Monografia Thiago Sturmer

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CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO Thiago Luiz Stürmer ATUALIDADE, PROFUNDIDADE E NARRATIVA LITERÁRIA: A REPORTAGEM COMO FATOR DE DISTINÇÃO NA REVISTA PIAUÍ Santa Cruz do Sul, junho de 2010

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Transcript of Monografia Thiago Sturmer

  • CURSO DE COMUNICAO SOCIAL

    HABILITAO EM JORNALISMO

    Thiago Luiz Strmer

    ATUALIDADE, PROFUNDIDADE E NARRATIVA LITERRIA:

    A REPORTAGEM COMO FATOR DE DISTINO NA REVISTA PIAU

    Santa Cruz do Sul, junho de 2010

  • Thiago Luiz Strmer

    ATUALIDADE, PROFUNDIDADE E NARRATIVA LITERRIA:

    A REPORTAGEM COMO FATOR DE DISTINO NA REVISTA PIAU

    Trabalho de concluso apresentado ao Curso de Comunicao Social da Universidade de Santa Cruz do Sul para a obteno do ttulo de Bacharel em Comunicao Social Habilitao Jornalismo.

    Orientador: Prof. Dr. Demtrio de Azeredo Soster

    Santa Cruz do Sul, junho de 2010

  • Thiago Luiz Strmer

    ATUALIDADE, PROFUNDIDADE E NARRATIVA LITERRIA:

    A REPORTAGEM COMO FATOR DE DISTINO NA REVISTA PIAU

    Este trabalho de concluso de curso foi apresentado ao Curso de Comunicao Social da Universidade de Santa Cruz do Sul, como requisito parcial para obteno do ttulo de Bacharel em Comunicao Social Habilitao Jornalismo.

    Dr. Demtrio de Azeredo Soster

    Professor orientador

    Dra. Fabiana Piccinin

    Ms. Paulo Pinheiro

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Demtrio, que orientou esta pesquisa, pela pacincia com as limitaes do aluno,

    pelos ensinamentos, pelas correes precisas. Unisc, pela concesso da bolsa. Muri,

    famlia e aos amigos, pelo incentivo

  • A melhor notcia nem sempre a que se d primeiro, mas muitas vezes a que se d melhor. (Garca Mrquez, A melhor profisso do mundo)

  • RESUMO

    Partindo do princpio de que a revista Piau, por suas caractersticas, representa um paradoxo

    no cenrio do jornalismo contemporneo, esta pesquisa busca explicitar como tal publicao

    se estabelece editorialmente. Para tanto traamos um panorama histrico do surgimento e da

    evoluo do jornalismo no formato revista e revisamos as discusses a cerca dos diferentes

    gneros jornalsticos, com nfase na evoluo do jornalismo interpretativo, no qual se inserem

    os textos da Piau. E depois de definirmos os aportes metodolgicos utilizados, analisamos 15

    reportagens da Piau, com o objetivo de compreender quais os recursos que diferenciam os

    textos da Piau de outras publicaes, e como esses recursos so utilizados.

    Palavras-chave: jornalismo interpretativo; revista; atualidade; profundidade; narrativa

    literria

  • SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................................8 1 FORMAO E IDENTIDADE DAS REVISTAS...............................................................11 1.1 O surgimento da revista......................................................................................................11 1.2 As revistas no Brasil...........................................................................................................13 1.2.1 A primeira grande revista brasileira: O Cruzeiro.............................................................14 1.2.2 A aposta na imagem: a revista Manchete.........................................................................18 1.2.3 O apogeu da reportagem: a revista Realidade..................................................................21 1.2.4 A ltima grande revista nacional: Veja............................................................................24

    2 ALGUMAS DEFINIES PARA OS GNEROS JORNALISTICOS...............................28 2.1 O gnero interpretativo.............................................................................................................................312.1.1 Diferenciaes entre jornalismo interpretativo e diversional..........................................35

    3 PIAU, UMA REVISTA DIFERENCIADA.........................................................................38 3.1 A valorizao do texto em Piau.........................................................................................46

    4 DOS MTODOS DE ANLISE...........................................................................................52 4.1 A reviso bibliogrfica........................................................................................................53 4.2 Estudo de caso..................................................................................................................... 4.3 Anlise de contedo............................................................................................................54

    4.4 Ferramenta de anlise pessoal.............................................................................................55 4.4.1 As unidades de anlise.....................................................................................................56 4.4.1.1Atualidade......................................................................................................................56 4.4.1.2 Profundidade.................................................................................................................57 4.4.1.3 Narrativa literria..........................................................................................................58

    5 CARACTERISTICAS DAS REPORTAGENS DA REVISTA PIAU................................62 5.1 Anlise das reportagens......................................................................................................62 Alguns apontamentos................................................................................................................84

    CONSIDERAES FINAIS....................................................................................................85 REFERNCIAS........................................................................................................................89

  • INTRODUO

    Autores de pesquisa em jornalismo sempre se dedicaram a compreender e delinear as

    transformaes decorrentes da evoluo da sociedade nessa atividade profissional e em sua

    produo. Ciro Marcondes Filho divide a evoluo do jornalismo em quatro fases. A primeira

    fase caracterizada por seus valores e literrios, a segunda pelo estabelecimento da imprensa

    de massa e a terceira pela imprensa monopolista. A quarta fase, e atual, definida pela

    implantao de novas tecnologias, pela disseminao da informao eletrnica e pela

    interatividade.

    A quarta fase comeou na dcada de 1970, quando os meios digitais passar a interferir

    no jornalismo. Mas a grande mudana iniciou a partir da metade da dcada de 1990, com a

    transposio do contedo jornalstico para a internet. Hoje, os principais valores da produo

    jornalstica so o impacto visual, a velocidade, a preciso e a atualizao contnua.

    No entanto, nos ltimos anos, esto se estabelecendo no mercado jornalstico veculos

    de comunicao em formato que contraria esses preceitos. Um exemplo a revista Piau.

    Criada em 2006 pelo documentarista Joo Moreira Salles, Piau se caracteriza por privilegiar

    a escrita em detrimento a informao visual e por trazer reportagens aprofundadas, com textos

    longos e minuciosos ao invs de informaes rpidas e curtas.

    Pouco antes da publicao da primeira edio da Piau, Joo Moreira Salles ouviu de

    um famoso editor que uma revista com a que ele tinha condies de vender mais do que cinco

    mil exemplares por ms mercado do Brasil. Os mais otimista diziam que a tiragem poderia

    chegar a 10 mil exemplares. Na poca da execuo dessa pesquisa, eram comercializados por

    ms 60 mil exemplares da Piau, e a tiragem estava em permanente crescimento.

    Essa monografia pretende auxiliar na compreenso dos motivos que fazem com Piau

    tenha se estabelecido de forma to contundente no mercado editorial nacional. Para isso, nos

    dedicamos a analisar o contedo publicado pela revista em questo. Para cumprir com esse

    objetivo, utilizamos de trs tcnicas de pesquisa bastante consolidadas nas pesquisas em

    jornalismo: reviso bibliogrfica, estudo de caso e anlise de contedo, alm de um mtodo

    pessoal que desenvolveremos especificamente para este estudo.

  • Inicialmente, afim de delinearmos a trajetria de evoluo das revistas, fizemos um

    resgate histrico do formato, desde seu surgimento at a consolidao, que passa pela

    inovao trazida por ttulos como Time, Life e The New Yorker. No Brasil, as revistas que

    mais se destacaram ao investir em jornalismo diferenciado foram O Cruzeiro, Manchete,

    Realidade e Veja.

    Cada uma dessas publicaes, foi em seu tempo, inovadora. O Cruzeiro, revista

    fundada em 1928, foi a primeira a investir em nos textos aprofundados e na valorizao das

    fotografias. Manchete, de 1952, consolidou o destaque s imagens dessa vez em cores e

    tambm investiu em boas reportagens. A revista Realidade, da Editora Abril, representa uma

    das melhores experincias nacionais no que tange ao jornalismo de revista com reportagens

    aprofundadas e texto literrio. Veja, por sua vez, se consolidou ao investir na cobertura

    poltica assunto que mais mobilizava o pas poca de sua criao e, mais recentemente,

    no denuncismo poltico e na opinio contundente.

    Avanando na pesquisa, revisamos uma discusso que embora exista formalmente no

    Brasil h pelo menos trs dcadas, continua motivando diferentes propostas de interpretao:

    as definies dos gneros jornalsticos. Ao tratamos do tema, temos por objetivo a

    conceituao dos textos publicados na revista Piau e a definio de suas caractersticas.

    Entendemos que os textos de Piau tem caractersticas de dois gneros distintos, o

    interpretativo e o diversional, ao serem escritos com tcnicas literrias, na qual o autor se

    preocupa menos em seguir padres e tcnicas de redo jornalstica para dar ao leitor uma

    viso mais humanizada dos fatos. Mas classificamos os textos como interpretativos porque

    eles tm compromisso com a atualidade, caracterstica no encontrada nos textos de

    jornalismo diversional.

    No terceiro captulo, tratamos da histria e das caractersticas da publicao que

    nosso objeto de estudo, a revista Piau. Tal medida importante para que possamos entender

    o contexto no qual a publicao se insere, quais os modos de produo da revistas, quem so

    os responsveis por sua criao e quais suas caractersticas editorias.

    No quarto captulo, identificamos e explicamos as operaes tericas e tcnicas que

    compuseram a construo de nossa pesquisa. Como j foi dito, utilizamos, como tcnicas de

    reviso bibliogrfica, estudo de caso, anlise de contedo. Buscamos definir esses trs

  • mtodos de investigao e, dessa forma, justificar seu uso na resoluo de nosso problema de

    pesquisa.

    Para definir como se caracterizam os textos da Piau, analisamos as caractersticas

    comuns em 15 principais reportagens publicadas entre junho e outubro de 2009 na revista.

    Essas caractersticas so a atualidade, a profundidade e a narrativa literria. O que

    pretendemos compreender como essas caractersticas esto inseridas nos textos da Piau e

    qual seu papel, pois acreditamos que o formato das reportagens da revista so sua principal

    diferenciao em relao a outros veculos e representam por isso mesmo elementos

    importantes da composio do sistema jornalstico atual.

  • 1 FORMAO, DESENVOLVIMENTO E IDENTIDADE DAS REVISTAS

    Neste primeiro capitulo, preciso que recuperemos a trajetria de evoluo do

    formato jornalstico alvo da pesquisa, a revista. Compreender as caractersticas e a

    desenvolvimento das revistas importante para que possamos, adiante, compreender o

    contexto histrico no qual est inserido a revista Piau e o modelo de jornalismo desenvolvido

    por esta publicao.

    Nas prximas pginas, faremos um resgate histrico sobre o surgimento do suporte

    revista, primeiro, no mundo; depois, no Brasil. Buscando objetividade e clareza, optamos por

    tratar de maneira aprofundada quatro ttulos. So as revistas nacionais que mais se destacaram

    em toda a histria, seja nos nmeros de tiragem, prestgio, ou qualidade editorial. Cada uma

    delas, tm caractersticas particulares, mas todas foram, em seu momento, inovadoras. So

    as revistas O Cruzeiro, Realidade, Manchete e Veja.

    Mais que uma reviso biblio-historiogrfica, trata-se de uma maneira de avanarmos

    em nosso problema de pesquisa, as caractersticas do jornalismo interpretativo produzido na

    revista Piau. Ademais, ao se estudar ttulos que investiram nas reportagens em profundidade

    como principal atrativo editorial, refletiremos, por conseqncia, sobre o surgimento deste

    tipo de produo jornalstica e sua evoluo at chegarmos ao seu formato contemporneo,

    desenvolvido por Piau.

    1.1 O surgimento da revista

    Segundo pesquisas de Scalzo (2003) e Corra (2010), a primeira revista que pode ser

    classificada assim chamava-se Edificantes Discusses Mensais. A publicao foi lanada em

    1663, na Alemanha. Apesar de assemelhar-se fisicamente a um livro, classificado pelos

    autores como revista porque era segmentada sempre trazia artigos sobre teologia tinha

    periodicidade fixa, como denota seu nome, e era voltada para um pblico especfico.

    Logo, publicaes semelhantes foram lanadas em outros pases da Europa. Todas

    tinha formato fsico semelhante ao do livro e no se autodenominavam revistas. Mesmo

    assim, deixavam clara a misso do novo tipo de publicao que surgia: destinar-se a pblicos

    especficos e aprofundar os assuntos mais que os jornais, menos que os livros. (SCALZO,

    2004, p.19).

  • The Gentlemans Magazine, publicada em Londres em 1731, e The Ladies Magazine,

    lanada um pouco depois, em 1779, foram as primeiras revistas com formato semelhante ao

    que conhecemos hoje. Buscavam apresentar os temas de forma leve e agradvel e reuniam

    assuntos variados - como os magazines, lojas que vendiam um pouco de tudo. A partir da, o

    termo magazine passou a designar revista em ingls e em francs.

    At o fim do sculo 18, com a evolues na sociedade trazida pela Revoluo

    Industrial1 e a conseqente facilitao nos processos de impresso, j havia no mercado uma

    centena de publicaes. A quantidade de ttulos aumenta no mesmo ritmo em que os pases se

    desenvolvem, o analfabetismo diminui, cresce o interesse por novas idias.

    Ao longo do sculo 19, a revista ganhou espao, virou e ditou moda. (...) Com o aumento dos ndices de escolarizao, havia uma populao alfabetizada que queria ler e se instruir, mas no se interessava pela profundidade dos livros, ainda vistos como instrumentos da elite e pouco acessveis. Com o avano tcnico das grficas, as revistas tornaram-se o meio ideal, reunindo vrios assuntos num s lugar e trazendo belas imagens para ilustr-los. Era uma forma de fazer circular, concentradas, diferentes informaes sobre os novos tempos, nova cincia e as possibilidades que se abriam para a populao que comeava a ter acesso ao saber (SCALZO, 2004, p. 20).

    A revista que mais contribuiu para o progresso do gnero foi a Time. A publicao foi

    fundada em 1923 e continua sendo uma das mais prestigiadas do mundo. A Time foi a

    primeira publicao semanal de notcias de generalidades e inspirou, como veremos adiante, a

    criao da Veja, pela Editora Abril, 48 anos depois, em 1968.

    Os fundadores da Time queriam trazer as notcias da semana, organizadas em sesses,

    sempre narradas de maneira concisa e sistemtica. dando-lhes contexto e opinio. O homem

    ocupado no tem tempo para perder, achavam Hadden e Luce em 1923, antecipando uma

    verdade que hoje nos aflige ainda mais (CORRA, 2010, On-line)

    Outro ttulo destacado por Marlia Scalzo (2004, p. 23) Life, de 1936. A revista,

    fundada por Henry Luce que tambm participou da fundao da Time aproveita o

    desenvolvimento da fotografia para fundamentar-se justamente nas imagens. Outra

    caracterstica foi a melhora na qualidade do papel, que aumentava ainda mais a valorizao

    das fotografias.

    _________________________________ 1Conjunto de mudanas tecnolgicas iniciadas na Inglaterra meados do sculo XVIII e logo expandido para os outros pases. Ao longo do processo, a era agrcola foi superada, a mquina suplantou o trabalho humano, uma nova relao entre capital e trabalho se imps, novas relaes entre naes se estabeleceram e surgiu o fenmeno da cultura de massa, entre outros eventos.

  • Dois fenmenos editorias do Brasil, O Cruzeiro e Manchete, seguem a frmula criada

    na Life, como veremos mais adiante.

    Tambm considerada importante por Correa, e relevante no nosso trabalho, por ter

    inspirado o formato seguido por Piau, a revista The New Yorker, criada por Harold Ross em

    1925, nos Estados Unidos, e que at hoje continua a ser uma das publicaes mais

    prestigiadas no mundo. A revista se destaca pela reportagens em profundidade sobre pontos

    de vista originais e com narrativa literria. Como a Piau, a The New Yorker publica contos de

    fico, poesias e histrias em quadrinhos em praticamente todas as edies. semelhante

    tambm a formatao grfica das duas revistas, com prioridade para os textos sempre longos

    em detrimento s fotos.

    Credita-se The New Yorker, ainda, a inveno do modelo de texto que chamamos de

    perfil. O perfil, define, Srgio Vilas Boas um tipo de texto biogrfico sobre uma uma

    nica - pessoa, famosa ou no, mas viva, de preferncia. O autor explica ainda as diferenas

    do perfil e da biografia do personagem.

    A biografia uma composio superdetalhada de vrias textos biogrficos (facetas, episdios, convivas, pertences, legados, o feito, o no-feito etc.). Enquanto um bigrafo se detm em um extenso conjunto de inputs, o autor de um perfil se concentra em apenas alguns aspectos do personagem central. O personagem central assim melhor que perfilado (palavra horrvel) a razo de ser de um perfil. Se a individualidade fosse banida do mundo e os humanos no passassem de robs programveis, sem estilo nem identidade, o gnero perfil simplesmente no existiria. O perfil se atm individualidade, mas no ao individualismo vulgar. (VILAS BOAS, 2010, On-Line)

    1.2 As revistas no Brasil

    Aps delinearmos os principais momentos do surgimento do meio revista no mundo,

    passamos, agora, a tratar do desenvolvimento do formato e de sua identidade no Brasil.

    Como lembra Scalzo (2003), a histria das revistas no pas, como a histria da

    imprensa em geral, em qualquer parte do mundo, confunde-se com a histria econmica e

    industrial. Como a publicao de qualquer tipo de produo jornalstica s foi permitida no

    Brasil depois da chegada da Famlia Real, em 1808, a primeira revista s foi impressa no pas

    em 1812. Chamava-se As Variedades ou Ensaios de Literatura,e era produzida em Salvador.

    Como outras da poca, era muito parecida com um livro e se propunha a publicar diversos

    assuntos, desde pequenas novelas at clssicos da literatura portuguesa, passando por

    anedotas e artigos cientficos.

  • Em 1827, impressa a primeira revista segmentada por tema, a reboque da

    beletrizao da elite profissional do pas recm independente. Chama-se O propagador das

    Cincias Mdicas e foi publicado pela Academia de Medicina do Rio de Janeiro. E nesse

    mesmo ano surge a primeira revista feminina nacional, Espelho Diamantino. Dirigida s

    mulheres, a publicao tratava de assuntos que at hoje pautas as revistas de diversidade -

    poltica, moda, teatro, literatura. Essas duas revistas - e a maioria das outras que existiam na

    poca - foram extintas em pouco tempo, devido falta de assinantes e de recursos.

    O cenrio comea a mudar com a revista Museu Universal, de 1937, voltada a uma

    parcela da populao recm-alfabetizada, com o propsito de oferecer cultura e

    entretenimento. Abusando do uso de ilustraes e com pequenos textos, Museu Universal era

    o meio ideal para essa que os recm conquistados leitores se informassem. Com essa frmula,

    copiada dos magazines europeus, o jornalismo de revista brasileiro comeou a se expandir.

    Conforme a pesquisa de Scalzo (2003) foram lanados centenas de ttulos entre o final

    do sculo XIX e o inicio do sculo XX, durante a chamada Belle poque. A maioria deles no

    Rio de Janeiro, centro poltico e cultural da repblica. Acompanhando as transformaes

    cientficas e tecnolgicas, as revistas passam a apresentar um nvel de requinte visual antes

    inimaginvel. Comeam a apareces as primeiras fotografias e ilustraes. Um dos ttulos mais

    destacados a Revista Ilustrada, fundada em 1860 por Henrique Fleuiss, que vale-se desses

    recursos grficos. Mas a primeira revista a efetivamente usar o fotojornalismo no Brasil foi a

    Cruzeiro inicialmente sem o artigo no inicio no nome , sobre a qual falaremos a seguir.

    1.2.1 A primeira grande revista brasileira: O Cruzeiro

    O Cruzeiro foi a principal revista brasileira da primeira metade do sculo XX. O

    projeto da publicao era foi idia do jornalista portugus Carlos Malheiro Dias. Mas quem

    acabou comprando o ttulo efetivamente iniciando sua impresso foi o dono dos Dirios

    Associados2, Assis Chateaubriand. Chateaubriand, como conta Morais (1994, p. 177) na

    _________________________________ 2Os Dirios Associados chegaram a reunir 36 jornais, 18 revistas, 36 rdios e 18 emissoras de televiso, em todo o Brasil alm da revista O Cruzeiro. Com a morte de Chateaubriand, em 1968, as empresas entraram em decadncia, culminando, em 1980, com o fechamento da TV Tupi.

  • biografia que escreveu sobre o empresrio e jornalista, tinha a inteno de desenvolver um

    produto jornalstico que atingisse todo o pas. Por meio de amigos, tomou conhecimento das

    intenes de Malheiro Dias e, em 1928, com a ajuda do ento ministro da Fazenda Getlio

    Vargas, conseguiu o dinheiro necessrio para comprar a idia e iniciar O Cruzeiro.

    poca j proprietrio da maior cadeia de jornais que existiu no pas, Chateaubriand

    conhecia como nenhum outro o mercado editorial, suas possibilidades e demandas. Logo, O

    Cruzeiro tinha um projeto editorial definido: Uma revista com papel de alta qualidade,

    repleta de fotografias, contaria com os melhores articulistas e escritores do Brasil e do

    exterior. (MORAIS, 1994, 178). Cruzeiro seria semanal, com tiragem de 50 mil exemplares,

    que circulariam em todas as capitais e principais cidade do Brasil.

    O Cruzeiro surgiu no governo de Washington Luiz Pereira de Souza. Era um perodo

    de intensa migrao do campo para as cidades. O Brasil registrava o aumento da vida urbana.

    Fbricas se espalhavam s dezenas. Para os leitores de O Cruzeiro, a revista era o reflexo do

    processo de modernidade pelo qual passava a sociedade brasileira. Em pouco tempo, a revista

    se firmou como a principal publicao nacional. E sua Redao foi pioneira ao tratar de

    reportagens profundas sobre questes nacionais.

    Nos 46 anos que circulou, inclusive no exterior, em pases como Portugal, Argentina,

    Chile e Mxico, O Cruzeiro foi considerada a maior revista da Amrica Latina, chegando a

    uma tiragem de 700 mil exemplares na dcada de 1960, seu perodo-auge.

    Alm lanar nomes na poltica e nas artes, o peridico foi um dos veculos de

    comunicao mais poderosos que o pas j teve. Um exemplo o prprio Getlio Vargas, que

    O Cruzeiro ajudou a levar ao poder na dcada de 1930 e que tambm ajudou a depor em

    1944.

    Moraes (1997, p. 194) destaca que O Cruzeiro valorizava a produo literria,

    refletindo o interesse de seu publisher pelas artes. Logo em suas primeiras edies, foi

    lanado um concurso de contos e novelas destinado a descobrir novos talentos da literatura.

    Em poucas semanas, mais de 400 trabalhos chegaram a redao da revista. Entre os dez

    finalistas dois nomes chamaram a ateno especial pela qualidade de sua produo e pela

    pouca idade. Um deles era o futuro general e historiador Nelson Weneck Sodr, autor do

    clssico Histria da imprensa no Brasil (Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1966),

    poca com 18 anos. O outro, do interior de Minas Gerais, era um jovem de 21 anos chamados

  • Joo Guimares Rosa, que anos seria consagrado como um dos maior escritores em lngua

    portuguesa.

    Serpa (2010) listou um conjunto de artistas ilustradores, pintores e escritores que

    colaboraram para O Cruzeiro: Portinari, Di Cavalcanti, Santa Rosa, Djanira, Ismael Nery,

    Enrico Bianco, Gilberto Trompowski, Anita Malfatti, Millr Fernandes, Ziraldo, Carlos

    Estevo, Alceu Penna, Zlio (irmo de Ziraldo), Humberto de Campos, Graciliano Ramos,

    Jorge Amado, rico Verssimo, Franklin de Oliveira, Austregsilo de Athayde e Manuel

    Bandeira.

    O Cruzeiro foi responsvel pela implementao de uma nova forma de fazer

    jornalismo, antes nunca utilizada pela imprensa da poca. Foi a primeira vez que a

    reportagem, modelo de texto jornalsticos estudado nessa pesquisa, foi explorada. Nunca antes

    houvera tanta preocupao com a diagramao, nem o uso de fotografias daquela forma,

    impressas em cores, ocupando pginas inteiras. Pode-se dizer que O Cruzeiro foi percussora

    do fotojornalismo moderno no Brasil. Foi, ainda, uma porta para o surgimento de vrios

    nomes importantes no jornalismo, como David Nasser, na reportagem, e, na fotografia, Jean

    Manzon.

    Jean Manzon nasceu em Paris e trouxe muito da experincia francesa para o Brasil.

    Manzon contribuiu com a implementao das reportagens fotogrficas em O Cruzeiro,

    utilizando a sua experincia de participao em grandes coberturas pela revista Match. Seu

    talento, e de seu parceiro na maioria das empreitadas, David Nasser, que trabalhava em O

    Globo e foi escolhido pelo prprio Manzon para ser sua dupla nas reportagens, modificaria

    por completo o jornalismo nacional.

    Manzon e Nasser foram os primeiros nomes da segunda fase de O Cruzeiro, iniciada a

    partir da dcada de 1940. O perodo foi marcado pelas reportagens semanais produzidas pela

    dupla. Juntos, eles participaram de coberturas histricas. Uma das mais famosas a matria

    Enfrentando os Chavantes!, publicada no do dia 24 junho de 1944. A tribo indgena habitava

    uma rea muito isolada na Serra do Roncador, na fronteira do Mato Grosso com o Par e foi

    mostrada pela primeira vez por meio das lentes de Manzon e descrita pelo texto de Nasser.

    Tambm fez muito sucesso, em junho de 1946, a reportagem Barreto Pinto sem

    Mscara, veiculada em 29 de junho de 1946 e que custou ao deputado a cassao do mandato.

  • Luiz Maklouf Carvalho reprter de Piau, autor do livro Cobras Criadas (2001), sobre a

    dupla, e descreve esse episdio:

    Em onze pginas, da 8 a 18, Manzon e Nasser apresentaram o deputado constituinte Barreto Pinto semidesnudo, em cuecas e fraque. Foi um escndalo, provocou enorme repercusso na mdia e levou cassao de um restinho de mandato de Edmundo Barreto Pinto, do Partido Trabalhista Brasileiro a primeira na histria poltica do Brasil. (...) Barreto Pinto explicou, na ocasio, que recebeu os dois reprteres, em casa, a pedido do secretrio de redao do Dirio da Noite, Sebastio Isaas. E que deixou-se fotografar s com a casaca, em cuecas, porque os dois disseram que s iriam aproveitar o busto. (CARVALHO, 2001, p. 151-153).

    Nasser, e todos os outros reprteres de O Cruzeiro, relatavam os fatos sem a

    preocupao com o modelo formal do texto jornalstico, que leva em conta a objetividade da

    informao. Os textos tinham traos ficcionais e narrativa literria, e em muitos deles,

    principalmente quando os autores tinham prestgio entre os leitores, caso de Nasser, era usada

    a primeira pessoa e o texto girava em torno do narrador e de sua aes e observaes. O

    prprio reprter se transformava num personagem.

    Mas mesmo se tornando cada vez mais moderno, o jornalismo praticado em O

    Cruzeiro era descompromissado com a tica em vrios sentidos. Em seu livro, Luiz Maklouf

    Carvalho (2001) conta algumas das artimanhas utilizadas pelos reprteres para conseguir

    matrias de sucesso. Um exemplo est no relato sobre a morte, inventada, do prprio Jean

    Manzon. A reportagem ficcionista aumentou o prestgio e a popularidade da dupla. Accioly

    Netto (1998), ex-diretor de redao da revista, tambm trata da falta de tica em O Cruzeiro

    em seu livro de memrias. Segundo Netto (1988, p. 51), muitas vezes as matrias das sees

    eram reaproveitadas das revistas do exterior. Fernando Moraes (1997, p. 370) lembra que

    muitos textos eram pagos por anunciantes, apesar de isso no ficar explcito aos leitores.

    O Cruzeiro comeou a declinar a partir dos anos 60, com o desuso de suas frmulas e

    o surgimento de novas publicaes, como a revista Manchete, sobre a qual trataremos a

    seguir. A runa chegou definitivamente em 1974, provocada pelas dividas que fizeram

    sucumbir tambm os outros veculos do Dirios e Emissoras Associados. Alm de perder

    parte do prprio prdio onde estava instalada na rua Livramento, o ttulo O Cruzeiro foi

    cedido a Hlio Lo Bianco, em pagamento por suas comisses atrasadas (NETTO, 1998,

    p.164). Tambm as mquinas, importadas por mais de dois milhes de dlares, foram

    vendidas a preo de ferro-velho.

  • 1.2.2 A aposta na imagem: a revista Manchete

    Manchete comeou a circular em abril de 1952, um ano depois de Adolpho Bloch ter

    iniciado seu projeto. O fundador da revista era um imigrante vindo para o Brasil com a famlia

    em 1922, infeliz com o regime socialista na sua Russia natal.

    Bloch, empresrio do setor grfico, apostava que havia lugar no mercado para mais

    uma revista de circulao nacional, que poderia concorrer com O Cruzeiro. Com base na

    experincia adquirida nas tipografias da famlia, tanto na Rssia como no Brasil, alicerava-se

    nas possibilidades de introduzir inovaes editoriais na publicao e aprimoramentos tcnicos

    no equipamento grfico para vencer o desafio de concorrer com a poderosa revista de

    Chateaubriand.

    O primeiro nmero da Manchete estampava na capa uma bailarina do Teatro

    Municipal do Rio de Janeiro, e alardeava como exclusividades Uma grande reportagem de

    Jean Manzon e A verdadeira vida amorosa de Ingrid Bergman. O fundo escuro,

    contrastando com o dourado de uma carruagem que servia de cenrio e com as chamadas

    emolduradas em vermelho.

    A inteno era lanar uma revista em estilo inteiramente novo, com alta qualidade

    grfica, muitas reportagens a cores, investindo enfaticamente no aspecto visual. A inspirao

    publicao francesa Paris-Match, revista de alta qualidade, requintada, cuidadosamente

    impressa em sofisticado papel couch.

    Cercada por grandes nomes da imprensa dos anos 1950 e dando cobertura aos

    acontecimentos relevantes no pas e no exterior, a Manchete logo se tornou uma das revistas

    de maior circulao no pas na poca. Tinha sucursais, representantes e correspondentes nas

    principais cidades do Brasil e do mundo, tais como So Paulo, Paris, Lisboa, Londres,

    Tquio, Buenos Aires, Montevidu e Nova Iorque.

    Segundo o editor Alvimar Rodrigues, entrevistado por Arago (2010, On-Line) o

    Adolpho, com a viso grandiosa que tinha, ele quis lanar essa revista [Manchete] como

    alguma coisa de muito melhor do que era a grande revista da poca, que era O Cruzeiro. De

    fato, a Manchete, ao ser lanada, rapidamente suplantou o sucesso de O Cruzeiro, pois se

    apresentava valorizando um outro aspecto visual, o colorido muito prezado pelo pblico

    leitor em uma poca em que a televiso nem existia e depois, quando disseminada, recebia

    somente imagens em preto e branco.

  • Levando em considerao as mudanas ocorridas na imprensa nos anos 1950,

    podemos perceber o quanto O Cruzeiro (embora tenha iniciado sua circulao em 1928) e

    Manchete se beneficiaram de tudo aquilo que tais transformaes propiciavam: maiores

    recursos advindos da publicidade, novas tcnicas de redao, novos modelos de cmaras

    fotogrficas, jornalistas mais habilitados, fotgrafos com experincia profissional de alta

    qualidade.

    Manchete passou a dominar o mercado a partir dos anos 60, quando atingia tiragem

    semanal mdia de 400 mil exemplares. Um dos principais responsveis por esse sucesso foi

    Justino Martins, editor da revista por 24 anos, desde 1959 at sua morte, em 1983. Antes, ele

    havia sido correspondente de vrias publicaes nacionais em Paris, onde entrevistou artistas

    como Picasso, Grace Kelly e Jean Genet e foi um dos primeiros jornalistas brasileiros a

    perceber a importncia que as celebridades tem para as revistas ilustradas (CORRA, 2000).

    Assim, Manchete sempre deu destaque a atrizes e suas frivolidades. Justino acreditava

    que os assuntos preferidos dos brasileiros eram as celebridades, o cinema, o esporte, o crime e

    o dinheiro; tambm podemos incluir nessa lista o Carnaval que, anualmente, rendia

    prestigiadas edies especiais de Manchete.

    Mas, contam Gonalves e Muggiati (In: BARROS e GONALVES, 2008), Justino era

    muito preocupado com o papel social da revista. Ele e Adolpho Bloch entravam em conflito

    constantemente porque o editor queria uma revista mais nacionalista, com mais crtica social e

    menos amenidades internacionais. Em 1977, Justino escreveu o seguinte relatrio sobre

    Manchete:

    Sempre houve muita matria estrangeira na Manchete, mas agora h um excesso de enlatados. A mdia atual de 50% a 70% de assuntos estrangeiros. Os 30% nacionais so, em boa parte, de interesse exclusivo da publicidade. (BARROS e GONALVES 2008, p. 40)

    Semelhante a O Cruzeiro, a publicao da editora Bloch tambm dedicava bons

    espaos s pginas de cultura. Sua vocao literria ficou evidente na sria chamada As obras

    primas que poucos leram. A srie foi iniciada em 1972 e durou cinco anos sem interrupo.

    Nela, autores como Ruy Castro, Carlos Heitor Cony e Otto Maria Carpeaux escreviam sobre

    livros famosos para o grande pblico, mas que na realidade poucos haviam lido. A revista

    dedicava muito espao ao cinema e foi sua Redao que usou pela primeira vez um quadro de

    cotao, onde os crticos avalizavam com estrelas a qualidade do produto artstico.

  • Alm dos citado acima, entre os destaques no meio intelectual que trabalharam para

    Manchete, Andrade e Cardoso (2010, On-Line) identificaram Carlos Drummond de Andrade,

    Rubem Braga, Joel Silveira, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Paulo

    Mendes Campos, Lgia Fagundes Telles, Antnio Callado, Srgio Porto, Ciro dos Anjos,

    Jnio de Freitas e muitos outros. Jean Manzon, que despontou em O Cruzeiro foi o principal

    fotgrafo da de Manchete. Ao seu lado, estiveram Darwin Brando, Gil Pinheiro, Gervsio

    Baptista, Flvio Roiter, Jader Neves etc.

    Gonalves e Muggiati (In: BARROS e GONALVES, p.26, 2008) lembram que

    Manchete no tinha muita preocupao com a atualidade das noticias publicadas. Seu carro-

    chefe era a qualidade da informao e no o ineditismo ou a velocidade. A redao conclua a

    edio da semana na segunda, a grfica imprimia na madrugada e em parte da manh das

    tera e o leitor recebia a revista sempre s quartas, dois dias depois, portanto. Mesmo assim, a

    revista fazia esquemas especiais para poder noticiar, na mesma semana, por exemplo, as

    eleies presidncias americanas, cujo resultado tradicionalmente sai na tera noite. A

    Redao preparava duas matrias e ficavam, ambas, prontas para serem publicadas. Depois de

    o correspondente confirmar o vencedor, a revista comeava a ser impressa.

    A editora de Manchete, escreveu Bloch (2008), entrou nos anos 80 como uma empresa

    muito saudvel financeiramente e editorialmente. poca, a tiragem da revista no baixava

    os 200 mil por semana e chegava a atingir um milho de exemplares em edies histricas.

    Nesse perodo, a empresa inovou o mercado de revistas no Brasil ao aproveitar a influncia de

    seu famoso semanrio para lanar outros ttulos. Ao todo, foram 18 novas revistas. Entre elas,

    algumas fizeram muito sucesso, como Manchete Esportiva, ilustrada sobre esportes; Jia,

    direcionado ao pblico feminino; Stimo Cu, que trazia fotonovelas e notcias sobre rdio e

    televiso; Fatos e Fotos, tambm semanal de atualidades; e a masculina Ele Ela.

    O declnio de Manchete comeou a partir de 1983, com o surgimento da TV Manchete,

    que passou a concentrar todas as atenes e investimentos da famlia Bloch. A prpria revista,

    perdeu qualidade, virou um mero boletim de divulgao da emissora de televiso da famlia,

    j que nem dos artistas da TV Globo podia mais falar. Com esse desgaste todo, Manchete

    comeou a sofrer progressivas quedas nas vendas, sem que a empresa fizesse qualquer

    investimento para virar o jogo (GONALVES e MUGGIATI In: BARROS e

    GONALVES, 2008, p. 49. Ano a ano, a revista era cada vez menos prestigiada, sua equipe

  • era cada vez menor. A extino oficial veio em 2000, com o pedido de autofalncia da Editora

    Bloch.

    1.2.3 O apogeu da reportagem: a revista Realidade

    Capitaneada por Roberto Civita, filho do fundador da Editora Abril, Victor Civita,

    Realidade nasceu quase por acaso. Roberto queria fazer uma publicao para ser encartada

    em jornais de domingo. Chegou a fazer um acordo com os proprietrios da Folha de So

    Paulo e do Jornal do Brasil, mas quando estava tudo pronto para comear, Otvio Frias de

    Oliveira, proprietrio da Folha, deu para trs e o projeto morreu. Roberto foi ver o pai para

    contar a triste histria, e terminou com a clssica pergunta: E agora, o que que eu fao? Faz

    uma revista, respondeu o pai.. (CORRA, 2010, On-line)

    Ento Roberto chamou um time de excelentes reprteres, fotgrafos excepcionais -

    alguns deles americanos esperando uma oportunidade assim para fotografar o Brasil - e fez

    uma revista que at hoje considerada a melhor experincia em reportagens no Brasil. Alm

    disso, Realidade especialmente importante na nossa pesquisa porque, de todas publicaes

    nacionais sobre as quais tratamos, pode ser considera a mais semelhante Piau,

    principalmente pela qualidade e pelo formato de suas reportagens.

    Realidade comeou com uma tiragem experimental de 5 mil exemplares, em sua

    edio de nmero zero, em 1966. Sua segunda edio j saia com 250 mil exemplares, todos

    vendidos nos primeiros trs dias na banca. A partir da, a ascenso da revista foi fulminante,

    surpreendendo os prprios editores. Em fevereiro de 1967, j era 500 mil exemplares mensais.

    Logo depois do lanamento da revista, Faro (1999, p.58) afirma que uma pesquisa foi

    feita e revelou que eram de interesse geral matrias sobre cincia e progresso, grandes

    problemas brasileiros e assuntos relativos a sexo e educao sexual. Esses temas acabariam

    por ser recorrentes na publicao.

    No quarto ou quinto nmero, Realidade j era o sonho de todo jornalista brasileiro. Cada exemplar era 'estudado' nas redaes e despertava vontade de fazer jornalismo em pessoas que at ento consideravam isso de escrever uma ocupao menor (RIBEIRO, apud FARO, 2010, On-Line)

    Segundo Faro (1999), uma das fontes dessa experincia jornalstica foi certamente a

    conjuntura poltico-cultural do perodo do surgimento da revista e de seus trs primeiros anos

    de existncia (1999, p.50). Outra fonte, que dialoga com a poca, foi o uso do cdigo

    discursivo inovador, semelhante ao do jornalismo com narrativa literria, que estava sendo

  • praticado por nomes como Tom Wolfe, Gay Telese, Norman Mailer e Truman Capote nos

    EUA.

    Jos Hamilton Ribeiro, um dos principais reprteres de Realidade, afirma que no

    houve uma influncia direta dos norte-americanos. At mesmo porque a revista nasceu junto

    com o movimento (apud VASCONCELLOS, 2003). Ele, porm, admite que seus editores e

    redatores estavam cientes das inovaes que ento ocorriam no jornalismo, no s na Amrica

    do Norte como por todo o mundo. Se houve influncia, foi mais pela forma do que pelo

    contedo. Depois de concludo o trabalho que os editores e jornalistas perceberam o que havia

    de parecido. Mas nada foi calculado. Ns fomos contemporneos ao Novo Jornalismo, mas

    no houve nenhuma ligao formal. Foi mais uma ligao etrea. O movimento e a revista

    surgiram simultaneamente de forma natural. (RIBEIRO apud VASCONCELLOS, 2003).

    Para Roberto Civita, fundador e ex-editor da Realidade e atual presidente e editor da

    Editora Abril, citado por Faro (1999), Realidade veio preencher um vcuo ambicionado pela

    gerao da poca quanto insipincia das publicaes questionando desde a poltica e valores

    culturais vigentes. Para ele, outro fator de sucesso da publicao teria sido o vazio na rea das

    revistas de informao no atualizada: as reportagens publicadas em Realidade cerca de 12

    ou 13 em cada nmero eram feitas com at trs meses de antecedncia.

    O papel da Realidade era dizer as coisas que no eram ditas, fazer as perguntas que no eram feitas.Os jovens se entusiasmaram e se tornaram um grande pblico: adolescentes, universitrios e jovens adultos(...). A circulao da revista era de meio milho de exemplares vendidos em bancas. Tivemos trs edies esgotadas. Acertamos sem nenhum estudo de mercado. (CIVITA, apud FARO, 1999, p. 54)

    Para Faro (1999), Realidade s foi possvel graas ao esprito de contestao da poca.

    Os anos 60 foram muito frteis para a experimentao e a busca pela novidade, inclusive na

    imprensa. Outro fator para explicar o xito da publicao, a frmula narrativa pessoal

    empregada nas matrias.

    Quando se l (as reportagens da revista) o que se percebe uma presena muito forte da perspectiva pessoal do jornalista na narrao do fato noticioso. Um jornalismo produzido assim um jornalismo que incomoda. Incomoda e atia o leitor porque o retira do padro informativo com o qual ele est habituado, mas, em razo das caractersticas da poca, talvez fosse isso mesmo que o leitor quisesse. Incomoda e atia os tais poderes constitudos, na imprensa e fora dela, porque um jornalismo feito dessa maneira revela fatos, concepes, comportamentos que esses poderes preferem ver camuflados nos cdigos da pretensa objetividade dos jornais e revistas de todas as pocas (FARO, 1999, p. 61)

    O nvel de profundidade ao qual os reprteres se submetiam para compor as matrias

    de Realidade pde ser sentido na pele por Jos Hamilton Ribeiro logo ao receber o convite

  • para compor a equipe - que j veio acompanhado da primeira pauta: ele seria negro por um

    ms. O reprter foi atrs de dermatologista e passou por processos de pintura de sua pele para

    compor a reportagem.

    Jos Hamilton Ribeiro destaca o apuro de equipe de Realidade no que tange a

    qualidade dos textos. Era um tal de reescrever, reescrever, pentear, editar (Jos Hamilton

    Ribeiro apud VASCONSELLOS, 2010). Quando a matria enfim passava pelo editor de

    texto, Srgio de Souza, o texto ia para o redator-chefe Paulo Patarra, e, por fim, por Roberto

    Civita, diretor de redao.

    Antes, ainda na escolha das pautas, havia muitas discusses entre a Redao da

    Realidade, buscando sempre os assuntos que os reprteres consideravam os melhores, e com

    Civita sempre argumentando que no mostrassem apenas o lado negativo e pessimista do

    Brasil. Era uma luta desgastante, que afinal acabava assim: dos 13 assuntos que a revista

    comportava, 11 a redao tinha escolhido; dois ela tinha que engolir. O balano final

    resultava equilibrado; nem era uma revista mentirosa, nem era amarga e derrotista (Jos

    Hamilton Ribeiro apud VASCONSELLOS, 2010)

    Realidade chegou ao ser apogeu em 1968. A revista no baixava dos 500 mil

    exemplares mensais, e ia em ritmo crescente, prenunciando que chegaria meta de Roberto

    Civita: um milho de exemplares vendidos. S que no mesmo ano comeou a decadncia da

    publicao. A censura proibiu os jornalistas da revista de falar sobre assuntos que sempre

    ocuparam suas pginas. Juventude, operrios, sexo, os influentes bispos progressistas, por

    exemplo. A Abril teve de demitir vrios jornalistas; outros, frustrados, resolveram sair por sua

    conta.

    Para Roberto Civita, foram vrias as causas para o fim da Realidade, sendo, segundo

    ele, o argumento mais fcil a ascenso definitiva da ditadura. Porm, a resposta mais

    verdadeira que o nmero de moinhos contra o qual investamos estava diminuindo, alm

    da acelerao das notcias e a imitao do nosso modelo por outros veculos. (FARO, 1999, p.

    54-55). Outro motivo foi a criao da revista Veja, sobre a qual trataremos a seguir.

  • 1.2.4 A ltima grande revista nacional: Veja

    Corra (2010, On-line) considera que Veja foi a ultima idia inovadora no que diz

    respeito a jornalismo de revista no Brasil. Semanrio inspirado na de Time, Veja a muitos

    anos a maior revista deste pas, exceo no panorama internacional, onde a semanal de

    informao nunca a maior: sempre a revista de televiso.

    O formato de Veja foi influenciada pelo perodo em que Roberto Civita trabalhou

    como trainee na Time, em Nova York, por mais de um ano. Roberto recebeu um convite para

    trabalhar no Japo e, ao invs de aceitar a proposta da redao norte-americana e ir para

    Tquio, voltou para o Brasil e, com o pai, Victor, foi responsvel pela criao da revista Veja,

    A primeira edio de Veja chegou s bancas no dia 11 de setembro de 1968. A

    primeira capa trazia os smbolos do comunismo, a foice e o martelo, sobre um fundo

    vermelho. O ttulo da matria interna era Rebelio na Galxia Vermelha e tratava da invaso

    da Tchecoslovquia. (VEJA, 2010, On-line).

    Inicialmente, Veja deveria concorrer com Manchete e ser, por isso, uma revista

    ilustrada. O prprio nome Veja pode ser associado a imagens e ficou sendo, a princpio, Veja

    e Leia, com a primeira palavra em corpo de letra bem maior. Mas final da dcada de 60, o

    modelo de jornalismo proposto pelas revistas semanais ilustradas estava em decadncia.

    Mesmo com o uso da cor por O Cruzeiro e Manchete, a viabilidade desse gnero no

    correspondia a sucesso em vendas. A atualidade das informaes dos jornais dirios e da TV

    prejudicava cada vez mais as revistas.

    Nas primeiras edies de Veja, a diagramao era confusa e as reportagens, prolixas

    (AUGUSTI, 2005, p. 73). Quem conseguiu, aos poucos, tornar a revista atraente foi seu

    diretor de redao da lanamento da publicao a 1976, Mino Carta. Carta chamou Millr

    Fernandes para fazer duas pginas de humor, publicou resenhas de filmes e livros e, a maior

    das inovaes, colocou na abertura da revista uma entrevista com perguntas e respostas. Foi

    usado na nova seo um estoque de papel amarelo que sobrara na grfica. Logo, as pginas

    amarelas se tornaram uma marca e so at hoje -, e a editora Abril teve que passar a usar

    tinta amarela para colorir as pginas de entrevista.

    Nessa mesma poca, a cpula de jornalistas que fez histria em Veja comeava a se

    formar, com editores e sub-editores. Chegaram a Veja nomes como Roberto Guzzo, To

    Gomes Pinto, Roberto Muggiati e Srgio Pompeu (AUGUSTI, 2005, p. 75-76). Mesmo

  • assim, a tiragem de Veja era de 70 mil exemplares, muito pouco comparando com os 700 mil

    projetados.

    As vendas aumentaram durante a publicao de uma srie de oito fascculos semanais

    sobre a corrida espacial, chegando marca dos 228 mil exemplares na semana do ltimo

    fascculo, a mesma em que Apolo 11 pousou na Lua, em julho de 1969. No mesmo perodo, a

    revista tambm iniciou um caderno de investimentos que teve to grande aceitao que deu

    origem revista Exame. Mesmo assim, apenas em 1973 Veja passa a cobrir seus custos (Plug,

    2010, On-line).

    O sucesso definitivo veio com a doena do presidente Costa e Silva, em agosto de

    1969.

    Da trombose de Costa e Silva at sua morte, Veja publicou uma seqncia memorvel de 17 capas. Apenas trs no estavam ligadas crise poltica, sendo que s restantes couberam assuntos difceis de averiguar, ainda mais sob censura. Dessas, duas capas foram histricas. (autor da tese..)... Na primeira, noticiou-se uma exclusividade: o presidente Mdici estava irritado com a tortura e os torturadores, com a chamada de capa O presidente no admite torturas. Na semana seguinte, a capa foi sobre o mesmo assunto, com a matria informando que o ministro da Justia defendia que era preciso investigar as denncias de maus-tratos em presos polticos. (AUGUSTI, 2005, p.64)

    Diante desse cenrio, surge a frmula de se fazer uma revista semanal de notcias

    que interessa os leitores. A cobertura poltica vira prioritria; as pautas refletem as

    preocupaes de todo o pas democracia, liberdade individual e torturas so temas

    recorrentes. E com isso, claro, a revista passa a ter matrias censuradas em quase todas as

    edies.

    Augusti (2005) escreveu que os jornalistas de Veja trabalhavam em um esquema

    diferente do normal em grandes redaes. A equipe deveria descobrir notcias que os jornais

    no tinham e apresentar os fatos melhor que eles, j que deveria investigar os bastidores,

    dando sentido aos acontecimentos (AUGUSTI, 2005, p. 65).

    Veja tambm apresentaria uma concepo diferente das revistas Time e Newsweek,

    suas principais inspiraes. As semanais americanas privilegiavam mais o redator que o

    reprter. Veja, porm, soube detectar jornalistas de talento e navegar entre as disputas

    militares. A cada reportagem, ampliou os limites do que a revista podia publicar sobre a

    censura. Raimundo Pereira, ex-colaborador da revista, citado por Augusti, (2005 p.76) definiu

    o jornalista de Veja, da seguinte forma: o reprter que apura, edita e fecha matrias.

  • A partir do final da dcada de 1960, a revista j estava consolidada e publicou

    entrevistas histricas:

    Nelson Rodrigues afirmou em 1969: Eu sou um anticomunista. No mesmo ano, o cientista do projeto espacial americano Werner Von Braun foi taxativo: Havero estaes espaciais orbitando a Terra, e muitos vos para os laboratrios no espao. Em 1972, foi a vez de Tarsila do Amaral polemizar. Quis fazer um quadro que assustasse o Oswald de Andrade, disse, justificando Abaporu, obra de 1928. E mais adiante, em 1975, o ditador chileno Augusto Pinochet declarou: No existem presos polticos. H pessoas detidas em virtude do estado de stio ou por haverem cometido crimes comuns (Esquinas, 2010, On-line).

    Com a exploso das assinaturas, em 1980, Veja tornou-se o ttulo mais lido do pas. A

    revista seguia e segue at hoje a frmula de apostar em novidades, opinio contundente e

    na pauta poltica. Suas reportagens, salvo excees, tratam de assuntos debatidos na semana

    em meios de comunicao mais geis como os jornais.

    Com a abertura poltica, no inicio da dcada de 1990, a revista passa a publicar

    grandes investigaes a respeito de corrupo e desvios no errio pblico. Nessa poca, o

    Diretor de Redao de Veja era Mrio Srgio Conti, atual diretor de redao de Piau. E esses

    grades furos conseguidos pela equipe de Veja costumam repercutir em outros veculos.

    Alguns, inclusive, desencadearam grandes crises polticas.

    Em 25 de abril de 1992, por exemplo, Veja publicou nas pginas amarelas uma entrevista exclusiva com Pedro Collor de Mello, irmo do ento presidente Fernando Collor de Mello. Pedro Collor denunciou irregularidades de desvio de dinheiro pblico em uma suposta parceria do presidente com Paulo Csar Farias e essa entrevista desencadeou uma srie de novas denncias e investigaes, culminando com o impeachment e a renncia do presidente.

    Em 14 de maio de 2005, reportagem da revista teve papel relevante na ecloso de outra crise poltica de grandes propores. Veja foi o primeiro veculo de comunicao a divulgar a transcrio de um vdeo onde o ento funcionrio dos Correios Maurcio Marinho explicava a dois empresrios como funcionaria um esquema de pagamentos de propina para fraudar licitaes. Tal esquema envolveria o deputado Roberto Jefferson. E a denncia deflagrou a chamada crise do mensalo, maior escndalo poltico recente.

    Atualmente, veja pode ser considerada a revista mais influente do Brasil. Sua tiragem a quarta maior do mundo, com mais de um milho de edies por semana (SANTANNA, 2008).

    Tento tratado nesse primeiro captulo do surgimento da revista, dos ttulos que mais influenciaram o desenvolvimento do gnero no Brasil e no mundo, e, por fim, das quatro

  • publicaes que consideramos as mais relevantes no panorama de nossa pesquisa, avanaremos para o segundo captulo. Nessa parte da pesquisa, vamos tratar dos estudos e das classificaes dos gneros jornalsticos, principalmente do gnero interpretativo, no qual esto inseridas as reportagens da revista Piau.

  • 2 ALGUMAS DEFINIES PARA OS GNEROS JORNALISTICOS

    Para que possamos compreender e conceituar as reportagens publicadas na revista

    Piau, necessrio, primeiro, revisarmos uma discusso que embora exista formalmente no

    Brasil h pelo menos trs dcadas, continua motivando diferentes propostas de interpretao:

    as definies dos gneros jornalsticos.

    O objetivo, ao se tratar do tema, fornecer um mapa para a anlise dos tipos de texto e

    de suas funes no jornalismo. Jos Marques de Melo (2003) defende que o estudo dos

    gneros fundamental para a configurao da identidade do jornalismo como objeto

    cientfico. Para Lia Seixas (2010a On-Line), aprender a fazer jornalismo aprender a produzir

    gneros jornalsticos.

    O conhecimento mais profundo dos elementos que constituem os tipos mais frequentes de composies discursivas da atividade jornalstica implica em maior conhecimento sobre a prpria prtica. Isso significa conhecimento sobre as competncias empregadas para a realizao da atividade, desde a produo publicao do produto (SEIXAS, 2010a, On-line)

    Podemos considerar que o primeiro a classificar os gneros jornalsticos foi o editor

    ingls Samuel Buckeley, no incio do sculo XVIII. Ao decidir pela separao entre notcias e

    comentrios no jornal Daily Courant, Buckeley iniciou a classificao dos textos publicados

    nos meios de comunicao. A partir da, com as transformaes tecnolgicas e culturais, a

    mensagem jornalstica vem se adaptando, moldando-se conforme a necessidade de cada

    poca, e tendo diferentes modelos e propsitos.

    No Brasil, so poucos os pesquisadores que se dedicaram a distinguir as categorias dos

    textos jornalsticos. Entre esses estudiosos, os que mais avanaram neste campo foram Luiz

    Beltro, Jos Marques de Melo, Mrio Erbolato, e, recentemente, Manuel Carlos Chaparro e

    Lia Seixas.

    Beltro (1980) encontrou no jornalismo brasileiro trs funes fundamentais: a

    informao, por meio de um relato claro e simples; a orientao, pela interpretao e opinio

    em relao aos fatos, e a diverso. Beltro sistematizou os gneros da seguinte forma: 1)

    Jornalismo informativo: notcia, reportagem, histria de interesse humano, informao pela

    imagem; 2) Jornalismo interpretativo: reportagem em profundidade; 3) Jornalismo opinativo:

    editorial, artigo, crnica, opinio ilustrada, opinio do leitor. (BELTRO, 1980)

    Para Marques de Melo essa separao veio de uma necessidade sociopoltica evidente

    de distinguir tudo o que continha apenas informao do que tambm inclua a opinio

  • (MELO, 2003, p. 42). O critrio adotado por Beltro, escreveu Melo, funcional, pois sugere

    a classificao dos gneros de acordo com as funes que desempenham junto ao pblico

    leitor - informar, explicar ou orientar. O autor ainda afirma que Beltro, quanto

    especificidade do gnero, obedeceu ao senso comum da prpria atividade profissional, no se

    atendo ao estilo, estrutura narrativa e tcnica de codificao.

    Melo defende que no h razes para segmentar em dois gneros distintos reportagem

    e reportagem em profundidade. Tampouco em classificar como gnero parte o que Beltro

    (1980) chama de histrias de interesse humano e dissociar recursos que informam atravs de

    imagens do texto j que, na interpretao do autor, fotografias ou desenhos so identificveis

    como notcias ou como reportagens. E ainda, discordando de Beltro, Melo afirma que o que

    vai caracterizar um gnero jornalstico no o cdigo, mas sim o conjunto das circunstncias

    que determinam o relato que a instituio jornalstica difunde para o seu pblico (1985, p.

    46).

    Em sua classificao dos gneros jornalsticos, Marques de Melo optou por separar

    tudo o que a reproduo do real, ou seja, as descries dos fatos em si, do que se apresenta

    como uma leitura do real, ou seja, a anlise desses fatos. Para Melo, essas definies podem

    ser entendidas mais claramente se pensarmos que as pessoas, em meio a tantos

    acontecimentos, no do conta sozinhas de apreenderem a realidade, portanto precisam de

    algum que possa lhes permitir saber o que se passa - jornalismo informativo - e saber o que

    se pensa sobre o que se passa - jornalismo opinativo (MELO, 2003, p. 62-63).

    Para Marques de Melo apenas essas duas categorias podiam ser encontradas na

    imprensa brasileira na primeira metade da dcada de 1980, quando ele publicou pela primeira

    vez seus estudos sobre o assunto. Por entender que o jornalismo interpretativo includo

    dentro do jornalismo informativo, ele optou por excluir essa categoria como um gnero nico.

    Melo defendeu, ento, a existncia dos seguintes tipos de produo jornalsticas nos gneros

    opinativo e informativo: 1) Jornalismo informativo: nota, notcia, reportagem, entrevista; 2)

    Jornalismo opinativo: editorial, comentrio, artigo, resenha, coluna, crnica, caricatura, carta

    de leitores.

    Como observamos, Marques de Melo no acreditava, poca, no gnero

    interpretativo. Mas atualmente ele defende a existncia desse gnero, alm de outros dois

    gneros autnomos: o diversional, que inclui livros-reportagem e o outras produes de

  • jornalismo literrio, e o jornalismo utilitrio, que inclui informaes com a cotao das aes

    da bolsa de valores e os nmeros da loteria, por exemplo.

    Nos anos 80, a pesquisa que fiz s me indicou a predominncia de informativo e opinativo. A maioria do pessoal lia, dizendo que eu acho que s existem dois gneros. No isso, eu identifiquei somente dois gneros na imprensa diria. De l pra c, eu venho pesquisando a cada cinco anos e fui encontrando evidncias de que outros gneros foram surgindo. O gnero interpretativo, que teve uma vigncia muito forte nos anos 60 e 70, desapareceu nos anos 80, voltou nos 90 e agora est se desenvolvendo muito. (MELO apud SEIXAS, 2010b)

    A classificao dos gneros jornalsticos proposta por Erbolato (1991, p. 30)

    semelhante aos conceitos defendidos atualmente por Marques de Melo. O autor excluiu

    apenas o gnero chamado utilitrio, talvez porque esse tipo de produo jornalstica era

    menos comum no incio da dcada de 1990, quando seus estudos foram publicados. Para

    Erbolato so quatro os gneros jornalsticos: diversional, interpretativo, opinativo e

    informativo. E eles representam as funes s quais os meios de comunicao se destinam: a

    informar, a influir, a persuadir e a divertir (ERBOLATO, 1991, p. 30).

    J Manuel Carlos Chaparro (2008) prope o enquadramento dos gneros jornalsticos

    em trs categorias: 1) Esquemas narrativos: o relato do acontecimento; 2) Esquemas

    argumentativos: o comentrio sobre os acontecimentos; 3) Esquemas prticos: as informaes

    de servio; conceituadas, como dito acima, como gnero utilitrio por Marques de Melo

    (citado por SEIXAS, 2010b). E as demais formas de expresso, para Chaparro (2008) so

    declinaes dessas categorias fundamentais.

    No entender de Chaparro (2008, p. 162) a separao entre gneros jornalsticos no

    equivale diviso entre opinio e informao. O autor defende que opinio e informao

    esto presentes em todos os gneros jornalsticos, visto que at a notcia dita objetiva,

    construda com informao pura, resulta de selees e excluses deliberadas, controladas

    pela competncia jornalstica de fazer escolhas por critrios de importncia e valor

    (CHAPARRO, 2008, p. 162), e um exerccio opinativo, portanto.

    Lia Seixas, pesquisadora que mais recentemente se dedicou a estudar em profundidade

    os gneros jornalsticos afirma que, na classificao, deve ser considerada a combinao,

    regular e frequente, de elementos extralingsticos e lingsticos. Para Seixas (2010a, On-

    line), essas combinaes se repetem a ponto de se institucionalizarem, mas tambm,

    certamente, guardam uma dinmica contnua de mudanas provisrias.

  • Na interpretao de Seixas, os principais critrios de definio de gneros

    jornalsticos na atualidade so quatro elementos de condicionamento mtuo que se combinam

    de maneira regular e frequente: 1) Lgica Enunciativa: se d na relao entre objetos de

    realidade, compromissos realizados e tpicos jornalsticos em funo de finalidades

    reconhecidas da instituio jornalstica; 2) Fora argumentativa: se d na relao entre o grau

    de verossimilhana dos enunciados e o nvel de evidncia dos objetos, 3) Identidade

    discursiva efetiva do ato comunicativo: a relao entre sujeito comunicante, locutor e

    enunciador no ato mesmo da leitura; 4) Potencialidades do mdium: as diferenas entre as

    plataformas onde se d a comunicao (SEIXAS, 2010a, On-line).

    A autora defende a diviso dos textos jornalsticos em dois gneros: o discursivo

    jornalstico e o discursivo jornlico. Um gnero discursivo jornalstico aquele em que o

    enunciador uma instituio jornalstica ou uma pessoa pertencente a tal, satisfaz a uma ou

    mais finalidades institucionais e apresenta uma lgica enunciativa formada principalmente

    pelo compromisso de adequao do enunciado realidade, seguindo pressupostos bsicos do

    jornalismo. J os gneros discursivos jornlicos, no so produzidos por instituies

    jornalsticas e a sua lgica enunciativa no trabalha, obrigatoriamente, como objetos de

    acordo: pode ser formada por compromissos de crena sobre a adequao do enunciado

    realidade.

    Concordamos com Seixas quando ela afirma que os gneros encontram-se associados

    qualidade do objeto, ao modo por meio do qual o discurso construdo (narrao,

    dissertao, descrio e argumentao), ao grau de interferncia do autor e s tcnicas de

    apurao e produo. Deve se considerar, ressalta-se, que a autora se atm ao estudo da

    organizao discursiva - considerado pelos outros autores um elemento menos importante

    para a compreenso dos gneros em detrimento s dimenses lingsticas.

    2.1 O gnero interpretativo

    Depois de expormos idias para as classificaes dos gneros jornalsticos,

    pertinente tratar da conceituao que defendemos ser mais adequada para os textos

    jornalsticos da revista Piau, nosso objeto de estudo. Como entendemos que os estudos de

    Marques de Melo e Erbolato, alm de consolidados por outros pesquisadores, permanecem

    atuais, optamos por usar como base os estudos desenvolvidos por esse dois autores.

  • Segundo Erbolato (1991, ps. 30-31), a origem do jornalismo interpretativo se deu a

    partir da dcada de 1920 quando o jornalismo impresso passou por grandes transformaes

    devido ao surgimento e expanso do rdio e da televiso. Foi ento que os jornais impressos

    tiveram que buscar outra forma de atrair os leitores, pois os dois meios eletrnicos passaram a

    ter maior ateno do pblico.

    Na luta contra o jornalismo falado, os jornais impressos tiveram que preparar sua estratgia. As notcias, que eram superficiais, limitavam-se a narrar os acontecimentos, sofreram alteraes em sua estrutura. [...] O recurso foi o de dar ao leitor reportagens que sejam complemento do que foi ouvido no rdio e na televiso (ERBOLATO, 1991, p. 30).

    Ao tratar do jornalismo interpretativo, Erbolato cita vrios conceitos e definies, de

    diferentes jornalistas e pesquisadores sobre o tema. Destacamos a viso de Bond ao tratar da

    importncia do gnero interpretativo. A manifestao ainda mais atual com as mudanas

    tecnolgicas resultantes do advento da internet:

    O homem mortal, comum, perdido no labirinto da economia, da cincia e das invenes, pede que algum lhe d a mo e o acompanhe em seus passos, atravs de tanta complexidade. Por isso, o jornalismo moderno se encarrega no s de noticiar os fatos e as teorias, mas proporciona ainda ao leitor uma explicao sobre eles, interpretando e mostrando seus antecedentes e suas perspectivas (BOND apud ERBOLATO, 1991, p. 33).

    Conforme John Hohnberg (apud Erbolato, 1991, p. 31) a utilizao do jornalismo

    interpretativo tornou-se recorrente nos Estados Unidos a partir da Segunda Guerra Mundial.

    De acordo com o autor, nesse perodo, mais do que nunca, os jornais perceberam a

    importncia de gerar uma maior compreenso das notcias por parte dos leitores, explicando-

    as em detalhes. Mas, o jornalismo interpretativo j fazia parte da realidade dos norte-

    americanos desde o incio da dcada de 1920. Segundo Erbolato (1991, p. 32-33), logo aps o

    trmino da Primeira Guerra Mundial os diretores dos jornais perceberam que algo faltava em

    suas publicaes para atrair o interesse do pblico.

    O gnero tomou forma definitivamente em 1923, quando foi lanada a revista Time,

    sobre a qual tratamos anteriormente. A publicao se dedicava e se dedica at hoje a fazer

    um jornalismo preocupado com as dimenses e as interpretaes das notcias, ou seja, deu os

    primeiros passos do jornalismo interpretativo. Interessante, ao se tratar de jornalismo

    interpretativo feito em revistas, destacar que a maioria dos autores, ao tanger por gneros

    jornalsticos, se refere basicamente produo na imprensa diria. Mas o formato de

  • periodicidade mais larga , e sempre foi, por suas caractersticas, o meio no qual esse tipo de

    produo mais usual.

    A revista, consolidada como o produto de reportagens, era o meio onde mais se experimentava a contextualizao, o aprofundamento, os dados comparativos, tcnicas que, em princpio, no eram diferentes daquelas utilizadas para produo de uma notcia, como diziam os prprios autores defensores da reportagem interpretativa. (SEIXAS, 2010c, On-line),

    Jos Marques de Melo (2003, citado por COSTA, 2010, On-line), ao reconhecer a

    existncia do gnero interpretativo, escreve que tal gnero inicialmente era representado por

    reportagens desenvolvidas com propsitos analticos e documentais para situar o cidado

    diante o acontecimento. E na dcada de 90, era um modo de aprofundar a informao com o

    fim de relacionar a atualidade a seu contexto temporal e espacial, interpretando o sentido dos

    acontecimentos (MELO, 2003, citado por COSTA, 2010, On-line).

    Luiz Beltro (1980, p.41-42) vincula o surgimento do jornalismo interpretativo com a

    evoluo intelectual das dcadas de 1960 e 1970. O gnero, defende, deve ser entendido como

    um subgnero de um jornalismo cultural intelectual, e por isso que grande parte de suas

    expresses estejam vinculadas a veculos desse tipo no qual podemos incluir a revista Piau.

    Para Beltro (1980, p. 42), o jornalismo interpretativo adapta formas cientficas, filosficas e

    artsticas ao discurso e a prtica jornalstica.

    Com o intuito de diferenciar o jornalismo interpretativo do jornalismo informativo,

    que ele trata respectivamente como reportagem e notcia, Lage (1999) busca caracterizar o

    gnero sob vrios aspectos. Para Lage, as discrepncias no esto no contedo ou na natureza

    das informaes, mas na forma em que ela redigida. De acordo com a linguagem, defende o

    autor (1999), a reportagem possui estilo menos rgido que a notcia, possibilitando ao reprter

    o uso da primeira pessoa, bem como fazer, alm do levantamento de dados, interpretao dos

    fatos.

    Embora existam diversas definies para o jornalismo interpretativo, para Erbolato

    (1991, p. 34), trs caractersticas so fundamentais para caracterizar esse gnero: a explicao

    das causas de um fato, a localizao deste fato em seu contexto social e as suas

    consequncias. J para Seixas (2010, On-line) as trs particularidades da atividade

    interpretativa so:

    1) o fato tratado como acontecimento, ou seja, gera uma discusso sobre a realidade contextual; 2) as tcnicas produtivas so particulares, como sugere Beltro identificao do objeto, que deve ter valor absoluto de notcia; decomposio da

  • ocorrncia em elementos bsicos e investigao dos valores essenciais para estruturao da informao; redao do texto de forma que o leitor seja capaz de, por si prprio, interpretar a ocorrncia; e 3) a unidade interpretativa permitiria uma dose maior de anlise crtica do autor-jornalista, incluindo adjetivos, advrbios e abolio do lead (SEIXAS, 2010a, On-line).

    Podemos incluir nas observaes dos autores, as seguintes caractersticas da

    reportagem, notadamente perceptveis nos textos publicados pela revista Piau: a produo de

    peas jornalsticas interpretativas decorre de uma pauta que inclui o fato gerador de interesse,

    ainda que este no seja decorrente de fatos novos; o texto em estilo menos rgido que a notcia

    permite ao jornalista fazer descries de cenrios, personagem e situaes, o que ajuda o

    leitor a entender o assunto a tirar suas prprias concluses; e, ao contrrio da notcia, o

    jornalismo interpretativo exige a pesquisa aprofundada do tema, um conhecimento que supere

    o simples relato dos fatos.

    Relacionando ao tema da nossa pesquisa, interessante destacar a viso de autores

    (SOSTER, 2010; DINES, 1974; SANTANNA, 2008) que defendem que produzir jornalismo

    interpretativo, ou seja, de contextualizao histrica dos acontecimentos como esforo para

    oferecer uma inteligibilidade possvel do mundo, uma alternativa uma alternativa para que

    a imprensa escrita se sobressaia no atual momento evolutivo do jornalismo, caracterizado por

    textos prolixos, atualizao contnua, transposio de contedos, onde a velocidade foi

    estabelecida como categoria de valor em detrimento ao aprofundamento (SOSTER e

    PICCININ, 2010).

    O jornalismo interpretativo deixa para o leitor a deciso de acatar ou no a informao

    passada do modo mais claro e mais explicativo possvel, sempre buscando o aprofundamento:

    contextualizao histrica, o entorno do fato, os detalhes do acontecido ou declarado, para ir

    alm do meramente declaratrio. Defendemos que esse tipo de texto jornalstico, quando

    produzido com qualidade, mostrar as tendncias futuras, isto , o encaminhamento que o fato

    deve tomar, sendo possvel, assim, inclusive, ser mais atual do que a internet em determinadas

    situaes.

    Soster e Piccinin (2010) defendem o fortalecimento da categoria interpretativo, assim

    como da diversional, no sistema miditico-comunicacional, depois de os gneros terem quase

    arrefecido na dcada de 1990, com a imposio da velocidade consequente do advento da

    internet. Para os autores, o jornalismo interpretativo se estabelece na condio de categoria

    discursiva legtima entre os gneros contemporneos (2010, On-Line).

  • A afirmao justifica-se medida que, aps a primeira metade da dcada de 1990,

    quando foram montados os primeiros sites de contedo informativo na rede, potencializou-se

    a prtica de atualizao contnua e transposio de contedos, emprestando velocidade

    categoria de valor. Inferia-se poca, lembram Soster e Piccinin (2010), que textos prolixos,

    ou que demandassem tempo de apurao, caso do jornalismo interpretativo, posicionavam-se

    fora da lgica produtiva do jornalismo quele momento, validado pela instantaneidade e

    atualizao contnua. Mas hoje as duas formas ressurgiram.

    Alberto Dines j defendia a importncia do jornalismo de interpretao e de

    investigao antes mesmo do advento da internet. Para Dines j em 1974, o jornalismo

    enfrentava um dilema: optar pela quantidade e tentar cobrir tudo, extensivamente, ou pela

    seleo? E ele decide pela seleo. O leitor contemporneo prefere se aprofundar em alguns

    temas do que ir por cima de vrios, cobrir tudo que acontece no mundo impossvel, diz o

    autor (1974). Como Dines, entendemos que o jornalismo deve buscar cobrir de maneira mais

    aprofundada possvel o que se prope, fornecendo elementos para maior entendimento e

    compreenso do tema.

    2.1.1 Diferenciaes entre jornalismo interpretativo e diversional

    Conceituado o gnero interpretativo, defenderemos o motivo de sua escolha para a

    classificao dos textos jornalsticos publicados na Piau. Primeiramente, preciso que

    reconheamos que h tambm caractersticas do jornalismo diversional nas reportagens da

    revista, abaixo, porm, justificaremos a opo pelo gnero interpretativo em detrimento ao

    diversional.

    Erbolato define o jornalismo diversional como um gnero que contempla uma escrita

    leve, original e agradvel (1991, p.44). Erbolato (1991, p. 44) afirma ainda que, nesse

    gnero, o reprter procura viver o ambiente e os problemas dos envolvidos na histria, mas

    no pode se limitar s entrevistas superficiais e que a prtica do jornalismo diversional

    demanda enorme tempo e poucos so os que podem se dedicar semanas ou meses a uma s

    matria (1991, p. 44).

    Para Marques de Melo:

    O jornalismo diversional engloba aqueles textos fincados no real, procuram dar uma aparncia romancesca aos fatos e personagens captados pelo reprter. Entre os

  • gneros que integram o jornalismo diversional esto as histrias de interesse humano, as histrias coloridas, os depoimentos etc (MARQUES DE MELO, 1985, p.22).

    Ambos os autores, em suma, destacam, no jornalismo diversional, suas caractersticas

    literria, como um gnero onde o texto escrito com as tcnicas literrias realistas, e na qual o

    autor se preocupa menos em seguir padres e tcnicas soberanas em redaes de jornais

    dirios e mais em dar ao leitor viso mais prxima o quanto for possvel dos fatos. Mas em

    muitos textos jornalsticos publicados na revista Piau encontramos as mesmas caractersticas.

    As reportagens, rigor, tm qualidades descritivas tpicas da literatura, alm de serem

    extensas e em profundidade - seja no relato dos acontecimentos ou na intensidade da

    descrio dos personagens.

    Podemos citar como exemplo o perfil do ex-ministro da Casa Civil do governo Lula

    Jos Dirceu, da reprter Daniel Pinheiro, publicado em janeiro de 2008. Para escrever a

    matria, Pinheiro passou pelo menos duas semanas acompanhando o seu entrevistado,

    convivendo nos mesmos hotis, o acompanhando em viagens pela Europa e pela Amrica

    Central, alm de participar de festas almoos e jantares com o entrevistado, com sua famlia e

    com seus amigos. A reprter, ento, viveu o ambiente e os problemas dos envolvidos na

    histria, no se limitou s entrevistas superficiais, e depois relatou tudo com descries e

    detalhes - aes relacionadas por Erbolato (1991) como prprias do jornalismo diversional.

    Entendemos, no entanto que as narrativas do jornalismo diversional no tm

    compromisso como a realidade imediata e que buscam, sobretudo, emprestar ao jornalismo

    caractersticas cognitivas outras que no a informao e a interpretao, caso do

    entretenimento (SOSTER e PICCININ, 2010, On-Line), enquanto que o jornalismo

    interpretativo atribui significao ao fato singular, tanto ao dar elementos para indicar sua

    relevncia em relao s demais ocorrncias quanto por oferecer contedos que auxiliam na

    compreenso do movimento do mundo social. (SOSTER e PICCININ, 2010, On-Line). A

    diferena est, no nosso entender, na atualidade dos temas e de sua abordagem no jornalismo

    interpretativo.

    A atualidade apontada por Adelmo Gnro Filho (2007) como uma das singularidades

    do jornalismo. As outras so periodicidade, universalidade e difuso. A atualidade, como o

    prprio termo j diz, est vinculada s questes atuais, do hoje, da semana, o que remete o

    novo com atual, ao mesmo tempo em que pode-se aceitar o novo como aquilo que

    desconhecido.

  • Marques de Melo (2007) afirma que a atualidade o fio de ligao entre o emissor e o

    receptor no jornalismo. Esse atributo, intrnseco atividade, est relacionado com o cotidiano,

    isto , com os acontecimentos com relevncia pblica que acontecem no dia-a-dia da

    sociedade e que so noticiados pelos meios de comunicao. Assim, o autor define o

    jornalismo como a cincia que estuda o processo de transmisso oportuna de informaes da

    atualidade, atravs dos veculos de difuso coletiva (MELO, 1998, p.74).

    E depois de termos apresentado as definies dos principais autores que trataram dos

    gneros jornalsticos, atendo-se especialmente no gnero interpretativo, e de e expormos as

    razes pelas quais defendemos que as reportagens da revista Piau se enquadram no gnero

    interpretativo em detrimento ao diversional, partimos para o prximo captulo. Nessa

    instancia da pesquisa, vamos tratar essencialmente da revista Piau, publicao cujos textos

    movem esse trabalho, e de suas caractersticas.

  • 3 PIAU, UMA REVISTA DIFERENCIADA

    Neste captulo, vamos nos dedicar ao nosso objeto de estudo, a revista Piau. Tal

    medida importante para que possamos entender o contexto no qual a publicao se insere

    dentro do cenrio histrico das comunicaes, sua localizao no mercado editorial brasileiro

    contemporneo e tambm as principais caractersticas que a tornam singular em comparao

    com as demais publicaes.

    A revista Piau resultado da articulao de dois personagens conhecidos da cultura

    brasileira, um no meio literrio e outro no cinematogrfico: o documentarista e scio da

    produtora VideoFilmes Joo Moreira Salles e o editor Luiz Schwarcz, da editora Companhia

    das Letras. Foram Salles e Schwarcz que viabilizaram financeiramente o lanamento da

    revista e definiram as caractersticas principais da publicao.

    Schwarcz continua colaborando eventualmente com a revista com artigos. Joo

    Moreira Salles, por sua vez, abriu mo de seus projetos cinematogrficos para se dedicar

    exclusivamente a Piau, como editor e reprter. Antes de se dedicar ao projeto da revista,

    Salles dirigiu documentrios premiados com Nelson Freire, de 2002, sobre o pianista

    brasileiro do mesmo nome, e Entreatos filme no qual acompanhou passo-a-passo a campanha

    de 2002 do ento candidato Luiz Incio Lula da Silva presidncia da Repblica do Brasil.

    Irmo mais jovem do cineasta Walter Salles, do filme Central do Brasil, o editor de Piau

    comeou sua carreira em 1985 fazendo roteiros e textos para sries de TV.

    O pr-lanamento da revista Piau foi em agosto de 2006, em um dos principais

    eventos literrios do pas, a Festa Literria de Parati, no Rio de Janeiro. Em setembro do

    mesmo ano, Joo Moreira Salles assinou um contrato de distribuio e impresso da revista

    com a Editora Abril. Piau comeou a circular efetivamente em 9 de outubro em So Paulo, e

    dias depois no Rio de Janeiro e no restante do pas.

    Alm de Moreira Salles, foram responsveis por essa primeira edio os jornalistas

    Mrio Sergio Conti, ex-diretor de redao da revista Veja e do Jornal do Brasil, autor de

    Notcias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor (Companhia das Letras, 1999); Dorrit

    Harazim, jornalista e documentarista, ex-reprter especial e editora de Veja, diretora dos

    documentrios da srie Travessias, exibidos na TV Cultura e no GNT; e Marcos S Corra,

  • jornalista, ex-diretor de redao do Jornal do Brasil, ex-diretor do site O Eco e do portal

    jornalstico NoMnimo, e bigrafo do arquiteto Oscar Niemeyer (Relume Dumar, 1996).

    Na pea publicitria denominada Carta de Intenes distribuda aos participantes da

    Festa Literria de Parati para noticiar o lanamento de Piau, a revista foi apresentada da

    seguinte forma:

    Piau ser uma revista de reportagens. Ela buscar os temas atuais, embora no tenha pressa em chegar primeiro [...] Levar em conta que a informao vem antes do comentrio e que opinio precisa dos fatos. Apurar com rigor e escrever com clareza. Fugir dos clichs e envidar todos os esforos para evitar expresses como envidar todos os esforos. Usar um vocabulrio com mais de cem palavras. Mas no ir ao dicionrio cata de vocbulos especiosos (como o que vem logo antes deste aconchegante parntese). No ter restries temticas, polticas ou ideolgicas. Preferir a serenidade do histrionismo, a suavidade da msica de cmara ao estrondo das marchas militares. Cobrir qualquer assunto que uma reportagem possa tornar interessante. Vale tudo: esporte, medicina, odontologia, poltica, cultura, a picante vida sexual de um porco espinho, religio, numismtica, urbanismo, filosofia, as agruras do Palmeiras, do marxismo e do Botafogo, turismo, telemarketing, zoologia. S no valem reportagens sobre dietas e reforma da Previdncia, que ningum aguenta mais. Piau procurar com afinco novos assuntos: o Brasil no feito apenas de corrupo e violncia. (OVERMUNDO, 2010, On-Line)

    O lanamento da nova publicao foi destacado em site culturais e nos jornais, como

    mostra a matria Jornalismo literrio e fico marcam estria da revista Piau, publicada em

    9 de setembro de 2006 pela jornalista Sylvia Colombo no jornal Folha de S.Paulo. Uma nova revista chega s bancas nesta semana. Com um nome que nem seus criadores sabem explicar direito, Piau tem esprito hbrido. Ser uma mistura de reportagens ao estilo "new journalism" (ou jornalismo literrio) com crnicas, perfis e dirios - de temas preferencialmente nacionais -; alm de textos ficcionais. [...] O primeiro nmero traz colaboraes de nomes consagrados da imprensa nacional, como Ivan Lessa, que descreve seu retorno ao Brasil aps mais de 28 anos, e Danuza Leo, que faz um perfil do estilista Guilherme Guimares, alm do ilustrador Angeli, que desenha a imagem da capa - um intrigante pingim de geladeira com boininha de Che Guevara. (FOLHA ONLINE, 2010, On-Line)

    Conforme Joo Moreira Salles, em entrevista a Nunes (2010), o nome Piau foi

    escolhido sem critrio algum: um nome que contm muitas vogais, soa bonito, gostoso

    de pronunciar (Salles apud NUNES, 2010, On-Line). Podemos entender tambm, apesar da

    falta de pretenso alegada por Salles, que, ao batizar a revista com o nome de um dos estados

    mais afastados do Brasil, Piau sugere algo pouco conhecido, ou seja, que a publicao aborda

    pautas que os grandes meios de comunicao ignoram, sejam elas de cunho nacional ou no.

    poca do lanamento de Piau, poucos apostavam no fato de uma revista de 80

    pginas contendo textos longos conseguir durar mais que dois ou trs nmeros. Mas j nas

  • primeiras edies, Piau no apenas se firmou no mercado editorial nacional como

    surpreendeu o prprio Salles. Um grande editor brasileiro chegou para mim e disse que uma

    revista com o perfil que preparvamos no venderia 5.000 exemplares por ms num pas

    como o Brasil (O TEMPO, 2010, On-Line). O mais otimista ouvido por ele chutou 10 mil

    revistas. Logo no primeiro nmero, Piau teve 30 mil compradores.

    Comercialmente, o sucesso da revista tambm surpreendeu. As agncias publicitrias

    logo perceberam que o leitor do novo produto engloba os chamados formadores de opinio

    pessoas com poder de influenciar outras pessoas. Logo, grandes bancos, marcas de carros e

    outras companhias passaram a anunciar em Piau. Para Salles, possvel afirmar que a

    maioria dos leitores da revista tem nvel superior, curioso, tem o hbito de freqentar

    livrarias e gosta de ler. " algum com quem o mercado publicitrio quer falar"

    (OBSERVATRIO DA IMPRENSA, 2010, On-Line). Na edio de um ano de Piau, em

    setembro de 2007, das 78 pginas, cerca de 30 eram compostas por anncios. Isso pode ser

    considerado uma mostra da confiana do mercado e da viabilidade comercial de uma

    publicao nos moldes de Piau.

    Outro fator que atesta para o sucesso da revista so os prmios que a publicao j

    recebeu desde seu recente lanamento. Em 2009, ela se classificou em sexto lugar, na

    categoria revista nacional, na pesquisa Veculos Mais Admirados: O Prestgio da Marca,

    realizada pelo jornal Meio & Mensagem com a Troiano Consultoria de Marcas. No mesmo

    ano, tambm recebeu o ttulo de Destaque do Ano do Prmio Colunistas Rio. Em 2007, Piau

    recebeu o Prmio Especial do Jri do no 21 Prmio Veculos de Comunicao da Editora

    Referncia. No mesmo ano, foi considerada a Revista do Ano pela revista About. Em 2010, o

    prmio de Veculo do Ano, concedido pela Associao Brasileira dos Colunistas de

    Marketing e Propaganda.

    Na opinio do colunista do jornal Folha de S. Paulo Contardo Calligaris, que dedicou

    sua coluna de 19 de outubro de 2006 revista, que havia acabado de ser lanada, Piau tem o

    dom de tornar pblico o desconhecido, geralmente excludo pela grande imprensa, e de

    valorizar o cotidiano do cidado comum. Mais ainda, tem interesse pela vida concreta, o que

    transforma sua chegada num evento poltico. Afinal de contas, aponta o colunista, a

    condio bsica de uma convivncia democrtica que se torne relevante a variedade das

    vidas concretas (CALLIGARIS, 2010, On-Line)

  • De acordo com o Instituto Verificador de Circulao (IVC), a tiragem de Piau nos

    primeiros meses de 2010 foi de 60 mil exemplares. Desse montante, 52% so destinados

    venda em bancas, onde cada exemplar custa R$ 12, e 47% so para assinantes. Mesmo sendo

    distribuda e impressa pelo Dinap (Distribuidora Nacional de Publicaes), da editora Abril, a

    revista produza pela editora Alvinegra, criada exclusivamente para essa funo.

    Assim como a maioria dos magazines, Piau tambm tem a sua verso eletrnica

    www.revistapiaui.com.br. Embora reproduza o contedo publicado em papel, cujo acesso no

    se restringe apenas aos assinantes, o site da revista oferece mais do que as pginas da verso

    impressa na tela do computador, como arquivos de udio, vdeos e textos que so produzidos

    exclusivamente para a verso On-line.

    3.1 Aspectos visuais e editoriais

    Segundo Joo Moreira Salles, a inteno da Piau no salvar o jornalismo brasileiro

    no que ele tem de ruim, mas ser uma revista prazerosa, com humor, e que revele coisas

    curiosas, importantes, fteis, boas e ruins sobre o Brasil (DIGESTIVO CULTURAL, 2010,

    On-Line), caractersticas de uma publicao que at ento, segundo Joo Moreira Salles,

    faltava no mercado editorial brasileiro.

    A criao da revista no foi baseada em pesquisas, como ocorre na maior das vezes.

    Simplesmente foi reunido um grupo de pessoas que, assim como ele, se sentiam um tanto

    desatendidos ao entrarem em uma banca de revistas procura de boa informao.

    Um grupo de amigos chegou concluso que seria bacana entrar numa banca e encontrar uma revista como a Piau. No passou disso. A deciso no foi tomada a partir de um pl