Morar em um lugar, viver em outro: a mobilidade haitiana vista a … · 1 – Sobre a gosma do...

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1 Morar em um lugar, viver em outro: a mobilidade haitiana vista a partir de suas casas 1 Flávia Freire Dalmaso Museu Nacional/UFRJ Palavras chave: Haiti, mobilidade, casa Resumo O presente artigo procura refletir sobre a construção da familiaridade e a circulação de pessoas e objetos entre haitianos com os quais convivi principalmente entre os anos de 2011 e 2012 na cidade de Jacmel, capital do departamento Sudeste do Haiti, onde realizo pesquisa de campo desde 2008. Ele está baseado em questões discutidas ao longo do primeiro capítulo da minha tese de doutorado 2 , assim como em observações mais recentes possibilitadas pela chegada, em São Paulo, de pessoas que pertencem às famílias com as quais eu morei enquanto estava no Haiti no período referido acima e também em fevereiro deste ano. O objetivo do trabalho é analisar dois aspectos centrais para a compreensão da conjuntura atual de mobilidade dessa população, isto é: as dinâmicas da produção da familiaridade e sua relação com as concepções de casa e moradia. Tendo em vista que se trata de famílias que historicamente se engajam em constantes deslocamentos interessam as seguintes perguntas: Quais relações emergem quando se fala em família? Se as pessoas circulam, o que mais circula para além das tão citadas remessas em dinheiro? O que é uma casa para os agentes em questão? Quais sentimentos e ideias são mobilizados a partir deste conceito? E, por fim, como se constrói a relação entre as casas localizadas em Jacmel (de onde parte o meu ponto de vista) e aquelas habitadas por famílias haitianas em outros lugares? Considerando essas questões o artigo pretende percorrer dois eixos centrais de investigação empírica que organizam as discussões aqui propostas: 1 a mobilidade das pessoas e 2 a construção da proximidade e da intimidade em um 1 “Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.” 2 Kijan moun yo ye? As pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Hait defendida no PPGAS do Museu Nacional/UFRJ em 2014.

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Morar em um lugar, viver em outro: a mobilidade haitiana vista a

partir de suas casas1

Flávia Freire Dalmaso

Museu Nacional/UFRJ

Palavras chave: Haiti, mobilidade, casa

Resumo

O presente artigo procura refletir sobre a construção da familiaridade e a

circulação de pessoas e objetos entre haitianos com os quais convivi principalmente

entre os anos de 2011 e 2012 na cidade de Jacmel, capital do departamento Sudeste do

Haiti, onde realizo pesquisa de campo desde 2008. Ele está baseado em questões

discutidas ao longo do primeiro capítulo da minha tese de doutorado2, assim como em

observações mais recentes possibilitadas pela chegada, em São Paulo, de pessoas que

pertencem às famílias com as quais eu morei enquanto estava no Haiti no período

referido acima e também em fevereiro deste ano. O objetivo do trabalho é analisar dois

aspectos centrais para a compreensão da conjuntura atual de mobilidade dessa

população, isto é: as dinâmicas da produção da familiaridade e sua relação com as

concepções de casa e moradia. Tendo em vista que se trata de famílias que

historicamente se engajam em constantes deslocamentos interessam as seguintes

perguntas: Quais relações emergem quando se fala em família? Se as pessoas circulam,

o que mais circula para além das tão citadas remessas em dinheiro? O que é uma casa

para os agentes em questão? Quais sentimentos e ideias são mobilizados a partir deste

conceito? E, por fim, como se constrói a relação entre as casas localizadas em Jacmel

(de onde parte o meu ponto de vista) e aquelas habitadas por famílias haitianas em

outros lugares? Considerando essas questões o artigo pretende percorrer dois eixos

centrais de investigação empírica que organizam as discussões aqui propostas: 1 – a

mobilidade das pessoas e 2 – a construção da proximidade e da intimidade em um

1 “Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2016, João Pessoa/PB.” 2 Kijan moun yo ye? As pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Hait defendida no

PPGAS do Museu Nacional/UFRJ em 2014.

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universo tradicionalmente marcado por uma acentuada circulação de pessoas, dinheiro,

objetos e alimentos.

***

Naquela tarde fomos até a casa de Louise, amiga dos tempos de escola de Dani,

minha anfitriã em Jacmel. Estava contente porque ela morava em uma zona rural situada

nas imediações da cidade onde eu já conhecia algumas pessoas e onde pretendia seguir

com o trabalho de campo. Avançamos por um pequeno portão e uma cerca de flores que

separavam a casa de um terreno maior onde se localizava o roçado e outra habitação

onde moravam os avós paternos de Louise já bem idosos na época. Na sala, enquanto

conversávamos, procurei me ater ao objetivo que planejara: elaborar um primeiro mapa

do local, algo que contivesse informações básica sobre as casas e seus habitantes. Com

essa ideia em mente perguntei a Louise: “com quem você mora?”

Louise falou que morava com os pais, os irmãos e as irmãs e que, naquele

momento sua mãe, que é comerciante, ainda não retornara de um grande mercado que

acontece três vezes na semana em uma região não muito perto dali. Alguns minutos

depois saímos para olhar o quintal e já no portão avistei a terra do roçado limpa

preparada para um novo plantio. Louise me contou que o terreno era da sua família e eu

perguntei pelo seu pai, imaginando que ele fosse o responsável por trabalhar naquelas

terras, mas ao contrário do que esperava sua resposta foi: “ah não, meu pai não está

aqui. Ele vive em Santo Domingo desde que eu era bem pequena!”. Dias depois

descobri que uma de suas irmãs também não morava na mesma casa que ela, conforme

ela me respondera, mas sim com sua madrinha em outra cidade não muito longe dali.

Introdução

O importante não é a casa onde moramos

mas onde, em nós, a casa mora

Mia Couto

Indagações a respeito dos locais de moradia e residência, comumente empregadas por

pesquisadores em busca de dados quantitativos ou mesmo qualitativos para suas

análises podem se revelar um problema em determinados universos sociais. Às vezes

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perguntas que imaginamos ser simples, como por exemplo, “com quem você mora?”,

oferecem respostas que evidenciam situações ricas e complexas próprias de um mundo

em constante movimento: de pessoas, de espíritos e de coisas (objetos, comida,

dinheiro).

O episódio relatado acima fez parte de uma conversa com Louise, amiga de uma

de minhas principais interlocutoras de pesquisa em Jacmel, no Haiti. Na ocasião,

tentava obter dados que me fornecessem uma base, a partir da qual poderia estabelecer

parâmetros para o trabalho de campo em curso naquele momento. Tantas vezes repetia a

pergunta a meus interlocutores, tantas eram as respostas que desafiavam o meu próprio

entendimento sobre o que seria morar em uma casa; pessoas que estavam ausentes

fisicamente podiam espontaneamente ser contabilizadas como residentes, enquanto

outras não eram lembradas de imediato, apesar de estarem lá.

Ao longo do tempo pude perceber também que a participação das pessoas em

uma determinada casa não se dá de maneira igual. Viv [viver], retè [morar, ficar ou

estar], abitè [habitar], pati [partir] e dòmi [dormir] são apenas alguns exemplos de

termos que fazem parte do campo semântico das casas (kay) e da mobilidade inerente ao

universo dos meus interlocutores. Além disso, como assinala Handerson (2013:19) há

pessoas que são apenas frequentadoras das casas e outras que são consideradas parte

dela. Os “frequentadores” de uma casa seriam aqueles que transitam nela para tomar

banho, comer, beber, brincar, conversar etc, já os que “fazem parte” seriam os que

“vivem nela, mas não necessariamente ali estão”. Exatamente como no caso do pai de

Louise mencionado acima, essas pessoas fazem parte da casa “porque possuem quarto e

pertences na casa”, além de ter laços afetivos fortes com aqueles que moram nela (idem:

2013).

Segundo Marcelin (1999:33) “um estudo da construção e do uso sociocultural

dos modos de habitar dos agentes [...] é determinante para apreendermos os sentidos das

relações sociais, investidas na experiência da família e do parentesco, em sua

complexidade”. Em Jacmel, as casas, seus quintais e a as redondezas que compõem a

vizinhança foram gradativamente se delineando como o principal locus do trabalho

etnográfico que fundamenta as reflexões trazidas ao longo do texto. Nesses espaços que

estão muito longe de poderem ser definidos apenas como domésticos busquei

compreender as matérias que criam - mas que também podem destruir - o que chamo de

familiaridade, isto é, relações significativas de afeto e de mutualidade entre pessoas que

se consideram “umas das outras” sejam elas parentes, vizinhas ou amigas. Além disso,

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pude perceber que uma casa nunca é apenas uma única casa. Ao contrário, ela participa

de um conjunto de outras casas ou, como formulou Marcelin (1996) de uma

“configuração de casas” pela qual as pessoas circulam. Nesse contexto, a casa não é

uma “unidade autônoma ou circunscrita a espaços delimitados”, sendo inseparável das

redes de pessoas e casas na qual ela se define (idem:80-81).

Nessa direção o texto examina as dinâmicas envolvidas na produção da

familiaridade, e a circulação de pessoas e objetos entre haitianos com os quais convivi

principalmente entre os anos de 2011 e 2012 na cidade de Jacmel, capital do

departamento Sudeste do Haiti. Tomando o cotidiano vivenciado nas casas como o

ponto de vista privilegiado de observação e análise interessam, em especial, as seguintes

perguntas: Quais relações emergem quando se fala em família? O que é uma casa para

os agentes em questão? Quais sentimentos e ideias são mobilizados a partir desse

conceito? Se as pessoas circulam, o que mais circula para além das tão citadas remessas

em dinheiro? E, por fim, tratando-se especialmente de um universo social onde a

mobilidade é vivenciada de forma histórica, intensa e cotidiana, como se constrói a

relação entre as casas localizadas em Jacmel (de onde parte o meu ponto de vista) e

aquelas habitadas por famílias haitianas em outros lugares?

Alguns dos meus interlocutores estão, atualmente, vivendo fora do Haiti de onde

saíram por não enxergar possibilidades de “ganhar a vida” no seu país. Nesse sentido, a

frase li te pati (ele/a partiu) costuma estar relacionada à busca pela própria “vida” o que

quer dizer por condições econômicas melhores do que a anterior, aquela que havia sido

deixada para trás (Handerson:2013:13). Essa dimensão ficou muito clara quando, em

maio de 2013, menos de um ano após encerrar o trabalho de campo em Jacmel fui a São

Paulo encontrar com amigos recém-chegados do Haiti. Na ocasião, eu e meu

companheiro levamos alguns rapazes, todos jovens com menos de 30 anos para dar uma

volta na Avenida Paulista. Enquanto caminhávamos, Peter olhando os altos edifícios de

negócios abriu os braços e falou para os outros: “agora nós estamos vivendo!”. Então eu

perguntei se eles não viviam quando estavam no Haiti. Peter olhou para mim e

respondeu: “não, no Haiti não tem vida” e continuou: “no Haiti não tem trabalho, nós

não temos possibilidades”.

Esta falta de possibilidades percebida por Peter e por muitos outros jovens que

conheci como uma carência do próprio país faz com que muitos haitianos sonhem em

algum dia poder partir para lòt bò dlo [do outro lado da água], uma expressão associada

aos países ou cidades estrangeiras, sobretudo EUA (Miami, Nova York) e Canadá. No

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entanto, antes de reduzir essas mobilidades à diáspora ou entendê-las simplesmente

como algum tipo de anomalia gerada pela pobreza, há que se ressaltar, como mostra

inclusive, o próprio Handerson (2013:19) que esses deslocamentos são estruturantes do

mundo social haitiano e notar a existência anterior, de certa disposição para ela. Assim,

a mobilidade mais do que uma consequência da situação de pobreza do país, das

condições econômicas precárias de sua população, é vista pelas pessoas como um valor,

uma dimensão da vida, com a qual se está habituado e, neste sentido, delineia emoções e

experiências individuais e coletivas.

De maneira geral, a literatura acadêmica sobre o Haiti enfatiza os processos de

emigração de haitianos para outros países (Richmann, 2005; Glick-Schiller & Fouron,

2001). No entanto, estou de acordo com o pressuposto adotado por Olwig (2007) que

trabalha com uma concepção ampla do fenômeno da migração identificando-a como

uma série de movimentos que englobam diferentes locais regionais e transnacionais, ao

mesmo tempo em que procura apresentá-la do ponto de vista daqueles que se movem e

não do país receptor. Desta perspectiva, a ideia de casa no contexto de uma

configuração de casas (Marcelin, 1996) se revela como um aspecto chave para pensar a

mobilidade haitiana.

1 – Sobre a gosma do quiabo e a produção da familiaridade

Há um provérbio haitiano que afirma não ser possível comer quiabo com um

dedo só3. De acordo com meus interlocutores, o quiabo possui uma gosma ao mesmo

tempo pegajosa e escorregadia, o que faz com que tenhamos que utilizar todos os dedos

da mão para comê-los. Apesar de ser conhecido, a primeira vez que atentei para o

provérbio assistia as aulas de um programa de alfabetização de adultos4 que aconteciam

em La Fontaine, um povoado rural localizado no entorno da cidade de Jacmel. Ele

aparecia estampado em uma das páginas do nosso livro de exercícios e a professora,

lendo-o repetidas vezes discutia conosco sobre os seus sentidos.

As interpretações dadas a mensagem transmitida pelo provérbio eram

consensuais e se assemelhavam aos ditados brasileiros de que “a união faz a força” ou

de que “uma andorinha só não faz verão”, aludindo a importância da cooperação entre

as pessoas seja em prol de uma causa comum ou no enfrentamento das adversidades as

3 Em creole: Yon sèl dwèt pa manje kalalou. 4 As aulas empregavam o método cubano de alfabetização chamado Yo, sí puedo utilizado em vários

países da América Latina (inclusive no Brasil) para a erradicação do analfabetismo.

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quais estamos sujeitos. A vida em La Fontaine não é fácil, pois além da pobreza e

outros males que atingem o Haiti como um todo, quando há um “mau tempo” o

povoado sofre com avalanches de pedras que já soterraram casas e contribuem para

tornar algumas partes do solo já desgastado em terrenos difíceis de serem cultivados.

Esse ambiente acaba reforçando a ideia defendida pelos meus interlocutores de que as

pessoas não são capazes de viver sozinhas; não é possível estar solto no mundo.

No entanto, através de exemplos práticos retirados do cotidiano da própria

comunidade, alunas5 e professora chegaram à conclusão de que a existência humana

apesar de ser marcada pela solidariedade é constantemente invadida por sentimentos

egoístas e intrigas nas quais se envolvem justamente aqueles que mais deveriam se

ajudar, isto é, pessoas que convivem diariamente umas com as outras; parentes, vizinhos

e amigos. A gosma do quiabo - essa substância que gruda e desliza - tece a matéria dos

vínculos familiares e encarna as múltiplas sutilezas que envolvem a convivência diária

entre aqueles que são próximos porque mantém, uns com os outros, relações

significativas de afetos, proximidades e expectativas mútuas.

A palavra família, tal como empregada no Haiti pode envolver uma série de

relacionamentos construídos entre parentes, vizinhos e amigos e, ainda que o sangue

desempenhe um papel central nas teorias nativas sobre o conceito de família - o

parentesco consanguíneo sendo comumente construído como algo dado e tomado como

o “modelo ideal de relatedness” (Lambert, 2000:85) 6 - em seu uso cotidiano ele é

alargado para dar conta de relações criadas a partir de outros dispositivos. Como

formulado por Marcelin (2012: 257):

A palavra em krèyol haitiano que designa ao mesmo tempo os

conceitos analíticos de parentesco e família é fanmi. [...] Por

extensão, ela também se refere aos vários níveis de proximidade

e familiaridade – na prática com capacidade para englobar

formas particulares de relatedness social tais como vizinho,

conhecido, amigo, comunidade ou até uma comum humanidade.

Como mencionado acima, pessoas consideradas família geralmente são aquelas que

mantêm entre si relações significativas de afetos (para o bem ou para o mal),

5 Cerca de 30 a 40 pessoas estavam inscritas no curso, dentre as quais apenas uma ou duas eram homens.

Todas elas moravam em La Fontaine e tinham mais de 40 anos de idade. 6 O parentesco consanguíneo é um modelo ideal, o que não significa que ele não possa ser desfeito e

rompido. Na verdade a caracterização de quem é família ou não leva em consideração uma série de

elementos e não é necessariamente estável.

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proximidades e expectativas mútuas, em grande medida propiciadas pela

consanguinidade, pelo convívio diário, pela comensalidade, por uma origem comum,

dentre outros. A presença desses elementos combinados ou não são os responsáveis por

tornar as pessoas umas das outras, fato observado pelo uso da expressão moun mwen

[gente minha] utilizada pelos meus interlocutores para se referir aqueles que “levam

uma vida em comum” e que, compartilhando experiências, “vivem as vidas umas das

outras e morrem as mortes umas das outras” (Sahlins, 2013:489).

2 - Ser de um lugar, morar em outro: o idioma da mobilidade do ponto de vista da

casa

Como apontei na introdução, a mobilidade, assim como a circulação permanente

de dinheiro, comida e outros objetos, faz parte dia a dia dos meus interlocutores de

Jacmel e do Haiti em geral. Deslocando-se para fora do país ou por dentro dele, ou

ainda fazendo movimentos denominados antrè/soti [entrar e sair] que prenunciam o

duplo jogo que caracteriza esses deslocamentos, todos estão acostumados à ideia de

conviver com os movimentos ou ainda ‘em’ movimento.

De maneira geral, a casa é vista como um local de proteção e de abrigo, um

lugar de intimidade, onde pode-se estar à vontade. Ao mesmo tempo, tendo em vista a

intensidade de pessoas e objetos que circulam dentro delas, a casa também se configura

como um “espaço repleto de buracos [...] por onde o mundo entra e por onde se sai para

o mundo” (Guedes, 2011:251). Esse aspecto se revelou de forma notória entre os

membros da família Lundi, meus anfitriões ao longo dos períodos de campo. Violet

Lundi e Lionel Lundi nasceram e cresceram em Tè Wouge, uma das 10 seções rurais

que pertencem à comuna de Jacmel. Eles eram cultivadores, mas no início dos anos 90

escolheram se mudar com seus quatro filhos e três sobrinhos para a “vila”, como é

chamada a região central da cidade. Alguns de seus irmãos e irmãs continuaram em Tè

Wouge, outros foram viver em Porto Príncipe e duas irmãs de Lionel Lundi se juntaram

aos seus respectivos maridos em Nova York.

Depois da mudança Lionel e Violet começaram a dedicar a maior parte do tempo

fazendo comércio. Ela estabeleceu um ponto no Marchè en Fer, o principal mercado da

cidade, onde vendia produtos de higiene pessoal, beleza e outros acessórios. Já Lionel

passou a comercializar sacolas plásticas que comprava em grandes quantidades em

Santo Domingo, capital da República Dominicana e as revendia para as comerciantes no

mercado de Jacmel. Nessa empreitada ele era acompanhado de um de seus irmãos e de

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seu cunhado que comprava e revendia roupas para comerciantes de Porto Príncipe onde

morava. Todos os três praticavam o “entrar/sair” e se dividiam entre uma casa alugada

em Santo Domingo, a casa do cunhado em Porto Príncipe, e suas próprias casas em

Jacmel e Tè Wouge de onde todos vieram.

Conheci os Lundi em 2008 através de Gisleine, uma das filhas de Lionel e

Violet. Na época eles moravam em uma casa que tinham construído com a ajuda dos

parentes que residem em Nova York, principalmente de uma das irmãs de Lionel. Ela

fica em uma região diferente daquela em que viveram ao longo da década de 90, em

uma zona mais alta e, portanto, menos sujeita as enchentes provocadas pelos ciclones e

tempestades tropicais que anualmente atingem o Haiti. Em 2011 quando me hospedei

pela primeira vez com eles me surpreendi com a alta rotatividade de pessoas que

passavam pela casa e percebi que o mesmo acontecia em várias outras casas que eu

costumava frequentar diariamente. Essas pessoas podiam ficar por longos períodos ou

estar apenas de passagem, de maneira que a sua população parecia sempre oscilante

com a saída ou entrada de alguém.

Atualmente apenas duas filhas de Violet e Lionel vivem em Jacmel. Jennifer, a

caçula mora em Santo Domingo onde se formou em administração e Tomy, o único

menino veio para o Brasil com Mano, irmão de Lionel, em abril de 2013. Cerca de um

ano depois, Ti Roro, seu outro irmão também chegou ao país. Os irmãos permanecem

em São Paulo onde trabalham, mas Tomy deixou o país em abril deste ano com o intuito

de entrar nos EUA através da fronteira do país com a cidade de Tijuana, no México.

Ao mesmo tempo em que os habitantes das casas podem ser vistos como pessoas

móveis, os espaços que as constituem também são bastante versáteis. Nesse sentido, é

notável o fato de diversas casas possuírem quartos com saídas independentes para a rua.

Estes cômodos podem ser emprestados temporariamente para algum familiar que esteja

de passagem, serem alugados como moradia ou como pequenas lojas, servir para o

estabelecimento de algum tipo de comércio para alguém da própria casa ou ainda serem

utilizados como espaços de culto religioso. Dessa maneira, as casas de Jacmel também

se caracterizam como locais marcadamente polifuncionais (Neiburg, 2013) onde se

observa uma “potencialidade de transformação” de seus cômodos “em espaços de

negócios e fontes de se ganhar dinheiro” (Motta, 2013:23). Todos estes múltiplos

espaços podem, ao longo do tempo (idem) ou, ‘ao mesmo tempo’, compor uma casa

cuja plasticidade é, sem dúvidas, um de seus principais aspectos.

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Enquanto para Marcelin (1999) as relações familiares são objetivadas na casa,

Carsten e Hugh-Jones (1995) sustentam a ideia de que a casa e seus habitantes não

deveriam nem mesmo ser tratados separadamente, mas sim considerados “dentro do

mesmo quadro analítico” (Carsten e Hugh-Jones, 1995:37). De fato, como adotar uma

abordagem que trate ‘casa’ e ‘habitantes’ de forma independente em um contexto onde

se costuma dizer que “uma casa que não tem pessoas, quebra?” (kay ki pa genyen moun

kraze’l). E, se “a casa e o corpo estão intimamente ligados”, participando um ao outro

em “contínua interação”, ao ponto das casas serem desenhadas pelas crianças ocidentais

com duas janelas e uma porta – “dois olhos e uma boca” – (idem:2 e 3) o que dizer das

casas em Jacmel com suas muitas portas; entradas (e saídas) que fazem seus cômodos

serem, ao mesmo tempo, parte dela e aposentos independentes? Não seria esta

peculiaridade reveladora de um corpo que é visto em constante movimento? Ou talvez

uma representação material em pequena escala do universo haitiano?

3 – Lakou e abitasyon: variações em torno da casa

Lakou e abitasyon são categorias de organização e divisão social do espaço

constantemente utilizadas pelos meus interlocutores em referência aos espaços de

convivência doméstica e familiar. Neles as pessoas moram, cuidam das crianças, lavam

roupas, cozinham, comem vendem, cultuam os espíritos ou simplesmente descansam.

Principalmente o lakou foi objeto de atenção pela literatura acadêmica a respeito das

formas de moradia e reprodução doméstica no Haiti (Dalmaso, 2014; Bulamah, 2013;

Woodson, 1990; Lowenthal, 1987; Bastien, [1951] 1985 e 1961, Herskovits [1937]

(1971), Anglade, 1982). Em Bastien ([1951] 1985 e 1961), por exemplo, os lakou

aparecem como um “conjunto de habitações ocupadas, de maneira geral por uma só

família” (1985:44), uma forma de organização social, econômica e religiosa em torno

do qual se estruturavam os "grupos domésticos"7. Já Woodson (1990) ressalta que o

pertencimento a um determinado lakou é estabelecido com base nos laços de parentesco

ou de afinidade e, ainda, mais recentemente, Bulamah (2013:28 e 39) definiu o lakou

como “um grupo doméstico estruturado a partir de um conjunto de relações de

parentesco [...] e de relações econômicas de produção, distribuição e troca” (ênfase

7 Herskovits (1971) e Rèmy Bastien (1985) chamam atenção para o processo de formação dos lakou.

Segundo eles tudo começa a partir da construção de uma primeira casa pelo seu fundador, chamado de

mèt lakou que passa a viver no local com sua esposa. À medida que os filhos do casal crescem e decidem

eles próprios se casar geralmente constroem suas casas em um dos espaços livres do terreno de seus pais

e, assim, o lakou também cresce em número de habitantes e casas.

10

conforme o original), podendo ser considerados como o espaço “por excelência” de

reprodução familiar.

A perspectiva de Bulamah encontra ressonância em Jacmel, principalmente nas

regiões do entorno da cidade, consideradas pelos seus habitantes como “campo” ou

“montanha”8, como é o caso de La Fontaine (mencionado acima) ou de Tè Wouge,

seção comunal da qual é originária a família que me abrigou durante boa parte do

trabalho de campo. Nesse contexto, o termo lakou é utilizado corriqueiramente

descrever pequenas propriedades onde se encontram agrupadas uma ou mais casas de

pessoas familiares entre si, relacionadas por laços de sangue, afinidade ou

apadrinhamento. Essas propriedades também abrigam os túmulos de seus antigos

moradores, algumas áreas reservadas ao cultivo e, ocasionalmente, pequenas casas

pertencentes aos espíritos da família. Já a palavra abitasyon traduzida por Woodson

(1990) como “vizinhança” e relacionada a Bastien (1961) as antigas plantations da

época colonial9 pode, dependendo da situação, ser identificada tanto como uma “zona”,

isto é, uma região que abriga várias casas e lakou, onde habitam várias famílias

vizinhas10, tanto como “o lugar onde vive uma família”, em um sentido bem próximo ao

do lakou, como um “grupo doméstico”, tal como descrito acima.

No entanto, lakou e abitasyon não são apenas formas nativas de organização

sócio espacial, mas também conceitos, pontos de reflexão e ideias sobre os quais a

literatura acadêmica sobre Haiti tem se detido ao longo dos anos. Por isso, mais do que

reproduzir essas definições, interessa avançar um pouco nessa questão, explorando e

acrescentando outras dimensões reportadas pelos meus interlocutores, mas ainda não

contempladas por essa literatura. Nessa direção, faz sentido perguntar como, a partir da

perspectiva das casas, são esboçados esses conceitos? É certo que entre meus

interlocutores as palavras lakou e abitasyon estão completamente entrelaçadas a

8 Poucas vezes ouvi o termo andeyò utilizado por Barthèlemy (1989) para denominar a massa camponesa. 9 Segundo Bastien (1961) as abitasyon foram “equivalente da plantation na época colonial” que depois da

independe

ncia do país teriam se transformado em pequenas propriedades de exploração agrícola familiar que

costumavam ser conhecidas pelos nomes de seus donos. Essa característica pode ser notada até os dias de

hoje na região de Jacmel. 10 Várias pessoas me diziam que as abitasyon eram a menor unidade administrativa do país, estando

abaixo das seções comunais. Esta ideia não encontra, entretanto, respaldo constitucional, que considera a

seção comunal como a “menor entidade territorial administrativa da República” e classifica as habitations

como “zonas de habitat dispersos identificados como tais pela tradição” (artigo quatro do decreto de 1º de

fevereiro de 2006, que estabelece a organização e o funcionamento das seções comunais da Constituição

de 1987).

11

experiência familiar, mas, o que mais é possível apreender dessa experiência para além

da troca e reprodução doméstica?

No primeiro tópico formulei a ideia de que pessoas familiares são aquelas que

são umas às outras, tendo suas existências mutuamente implicadas. Assinalei que esse

aspecto pode ser notado a partir do uso da expressão “gente minha” (moun mwen) em

referência aqueles em quem se pode confiar e com quem se pode contar. Ocorre que

além de serem umas das outras as pessoas também são de lugares11, de onde, muitas

vezes, provém suas relações mais primordiais, bem como características atribuídas a sua

personalidade e ao seu caráter moral, elementos que dão profundidade a estes vínculos.

Lionel e Violet cresceram em diferentes abitasyon de Tè Wouge e até hoje mantém

relações especiais com estas zonas que não só estão completamente entrelaçadas as suas

histórias e experiências de vida, mas também abrigam os lakou de suas famílias, nos

quais foram enterrados seus antepassados e onde eles próprios serão sepultados.

O pai de Lionel foi um homem considerado importante em Tè Wouge, um

grande “chefe de seção” (chef section)12, que serviu como makout ao governo dos

Duvalier e se tornou conhecido pelos habitantes locais, dando certo status também aos

seus filhos. Tanto Lionel quanto Violet ainda têm parentes e amigos vivendo na região,

assim como terras que não poderiam ser cultivadas sem a ajuda de outras pessoas,

muitas das quais convivem desde que nasceram. Além disso, Lionel dirige junto com

dois outros homens, o culto de uma igreja batista na abitasyon em que cresceu. A

proximidade com um dos pastores de Jacmel responsável por essa igreja faz com ele

esteja constantemente empenhado em atividades missionárias em Tè Wouge,

11 O pertencimento a esses lugares varia, é claro, de acordo com a escala empregada; pensando no país

inteiro as pessoas dizem que são de Jacmel, de Porto Príncipe ou de Cabo Haitiano. No entanto, quando

aproximamos a lente e tomamos como base uma dessas cidades vemos que as definições passam a se

referir as suas diversas seções comunais ou pequenas localidades como por exemplo quando alguém fala

que é moun La Fontaine. 12 Segundo Jean L. Comhaire (1955), as seções rurais haitianas não eram organismos sociais, existindo

apenas “para fins policiais como previsto primeiramente no Código Rural de 1826”. De acordo com o

referido código, cada seção rural recebia um chefe de seção com um capitão e exército e três policiais

rurais, todos escolhidos entre os próprios camponeses. Antes da ocupação norte-americana do país em

1915, ele era nomeado pelos comandantes dos distritos, generais do exército que representavam o próprio

presidente nestas áreas maiores em que se subdividia a república. Estes comandantes buscando manter a

paz nos distritos pelos quais eram responsáveis escolhiam para serem chefes de seção camponeses cujas

famílias possuíam certa influência e riqueza. Posteriormente, com a ocupação, o exército haitiano foi

abolido e as seções rurais passaram a ficar sob a reponsabilidade de um único habitante do local chamado

simplesmente de “policial rural” que poderia contar com a ajuda de dois assistentes sem qualquer

titulação em particular. Ainda de acordo com o autor, os “chefes de seção” poderiam ser descritos “para

todos os fins práticos”, como “o estado dentro da seção” (pg. 621), uma posição que conferia a eles poder

e prestígio.

12

principalmente aquelas relacionadas a atendimentos médicos e odontológicos muito

comuns no Haiti.

Todas estas imbricações revelam, portanto, a profundidade que pode estar implicada

no fato de ser pessoa de uma determinada região. Mais do que apontar simplesmente o local

de nascimento, a identificação de uma pessoa com o lugar de origem é algo que “trabalha” ou

faz parte daquilo que Pina Cabral (2013) nomeou como o “centro dos afetos”, ou seja, as

“mutualidades de ser” (Sahlins, 2013) que integram a pessoa. Ao se referir ao processo de

formação da personalidade, Pina Cabral (idem) sustenta que ela “é uma transformação

histórica que engloba muito mais do que a criança e as pessoas que a alimentam,

abrangendo desde o início o ambiente comum em que ela vive” (idem:76). O autor

(idem) observa como o passado está presente na constituição das pessoas através do que

ele chama de “identidades continuadas”, “fenômenos de memória”, mas que, ao

contrário de serem “processos meramente mentais”, “estão inscritas no mundo ao nosso

redor”.

Assim, a expressão “ser pessoa de” algum lugar, tal como empregada

frequentemente pelos meus interlocutores, remete a estas identidades continuadas que

cada um carrega consigo e que estão no “coração de seus afetos”. Nesse sentido, ela está

referida e completamente entrelaçada a uma espécie de historicidade familiar onde se

encontram as relações primordiais das pessoas não só com outras pessoas, com os seus

ancestrais, com as terras em que eles viveram e, muitas vezes, com os espíritos que

habitam estas terras. No curso desta interpretação, os lugares de onde se vêm as seções

comunais e dentro delas as abitasyon e os lakou podem ser mais do que “vizinhança”, mais

do que “grupos domésticos” e muito mais do que o simples “habitat da família extensa”.

Esses espaços de convivência familiar são como uma casa expandida, uma espécie de

recôncavo que em sua cavidade guarda as histórias das pessoas, das famílias, das terras e dos

ancestrais que fazem parte da região. Crescer neste recôncavo é conviver com pessoas que

compartilham as lembranças dessas histórias, é como estar em casa e, neste sentido o lugar de

nascimento ou de crescimento é como se fosse à extensão dela.

4 – Um mundo em circulação: a construção da familiaridade entre os que partem e

os que ficam

Quando retornei ao Haiti em 2011 encontrei o país ainda devastado pelo terremoto de

grandes proporções ocorrido em janeiro de 2010. Embora as cidades mais atingidas

tenham sido Carrefour e a capital Porto Príncipe, Jacmel também sofreu com

13

desabamentos que afetaram a vida da maior parte de seus habitantes. Felizmente, a casa

dos Lundi apresentava apenas algumas rachaduras e foi considerada segura pelos

especialistas das organizações internacionais que prestaram assistência ao país nos

meses que se seguiram após o terremoto. No entanto, Fifi, irmã de Lionel e seu marido,

não tiveram a mesma sorte. Vivendo nos EUA, o casal havia construído há pouco tempo

um prédio de três andares na rua de trás da casa de Lionel com o objetivo de alugar seus

apartamentos e conseguir uma renda extra, além de ter um lugar a mais para ficar

quando viajassem para Jacmel. Em 2009 esse prédio, administrado por Lionel, abrigava

uma lan house no térreo e em 2010 desmoronou completamente. Quando finalmente

cheguei em fevereiro de 2011 encontrei Lionel e um dos irmãos de sua esposa que

chegara recentemente a casa empenhados na reconstrução do prédio de Fifi. Investir

dinheiro na construção de casas, túmulos, pequenos comércios ou mesmo escolas no

Haiti é algo comum entre haitianos que vivem nos EUA ou no Canadá, a chamada

“diáspora haitiana”.13

Segundo Glick-Schiller e Fouron (2001) a categoria nativa diáspora foi utilizada

inicialmente durante o regime de François Duvalier para se referir aos haitianos que, do

ponto de vista dos simpatizantes do seu governo, tinham se voltado contra a nação

emigrando para os EUA. No entanto, ainda de acordo com estes autores, até os anos 90,

“a maioria das pessoas no Haiti ou a maioria dos haitianos no exterior ou não conhecia a

palavra, ou evitava usá-la porque ela era vista como sendo muito politicamente

carregada” (idem:112). Eles também afirmam que durante as pesquisas que realizaram

no Haiti e nos EUA em 1996 se depararam com um “conhecimento difundido e quase

uniforme da palavra diáspora que tinha sido, agora, incorporada dentro do crioulo para

se referir aos haitianos vivendo no exterior” (idem:124).

Apesar de seu uso difundido, Glick-Schiller e Fouron não adotam a palavra

diáspora para descrever a população que vive fora do país, preferindo a expressão

“nacionalistas de longa distância”.14 Infelizmente essa escolha faz com que eles percam

o ponto de vista etnográfico e a oportunidade - muito mais interessante - de observar e

13 Há vários artigos que tratam do investimento feito por emigrantes na construção de casas em seus

locais de nascimento. Para alguns exemplos ver: Thomas, 1998; Leinaweaver, 2009 e Machado, 2010. 14 Os autores optaram pelo termo “nacionalistas de longa distância” em detrimento do uso da palavra

diáspora para descrever e diferenciar populações que se identificam com um Estado particular já existente

ou que tem o desejo de construir um novo Estado (que seria o caso dos haitianos vivendo fora do país), de

outras formas de pertencimento coletivo, como aquelas baseadas na religião ou em uma noção de uma

história compartilhada e dispersa, a qual caberia melhor o termo diáspora. Segundo eles há atualmente um

exagero nos usos feitos pela literatura acadêmica em relação a esta palavra que acaba confundindo

diferentes experiências históricas e formas de consciência (Glick-Schiller e Fouron, 2001:23).

14

analisar as percepções e usos nativos do conceito, que apontam para definições muito

mais complexas e nuançadas do que a simples referência a migrantes haitianos que

vivem no exterior e movidos por sentimentos nacionalistas. Nesse sentido Handerson

(2013:12) chama atenção para o fato de que, do ponto de vista etnográfico, a

epistemologia da categoria diáspora está articulada a partir de três verbos: “residir” no

exterior, “voltar” ao país de origem e “retornar ao país de acolhida”, em uma definição

que, segundo o autor, está “orientada por conexões culturais e deslocamentos

contínuos” (aspas nos verbos conforme o original).15

Dados do MPI (Migration Policy Institute) referentes a 2012 informam que

pouco mais de 600.000 migrantes haitianos vivem legalmente nos EUA. Eles compõem

a quarta maior população migrante no país ficando atrás daqueles provenientes de Cuba,

República Dominicana e Jamaica. Na França e no Canadá os haitianos contariam cerca

de 150.000 pessoas, enquanto no Brasil pouco mais de 50.00016. Além das remessas em

dinheiro, eles são responsáveis pelo envio de uma série de outros objetos e comida para

aqueles que estão no país.17 Esses objetos consistem principalmente em roupas usadas

ou novas, alimentos, brinquedos, aparelhos eletrônicos e fotografias. Vale ressaltar que

nem tudo aquilo que chega de fora nas casas em Jacmel tem como destino o consumo.

Ao contrário, vários produtos são mandados com o objetivo de serem vendidos. O envio

desses objetos é visto como uma forma de “ajuda” pois a pessoa que os recebe pode

“fazer dinheiro” com a sua venda. Dentre eles encontram-se principalmente, comida

industrializada (macarrão instantâneo e enlatados), roupas e artigos para higiene pessoal

(pasta de dente e sabonetes)18.

Como mostrado por Richman (2005), os circuitos de objetos e comida não são,

entretanto, de mão única. Trabalhando com uma pesquisa que envolveu as relações

familiares entre haitianos que estavam nos EUA e no Haiti, a autora examina

principalmente a troca de fitas cassetes com mensagens pessoais enviadas e recebidas

15 Deslocamentos contínuos tem sido associados às novas perspectivas sobre o termo migração. Para

perspectivas da migração como um processo contínuo não mais atrelado a ideia de um movimento único

de um lugar de origem para outro pré-definido. Para alguns deles ver: Olwig (2007) e Rosales (2010). 16 http://www.migrationpolicy.org/article/haitian-immigrants-united-states 17Conforme os dados do Fundo Multilateral de Desenvolvimento do Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), no ano de 2007 as remessas em dinheiro enviadas ao Haiti somaram mais de U$

1.065.000.000, o que representa 24% do Produto Interno Bruto (PIB) do país (Handerson, 2013). 18 Esses produtos chegam diretamente em Jacmel através de um escritório específico da empresa Western

Union (como pude observar no caso do arroz e dos aparelhos eletrônicos) ou então vem de navio de

Miami a Porto Príncipe, sendo depois transportados para Jacmel em caminhões ou tap tap, caminhonetes

geralmente coloridas, que funcionam como meio de transporte de coisas e pessoas.

15

entre um migrante e seu irmão que permanecia na localidade de Ti Riviè. Da mesma

forma como pude notar ao longo do trabalho de campo, esses objetos não seguem

apenas a direção país estrangeiro → Haiti. Pelo contrário, e sem contar tudo aquilo que

circula dentro do próprio país e que infelizmente não pude acompanhar de perto, há uma

série de coisas que fazem o percurso inverso, saindo do Haiti rumo ao exterior, como

por exemplo, dinheiro, café, cacau, mamona (utilizada para fazer óleo para passar no

cabelo), dentre outros insumos para se fazer comida ou outras receitas crioulas.

Entre meus anfitriões, Violet sempre enviava alguma quantia para cobrir as

despesas de sua filha que vive em Santo Domingo, às vezes com o próprio dinheiro

das remessas de Fifi e de outros parentes que vivem no exterior. No entanto o que

mais frequentemente compunha as remessas dos meus interlocutores para as pessoas

que tinham fora do Haiti eram fotografias, vídeos de casamentos ou de funerais,

alimentos, documentos e produtos locais. A maneira mais comum de enviar esses

objetos era pedir para alguém que estivesse no Haiti e fosse retornar ao país de

acolhida levar. Foi assim que cerca de três dias depois de terminada uma importante

etapa na obra que vinha sendo feita para reerguer o prédio de Fifi – a construção de seu

teto – um dos cunhados de Lionel que estava de férias em Jacmel passou em nossa casa

para pegar as fotografias que eu tinha tirado para entrega-las aos parentes que moravam

em Nova York junto com alguns litros de akasan, um mingau muito popular feito

basicamente com farinha de milho, leite e açúcar. Esta foi a maneira encontrada pela

família de celebrar também com aqueles que não estavam fisicamente presentes a

finalização dessa fase no processo de construção de uma casa.

Já em 2012, quando finalmente o prédio acabou de ser construído, Lionel

contratou um serviço de filmagem para produzir um vídeo com imagens internas e

externas do edifício. No filme os apartamentos iam sendo mostrados lentamente um a

um, cada cômodo, cada janela, cada porta, assim como os corredores e as escadas que

levavam aos outros andares. Do lado de fora o prédio aparecia sob vários ângulos e

também a cidade de Jacmel vista do alto do terraço. Lionel e o irmão de Violet também

foram filmados. Os dois, mas principalmente Lionel, agradeciam à família dizendo o

quanto estava contente com a finalização de um empreendimento que tinha contado com

a colaboração das famílias Lundi e Claude.

Assim como as fotos do teto tiradas por mim no ano anterior, o vídeo

também seguiu para Nova York novamente acompanhado de várias garrafas de

akasan. Cerca de dois dias depois as irmãs e os cunhados de Lionel telefonaram

16

para conversar sobre as imagens que tinham acabado de ver. Eles também estavam

contentes e aquele foi, de fato, um momento de grande celebração. Todo esse

processo que culminou com a finalização de um grande projeto através do qual

ganharam concretude paredes e tetos, pode ser visto, ao mesmo tempo, como uma

oportunidade de consolidação das relações familiares. Nestas circunstâncias,

diferentemente do cimento e tijolos com os quais se fazem casas, as matérias -

primas que edificam as relações são essas constantes remessas de dinheiro, de

comida, de objetos e de imagens trocadas entre aqueles que estão vivendo em

lugares diferentes.

5 – Considerações finais

Os haitianos jamais se perdem

Ti Roro

Ao longo do texto busquei tratar de certos aspectos da vida cotidiana tomando como

ponto de partida a observação das casas que frequentei em Jacmel, em especial a casa de

Lionel e Violet onde fiquei hospedada na maior parte do tempo. As discussões

propostas aqui centraram-se em dois eixos principais. Em primeiro lugar busquei refletir

sobre a mobilidade das pessoas explorando a ideia de que as casas além de serem

espaços porosos, participam de uma configuração maior de casas por onde circulam

também objetos, dinheiro e comida. Também mencionei que elas se constituem em

espaços extremamente flexíveis caracterizados pela versatilidade de seus cômodos que

podem funcionar como locais de culto religioso e de comércio, por exemplo.

Além disso, procurei mostrar como o envio dos mais variados tipos de coisas

não se dão em uma direção única que vai do país estrangeiro (geralmente EUA) para o

Haiti, mas também fazem o caminho oposto, o que permite que a familiaridade seja

continuamente construída com aqueles que, às vezes, estão vivendo a milhas de

distância. Ao mesmo tempo em que, por um lado, não persegui esses circuitos

percorridos por pessoas e coisas, por outro, estar na casa possibilitou observar como

essa familiaridade não é dada apenas por uma proximidade física, mas precisa ser

construída também entre aqueles que participam de uma mesma vizinhança e

alimentada diariamente entre aqueles que frequentam ou fazem parte de uma mesma

17

casa, mesmo estando fisicamente longe. Aqui a comensalidade e o compartilhamento

das refeições preparadas nas casas se revelou um aspecto fundamental na produção da

gosma do quiabo responsável por tornar as pessoas umas das outras.

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