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A Morte de Ivan Ilitch

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  • A Morte de Ivan Ilitch

  • Lev TolstoiA Morte de Ivan Ilitch

    Romance

    Traduo do russoAntnio Pescada

  • Leya, SARua Cidade de Crdova, n. 22610-038 Alfragide Portugal

    Este livro no pode ser reproduzido, total ou parcialmente, sem a autorizao prvia do editor. Todos os direitos reservados.

    2008, Leya, SA

    Ttulo original: Ce aa a

    Capa: Rui Belo / Silva!designers

    Reviso: Clara Joana Vitorino 1. edio BIS: Setembro de 2008 Paginao: GuidesignDepsito legal n. 280 720/08Impresso e acabamento: Litografia Ross, Barcelona, Espanha

    ISBN: 978-972-20-3687-0

  • Prefcio

    Este livro to breve, uma das maiores obras-primas do esprito humano, tem sido, desde a sua publicao, um motivo de controvrsia para a crtica: trata-se de uma obra sobre a morte ou de uma obra que nega a morte? Lukacs, por exemplo, defendia a segunda hiptese, con-trapondo o Llanto por Ignacio Sanchez Mejias, de Fede-rico Garcia Lorca, como o grande texto acerca do fim. Embora eu concorde com parte dos argumentos de uns e outros um tipo de discusso que s academicamente me interessa: a morte de Ivan Ilitch ambas as coisas e transcende tudo isso, para se tornar o retrato implac-vel da nossa condio: no h sentimento que nele no figure, no h emoo que no esteja presente. Tudo o que somos se acha em poucas pginas, escrito de uma forma magistral. Li-as, maravilhado, umas vinte ou trinta vezes, continuarei a l-las, maravilhado, at ao fim dos meus dias. Maravilhado, exaltado, comovido, a perguntar-

    -me como que ele conseguiu. E conseguiu. Reparem no que Tolstoi faz com as palavras e como nos retrata, de corpo inteiro, no mais ntimo de ns mesmos.

    Antnio Lobo Antunes

  • I

    Durante um intervalo do julgamento do caso Mel-vinski, os juzes e o procurador reuniram-se no gabinete de Ivan Egrovitch Chbek no grande edifcio do tribu-nal, e a conversa recaiu sobre o clebre caso Krassovski. Fidor Vasslievitch procurava acaloradamente demons-trar a improcedncia, Ivan Egrovitch mantinha a sua posio enquanto Piotr Ivnovitch, que no interviera na discusso, no participava e ia folheando o Notcias acabado de chegar.

    Senhores! disse ele. Ivan Ilitch morreu. verdade? Aqui est, leia disse dirigindo-se a Fidor Vass-

    lievitch e entregando-lhe o exemplar do jornal, ainda a cheirar a tinta.

    Dentro de uma tarja negra estava escrito: Prask-via Fidorovna Golovina cumpre o doloroso dever de comunicar aos familiares e conhecidos o falecimento do seu amado esposo Ivan Ilitch Golovin, desembargador, ocorrido a 4 de Fevereiro de 1882. O funeral realiza-se na sexta-feira, uma hora da tarde.

    Ivan Ilitch era colega dos senhores ali reunidos e todos gostavam dele. Doente h vrias semanas, dizia-

    -se que a sua doena era incurvel. O seu lugar conti-

  • nuava reservado, mas havia a ideia de que no caso da sua morte Aleksiev poderia ser nomeado para o seu lugar e Vnnikov ou Stbel para o lugar de Aleksiev. Por isso, ao ouvir falar da morte de Ivan Ilitch, o primeiro pensamento de cada um daqueles senhores reunidos no gabinete foi sobre a importncia que essa morte poderia ter para a mudana ou promoo deles prprios ou dos seus conhecidos.

    Agora vou provavelmente ficar com o lugar de St-bel ou de Vnnikov pensou Fidor Vasslievitch. J me foi prometido h muito tempo, e a promoo repre-senta para mim um aumento de oitocentos rublos, alm do subsdio.

    Agora tenho de pedir a transferncia do meu cunhado de Kaluga, pensou Piotr Ivnovitch. A minha mulher vai ficar muito contente. J no poder dizer que nunca fao nada pelos parentes dela.

    Sempre pensei que ele no voltaria a levantar-se disse Piotr Ivnovitch em voz alta. pena.

    Mas afinal qual era a doena dele? Os mdicos no conseguiram determinar. Quer

    dizer, determinavam, mas de modos diferentes. Da ltima vez que o vi pareceu-me que se havia de curar.

    Pois eu no voltei a casa dele desde as festas. Ten-cionava ir, mas no fui.

    E ento, ele tinha bens? Parece que a mulher tinha alguns. Mas coisa insig-

    nificante. Sim, vai ser preciso ir l. Eles viviam horrivelmente

    longe. Quer dizer longe de si. De si tudo fica longe. No me perdoa o facto de viver do outro lado do rio

    disse Piotr Ivnovitch, sorrindo para Chbek. Come-aram a falar das distncias entre diferentes partes da cidade, e voltaram para a sesso.

  • Para alm das consideraes suscitadas em cada um deles por aquela morte, acerca das transferncias e pos-sveis mudanas no servio que dela poderiam resultar, a prpria morte de um conhecido prximo provocava, como sempre, um sentimento de alegria: quem morreu foi ele, e no eu.

    Cada um deles pensou ou sentiu: Ora vejam, ele morreu; mas eu estou vivo. Os mais chegados, os cha-mados amigos de Ivan Ilitch, sem querer pensaram tambm em que deviam agora cumprir as muito tristes obrigaes de decncia de ir cerimnia fnebre e fazer uma visita de condolncias viva.

    Os mais prximos de todos eram Fidor Vasslievitch e Piotr Ivnovitch.

    Piotr Ivnovitch tinha sido colega na Faculdade de Direito e considerava-se obrigado para com Ivan Ilitch.

    Tendo comunicado mulher durante o almoo a notcia da morte de Ivan Ilitch e as consideraes sobre a possibilidade de transferncia do cunhado para a sua circunscrio, Piotr Ivnovitch, sem se deitar para des-cansar, vestiu o fraque e dirigiu-se a casa do defunto.

    Diante da entrada da casa de Ivan Ilitch estavam esta-cionadas uma carruagem e duas seges de aluguer. Em baixo, no vestbulo junto ao bengaleiro, estava encos-tada parede a tampa da urna revestida de cetim, com borlas e um galo dourado que brilhava. Duas senhoras vestidas de negro despiam os casacos. Piotr Ivnovitch reconheceu numa delas a irm de Ivan Ilitch. A outra era uma senhora desconhecida. O seu colega Chvarts vinha a descer, e, ao ver do cimo da escada quem entrava, parou e piscou-lhe um olho, como a dizer: Tola ideia a de Ivan Ilitch; nada como ns os dois.

    O rosto de Chvarts, com suas inglesas e a sua magra figura vestida de fraque, tinha como sempre uma soleni-dade elegante que contrastava com o seu carcter jocoso

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    que tinha ali um picante especial. Assim pensou Piotr Ivnovitch.

    Piotr Ivnovitch deixou as senhoras entrarem sua frente e caminhou lentamente atrs delas para a escada. Chvarts no desceu, parou no cimo, e Piotr Ivnovitch compreendeu porqu: pelos vistos queria combinar onde haviam de ir jogar s cartas nessa noite. As senho-ras subiram a escada para o quarto da viva e Chvarts, com um ricto muito srio nos lbios fortes mas um olhar jocoso, fez um movimento com as sobrancelhas indi-cando a Piotr Ivnovitch, ao lado direito, o quarto onde estava o defunto.

    Piotr Ivnovitch entrou, como sempre, incerto quanto ao que ali seria preciso fazer. A nica coisa que ele sabia, que em tais casos nunca faz mal uma pessoa benzer-se. Mas no estava inteiramente seguro sobre se ao faz-lo devia ou no inclinar-se, e por isso optou por uma soluo intermdia: ao entrar no quarto, come-ou a benzer-se e inclinou-se um pouco. Tanto quanto lho permitiam os movimentos das mos e da cabea, ia ao mesmo tempo observando a sala. Dois jovens, que deviam ser sobrinhos, um deles aluno liceal, benzeram--se e saram do quarto. Estava uma senhora idosa, de p, imvel e uma dama com as sobrancelhas erguidas de um modo estranho dizia-lhe qualquer coisa em voz baixa. Um sacristo de sobrecasaca, vigoroso, resoluto, lia qualquer coisa em voz alta com uma expresso que no admitia contradies; Guerssim, o criado, pas-sando em frente de Piotr Ivnovitch em passos ligeiros, espalhava qualquer coisa pelo soalho. Ao ver isto, Piotr Ivnovitch sentiu imediatamente um leve cheiro de cadver em decomposio. Na sua ltima visita a Ivan Ilitch, Piotr Ivnovitch vira aquele homem no escritrio; desempenhava as funes de enfermeiro e Ivan Ilitch gostava especialmente dele. Piotr Ivnovitch continuava

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    a benzer-se e inclinava-se ligeiramente na direco inter-mdia entre a urna, o sacristo e os cones sobre a mesa ao canto. Depois, quando lhe pareceu que esse movi-mento da mo a benzer-se j durara demasiado tempo, parou e ficou a olhar para o morto.

    O morto jazia como sempre jazem os mortos, de um modo especialmente pesado, defunto, com os membros hirtos afundados no acolchoado da urna, a cabea para sempre inclinada na almofada, e mostrando, como sem-pre mostram os mortos, a sua testa amarela como cera com entradas nas tmporas fundas e o nariz saliente, que parecia comprimir o lbio superior. Estava muito mudado, tinha emagrecido ainda mais desde a ltima vez que Piotr Ivnovitch o tinha visto, mas, como todos os mortos, o seu rosto estava mais bonito e principal-mente mais expressivo do que em vida. Tinha uma expresso que dizia que aquilo que havia a fazer estava feito, e feito como devia ser. Alm disso, nessa expres-so havia ainda uma recriminao ou uma advertn-cia aos vivos. Piotr Ivnovitch achou essa advertncia despropositada, ou pelo menos no lhe dizia respeito a ele. Qualquer coisa se lhe tornou desagradvel e por isso voltou a benzer-se pressa, demasiada pressa ao que lhe pareceu, no conforme decncia, voltou-se e caminhou para a porta. Chvarts esperava por ele na sala de entrada, de pernas muito abertas e com as duas mos atrs das costas brincava com a cartola. Um olhar figura jocosa, asseada e elegante de Chvarts tranqui-lizou Piotr Ivnovitch, porque compreendeu que ele estava acima daquelas coisas e no cedia a quaisquer influncias desanimadoras. O aspecto dele, s por si, dizia que aquele incidente da cerimnia fnebre de Ivan Ilitch no era de modo nenhum motivo bastante para infringir a ordem da sesso, por outras palavras, que nada o podia impedir de, naquela noite, baralhar um

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    novo baralho de cartas depois de o abrir, enquanto o criado colocaria quatro velas novas em cima da mesa; na verdade no havia motivo para supor que aquele incidente os pudesse impedir de passar de modo agra-dvel tambm aquela noite. Disse-o num murmrio a Piotr Ivnovitch, propondo-lhe que se encontrassem para uma partida em casa de Fidor Vasslievitch. Mas pelos vistos Piotr Ivnovitch no estava destinado a jogar vint1 naquela noite. Praskvia Fidorovna, uma mulher baixa e gorda, que, apesar de todos os seus esforos, continuava a alargar dos ombros para baixo, vestida de preto, com a cabea coberta por uma renda e com as mesmas sobrancelhas estranhamente arqueadas que a dama que estava em p ao lado do caixo, saiu dos seus aposentos com outras senhoras e, depois de acompanh-las porta do quarto onde estava o defunto, disse:

    A cerimnia vai comear; entrem, por favor.Chvarts, fazendo uma vnia indefinida, ficou parado,

    sem aceitar nem rejeitar esse convite. Praskvia Fi-dorovna, ao reconhecer Piotr Ivnovitch, suspirou, aproximou-se dele, pegou-lhe na mo e disse:

    Sei que o senhor era um verdadeiro amigo de Ivan Ilitch e olhou para ele, esperando uma aco corres-pondente a essas palavras.

    Piotr Ivnovitch sabia que, do mesmo modo que l dentro devia persignar-se, aqui devia apertar-lhe a mo, suspirar e dizer: Acredite! E foi isso que fez. Depois de o fazer, sentiu que o resultado foi o pretendido: ficou comovido e ela ficou comovida.

    Venha enquanto no comeam; preciso de lhe falar disse ela. D-me o brao.

    1 Vint: jogo de cartas semelhante ao whist e ao bridge, tambm whist russo. (N. do T.)

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    Piotr Ivnovitch deu-lhe o brao e dirigiram-se para os aposentos interiores passando ao lado de Chvarts, que piscou tristemente o olho a Piotr Ivnovitch: Ora adeus, vint! No leve a mal, arranjamos outro parceiro. Talvez joguemos a cinco quando ficar livre, dizia o seu olhar jocoso.

    Piotr Ivnovitch soltou um suspiro ainda mais pro-fundo e mais triste, e Praskvia Fidorovna apertou-lhe o brao agradecida. Entrando na sala de estar forrada de cretone cor-de-rosa, iluminada por um candeeiro fosco, sentaram-se mesa: ela num sof, e Piotr Ivno-vitch num tamborete baixo, com as molas estragadas que cediam de modo desigual sob o seu peso. Praskvia Fidorovna quis preveni-lo para que se sentasse noutra cadeira, mas achou que esse aviso no condizia com a sua condio e mudou de ideias. Ao sentar-se naquele tamborete, Piotr Ivnovitch lembrou-se de como Ivan Ilitch tinha decorado aquela sala e se aconselhara com ele acerca daquele mesmo cretone rosa com folhas ver-des. Ao passar ao lado da mesa para se sentar no sof (toda a sala estava cheia de mveis), a viva prendeu a renda da sua mantilha preta no canto entalhado da mesa. Piotr Ivnovitch soergueu-se para a soltar, e as molas do tamborete, libertas do seu peso, agitaram-se e empurraram-no. A viva soltou ela prpria a renda, e Piotr Ivnovitch sentou-se de novo, esmagando debaixo de si o tamborete rebelde. Mas a viva no desprendeu completamente a renda e Piotr Ivnovitch de novo se levantou e de novo o tamborete se rebelou e at rangeu. Quando tudo isto terminou, ela puxou de um lencinho de cambraia limpo e comeou a chorar. Quanto a Piotr Ivnovitch, esfriado pelo episdio da renda e da sua luta com o tamborete, ficou sentado, de cenho franzido. Esta situao embaraosa foi interrompida por Sokolov, o mordomo de Ivan Ilitch, para informar que o lugar

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    escolhido por Praskvia Fidorovna no cemitrio cus-tava duzentos rublos. Ela parou de chorar e, olhando Piotr Ivnovitch com ar de vtima, disse em francs que era muito difcil para ela. Piotr Ivnovitch fez em siln-cio um gesto a expressar a sua inteira convico de que no podia ser de outro modo.

    Faa favor de fumar disse ela com voz magnnima e ao mesmo tempo abatida, e ocupou-se com Sokolov da questo do preo da sepultura. Piotr Ivnovitch, tendo acendido o cigarro, ouvia-a fazer perguntas muito cir-cunstanciadas sobre os diferentes preos do terreno e decidir aquele que se devia adquirir. Depois de tratar do assunto da sepultura, deu ainda instrues acerca do coro. Depois Sokolov saiu.

    Eu prpria trato de tudo disse ela a Piotr Ivnovi-tch, afastando para um lado os lbuns que estavam em cima da mesa; e, notando que a cinza do cigarro amea-ava a mesa, empurrou sem demora um cinzeiro para Piotr Ivnovitch e disse: Acho uma hipocrisia afirmar que a minha dor no me permite ocupar-me de assuntos prticos. Pelo contrrio, se alguma coisa pode, no direi consolar-me mas distrair-me, so os cuidados com ele.

    Puxou de novo o lencinho a preparar-se para chorar, mas de repente, como a dominar-se, abanou-se e come-ou a falar calmamente.

    Mas h uma coisa que quero tratar consigo.Piotr Ivnovitch inclinou-se sem permitir que as

    molas do tamborete, que imediatamente se agitaram debaixo dele, se desconjuntassem.

    Nos ltimos dias ele sofreu horrivelmente. Sofreu muito? perguntou Piotr Ivnovitch. Ah, horrivelmente. No s nos ltimos minutos, mas

    nas ltimas horas, no parou de gritar. Durante trs dias seguidos gritou sem descanso. No consigo compreen-der como suportei aquilo. Ah!, o que eu sofri!

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    Ser possvel que ele estivesse consciente? pergun-tou Piotr Ivnovitch.

    Esteve murmurou ela , at ao ltimo minuto. Despediu-se de ns um quarto de hora antes de morrer e ainda pediu que levssemos Voldia dali para fora.

    Pensar no sofrimento de um homem que conhecia to intimamente, a princpio como um rapazinho alegre, colega de escola, depois como colega adulto, apesar da desagradvel conscincia da afectao, sua e daquela mulher, horrorizou de sbito Piotr Ivnovitch. Viu de novo aquela testa, o nariz que comprimia o lbio e sentiu medo por si.

    Trs dias de horrveis sofrimentos e a morte. Pois isso pode-me acontecer a mim agora, a qualquer momento, pensou, e por instantes sentiu-se apavorado. Mas logo, sem que ele soubesse como, veio em sua ajuda a habitual reflexo de que aquilo tinha acontecido a Ivan Ilitch e no a ele, e que a ele isso no devia e no podia aconte-cer; que estava a ceder a um estado de esprito sombrio, coisa que no devia fazer, como claramente mostrava a expresso de Chvarts. E, depois deste raciocnio, Piotr Ivnovitch acalmou-se e comeou a perguntar com inte-resse os pormenores acerca do falecimento de Ivan Ilitch, como se a morte fosse uma aventura prpria apenas de Ivan Ilitch, mas completamente alheia a ele prprio.

    Depois de muito conversarem sobre os pormenores dos sofrimentos realmente horrveis por que passara Ivan Ilitch (ele soube dos pormenores apenas pelo modo como os sofrimentos de Ivan Ilitch afectaram os nervos de Praskvia Fidorovna), a viva pareceu achar neces-srio passar s coisas prticas.

    Ah, Piotr Ivnovitch, como difcil, como horri-velmente difcil e de novo comeou a chorar.

    Piotr Ivnovitch suspirou e ficou espera de que ela se assoasse. Quando ela acabou de se assoar, ele disse:

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    Acredite-me e de novo ela se ps a falar e disse aquilo que pelos vistos era o principal assunto a tratar com ele; esse assunto consistia na questo de como obter dinheiro do tesouro pblico por motivo da morte do marido. Ela fingia estar a pedir-lhe conselhos acerca da penso; mas ele via que ela j sabia at aos nfimos por-menores coisas que nem mesmo ele sabia: tudo aquilo que era possvel obter do tesouro por motivo daquela morte; mas o que ela queria descobrir era se no seria possvel de algum modo obter ainda mais dinheiro. Piotr Ivnovitch tentou pensar como o conseguir, mas, depois de pensar em vrios meios, e por decncia, criticar o nosso governo pela sua avareza, disse que no achava possvel conseguir mais. Ento ela suspirou e ps-se visivelmente a imaginar um meio para se ver livre do seu visitante. Ele compreendeu isso, apagou o cigarro, levantou-se, apertou-lhe a mo e saiu para a antessala.

    Na sala de jantar, com o relgio de que Ivan Ilitch tanto gostava, comprado numa loja de bricabraque, Piotr Iv-novitch encontrou o sacerdote e algumas pessoas conhe-cidas que tinham vindo assistir cerimnia e viu uma bela jovem, sua conhecida, filha de Ivan Ilitch. Estava toda vestida de negro. A sua cintura, muito fina, parecia mais fina ainda. Tinha um ar sombrio, determinado, quase colrico. Fez uma vnia a Piotr Ivnovitch como se ele fosse culpado de alguma coisa. Atrs dela, com o mesmo ar ofendido, estava um jovem rico, um juiz de instruo conhecido de Piotr Ivnovitch, e que segundo ouvira era o noivo dela. Ele cumprimentou-o tristemente, com uma vnia, e queria passar ao quarto do morto quando, vindo da escada, apareceu o filho de Ivan Ilitch, aluno do liceu, extremamente parecido com o pai. Era o pequeno Ivan Ilitch tal como Piotr Ivnovitch o recordava, quando ambos estudavam Direito. Os seus olhos cho-rosos tinham o ar que costumam ter os olhos dos rapazes

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    viciosos de treze, catorze anos. Ao ver Piotr Ivnovitch, o rapaz franziu o cenho de um modo severo e envergo-nhado. Piotr Ivnovitch inclinou a cabea e entrou no quarto do morto. Comeou a cerimnia velas, gemidos, incenso, lgrimas, soluos. Piotr Ivnovitch estava de p, carrancudo, olhando os ps sua frente. No olhou uma nica vez para o morto e, at ao fim, no cedeu s in-fluncias deprimentes e foi um dos primeiros a sair. Na antessala no havia ningum. Guerssim, o criado, saiu do quarto do morto, remexeu com os seus braos fortes todos os casacos de peles para encontrar o de Piotr Iv-novitch, e entregou-lho.

    Ento, amigo Guerssim? disse Piotr Ivnovitch, para dizer alguma coisa. pena, no ?

    a vontade de Deus. Todos vamos para l disse Guerssim, arreganhado os seus dentes brancos e regu-lares de mujique, e, como um homem no meio de um trabalho intenso, abriu a porta com vivacidade, chamou o cocheiro, ajudou Piotr Ivnovitch a subir e voltou a saltar para o alpendre, como a pensar naquilo que ainda tinha de fazer.

    Piotr Ivnovitch achou especialmente agradvel res-pirar o ar puro depois do cheiro a incenso, a cadver e a fenol.

    Para onde vamos? perguntou o cocheiro. No muito tarde. Ainda vou a casa de Fidor Vas-

    slievitch.E Piotr Ivnovitch l foi. De facto ainda os apanhou

    no final da primeira partida, de modo que lhe foi fcil entrar no jogo como quinto parceiro.