Morfema estudo

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Morfema Sírio Possenti De Campinas (SP) Na coluna passada, comentei a confissão de Cony. Dizia ele que nunca ouvira falar de morfema, e que acabou sabendo do que se trata em conversa com Evanildo Bechara. Pensei comigo: talvez seja o caso de comentar o conceito. Começo como Cony: vou a um dicionário, o Houaiss. Antes, uma retificação: disse na coluna passada que considerava suspeita a definição de Houaiss. Mas não é verdade: ela é ótima. Na verdade, Cony citara a do Aurélio, que é bem ruim, pouco clara, talvez errada. A do Houaiss é corretíssima, e eu a transcrevo: (Morfema é) a menor unidade lingüística que possui significado, abarcando raízes e afixos, formas livres (p.ex.: mar) e formas presas (p.ex.: sapat-, -o-, -s) e vocábulos gramaticais (preposições, conjunções) Para o estruturalismo norte-americano, pode ter ainda outras manifestações, como a ordem das palavras na frase, indicando as funções sintáticas dos constituintes, ou a entonação sozinha, que pode mudar o sentido de um enunciado: Você vai. Você vai? A definição mais resumida é "menor unidade significativa", ou seja, uma unidade "material" com sentido. Por exemplo, um radical (com-, de comer, sapat- desapato) é um morfema; um prefixo (in-, des-, re-) é um morfema; um sufixo (-eiro, -mente, -ão) é um morfema. Também são morfemas "desinências" (-s final deestás) e flexões (-s final de sapatos). Claro, também são morfemas palavras como "mas", "também", "menos" etc. De tudo isso a definição dá conta. Ou seja, Cony deve ter entendido logo que Bechara desvelou o segredo. Mesmo assim, vale a pena esticar a conversa. Sei, por experiência, que alunos reagem bem quando se explicitam fatos que, no fundo, são banais - mas que a escola tratou um pouco confusamente. Por exemplo, que o que parece ser uma unidade pode não ser ou pode ser mais de uma. Por exemplo, "s" é apenas um fonema em palavras (ou "contextos") como sapato, sala, salame, assado, nascido, vamos etc., mas é um morfema de um certo tipo em estás, comes, lavas(significa segunda pessoa do singular) e é morfema completamente diferente emsapatos, meias, mesas, livros (significa mais de um). Mais: em desfazer, dês é um morfema, um prefixo, que significa "voltar ao estágio anterior" (!!)), mas em desmanchar, dês não é um prefixo (desfazer não está para fazer assim comodesmanchar está para manchar). Os alunos mais sacadores logo descobrem porque Saussure, por exemplo, disse que uma língua é um sistema em que não importa a substância, mas apenas a forma. Isto é, não importa o que "é" um "s", mas em quais relações ele entra no sistema da língua: se no final de uma forma verbal ou nominal específica, oposta a outras

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Page 1: Morfema estudo

MorfemaSírio Possenti

De Campinas (SP)

Na coluna passada, comentei a confissão de Cony. Dizia ele que nunca ouvira falar de

morfema, e que acabou sabendo do que se trata em conversa com Evanildo Bechara.

Pensei comigo: talvez seja o caso de comentar o conceito. Começo como Cony: vou a um

dicionário, o Houaiss. Antes, uma retificação: disse na coluna passada que considerava

suspeita a definição de Houaiss. Mas não é verdade: ela é ótima. Na verdade, Cony citara

a do Aurélio, que é bem ruim, pouco clara, talvez errada. A do Houaiss é corretíssima, e eu

a transcrevo:

(Morfema é) a menor unidade lingüística que possui significado, abarcando raízes e afixos,

formas livres (p.ex.: mar) e formas presas (p.ex.: sapat-, -o-, -s) e vocábulos gramaticais

(preposições, conjunções) Para o estruturalismo norte-americano, pode ter ainda outras

manifestações, como a ordem das palavras na frase, indicando as funções sintáticas dos

constituintes, ou a entonação sozinha, que pode mudar o sentido de um enunciado: Você

vai. Você vai?

A definição mais resumida é "menor unidade significativa", ou seja, uma unidade "material"

com sentido. Por exemplo, um radical (com-, de comer, sapat- desapato) é um morfema;

um prefixo (in-, des-, re-) é um morfema; um sufixo (-eiro, -mente, -ão) é um morfema.

Também são morfemas "desinências" (-s final deestás) e flexões (-s final de sapatos).

Claro, também são morfemas palavras como "mas", "também", "menos" etc. De tudo isso

a definição dá conta. Ou seja, Cony deve ter entendido logo que Bechara desvelou o

segredo.

Mesmo assim, vale a pena esticar a conversa. Sei, por experiência, que alunos reagem

bem quando se explicitam fatos que, no fundo, são banais - mas que a escola tratou um

pouco confusamente. Por exemplo, que o que parece ser uma unidade pode não ser ou

pode ser mais de uma. Por exemplo, "s" é apenas um fonema em palavras (ou

"contextos") como sapato, sala, salame, assado, nascido, vamos etc., mas é um morfema

de um certo tipo em estás, comes, lavas(significa segunda pessoa do singular) e é

morfema completamente diferente emsapatos, meias, mesas, livros (significa mais de um).

Mais: em desfazer, dês é um morfema, um prefixo, que significa "voltar ao estágio anterior"

(!!)), mas em desmanchar, dês não é um prefixo (desfazer não está para fazer assim

comodesmanchar está para manchar).

Os alunos mais sacadores logo descobrem porque Saussure, por exemplo, disse que uma

língua é um sistema em que não importa a substância, mas apenas a forma. Isto é, não

importa o que "é" um "s", mas em quais relações ele entra no sistema da língua: se no final

de uma forma verbal ou nominal específica, oposta a outras formas verbais (estás / está,

estamos, estão) ou a outras formas nominais (sapatos / sapato / sapateiro). Em cada caso,

está em um paradigma diferente, num subsistema diverso. A dupla sapato / sapatos, aliás,

fornece um bom exemplo de morfema ZERO, isto é, do FATO lingüístico de que um

sentido (o de singular) não é marcado (em português). Ou seja, nós sabemos que um

nome está no singular (isto é, que se refere a uma unidade) apenas porque ela não tem

marca de plural. Ou seja, que a marca de singular é ZERO, que o singular não é marcado

em português.

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Evidentemente, para quem gosta de estudar, os casos mais interessantes não são os

evidentes, ou os tornados evidentes. Os melhores são aqueles que obrigam a teoria a

ranger, ou aqueles cuja explicação põe a teoria (ou alguns fatos que pareciam claros) em

questão.

Por exemplo: "demais" é uma palavra (um morfema) ou são dois (de + mais)? Estamos

acostumados a escrever "tudo junto",o que pode fazer com que pensemos que se trata de

uma palavra (simples). Mas, se olharmos de perto seu funcionamento em termos de ordem

dos advérbios de intensidade, surge um problema. Vejamos. Advérbios de intensidade têm

uma ordem mais ou menos fixa. Vêm antes de adjetivos (muito bom. *bom muito), antes

de advérbios (muitobem, *bem muito) e depois de verbos (come muito, *muito come).

Mas as locuções que têm o mesmo valor sempre vêm depois da palavra a que

"modificam": é bom pra burro (*pra burro bom), joga bem pra burro (*joga pra burro bem),

come pra burro (*pra burro come).

Ora, demais se comporta como as locuções: bom demais (*demais bom),

bemdemais (*demais bem), come demais (*demais come). Se tudo o mais for

igual,demais deveria ser uma locução... Ou seja, duas palavras. Veja o que dizem os

dicionários... E tente ver como se comporta paca e qual é sua derivação...