior hierárquico do próprio fantasma, o chefe de departamento Shirai. O

segundo ponto de diferenciação é a peça-dentro-da-peça que se acha substituída por um

dos bolos de casamento, que se apresenta no formato do prédio em que o cadáver do pai

de Nishi foi encontrado e cuja finalidade permanece sendo a de desmascarar e perturbar

os antagonistas, dentre os quais está o diretor administrativo Moriyama.

Pode-se perceber a distância deste filme com o texto-fonte até mesmo pelo fato

de que Kurosawa nunca o relacionou diretamente com a peça shakespeariana. Muito

deste receio mostrado pelo diretor em relacionar seu filme a um cânone vem do fato de

que a noção de re-criação é muito recente e este conceito ainda não havia sido

assimilado, tanto pela maioria dos críticos quanto pelo público, até o início da década de

sessenta. Kurosawa apenas estabeleceu que o filme tratava-se de uma tragédia de

vingança.

Este conjunto de adaptações shakespearianas realizadas por Akira Kurosawa

possui uma riqueza de elementos composicionais complexa demais para ser esgotada

29

em apenas uma pesquisa. Desta forma, os outros dois filmes serão estudados por esta

pesquisadora no futuro próximo, e as duas maiores vilãs da obra fílmica deste diretor

serão analisadas comparativamente durante o mestrado.

4 A TRADUÇÃO CULTURAL EM TRONO MANCHADO DE SANGUE Like any cultural artifact removed either temporally or spatially from an originating context, the work of art becomes […] open to new interpretations as it moves through time and through different cultural surroundings. These interpretations infrequently become associated with the work, affecting subsequent interpretations, perhaps as much as the work itself. Marvin Carlson

A elaboração de uma tradução cultural trata-se de um processo cuja

complexidade ultrapassa uma mera transposição de um enredo de uma cultura para

outra. Dentro dos pressupostos já apresentados anteriormente, o texto traduzido

intersemiótica e culturalmente conterá elementos pertencentes tanto à cultura fonte

quanto à cultura alvo. A tradução cultural abrange um contexto mais amplo do que lidar

com diferentes textos ou artes (com seus signos e linguagens distintos), mas também ao

intrincado conjunto de características relacionadas à transposição tanto do texto-fonte

quanto do universo cultural em que ele está inserido para uma língua mais do que tudo

uma cultura totalmente divergente, referente ao texto-alvo.

Nesta primeira adaptação shakespeariana de Kurosawa, Trono manchado de

sangue, ocorre uma transposição da tragédia Macbeth para um contexto que abarca

valores totalmente diversos do ocidental. O texto-alvo guarda aspectos de ambos os

textos, os fatos essenciais aproximam-s intimamente daqueles encontrados no texto-

fonte, Macbeth, enquanto que a caracterização e as motivações dos personagens se

enquadram dentro do universo cultural ligado ao contexto do texto-alvo, ou seja, a Era

Medieval Japonesa. Esse processo de tradução cultural baseia-se em três aspectos

composicionais essenciais: no feudalismo, de caráter histórico; no samurai e seu código

de conduta (bushidô21), de caráter ético e no teatro tradicional japonês Nô, de caráter

estético. Cada um destes elementos composicionais será aprofundado nesta presente

pesquisa. 21 O Caminho do Guerreiro ou Bushidô era o código de conduta dos samurais. Seus valores primordiais eram: a justiça, a bravura, a benevolência, a cortesia, a veracidade, a honra, a lealdade. Maiores esclarecimentos no site: http://www.bushido-online.com.br/

30

4.1 O FEUDALISMO JAPONÊS ...a nearly 7000-year period in which the emperor, the court, and the traditional central government were left intact, but were largely relegated to ceremonial functions. Civil, military, and judicial matters were controlled by the bushi class, the most powerful of whom was the de facto national ruler.

Ronald E. Dolan and Robert L. Worden (ed.)

Para que seja compreensível a transposição da tragédia shakespeariana Macbeth para o

universo feudal japonês (incorporada à adaptação fílmica a partir de T2), é necessário

um aprofundamento da complexidade política deste país ao longo das eras. O Japão foi

um país governado, a princípio por um império, que consistiu primeiramente em um

matriarcado22 na Era Arcaica23 e depois se consolidou como um império de governantes

varões. Entretanto, a força política da família imperial foi decaindo ao longo dos séculos

até se tornar apenas simbólica durante a Era Medieval. No feudalismo, o arquipélago

era uma profusão de concessões de territórios, cada qual formado por um feudo

governado por um senhor feudal que tinha o título de daimyo, cuja tradução é grande

nome. Os feudos eram independentes entre si e, muitos deles eram também inimigos.

Os senhores feudais (primeiramente constituídos por integrantes de famílias

tradicionais ligadas à nobreza rural e depois substituídos pelos senhores feudais da

classe samurai) possuíam autonomia total sobre seus domínios, o que ocasionava

problemas em regiões de fronteiras, porque as leis de um lado da fronteira não se

aplicavam ao feudo vizinho. Havia, por exemplo, feudos que proibiam a entrada de

‘estranhos’ em suas terras. Estes, caso fossem descobertos, eram punidos com a morte.

As diferenças em relação às moedas eram freqüentes e dificultavam o comércio e a

circulação de mercadorias. Progressivamente, a fragmentação do país possibilitou o

desenvolvimento de diferenças lingüísticas cada vez maiores, que chegaram a originar

alguns dialetos incompreensíveis entre si, em algumas regiões.

O Período Medieval durou aproximadamente setecentos anos e é subdividido em

períodos, cada qual identificado pelo nome de seu governante. Estes governantes foram 22 Há um registro em um livro que trata especificamente dos japoneses da época de Wei (220-265). Nele, conta-se o relato de dois chineses que viajaram ao Japão no século III e lá encontraram um país chamado Yamatai ou Yamato governado por um rainha chamada Himiko. 23 A história japonesa divide-se em cinco épocas culturais distintas (eras ou épocas): Era Arcaica, Era Histórica Primitiva, Era Medieval (também chamada Feudal), Era Pré-moderna e Era Moderna. O objeto de estudo desta pesquisa abarca a Era Medieval, dividida em Períodos nomeados por seus governantes (inicialmente constituídos pelos imperadores e, a partir do período Kamakura, constituídos de governantes da classe samurai denominados bakufu).

31

grandes senhores feudais que conseguiram, com certo grau de sucesso, estabelecer a

centralização do país. Os períodos foram muito diversos entre si em termos políticos e

culturais. A ascensão da classe dos samurais iniciou-se no período Kamakura (1192 –

1333). Kamakura constituiu-se no primeiro governante efetivo da classe samurai do

Japão. Este governante, oficialmente subordinado ao Imperador, recebeu o título de

bakufu. Ele iniciou o feudalismo através da divisão do território japonês para os seus

aliados políticos. O sistema feudal foi se fortalecendo gradativamente até que cada

senhor feudal tivesse independência sobre seus domínios. O feudalismo prosseguiu

durante o período Muromachi (1338 – 1573) e também durante a época de Nobunaga

Oda e de Hideyoshi Toyotomi 1573 – 1600). Este poder dos senhores feudais teve um

enfraquecimento a partir da época do período Tokugawa (1603 - 1868).

A ascensão de Kamakura, um antigo senhor feudal da classe samurai, à posição

de governante (bakufu) instigou os senhores feudais mais poderosos a desejarem

conquistar a mesma posição, tomando-lhe o poder e, deste modo, sucedendo-o no

governo. Muromachi, o governante seguinte, foi bem sucedido nesta empreitada.

Entretanto, tanto Kamakura quanto Muromachi não se constituíram em governantes de

fato. Desde a divisão do território japonês em feudos, o poder se encontrava diluído

entre os inúmeros senhores feudais. O desejo de grandes senhores feudais como

Nobunaga Oda24, Hideyoshi Toyotomi e Ieyasu Tokugawa era não apenas conquistar o

título de bakufu, mas governar o país de fato através de uma nova centralização do

poder na figura do governante. A pretensão destes grandes samurais não era promover a

extinção do sistema feudal, mas apenas o seu enfraquecimento. Tokugawa obteve

sucesso na diluição do poder dos senhores feudais onerando-os através de taxas e de

obrigações financeiras e sociais freqüentes. A sucessão do poder civil após Muromachi

se deu nesta ordem e de maneira bastante significativa para se entender a política da

época.

Oda obtivera um grande poder como senhor feudal através das inúmeras guerras

entre feudos. Por este motivo, ele estava viajando rumo à capital, para receber do

Imperador o título de bakufu e se tornar o sucessor de Muromachi. Durante a viagem,

ele foi emboscado por tropas inimigas e acabou assassinado. Após a morte de Oda, os

demais senhores feudais supostamente seus aliados correram para prestar homenagem

24 Este personagem histórico e seus aliados foram retratados por Akira Kurosawa no filme Kagemusha - a sombra do guerreiro, já citado anteriormente.

32

ao morto e, assim, sucedê-lo, tomando-lhe o feudo e incorporando suas tropas e seu

poder. Toyotomi e Tokugawa estavam entre eles.

Entre todos eles, Toyotomi foi o primeiro a se manifestar. Inicialmente, ele tomou sob

sua proteção o neto de Oda, herdeiro legítimo do feudo, mas que nunca chegaria a

governá-lo. Outorgou a si mesmo a função de regente até que ele atingisse a maioridade.

Este era apenas o seu discurso, mas a sua pretensão era outra, ou seja, a de usurpar o

poder devido ao herdeiro. Mesmo estando cientes desse fato, os samurais leais a Oda

ficaram, a princípio, hesitantes entre agir ou se omitir, pois não havia provas e quem se

opusesse a Toyotomi macularia automaticamente a memória do antigo senhor, a quem

ele agora representava. Além disso, alguns senhores feudais como Tokugawa tiveram a

mesma intenção, apenas não o fizeram a tempo.

Toyotomi, entretanto, precisava evitar opositores, porque ele não provinha de

uma linhagem de samurais. Sua ascensão foi empreendida por meio do esforço pessoal e

através do apoio de Oda, que como senhor feudal alçou-o à condição de bushi. Com o

intuito de promover alianças, marcou uma reunião secreta com Tokugawa, um senhor

feudal de força militar e raciocínio equivalentes aos de Oda, e de linhagem reconhecida.

Solicitou que ele o apoiasse, através de promessas de favorecimento e de uma postura

servil. Conseguiu a concordância de Tokugawa para que ele efetuasse um ritual de

reverência pública diante de Toyotomi, em sinal de aceitação e lealdade. Tokugawa foi

impelido a esta atitude devido às circunstâncias.

Em retrospectiva, a ascensão destes líderes rumo à centralização do poder se deu

de forma gradativa. Oda estava muito próximo de obter o tenka quando foi eliminado.

Toyotomi instituiu um governo central incontestável pelo período de uma geração. Sua

intenção de estender a sua linhagem de governo foi malograda pelo fato de que seu

único filho era muito novo, quando morreu. Seu sucessor, Tokugawa, procedeu do

mesmo modo que ele no passado, tomando sob suas vistas o filho do seu antecessor e se

auto-nomeando seu tutor. Tokugawa governou plenamente, e seus sucessores somaram

cinco gerações dentro da mesma linhagem, totalizando aproximadamente cem anos,

durante os quais os demais senhores feudais tiveram que se adaptar a uma nova

realidade política.

33

Ilustração 7 – Ieyasu Tokugawa

As personalidades de cada um destes três líderes políticos eram bastante diversas

entre si. Existe uma fábula que relaciona todos eles a um cuco, cujo canto raramente era

ouvido. Os três senhores feudais, devido ao temperamento de cada um, usaram de

métodos diferentes para obter este canto do pássaro: Oda fez com que ele cantasse pela

força; Toyotomi bajulou-o até que cantasse; Tokugawa esperou pacientemente até que o

pássaro cantasse. Da mesma forma que na fábula, Tokugawa recuou um passo e

permitiu que Toyotomi governasse, fortalecendo-se para quando uma chance de tomar o

tenka surgisse novamente. Os japoneses costumam acreditar que as diferenças de

personalidade entre estes líderes influíram no grau de sucesso de cada um deles.

Quanto ao aspecto histórico, o filme Trono manchado de sangue não comporta

identificações precisas nos diálogos que indiquem em qual dos períodos da longa Era

Medieval teria ocorrido a tragédia. A referência visual, embora muito bem caracterizada

historicamente tanto no que se refere às locações e aos cenários quanto no que tange ao

figurino e à maquiagem, não esclarece totalmente o assunto. A inserção do enredo neste

período é um indício que ele se passa após o ano 1192, quando se inaugura a Era

Kamakura. Foi a partir deste ano que o poder dos guerreiros samurais principia a sua

escalada com a ascensão dos mais influentes dentre eles. Neste período, também, o

bushidô ou o caminho do guerreiro fixa-se como forma de conduta.

A Época Medieval e Feudal japonesa finda com o término da Era Tokugawa, em

1868. O enredo do Trono manchado de sangue, todavia, deve ter se passado muito antes

deste período. Isto porque Asaji, esposa de Washizu, faz menção à conquista do reino,

ou tenka, como uma das tentativas de induzir seu marido à ação. Este indício serve

como estreitamento do espaço de tempo que fica diminuído de aproximadamente

34

trezentos anos. A idéia de centralizar o poder do país inscreve a tragédia em algum

ponto anterior a 1568, ano em que Oda inicia o processo de unificação.

Neste momento histórico, um aspecto bastante relevante diz respeito à

distribuição geográfica dos feudos. A delimitação dos feudos seguia um padrão flexível,

visto que os castelos e as terras dos feudos eram anexados ou perdidos por meio de

freqüentes guerras com os feudos vizinhos. A paz era um bem provisório e também era

instituída através de uma imposição feita pelo vencedor, fato que está bem retratado em

Ran, no qual a mobilidade tanto física quanto geográfica entre os feudos é abordada

tanto nos diálogos quanto no aspecto visual (escritos no roteiro T2 e registrados em

película na etapa T3). Este filme e Trono manchado de sangue encontram-se

impregnados deste conteúdo político, devido ao período para o qual as tramas foram

transpostas.

Os casamentos eram regulados pelas questões políticas 25 , como foi visto

anteriormente na abordagem do enredo do filme Ran. Após uma disputa entre feudos

rivais, o vencedor subjugava e por vezes matava o senhor feudal e seus guerreiros. A

filha mais velha do clã derrotado era tomada como esposa de um dos filhos do senhor

feudal do clã vencedor, selando uma paz compulsória. O casamento imposto era uma

prática corriqueira mesmo quando o derrotado era poupado. Selava-se, assim, uma paz

aparente, repleta de intrigas e desconfianças de ambas as partes. Do lado derrotado, a

ordem do clã para esta filha, era para que matasse o seu marido na primeira

oportunidade. Deste modo, um samurai não poderia confiar inteiramente na esposa.

Além de falta de discernimento, Washizu não levou em conta esta característica das

uniões matrimoniais desta sociedade. Foi, assim, duplamente ingênuo e isto gerou a sua

queda trágica.

Já foi mencionado anteriormente que no Trono manchado de sangue, o enredo

original da tragédia fica circunscrita ao domínio político de um feudo, ao invés da

disputa pela coroa da Escócia, na tragédia Macbeth (T0). Este fato remete à questão da

mobilidade geográfica dos feudos nesta obra. Esta questão é representada, no Trono

manchado de sangue, pela pressão política exercida pelo feudo vizinho, governado pelo

senhor feudal Inui. Já nas primeiras cenas do filme esta presença se faz sentir através da

traição de Fujimaki (senhor da Mansão do Norte), que foi acarretada pela interferência 25 Este aspecto não exclui completamente a possibilidade do amor, mas este era um sentimento de caráter ilícito, houve fugas notórias de casais apaixonados e que muitas vezes cometiam o suicídio jogando-se na boca de vulcões. Mesmo quando o amor ocorria dentro do casamento, era proibitivo, pois o cônjuge era antes de tudo um inimigo de seu clã de nascimento.

35

externa desempenhada por Inui. Este outro senhor feudal comete um ato deplorável

quando ocasiona a traição por parte de um dos homens de confiança de Tsuzuki, senhor

do feudo do Castelo da Teia de Aranha. Seu ato mereceria uma represália, que acaba

não se concretizando, devido aos conflitos internos do feudo, inicialmente governado

por Tsuzuki. Estes enfrentamentos se sobrepõem às disputas exteriores entre os dois

feudos.

Devido às indicações do roteiro (T2) espaço em que se dá a tragédia se restringe

a um menor número de locações (escolhidas, como foi exposto anteriormente, pela

direção de arte) do que outras adaptações fílmicas. A mudança mais relevante é a do

encontro do protagonista com a bruxa que não se dá na charneca como na peça

shakespeariana, mas acontece dentro da mesma floresta próxima ao castelo, que figurará

na segunda profecia que ela fará. A ela também se dirige Washizu quando necessita de

uma segunda profecia que o mantenha no poder.

Ilustração 8 - O senhor feudal Tsuzuki ouve os relatos da revolta inicial.

Esta restrição espacial e de poder político, no filme de Kurosawa, faz com que

seja possível que a restauração do equilíbrio se dê por outros meios, ou seja, pela

destruição do castelo em si. Retomemos a cena inicial, em que o coro (em off)26 faz

referência à desgraça que se abateu sobre o castelo que existia no local, desgraça esta

que está intimamente ligada à queda trágica do herói Washizu. Concomitantemente com

ao canto, surge a imagem de um terreno descampado e parcialmente encoberto pela

névoa.

Bem no centro deste espaço de terra devastado encontra-se o único resquício do

castelo que antes havia ali, uma pilastra de madeira feita a partir de um tronco maciço e

26 A fala em off se verifica quando apenas a voz de um personagem e/ou narrador se faz ouvir, sem que a imagem deste também esteja presente. Outras imagens são mostradas simultaneamente a esta fala.

36

rodeada por uma cerca quadrada de pequeno porte. Ao longo desta pilastra resta uma

inscrição na vertical escrita com ideogramas e que nomeia a construção que inexiste:

Kumonosu-jô (o Castelo da Teia de Aranha), nome do feudo em que acontece a tragédia,

e igualmente o título do filme de Akira Kurosawa no original. A neblina que cobre

subitamente a planície vazia é um recurso visual que indica o retrocesso do tempo. No

momento em que ela se dissipa nesta atmosfera, o Castelo surge e o filme propriamente

dito entra em ação.

Ilustração 9 – Imagem inicial a pilastra.

Após a tragédia estar concluída, esta imagem de desolação completa é retomada

no final do filme. A estrutura do filme ganha, assim, um caráter circular, pois começa e

termina de forma análoga, em que visualmente se remete à destruição do Castelo da

Teia de Aranha e, auditivamente, volta-se a ouvir os motivos que levaram a esta

situação. A falha trágica de Washizu é retomada, através do mesmo canto monocórdio

que se repete, alertando sobre os perigos de se cair “na rede da luxúria do poder.”

A violência encontrada no filme era de fato uma presença constante durante o

período feudal. Stephen Turnbull refere-se a uma espécie de “violência controlada”

praticada pelos samurais, isto porque havia regras para a sua manifestação, tanto em

tempo de guerra quanto em tempo de paz. Um equilíbrio entre a obediência aos

princípios e a sua transgressão em proveito próprio regia no uso da brutalidade,

principalmente em momentos de paz. (TURNBULL: 2006, p. 9)

Um exemplo desta “violência controlada” (que atinge a crueldade em diversos

momentos) pode ser comprovado por um fato histórico que nos remete novamente a

Oda. Ele ordenou a execução do seu primogênito, porque ele se tornou uma ameaça à

continuidade do seu governo. Oda foi o responsável igualmente pelas mortes do

primeiro filho e também da esposa de Tokugawa, devido a uma conspiração insuflada

37

por ela contra ele. Ela foi movida pela vingança, por ser oriunda de um clã inimigo

daquele no qual Oda era o patriarca.

Outra situação ilustrativa quanto à época feudal foi vivenciada por Tokugawa

em sua infância. Ele foi enviado ao clã da esposa para ser criado por eles (yôshi). Ele

não foi adotado por outro feudo, mas incorporado como uma espécie de agregado

oriundo de outro feudo. Na realidade, esta condição significava que a criança se

transformava em uma espécie de refém, hitojichi, dentro de um feudo inimigo. Esta era

uma das maneiras de obrigar o clã perdedor a aceitar a paz, ou impor uma aliança com

algum clã. O casamento de Tokugawa com uma das filhas do patriarca foi ordenado

pelo feudo no qual ele era refém, como uma forma de estreitar a ligação entre as duas

linhagens através dos laços de sangue.

Na realidade, o que sucedeu ao neto de Oda foi semelhante com este fato

ocorrido durante a infância de Tokugawa. Toyotomi criou o menino luxuosamente, mas

isento de qualquer poder político, de maneira a mantê-lo sob controle e impossibilitado

de ameaçar o governo vigente. Toyotomi também impôs que Tokugawa lhe entregasse

seu segundo filho, Hidetada. Até o nome deste filho foi atribuído ao menino pelo

próprio Toyotomi, como uma maneira de reforçar a lealdade e a deferência pública de

Tokugawa, já que o primeiro ideograma de Hidetada é o mesmo do prenome Hideyoshi

Toyotomi.

Devido ao ambiente de hostilidade que reinava entre os feudos, havia uma

inimizade implícita nas uniões matrimoniais como um dado freqüente na sociedade

feudal. Mesmo quando não se tratava de uma distância tão marcada quanto a que foi

retratada no filme Trono manchado de sangue os casamentos eram arranjados segundo

os interesses dos clãs, ou por imposição de algum senhor feudal. Este ponto deve ser

lembrado ao se considerar a maneira como Asaji manipula seu marido, o crédulo

Washizu, tendo em vista apenas a sua ambição desmedida.

38

Ilustração 10 - Washizu e Asaji durante a conversação.

O mundo em que acontece a tragédia japonesa é singular, valores de conduta elevados

conviviam com atos indignos como as traições e os assassinatos. Gerava-se com isto

uma desconfiança generalizada inclusive entre indivíduos com laços consangüíneos,

como indica esta fala de Asaji, que não dista da realidade da época: “Este é um mundo

em que, para benefício próprio, um pai mata um filho e um filho mata um pai”. Esta

declaração é utilizada por ela para distorcer a verdade e tecer uma rede de intrigas que

faz com que Washizu traia os seus princípios. Para ele, fica quase impossível contestar,

porque ela não mente neste ponto de sua argumentação.

A questão da brutalidade como fato usual nesta sociedade é um ponto

fundamental para se entender o universo para o qual a tragédia shakespeariana é

transposta. Asaji afirma, em outro momento, que o senhor feudal atual (Tsuzuki) matou

seu predecessor, o que é um fato incontestável. Washizu argumenta, em contrapartida,

que a motivação de Tsuzuki foi justa, pois sua vida se encontrava ameaçada. Esta

justificativa legitima esta morte segundo o pensamento vigente na sociedade bushi,

assim como acontece com as mortes históricas citadas acima. Asaji irá se utilizar desta

brecha nos princípios de conduta samurai para que seus intentos de conquista sejam

bem sucedidos e a sua ambição se torne real. Fará com que o marido acredite que é alvo

de uma conspiração, e que ele corre um risco mortal.

Em um mundo constantemente embrutecido em que todos almejam o poder,

ninguém é totalmente leal ou confiável em última instância. Mesmo Miki, o amigo de

infância e companheiro de Washizu em batalhas sem conta, pode conspirar contra ele. E,

se não o faz, não é apenas por lealdade, mas porque acredita que irá galgar postos

elevados no encalço dele, como ocorreu logo no início do filme, quando Washizu se

tornou senhor da Mansão do Norte, e Miki o comandante do Forte I. Ele é quem afirma

39

ao relembrar a profecia em conversa informal com o protagonista, seu amigo:

“Qualquer bushi gostaria de ser um senhor feudal”. Frase praticamente igual à proferida

por Asaji durante sua conversação formal com Washizu na sala de conferências, depois

de saber sobre o teor profético grandioso contido nas palavras da bruxa. Miki, ao confiar

nele e apoiá-lo, toma um posicionamento em parte porque tenciona ascender na

hierarquia do feudo no encalço de Washizu.

Além disso, ele acredita no que a bruxa lhe prognosticou, que sua linhagem

herdará o feudo do Castelo da Teia de Aranha no futuro. Ele, como Tokugawa, espera

pacientemente por este momento. O estratagema de seguir Washizu fielmente dá

resultado em um primeiro momento, mas em seguida interferência de Asaji põe tudo a

perder para este personagem entre ingênuo e matreiro. Seu filho Yoshiteru tenta alertá-

lo sobre a temeridade de basear seus atos na profecia de um ser sobrenatural, cuja

natureza e cujas intenções são insondáveis, mas o personagem não o ouve. Devido a

esta credulidade, ele acaba sendo assassinado horas depois deste diálogo.

Apesar da presença constante da violência, o período feudal, que teve a duração

de aproximadamente sete séculos, não era desprovido de valores morais e regras de

conduta. Não se tratava simplesmente de um mundo agressivo e sem escrúpulos em que

prevalece a lei do mais forte, como afirmou Silva Nobre, ao analisar o momento

histórico em que Trono manchado de sangue foi ambientado. O que existia era uma

intrincada organização política e social. Dentro dela, havia um equilíbrio complexo e

frágil entre um rígido código de valores (bushidô) que deveria ser obedecido pelos

samurais e uma disposição bélica advinda da condição guerreira desta classe, em que

valores como retribuição e dívida moral coexistiam com guerras e lutas pelo poder.

Turnbull expressa muito bem esta complexidade ao afirmar que “os samurais

eram lendários guerreiros que no antigo Japão levavam vidas nobres e violentas regidas

pelos ditames da honra, da integridade pessoal e da lealdade.” (TURNBULL: 2006, p.

7) O código de valores de conduta era uma parte do mesmo modo de vida que admitia

as guerras e as disputas pelo poder. Ele nos lembra igualmente que “por trás desses

princípios encontra-se um desejo que sobressai aos ditames impostos pelo serviço a

outrem. Trata-se da necessidade de ser reconhecido”. (IDEM) Este é o ponto

fundamental, determinar os limites entre os deveres para com o senhor e os interesses

pessoais de poder.

40

4.2 BUSHIDÔ, O CÓDIGO DE CONDUTA SAMURAI. ...qualquer que seja o aspecto que examinemos desse universo, descobriremos um reino multidimensional sob a constante pressão das demandas conflitantes da lealdade e da auto-espressão. Em qualquer momento da história, sempre urgiu buscar uma conciliação entre as forças da mudança e as da estabilidade. Juntas, elas moldaram o mundo dos samurais. Stephen Turnbull

Um aspecto fundamental decorrente deste processo de tradução cultural é a

transformação do protagonista capitão Washizu em um perfeito samurai, desde a

primeira cena do filme. Esta escolha, feita durante o T2, pôde ser escrita já tendo em

mente o ator principal, no caso de Kurosawa, visto que existia uma forte parceria entre

ele e Toshiro Mifune, que já havia interpretado papéis tanto de época quanto

relacionados à atualidade em filmes anteriores do diretor. Esta ligação já vinha de outros

filmes e durou até O barba ruiva (1965). Isto o aproxima novamente de Shakespeare,

desta vez no que diz respeito ao processo de escritura, pois o dramaturgo inglês

elaborava seus textos baseado nos atores de que dispunha em sua companhia.

A parceria entre Kurosawa e Mifune se desfez após uma discussão entre eles,

durante este último filme, porque as filmagens estavam atrasadas e o ator estava com

uma barba ruiva verdadeira e, por isso mesmo, impossibilitado de atuar em outros

filmes nos intervalos. Durante a preparação para as filmagens de Ran, quase vinte anos

depois do rompimento, Richie perguntou a Kurosawa sobre a possibilidade de utilizar

Mifune para o papel principal, ao que o diretor respondeu “bruscamente que não queria

nada com atores que apareciam em filmes como Shogun27.” (RICHIE: 2000, p. 78)

“Um samurai deve antes de tudo ter sempre em mente, dia e noite,

desde a manhã de ano novo, quando pega os palitos para tomar café, até a

noite do último dia do ano, quando paga suas faturas, o fato de que um dia

irá morrer. Essa é a sua principal tarefa”. (Bushido – O Código Do Samurai,

YUZAN, Daidoji. IN http://www.bushido-online.com.br) Esta afirmação

contundente é a essência do código samurai, a prontidão para, em um momento

limítrofe, tirar a própria vida através do suicídio ritual (seppuku), vulgarmente

conhecido como harakiri, que significa desventramento, ou seja, o ato de perfurar o

27 Shogun, filme hollywoodiano baseado no romance de James Clavell e produzido pelo autor. Mostra uma visão ocidental e em alguns aspectos estereotipada do Japão no final da Era Medieval. Teve uma série para a televisão que ficou conhecida e foi veiculada também no Brasil.

41

ventre e atravessá-lo horizontalmente da direita para a esquerda, culminando o

movimento com uma rotação da lâmina pelas entranhas.

Durante este ato que consiste em cometer o suicídio ritual era comum a

solicitação de auxílio para um outro samurai que decepava a cabeça do samurai

suicida28 logo que ele efetuasse a rotação. Alguns auxiliares decepavam a cabeça do

suicida um pouco antes, como um ato de benevolência, quando consideravam que o

corte trespassando o ventre já era o suficiente para que o samurai mostrasse seu valor.

Em contraposição com esta forma de morte honrosa e exigida a um samurai que deseje

manter intacta a sua condição, estava a morte indigna, relegada aos traidores,

usurpadores e aos criminosos em geral desta classe. Ela consistia em não permitir que o

samurai iniciasse o ato de morte, cortando-se simplesmente a sua cabeça. Esta sentença

de morte indicava que o samurai havia infringido o código e não era digno de morrer

como um samurai. O traidor Fujimaki teve a sentença de morte decretada e

provavelmente morreu desta segunda maneira.

A descrição do primeiro mandamento do código de conduta samurai é

discrepante com a concepção de um protagonista sem grandiosidade e profundamente

medroso, como é expresso por Richie. (IBIDEM: 1984, 118) Na minha visão, o maior

medo de Washizu era morrer desonrado, atraiçoado, sem a honra que o suicídio ritual ou

a morte em batalha lhe proporcionaria. Este temor inconfessável estava ligado à sua

condição de samurai valoroso no início do filme.

A partir da mudança de personalidade do protagonista para um samurai correto

resulta a necessidade de uma figura sombria desencadeadora da tragédia, que é

representada pela esposa de Washizu, Asaji uma vilã fria e ambiciosa. Ao tomar esta

decisão no T2 e concretizá-la no T3, Kurosawa deu a si mesmo a possibilidade de fazer

uma auto-referência anos mais tarde. O personagem se revela uma estrategista

inescrupulosa que tece, com suas palavras mentirosas, seguidos ardis para fazê-lo ceder

a seus desejos e à sua ambição desmedida. Embora suas artimanhas sejam quase

ingênuas, elas mostram-se eficazes o bastante para mover o até então incorruptível

guerreiro. Estas palavras ditas por Macbeth na peça shakespearianas poderiam ser

atribuídas a ela: “... Para esporar meu alvo eu tenho / Apenas esta imensa ambição que,

salta tanto, / Que cai longe demais.” (SHAKESPEARE: 1995, p. 210 e 211)

28 A diferença de visão entre Ocidente e Oriente sobre este ritual está bem expressa no O último samurai, o capitão Nathan Algren, interpretado por Tom Cruise, manifesta seu horror diante de um ato que denomina de bárbaro.

42

Como Macbeth, também Washizu é descrito como um guerreiro de valor, um

aliado leal e um homem bastante rígido em seus valores e ciente de seus deveres. Além

de ser um guerreiro valoroso durante as batalhas, o que é reforçado pelas afirmações

feitas tanto pelo senhor feudal quanto por seus conselheiros em uma das primeiras cenas

do filme. Diferentemente daquele, porém, sua reação à revelação da bruxa é de grande

indignação, que o impele a apontar o arco e flecha em riste na direção da mulher.

Ilustração 11 - Washizu está prestes a atirar a flecha na direção da bruxa.

Diante da indignação do protagonista ao ouvir a profecia, a bruxa zomba:

“Vocês humanos são estranhos, fogem daquilo que na verdade desejam.” Esta criatura

espectral não teme os fortes guerreiros à sua frente, não teme pela vida e nem se sente

ameaçada em momento algum. Sua aparente submissão é bastante teatral e não diminui

o seu aspecto sobrenatural. Apesar disso, Miki intercede em favor dela, impedindo a

mão de Washizu de agir. Sua aparente proteção não é motivada por pena ou bondade,

mas porque o personagem se encontra curioso quanto aos prognósticos que ela poderia

também lhe reservar. Neste ponto, Miki é um homem de menor estatura que o

protagonista, desde o início do enredo.

Ser um samurai implica em seguir um código de conduta chamado Bushidô, que

pode ser traduzido como ‘o caminho do guerreiro’. Por este motivo, as ambigüidades do

caráter29 de Macbeth são deixadas de fora, na caracterização do bravio Washizu. Ele

possui, além disso, um grau de ambição que é condizente com sua posição de bushi

(outra palavra para samurai, que é mais utilizada no idioma japonês).

As armas que o protagonista utiliza também indicam sua condição de samurai,

pois são as modalidades bélicas que um guerreiro de valor deveria dominar tanto 29 Ambigüidades do caráter de Macbeth que estão presentes de maneira significativa em outras duas adaptações fílmicas, como por exemplo na versão de Orson Welles (1948) e na de Roman Polanski (1971), em cenas como a do punhal imaginário visto por ele e que o incita ainda mais ao assasssinato de Duncan, na versão de Polanski.

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durante uma batalha quanto em seus combates pessoais. Primeiramente Washizu volta o

arco e flecha na direção à bruxa; depois mata o senhor feudal empunhando uma lança;

por fim, executa o assassino de Miki com a espada longa (katana). Esta espada não era

apenas uma arma para o guerreiro, pois ela simbolizava a alma do guerreiro samurai.

Estas ferramentas de combate funcionam também como um símbolo antagônico de sua

queda trágica, visto que cada uma delas, em sua utilização indigna, aproxima-o mais de

sua degradação.

Ilustração 12 - A alma do guerreiro era a sua espada.

Miki tem outro tipo de temperamento entre ingênuo e dissimulado, que pode ser

percebido no momento em que ele olha de soslaio para o protagonista ao receber sua

profecia de que proximamente iria receber o comando do Forte I (comandado até aqui

por Washizu). No rosto de Miki se misturam o desejo e o constrangimento diante de seu

amigo. A bruxa também acrescenta que a sorte dele irá acabar, mas seus filhos obteriam

o feudo ao qual ele serve. Ele lança um novo olhar de soslaio para o companheiro de

profecia ao ver concretizada a primeira parte da profecia, tanto para ele mesmo quanto

para Washizu. Desta vez, há um teor conspiratório neste volver de olhos, não

compartilhado pelo protagonista.

O posicionamento que Miki adota após a morte de lord Tsuzuki inclina-se a um

apoio incondicional a Washizu. Ele nega abrigo ao filho do senhor feudal assassinado e

abre o portão do Castelo da Teia de Aranha para Washizu quando este vem ao seu

encontro com o ataúde em que está o corpo do senhor feudal. No momento em que o

conselho é reunido para indicar como se fará a sucessão, é ele quem sugere o nome de

Washizu ao posto. Esta é uma maneira encontrada por Miki para galgar posições na

hierarquia do feudo sem sujar as mãos e, ao final, obter tudo o que lhe parecia destinado.

Esta atitude é um tanto oportunista para um samurai. Além disso, ele é igualmente

crédulo, pois não percebe os atos hediondos que levaram o amigo ao poder. Além disso,

ele não toma conhecimento dos riscos preconizados pela própria bruxa, quando ela

afirma que a sorte dele findaria antes que a sua linhagem tomasse o poder.

Miki decide acreditar nas afirmações feitas pela bruxa, diferentemente de do

protagonista, que sente de imediato o peso e o risco de desonra implícitos na profecia.

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Quando o senhor feudal, em uma solenidade repleta de pompa, entrega-lhe o comando

da Mansão do Norte, legando também a Miki o Forte I, até então comandado por ele,

Washizu tem o rosto em forma de uma careta. O destino brinca com ele, e ele vacila e

sofre com isso. Ele chega a contar a profecia à esposa quase como um desabafo, mas

imediatamente volta atrás, considerando toda a história como um pesadelo do qual ele

se sente aliviado por despertar. Antes da conversa, ele sai da sala e contempla o pátio da

Mansão do Norte, ensolarado e em franco contraste com o assunto lúgubre a ser

discutido no cômodo em que Asaji pacientemente o espera. O protagonista olha para

fora contente com tudo o que vê, como um fazendeiro ao ver suas plantações a perder

de vista. Ele dirige então o olhar rapidamente para dentro, para o que o aguarda, e a

tensão volta ao seu rosto.

Na sala de conferências da Mansão, local em que se dão as reuniões de seu

comandante com os subordinados, ele se senta na posição privilegiada destinada ao

senhor da mansão. O cenário indica a formalidade das relações entre marido e mulher,

muito diferentes da cumplicidade e intimidade entre Macbeth e sua esposa, tanto na

peça de Shakespeare. Um tanto de costas para a mulher, não apenas por sua condição

inferior, mas igualmente por suas idéias que se opõem aos seus valores de samurai,

Washizu afirma que nada o fará agir com deslealdade. A transcrição deste trecho do

diálogo, feita a partir da legenda em Português, mostra quando principia o embate entre

as vontades de Washizu e Asaji, que faz as afirmações mais tenebrosas com um falso

tom de cuidado e de submissão:

Asaji: Já decidistes, meu senhor. Washizu: Sim. Ainda que tenha sido um pesadelo. Perseguia-me um espírito maligno. Porém, se acabou. (No original, a fala significa além disso não mais vacilarei, não serei tentado). Ser o senhor do feudo do Castelo da Teia de Aranha? Não posso nem sonhar com uma coisa assim. (No original, Washizu utiliza o passado daisoreru do verbo, que pode ser traduzido por audacioso, ambicioso e imprudente). Asaji: Por que não, meu senhor? Isso não está fora de seu alcance. (No original, não diga que isto está fora de seu alcance). Qualquer samurai desejaria ser o senhor de um castelo como o das Teias de Aranha. Washizu: Eu sei... Porém, estou satisfeito com o que tenho, ficarei nesta mansão e serei leal ao nosso senhor. Quero seguir vivendo em paz.

Apesar do que diz a última fala de Washizu no trecho acima, esta tradução é

apenas uma simplificação, pois a fala original de Washizu em japonês diz respeito à paz

de espírito, que é o maior valor que se pode pretender na vida, segundo este personagem.

Portanto, a falha trágica do protagonista nesta adaptação fílmica não é a ambição

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desmedida. A ambição que ele possui se mantém em um nível salutar e apropriado que

não se contrapõe à sua lealdade para com o senhor feudal. Asaji usa de todas as suas

armas para convencê-lo a sucumbir a este defeito trágico, a ambição desmedida, mas

falha. É ela quem detém esta falha trágica além de todas as medidas.

Washizu mantém-se firme em sua posição de samurai impecável e é neste

momento que ela percebe que terá que se utilizar de outro estratagema para convencê-lo,

porque o protagonista não pretende se desonrar. Ela então afirma que a paz que ele tanto

anseia se encontra ameaçada, porque Miki contará sobre a profecia ao senhor feudal,

usando esta informação para se promover. E, a partir desta informação, o senhor feudal

se voltará contra Washizu, exigindo a sua morte. O marido vai se perturbando cada vez

mais, caminhando agitadamente pelo cômodo qual um tigre enjaulado, e os olhos

flamejam diante da ameaça que Asaji faz surgir à sua frente.

Assim, a esposa vai aumentando a intensidade de sua intriga à medida que

Washizu resiste, até que ele sucumba aos desejos que ela malévolos que ela nutre.

Primeiro começa com o armamento leve, a ambição; depois vai ao armamento pesado, a

mentira sobre a ameaça que paira sobre a vida de seu marido.

Quando da visita de Tsuzuki à Mansão do Norte, Washizu apressa-se em ir

saudá-lo e parece ter esquecido as insinuações sobre traição feitas por Asaji durante a

conversa. Tanto que, ao ser convidado pelo senhor feudal para liderar a investida contra

o feudo vizinho, responsável pela guerra interna ocorrida no feudo no início do filme,

Washizu exulta, ri alto e parece aliviado porque o senhor feudal ainda deposita sua fé

nele. Asaji volta então à carga, dizendo que não se trata de confiança, mas apenas de um

pretexto para que os soldados o golpeiem pelas costas, à traição.

Esta imagem que neste momento falsa, é como uma bomba que finaliza a

ofensiva empreendida por Asaji contra as convicções de Washizu. Ele sucumbe e aceita

matar seu senhor, em nome de sua sobrevivência. Embora se trate de uma mentira,

acaba funcionando também como uma previsão do final trágico destinado ao

personagem, após ser dominado pela vontade da esposa.

Washizu representa também imageticamente a figura do samurai através da

fisionomia do ator que o interpreta, Toshiro Mifune, tanto em suas indecisões quanto

em suas tentativas para voltar à ideologia do bushidô ao longo do filme. O protagonista

sofre embates com sua consciência após ter sucumbido às vontades de sua esposa, como

quando demonstra a sua culpa e o seu incômodo após o assassinato de Miki. Na cena

em que recebe do assassino a cabeça de Miki, como era de praxe para comprovar a

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morte de um inimigo, Washizu impede o soldado de prosseguir no ritual de mostrar o

rosto de seu antigo aliado. O tecido branco dobrado pela metade é novamente fechado.

O confronto com o resultado de seu segundo crime é árduo demais e o samurai se sente

um pouco enojado. Embora esta sensação desagradável não seja suficiente para impedi-

lo de executar o assassino, instigado novamente por Asaji, ao perceber que ele falhou

em matar o filho de Miki.

Na parte final do filme, Washizu e Asaji são punidos pelo destino com a

presença de seu filho natimorto. Washizu, então, ri desvairado da ironia de sua vida

desde a morte de Tsuzuki e inutilidade de seus atos. Asaji enlouquece. Em contraste

com outra adaptação shakespeariana, a de Welles, não se encontra neste filme a

presença do suicídio de Asaji30, visto que o ato encerra significações muito distintas das

do Ocidente na cultura japonesa. O suicídio é um ritual que deve ser executado com

serenidade e em um momento extremo no qual nenhuma outra alternativa se apresente.

Na sociedade samurai, não se trata de um ato tresloucado. Exatamente por isso, o

suicídio ritual é deslocado para esposa de Tsuzuki, que se mata no interior do Castelo da

Teia de Aranha ao receber a notícia da morte do marido à traição. Este ato pode ter duas

interpretações distintas, a primeira como uma prova de afeição e respeito por parte desta

esposa e a segunda como uma indicação de que ela, como esposa do senhor feudal

deposto, não desejaria ficar à mercê do novo governante do feudo. Pode-se cogitar um

contraponto imaginado por Kurosawa entre esta cena e a de Welles, como uma maneira

de expor as diferenças de visão de mundo contidas nos dois atos.

Washizu está finalmente só, mas não livre da influência nefasta da mulher, pois

os atos acarretados pelas intrigas dela tiveram conseqüências trágicas que não podem

ser evitadas. Este momento terrível da perda do filho não gera uma tomada de

consciência para o protagonista. Ele foi longe demais para retroceder e, assim, pretende

manter o poder usurpado a qualquer custo. Com esta vontade em mente, ele se dirige

novamente à floresta em busca de novas profecias. Neste local, Washizu grita aos

fantasmas de guerreiros mortos que sairá vencedor, e que fará correr um rio de sangue

30 O suicídio consistia em um ritual que se diferenciava pelo gênero do suicida. O homem deveria se matar através do desventramento (seppuku), mas a mulher deveria proceder de modo diverso: primeiramente, ela deveria conferir se o kimono estava bem ajustado e as golas fechadas. Depois, deveria se sentar no chão atapetado (tatami) e amarrar as duas pernas juntas. Em seguida, deveriam colocar uma almofada às costas e se sentar sobre as pernas amarradas. Por fim, deveria perfurar o peito na altura do coração munida de uma espada curta. Todo este ritual trabalhoso visa conservar o decoro feminino mesmo após a morte. Algum erro durante a execução do suicídio acabaria por macular a honra não só dela, mas de todo o seu clã.

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matando um a um seus inimigos. Recebe a profecia de que estará seguro até que a

floresta se mova e a interpreta erroneamente.

A imagem das flechas, que volta a aparecer maciçamente no momento da morte

de Washizu, remete a um personagem histórico, o samurai Yoshitsune Minamoto31

(1159-1189), que lutou com seu irmão mais velho Yoritomo pelo comando do feudo do

clã de Taira. Seu homem de confiança era o monge Benkei, um homem de grande força

física e de físico avantajado. Durante a fuga após uma batalha perdida, Benkei ficou

para trás com a finalidade de retardar as tropas inimigas enquanto Yoshitsune e seus

homens fugiam. Os soldados de Yoritomo lançaram mais de quarenta flechas na direção

do monge, sem que ele se movesse ou caísse. A solução para matá-lo foi extrema, os

inimigos incendiaram todo o local, para se certificarem de que o grande guerreiro estava

morto.

Ilustração 13 – Washizu atingido pelas flechas.

A grande falha de Washizu como líder foi ter se descontrolado e perdido a razão,

tingindo de sangue o feudo. O número de mortes que ele provocou foi menor do que as

provocadas por Macbeth na peça shakespeariana, mas demonstraram o seu descontrole e

a sua fraqueza diante de Asaji. O seu crescente nervosismo e também a sua cena de

demência durante o jantar (momento em que se defronta com o fantasma de Miki),

fizeram com que seus homens percebessem todos os atos indignos que ele havia

cometido. As flechas atingiram-no como um julgamento sumário de que Washizu, como

senhor feudal, não era nada além de um usurpador. A indignação infundada do pretenso

senhor feudal nada pode contra as flechas, que atingem seu torso em vários pontos.

Muitas flechas mais se encravam na parede de madeira às suas costas, formando fileiras

31 Este personagem histórico e seus aliados foram retratados por Akira Kurosawa no filme Os homens que pisaram na cauda do tigre.

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que o encurralam. A última destas flechas cala os seus últimos protestos, ao se fincar

lateralmente em sua garganta. Esta visão terrível mostra ao espectador uma morte que

ocorre lentamente diante da tela se funde à queda trágica do personagem e põe um

ponto final aos seus vários crimes.

4.3 O TEATRO NÔ O teatro Nô é o principal elo para a compreensão da cultura nipônica. Por mais que nos aprofundemos em tudo quanto diga respeito ao Japão, estaremos perdidos se não o estudarmos. Eico Suzuki

O teatro tradicional Nô, segundo Eico Suzuki, desenvolveu-se durante o período

medieval japonês e se constituiu como uma manifestação teatral de caráter “elevado,

culto, elegante, o mais surpreendente de todos os tempos, que por seu valor, mantém,

até hoje, intacta sua estrutura.” (SUZUKI: 1977, p. 38) Dentre as características

principais do teatro Nô estão seu “caráter búdico – xintoísmo e confucionista,

associados numa apresentação solene, simbólica, literária, em voz grave, bem diferente

do folclore japonês” e o “uso de máscara para representar deuses, personagens

femininas e principais, anciãos, seres sobrenaturais, etc. Cada personagem tem máscara

especial, esculpida por artistas de renome.” (IDEM) Segundo a descrição feita por esta

autora, não é utilizado o recurso da maquiagem na encenação, nem são mostradas

expressões fisionômicas distintivas nem tampouco a mímica, a representação é

executada unicamente através de gestos simbólicos. O Nô destaca-se por se encontrar

no limiar entre o sacro e o profano, incorporando a religiosidade milenar japonesa e o

caráter mítico das lendas e fábulas ancestrais à sua representação.

A concepção desta forma teatral dá-se da seguinte maneira, “o texto se constitui de

versos da Era Kamakura”; cujas partes podem ser alternadamente “declamadas e

cantadas – estas, com ou sem compasso”. O canto pode ser interpretado de maneiras

distintas, podendo se dar “em forma de monólogo, dueto, diálogo ou por mais de dois

personagens, além do coro cantado em vozes uniformes.” (IBIDEM, p. 40) A

disposição métrica das letras obedece ao seguinte procedimento: “nas partes cantadas

em compasso, os versos têm, em geral, sete e cinco sílabas, inseridas em compasso de

quatro e quatro com duas variações.” (IDEM) A representação contém um aspecto sutil

quanto à sua apreensão, “insinua-se e não demonstra, obtendo-se o máximo de efeitos

49

com o mínimo de movimentos. O teatro Nô não é estático, flui como se deslizasse. Dá

sete passos onde, na realidade, há dez. É arte abstrata, de dinamização interior.”

(IBIDEM, p. 42)

Ilustração 14 – Asaji curva-se falsamente reverente diante do senhor

feudal, o rosto revela tanta emoção quanto a máscara Nô na imagem ao lado.

A maneira como o personagem Asaji se move durante o filme Trono manchado

de sangue é marcante e caracterizada pela lentidão e pelo comedimento de movimentos.

Esta interpretação diferenciada foi determinada por Kurosawa para compor uma

aproximação premeditada com o teatro tradicional Nô. Sobre este aspecto, Richie

disponibiliza para o espectador/leitor o depoimento do próprio diretor:

“Fundamentalmente, sou muito japonês. Gosto da cerâmica japonesa, da pintura

japonesa – mas o que gosto mais é o Nô. Mas é engraçado. Se você realmente gosta de

uma coisa dessas, não a utiliza muito em seus filmes.” (RICHIE: 1984, p. 118)

Kurosawa exprime a seguir sua preferência por esta forma de teatro em comparação

com outra forma de teatro tipicamente japonesa, o Kabuki. Em seguida elucida o motivo

deste seu apreço: “Gosto do Nô porque ele é o verdadeiro coração, o cerne de todo o

teatro japonês. Ele possui um enorme grau de compreensão e é cheio de símbolos, cheio

de sutilezas. É como se os atores e a platéia estivessem empenhados numa espécie de

competição e essa competição envolvesse toda a herança japonesa.” (IDEM)

Esta maneira distintiva de representação altera o ritmo de todas as aparições na

tela de Asaji, que é transformada por Kurosawa no ponto central da ação trágica. As

observações de Richie elucidam alguns pontos da caracterização deste personagem, “é

interessante que no filme os elementos Nô estejam associados em sua maioria a Asaji –

o papel de Lady Macbeth – pois ela é a mais limitada, a mais confinada, a mais dirigida,

a mais má. Ela se move, da cabeça aos pés, como o ator Nô; o formato do rosto de Isuzu

Yamada é usado para sugerir a máscara Nô; as cenas dela com seu marido têm uma

composição de estilo Nô e quando ela lava as mãos trata-se de puro Nô.” (IDEM)

50

A figura de Asaji parece inalterada mesmo quando ela tece suas cogitações

carregadas de veneno. A expressão facial em seu rosto se mostra imutável e repleta de

intenções que ela oculta. Parece realmente que esta mulher porta à frente do rosto uma

máscara Nô. Esta máscara bem poderia ser do tipo Rêijo, destinada à Mulher-Espírito,

um personagem feminino que representa um ser fantasmagórico em uma das peças do

Nô.

Esta semelhança do seu semblante com esta máscara específica, cujo caráter se

revela ambíguo nas representações, reveste o personagem de uma aura de mistério

quanto às suas intenções, pelo menos no que diz respeito aos demais personagens. Para

o público, a manipulação dos fatos posta a termo por Asaji se faz sentir gradativamente.

O caráter ardiloso e manipulador da esposa, definido através deste elemento cênico,

permanece um tanto insondável para o protagonista, Washizu. Ele se sente incomodado

com as afirmações dela, mas que se vê enredado a elas pelo risco iminente que tais

afirmações representam.

Ilustração 15 – As duas máscaras de Asaji.

Além disso, a caracterização formal das cenas que retratam as conversações

entre o casal na sala de conferências da Mansão do Norte intensifica visualmente a

enorme distância verificada entre eles. No plano espacial, Washizu ocupa o assento

central do aposento, que é destinado ao samurai cujo posto hierárquico é superior aos

demais32. Como se não bastasse este seu posicionamento, ele se acomoda quase que

totalmente de costas para a esposa, indicando não apenas a sua situação de

32 Durante a visita inesperada do senhor feudal Tsuzuki à Mansão do Norte, que se na cena subseqüente à do primeiro diálogo entre os cônjuges Washizu e Asaji, o assento central é cedido por este ao seu senhor, e os conselheiros se acomodam em duas fileiras, à direita e à esquerda dele. A distância para com o senhor, o ôdono, é tanto maior quanto inferior é a posição do guerreiro. Washizu e Miki estão sentados após os conselheiros. Miki um pouco mais afastado do que o companheiro de profecia.

51

superioridade33 , mas igualmente o seu descontentamento. A característica principal

desta união se dá visualmente pelo espaço que se manifesta entre os cônjuges. Isto não é

de todo surpreendente, visto que a grande maioria dos casamentos no mundo feudal

implicava na já mencionada natureza de inimizade implícita entre os noivos.

Asaji assemelha-se, por seu comedimento, a uma aranha que tece pacientemente

a sua armadilha, envolvendo o marido de forma vagarosa no âmago das intrigas e

mentiras que ela concebe. Esta mulher sem escrúpulos induz Washizu a crer sem

sombra de dúvida que ele corre risco de vida porque o senhor feudal está prestes a matá-

lo à traição. O ponto culminante no que diz respeito às suas manipulações não é, porém,

uma mentira, mas um fato que mudará os desejos interiores do esposo: a gravidez. O

anseio de perpetuação inunda a ambos de novas ambições, mas que não diminuem o

distanciamento existente entre eles. Após o parto mal-sucedido, a revelação do

natimorto põe tudo a perder.

Neste ponto, a significação total dos seus atos atinge Asaji pela primeira vez,

levando-a a um estado de insanidade. Assim, a sua aparição final se dá com a troca de

uma máscara por outra, a indumentária facial de Haishihime (Princesa da Ponte,

utilizada em uma peça em que o personagem vira um demônio devido ao ciúme

excessivo). Nesta cena, já citada por Richie, ela lava compulsivamente as mãos com o

rosto transformado em um rictus de desespero infinito em que se estampa a loucura

final do personagem à semelhança da lady Macbeth da peça shakespeariana.

Ilustração 16 - Asaji sente cheiro de sangue nas mãos.

33 Esta disposição espacial em ângulo reto nem sempre indica distanciamento entre os casais. Concubinas e segundas esposas sentam-se desta maneira na lateral esquerda de seus maridos, mas sua postura corporal indica uma intimidade que não é verificada entre Washizu e sua esposa. Desta posição, as mulheres aconselham seus maridos, fazem seus pedidos e conseguem seus intentos através da mansidão.

52

O motivo da sua loucura, porém, afasta-se muito daquele que leva a esposa de

Macbeth a perder a razão. Asaji em nenhum momento associa Tsuzuki a seu pai, o

senhor feudal é um estranho a que ela, por conveniência, deve fingir submissão como

membro do clã. Um certo receio e, quem sabe, a consciência parcial dos atos ignóbeis a

serem cometidos e/ou arquitetados por ela, aparece em seus gestos no momento em que

ela espera por Washizu, enquanto este mata o senhor feudal. Neste momento, ela olha a

mancha na parede do aposento que foi impressa definitivamente pelo sangue do traidor

Fujimaki. A associação visual sugere todo o conjunto das inquietações do personagem.

Na adaptação empreendida por Kurosawa, o motivo que leva Asaji à loucura é,

antes de tudo, a perda de todas as esperanças de que o sangue de seu clã se perpetue no

poder através deste filho gerado por ela. Tudo o que ela fez teve apenas esta motivação,

de legar o feudo a uma linhagem gerada a partir dela, visto que seu marido Washizu não

é nada mais do que um estranho, uma imposição matrimonial e política e, portanto, um

joguete através do qual ela poderia concretizar os seus desejos. Quando essa

possibilidade de perpetuação lhe é negada, ela finalmente percebe a extensão de seus

crimes e, conseqüentemente, enlouquece.

Outros elementos também relacionam a estética do filme ao teatro Nô, dentre

eles a música, executada por tambores e flauta34 e canto monocórdio de coro, que

aparece durante os créditos, e faz referência direta a este tipo de teatro. O canto é ouvido

em off durante a cena inicial que mostra o cenário em que anteriormente havia um

castelo.

Ilustração 17 - Instrumentistas do Teatro Nô.

34 Estes são os instrumentos básicos na execução da música utilizada durante as representações do teatro tradicional Nô.

53

Há uma semelhança entre esta cantoria e os mantras budistas por sua lendidão e

pela linguagem arcaica de sua letra. Visto que há traços também do budismo dentro do

aspecto composicional desta forma teatral, ambas as leituras se complementam. A

preleção moral sobre a falha trágica do personagem Washizu é feita pelas palavras

entoadas na letra, remetendo novamente ao budismo e também ao código de conduta

samurai. Estes dois elementos, teatro Nô e budismo, são re-trabalhados de outro modo

também no filme Ran, juntamente com a figura marcante de uma vilã que conduz o

enredo trágico.

Neste momento de abertura, e igualmente em outros momentos do filme, este

tipo de música característico do teatro Nô irá servir de elemento narrativo. Cantada

apenas na cena inicial, durante o restante do filme a melodia é instrumental, constituída

de tambores e flauta. Esta última sobressai-se em agudos pungentes nos momentos de

tensão. A emoção do protagonista é reforçada por esta trilha sonora que completa a cena.

Outro personagem associado a este gênero teatral tipicamente japonês é a bruxa,

que representa uma fusão das três bruxas da peça Macbeth shakespeariana em um único

personagem. Sobre a bruxa, ele declara que a “Sua maquilagem sugere a máscara de

fantasma usada no Nô. Suas profecias são expressas na voz rouca e sem entonação do

ator Nô e os sons feitos pelas duas mulheres – o guinchar do tabi de Asaji, o arrastar de

seu quimono no chão, o leve barulho da roca de fiar da bruxa, seu farfalhar dentro da

choupana de junco – são sons fortemente associados ao Nô.” Richie compreende que a

ligação entre ela e Asaji se dá através desta caracterização ligada ao Nô e também pela

índole “má” de ambos os personagens. Ele continua sua análise com a asserção de que

“o caráter formal, fechado, ritual, limitado do Nô está, portanto, associado às duas

mulheres do filme.” (RICHIE: 1984, p. 119)

Ilustração 18 - A bruxa canta enquanto gira a roca.

54

A maneira vagarosa com que a velha mulher gira a roca parece confirmar estas

palavras. A lentidão de sua fala dista em muito da de outros personagens, como

Washizu e Asaji. Ela cria um tempo próprio de enunciação a cada frase que pronuncia.

Ela verbaliza os sons e se move como se estivesse em câmera lenta. A sua imagem

espectral e a sua expressão isenta ao falar das características desconcertantes dos seres

humanos, como se ela se dissociasse deles em gênero, também indica uma aproximação

com o conto de terror japonês (kwaidan), um gênero literário trazido da China para o

Japão no século IV e desenvolvido como gênero próprio desde o século VIII. A maneira

súbita como a bruxa desaparece no ar depois da primeira profecia reforça ainda mais

esta ligação. A segunda aparição da bruxa de cabelo solto e levitando um pouco acima

do chão intensifica o caráter sobrenatural do personagem. Os espíritos tanto de Miki

quanto dos guerreiros mortos em conflitos passados, estes últimos relacionados à

segunda profecia feita pela bruxa, completam o quadro ligado ao conto de terror. Os

guerreiros mortos também se assemelham aos personagens do teatro Nô em

indumentária e movimentação de cena. Há, inclusive, figuras sobrenaturais incorporadas

a esta forma teatral, como fantasmas, demônios e outros personagens aparecem nas

peças desta forma teatral, derivada em parte de elementos míticos japoneses.

Ilustração 19 - As duas máscaras da bruxa.

Outro elemento ligado ao teatro Nô é a fisionomia de Washizu quando se acha

tomado pelo desespero e pela fúria. A visão de seu rosto transtornado assemelha-se

igualmente a uma das máscaras do teatro Nô, inicialmente à do personagem Kurohigue,

o bigode preto, nos momentos iniciais de seu descontrole. E, quando Washizu atinge um

ponto sem volta em sua insanidade belicosa, aproxima-se de outra máscara igualmente

fulminante, a do Shikami, de cor vermelha e destinada a representar um “demônio sem

chifres.” (SUZUKI: 1977, p. 82) A própria queda final do personagem é representada

55

por esta segunda máscara. Durante o diálogo que empreende com os espíritos dos

guerreiros do passado que o instigam a derrotar a todos os seus oponentes ele se

assemelha a um demônio. Washizu responde aos espíritos, neste momento, que fará

jorrar “um rio de sangue” se necessário.

Ilustração 20 – As duas máscaras de Washizu.

A figura do coro é outro elemento de aproximação com o teatro Nô e a sua

presença se torna significativa ao longo do filme. Além do momento inicial em que

apenas as vozes dos cantores aparecem em cena, o coro aparece também retratado pelas

conversas entre os servos de Washizu. Os comentários expressos por eles servem de

parâmetro comparativo e igualmente indicam o posicionamento destes personagens

quanto aos rumos que o protagonista toma na condução do feudo. Na cena em que Asaji

aparece pela primeira vez, no salão de reuniões da Mansão do Norte, o comentário dos

servos funciona como um contraponto entre a aparente tranqüilidade da paisagem

circundante e o duelo mental que acontece dentro do cômodo entre Washizu e sua

esposa. Em outras cenas, os servos fazem comentários pertinentes sobre a situação

instável em que se encontra o feudo após a ascensão de Washizu ao posto de senhor

feudal. O coro, um recurso metateatral também utilizado por Shakespeare, faz uma

aproximação com outra adaptação shakespeariana de Kurosawa, O homem mau dorme

bem, no qual a imprensa faz este mesmo papel de esclarecimento de aspectos do enredo

do filme.

O teatro Nô encontra-se estreitamente associado à concepção estilística da

tradução cultural empreendida por Kurosawa a partir da tragédia shakespeariana

Macbeth, o que se comprova por estas afirmações feitas pelo próprio diretor novamente

a Donald Richie, “no Nô, estilo e história tornam-se uma só coisa. Nesse filme, o

problema era como adaptar a história à mentalidade japonesa. A história é bastante

56

compreensível, mas os japoneses tendem a pensar diversamente sobre coisas como

bruxas e fantasmas35.” (RICHIE: 1984, p. 118)

Os elementos composicionais intimamente ligados à história e à cultura

japonesas fizeram com que esta tradução intersemiótica e cultural falasse diretamente à

alma do povo japonês. Ao mesmo tempo em que comoveram e intrigaram as platéias

ocidentais tanto por seu caráter um tanto exótico, quanto pelo fato de este filme conter

um tempo e um ritmo diferenciados quando comparados com a sucessão frenética de

acontecimentos que predomina em muitas produções hollywoodianas.

4 CONCLUSÃO

A percepção de todos os detalhes que envolvem o processo de tradução

intersemiótica e cultural empreendido por Kurosawa impõe, no caso de se tratar de um

leitor de segundo nível, a necessidade de um conhecimento diferenciado quanto à

história e à cultura japonesas. Esta pesquisa pretendeu identificar e analisar os pontos

culturais essenciais nos quais se embasou esta tradução, ou seja, o feudalismo, o

samurai e seu código (bushidô) e o teatro Nô. Esta iniciativa revelou-se mais complexa

do que se imaginou a princípio devido à enorme distância cultural existente e ao

desconhecimento de diversos fatos histórico-culturais referentes ao Japão Medieval pelo

Ocidente.

Ao mesmo tempo, houve uma aproximação pessoal durante a pesquisa com as

informações prévias contidas na ontogênese desta pesquisadora. Fatos históricos

conhecidos desde a infância puderam ser aprofundados e novos estudos vieram a

compor uma somatória com a cultura familiar e ancestral. O aspecto relativo à tradução

cultural foi sendo desvendado a cada nova leitura e a cada novo ato de enfrentamento

com o filme Trono manchado de sangue. Aspectos que antes haviam passado

despercebidos se revelavam.

A vivência prática com o fazer cinematográfico contribuiu para uma nova

dimensão sobre esta arte, antes vista de alguma forma parcialmente através do viés da

literatura. Este aspecto, que não havia sido planejado anteriormente como parte desta

35 Os elementos do sobrenatural vêm muitas vezes em busca de vingança e de reparação para os atos indignos cometidos pelos homens.

57

pesquisa, foi incorporado tanto como uma complementação do aspecto teórico quanto

como uma maneira de aproximação com o fazer artístico específico do cinema. Detalhes

sobre as fases distintas do processo foram elucidadas pela experiência empírica. Um

exemplo deste esclarecimento obtido foi a percepção da especificidade da escritura de

um roteiro cinematográfico, no qual o enredo deve ser trabalhado de maneira a abranger

o teor multimídia desta forma de arte. A importância do processo de pós-produção de

imagem (edição) e de som foi compreendida também durante esta prática.

Percebeu-se também, durante o desenvolvimento desta pesquisa, que há também

a possibilidade de empreender aproximações entre Trono manchado de sangue e a

tragédia Otelo, no que se refere aos personagens principais das duas obras. De nodo que

Washizu possui características próximas às de Otelo e igualmente que Asaji age como

Iago ao tecer suas intrigas e mentiras. Desta forma, vê-se que a questão da manipulação

feita por Iago e que levou Otelo à queda trágica como herói, na peça Otelo, foi

trabalhada pelo diretor em Trono manchado de sangue. Possivelmente este seja um dos

motivos pelos quais o diretor realizou a tradução intersemiótica e cultural de apenas três

das quatro grandes tragédias de William Shakespeare: Macbeth, Rei Lear e Hamlet.

O aprofundamento do estudo desta nova aproximação possível, entretanto, será

retomado somente no mestrado. Este novo estudo será feito após um espaço de tempo

em que possa ocorrer o amadurecimento da idéia. Este tempo remete a própria história

desta adaptação fílmica de Macbeth realizada por Kurosawa, que dispôs de

aproximadamente sete anos entre a sua idealização e a sua realização de fato.

No intervalo entre a conclusão desta pesquisa e o ingresso no mestrado serão

empreendidos dois outros estudos sobre as adaptações fílmicas shakespearianas

realizadas por Kurosawa. O primeiro será o processo de tradução intersemiótica e

cultural da tragédia Rei Lear no filme Ran, durante a Iniciação Científica. O segundo

consistirá no estudo da recriação da peça Hamlet em O homem mau dorme bem em

outro conjunto de disciplinas monográficas, desta vez referentes à segunda monografia

necessária à conclusão do curso na habilitação dupla em que ingressei.

Ilustração 21 - Ideograma equivalente ao the end.

58

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59

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60

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Sites visitados: sobre Akira Kurosawa http://www.adorocinema.cidadeinternet.com.br/personalidades/diretores/akira-kurosawa/corpo.asp sobre os créditos completos do filme Trono manchado de sangue http://www.imdb.com/title/tt0050613/fullcredits#writers sobre Bushidô <http://japanese.about.com/bl50kanji_bushidocodes.htm>, acesso 09 Ago 2007. <http://www.bushido-online.com.br/> acesso 09 Ago 2007. <http://japanesekanji.nobody.jp/others/bushido.htm> acesso 09 Ago 2007. <sobre katana: <http://www.niten.org.br/penaespada/penaartigos/katana.htm> acesso 23 Out 2007.

61

ANEXOS 1 CARTAZ AMPLIADO DO FILME TRONO MANCHADO DE SANGUE

62

2 ELENCO RESUMIDO DE TRONO MANCHADO DE SANGUE

36 A lista de personagens contida neste recorte do elenco do Trono manchado de sangue é a mesma que foi elaborada para o quadro de equivalências entre o filme e a peça em que se baseou, a tragédia shakespeariana Macbeth. 37 Além de Mifune, Akira Kurosawa trabalhou com outros atores regularmente, dentre eles se encontra Takashi Shimura, que protagonizou o antológico filme Viver, e esteve presente também em outros clássicos como Rashomon, O anjo embriagado e Os sete samurais.

Elenco resumido36 de Trono manchado de sangue

Personagens Atores

capitão Takedori Washizu Toshirô Mifune Lady Asaji Washizu Isuzu Yamada capitão Yoshiaki Miki Minoru Chiaki lord Kuniharu Tsuzuki Takamaru Sasaki Kunimaru Tsuzuki Yoichi Tachikawa Noriyasu Odagura Takashi Shimura37 Yoshiteru Miki Akira Kubo 1 bruxa Chieko Naniya

63

3 FILMOGRAFIA DE AKIRA KUROSAWA

Filmografia

Ano Título Direção

(e outras funções)

Roteiro

1943 Sanshiro Sugata (Sugata Sanshiro)

Akira Kurosawa (edição e edição de som, ambos com equipes)

Akira Kurosawa, adaptação do romance homônimo de Tsuneo Tomita.

1944 A mais bonita* (Ichiban utsukushiku)

Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa (original)

1945 Sanshiro Sugata II (Zoku Sugata Sanshiro)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa, adaptação do romance homônimo de Tsuneo Tomita.

1945 Os homens que pisaram na cauda do tigre (Tora no o wo fumu otokachi)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa, adaptação da peça de Kabuki Kanjinchô

1946 Aqueles que constroem o amanhã* (Asu wo tsukuru hitobito)

Akira Kurosawa Kajiro Yamamoto Hideo Sekigawa

Kajiro Yamamoto e Yusaku Yamagata (original)

1946 Juventude sem Arrependimentos (Waga seishun ni kuinashi)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa e Eijiro Hisaita (original)

1947 Um belo domingo* (Subarashiki nichiyôbi)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa e Keisuke Uegusa (original)

1948 O anjo embriagado (Yoidore Tenshi)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa e Keisuke Uegusa (original)

1949 Duelo silencioso (Shizukanaru ketto)

Akira Kurosawa

Akira Kurosawa e Senkichi Taniguchi adaptação da peça homônima de Kazuo Kikuta

1949 Cão danado (Nora inu) Akira Kurosawa Akira Kurosawa e Ryuzô Kikushima (original)

1950 Escândalo (Shubun) Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa e Ryuzô Kikushima (original)

1950 Rashomon Akira Kurosawa

Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto adaptação dos contos Rashomon e Dentro do bosque de Ryunosuke Akutagawa.

1951 O idiota (Hakuchi) Akira Kurosawa

Akira Kurosawa e Eijiro Hisaita adaptação do romance homônimo (1868-69) de Fedor Mikhailovich Dostoievski

1952 Viver (Ikiru) Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Ôguni (original)

1954 Os sete samurais (Shichinin no samurai)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Ôguni (original)

1955 Anatomia do medo (Ikimono no kiroku)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Ôguni (original)

1957 Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô)

Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Ôguni

64

adaptação da tragédia Macbeth de William Shakespeare

1957 Ralé (Donzoko) Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Ôguni adaptação da peça Na dne (1902) de Maxim Gorky

1958 A fortaleza escondida (Kakushi toride no san-akunin)

Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Ôguni e Ryuzô Kikushima (original)

1960 O homem mau dorme bem (Warui yatsu hodo yoku nemuru)

Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Ôguni, Eijiro Hisaita e Ryuzô Kikushima re-criação 38 da tragédia shakespeariana Hamlet

1961 Guarda-costas (Yojimbo) Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Hideo Ôguni e Ryuzô Kikushima (original)

1962 Sanjuro (Tsubaki Sanjuro) Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Hideo Ôguni e Ryuzô Kikushima Akira Kurosawa, adaptação da biografia de Tsubaki Sanjuro escrita por Shûgorô Yamamoto

1963 Céu e inferno (Tengoku to jigoku)

Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Hideo Ôguni, Eijiro Hisaita e Ryuzô Kikushima adaptação do romance King’s ransom de Ed McBain

1965 O barba ruiva (Akahige) Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa, Hideo Ôguni, Ryuzô Kikushima e Masato Ide (original)

1970 Dodes’ka-den (Dodesukaden) Akira Kurosawa (produção executiva)

Akira Kurosawa, Hideo Ôguni e Shinobu Hashimoto (original)

1974 Dersu Uzala Akira Kurosawa

Akira Kurosawa e Yuri Nagibin adaptação do livro Dersu okhotnik de Vladimir K. Arsenieva

1980 Kagemusha (Kagemusha – a sombra do samurai)

Akira Kurosawa (produção e edição)

Akira Kurosawa e Masato Ide (original)

1985 Ran Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa e Masato Ide adaptação da tragédia Rei Lear de William Shakespeare

1990 Sonhos (Yume) Akira Kurosawa Akira Kurosawa e Ishiro Honda (não creditado)

1991 Rapsódia em agosto (Hachigatsu no rapusodi)

Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa e Ishiro Honda adaptação do romance Nabe-no-kaka de Kiyoko Murata

1993 Ainda não∗ (Madadayo) Akira Kurosawa (edição)

Akira Kurosawa e Ishiro Honda adaptação dos trabalhos literários de Hyakken Uchida

38 Esta é uma classificação desta pesquisadora, não embasada pela maioria dos livros encontrados ou pelo diretor. ∗ Traduzidos por esta pesquisadora.

65

4 AS PREMIAÇÕES DE AKIRA KUROSAWA

Premiações internacionais

Título Prêmio Ano

Rashomon Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza Oscar de Melhor Filme Estrangeiro39

1951 1952

Os sete samurais (Shichinin no samurai)

Leão de Prata no Festival de Cinema de Veneza 1954

A fortaleza escondida (Kakushi toride no san-akunin)

Urso de Prata no Festival de Berlim Prêmio FIPRESCI (The International Federation of Film

Critics) no Festival de Berlim

1958 1958

O barba ruiva (Akahige) Prêmio OCIC, no Festival de Veneza (Organisation Catholique Internationale du Cinema et de l’Audiovisuel)

1965

Dersu Uzala Grand Prix do Festival de Cinema de Moscou Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

1974 1976

Kagemusha (Kagemusha – a sombra do samurai)

Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes BAFTA (British Academy of Film and Television Arts)

de Melhor Diretor, além de indicação na categoria de Melhor Filme

Cesar, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro Leão de Ouro, em homenagem à sua carreira, no Festival

de Cinema de Veneza

1980 1980

1980 1982

Ran Prêmio Especial de Realização no Festival de Cinema de Cannes, além de indicação à Palma de Ouro

Prêmio Bodil de Melhor Filme Europeu BAFTA (British Academy of Film and Television Arts)

de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Maquiagem. Recebeu mais outras 4 indicações, nas categorias de: Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia, Melhor Figurino e Melhor Desenho de Produção

Indicação para Oscar de Melhor Diretor

1985 1985 1985

1985 Sonhos (Yume) Oscar honorário pelo conjunto de sua obra 1990

39 A entidade responsável pela concessão desta premiação é denominada Academia de Artes e Ciências cinematográficas (EUA).

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Kinema Jumpo’s Award Winners40

Ano Título(s) Colocação

(ões)

1947 Um belo domingo* (Subarashiki nichiyôbi)

6° colocado

1948 O anjo embriagado (Yoidore Tenshi)

1° colocado

1949 Cão danado (Nora inu) Duelo silencioso

(Shizukanaru ketto)

3° colocado 8° colocado

1950 Rashomon Escândalo (Shubun)

5° colocado 6° colocado

1952 Viver (Ikiru) 1° colocado 1954 Os sete samurais

(Shichinin no samurai) 3° colocado

1957 Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô)

4° colocado

1958 A fortaleza escondida (Kakushi toride no san-akunin)

2° colocado

1960 O homem mau dorme bem (Warui yatsu hodo yoku nemuru)

3° colocado

1961 Guarda-costas (Yojimbo) 2° colocado 1963 Céu e inferno (Tengoku

to jigoku) 2° colocado

1965 O barba ruiva (Akahige) 1° colocado 1970 Dodes’ka-den

(Dodesukaden) 3° colocado

1980 Kagemusha (Kagemusha – a sombra do samurai)

2° colocado

1990 Sonhos (Yume) 4° colocado 1991 Rapsódia em agosto

(Hachigatsu no rapusodi)3° colocado

1993 Ainda não (Madadayo) 10° colocado 40 Esta premiação consiste em uma votação anual para os dez melhores filmes. Concorrem os filmes de diretores japoneses realizados no ano corrente.

67

5 FILMES INDIRETAMENTE RELACIONADOS A AKIRA KUROSAWA

Filmes indiretamente relacionados a Akira Kurosawa

Título Ano Diretor

Filmes póstumos

Depois da Chuva (Ame agaru) 1999 Takashi Koizumi (discípulo) Sob o Olhar do Mar (Umi wa mite ita) 2002 Ken Kumagai (sob encomenda)

Westerns realizados a partir de roteiros de jidaigeki

Sete homens e um destino (baseado em Os sete samurais)

1960 John Sturges

Por um punhado de dólares (baseado em Guarda-costas)

1964 Sergio Leone

Quatro confissões – o ultraje (baseado em Rashomon)

1964 Martin Ritt

Filmes feitos a partir de roteiro de Kurosawa (modificado)

Runaway Train 1985 Andrei Konchalowski

Filmes com inspiração em obras fílmicas de Kurosawa

blockbuster41 “Guerra nas estrelas” (inspirado em A fortaleza escondida)

1977 a 2005

George Lucas

Kill Bill I e II (inspirados em A fortaleza escondida)

2003 e 2004

Quentin Tarantino

41 Blockbuster é o termo utilizado pela indústria cinematográfica norte-americana para designar conjuntos seqüenciais de filmes. Este conjunto específico constitui-se de seis filmes, realizados ao longo de três décadas.

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6 IMAGEM DO LIVRO COMPLETO DE STORYBOARDS DE AKIRA KUROSAWA.