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Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado FECAP - desde 1902 Administração On Line Prática - Pesquisa - Ensino ISSN 1517-7912 Volume 1 - Número 2 (abril/maio/junho - 2000) Página inicial Objetivos Conselho editorial Artigos Submeta um artigo Seus comentários PROGRAMAS DE COMPUTADOR PARA A ANÁLISE QUALITATIVA: O CASO DO QUALPRO Prof. Dr. Daniel Augusto Moreira FEA - USP e FECAP 1. Objetivos do trabalho Pode-se dizer que o uso de software para a análise de dados qualitativos é relativamente recente, datando de meados da década de 80 (ver por exemplo Drass 1980; Seidel e Clark, 1984). No entanto, em 1984, a revista Qualitative Sociology dedicou pela primeira vez um número especial ao assunto [1]. Em 1991, mais um número especial apareceria sobre o mesmo assunto[2]. Nos últimos 20 anos, vem crescendo cada vez mais a divulgação de pacotes de computador auxiliares na pesquisa qualitativa, contando-se hoje cerca de duas ou três dezenas, apenas entre os mais conhecidos. A sigla CAQDAS - Computer Aided Qualitative Data Analysis Software, como é conhecido esse movimento, transformou-se no símbolo de um novo e promissor campo de trabalho e de pesquisa. Não obstante, até mesmo os mais entusiasmados adeptos do uso de programas de computador para a análise qualitativa reconhecem que seu uso ainda é pouco difundido entre os pesquisadores qualitativos (Richards e Richards, 1994). Embora para o Brasil não existam evidências nesse sentido, a própria pesquisa qualitativa em nosso país ainda é objeto de certas desconfianças, mormente aquelas ligadas ao seu distanciamento das normas de trabalho científico das ciências naturais. A literatura sobre análise de dados qualitativos por computador apresenta alternadamente esperanças e temores (Barry, 1998; Kelle, 1997). Entre as esperanças, espera-se que os programas ajudarão a automatizar e tornar mais rápido o processo de codificação de dados,

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Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado

FECAP - desde 1902

Administração On LinePrática - Pesquisa - Ensino

ISSN  1517-7912

Volume 1  -  Número 2(abril/maio/junho -  2000)

Página inicial  Objetivos  Conselho editorial  Artigos  Submeta um artigo  Seus comentários 

 

PROGRAMAS DE COMPUTADOR PARA A ANÁLISE QUALITATIVA: O CASO DO QUALPRO

Prof. Dr. Daniel Augusto Moreira   FEA - USP   e    FECAP

 

1. Objetivos do trabalho

Pode-se dizer que o uso de software para a análise de dados qualitativos é relativamente recente, datando de meados da década de 80 (ver por exemplo Drass 1980; Seidel e Clark, 1984). No entanto, em 1984, a revista Qualitative Sociology dedicou pela primeira vez um número especial ao assunto [1]. Em 1991, mais um número especial apareceria sobre o mesmo assunto[2]. Nos últimos 20 anos, vem crescendo cada vez mais a divulgação de pacotes de computador auxiliares na pesquisa qualitativa, contando-se hoje cerca de duas ou três dezenas, apenas entre os mais conhecidos. A sigla CAQDAS - Computer Aided Qualitative Data Analysis Software, como é conhecido esse movimento, transformou-se no símbolo de um novo e promissor campo de trabalho e de pesquisa.

Não obstante, até mesmo os mais entusiasmados adeptos do uso de programas de computador para a análise qualitativa reconhecem que seu uso ainda é pouco difundido entre os pesquisadores qualitativos (Richards e Richards, 1994). Embora para o Brasil não existam evidências nesse sentido, a própria pesquisa qualitativa em nosso país ainda é objeto de certas desconfianças, mormente aquelas ligadas ao seu distanciamento das normas de trabalho científico das ciências naturais.

A literatura sobre análise de dados qualitativos por computador apresenta alternadamente esperanças e temores (Barry, 1998; Kelle, 1997). Entre as esperanças, espera-se que os programas ajudarão a automatizar e tornar mais rápido o processo de codificação de dados, propiciarão visões mais abrangentes e complexas das relações entre os dados, fornecerão uma estrutura formal para escrever e estocar memorandos para desenvolver a análise e, finalmente, ajudarão o pensamento conceitual e teórico acerca dos dados. Entre as preocupações, contam-se: a eventual distância entre o pesquisador e seus dados, a introdução do viés quantitativo dentro da pesquisa qualitativa, a crescente homogeneidade entre os métodos de análise de dados e o engessamento das análises.

Não vamos nos propor a discutir essas questões no presente trabalho, muito embora sejamos sensíveis a algumas das esperanças e a alguns dos temores. O fato é que a imensa maioria dos pesquisadores qualitativos nem sequer cogita de usar programas de análise qualitativa porque desconhece totalmente suas possibilidades. Em nossos cursos de pós graduação de pesquisa qualitativa, a menção do tema provoca sempre perguntas que revelam esse desconhecimento e

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uma grande curiosidade em relação ao que possam fazer os programas. A pergunta padrão é mais ou menos a seguinte: Afinal de contas, como é que um programa de computador pode empreender uma análise qualitativa? É escusado dizer, essa é uma falsa pergunta, difícil de ser respondida com rapidez. Na verdade, programas de computador nada analisam: quem analisa é o pesquisador, embora dentro de uma moldura tracejada pelo programa.

Este trabalho foi concebido tendo em vista a (falsa) pergunta acima. Em outras palavras, estamos nos dispondo a fornecer uma primeira idéia sobre as possibilidades dos softwares de análise qualitativa. É nossa convicção que isso não pode ser feito em poucas palavras, e que o melhor caminho é através da análise de um programa simples. Nesse sentido, escolhemos para nossa ajuda o software chamado QUALPRO (Versão 4.1 para microcomputadores), que se enquadra numa categoria de programas simples, mas específicos para auxílio na análise qualitativa. Através da demonstração das principais funções do QUALPRO, esperamos mostrar ao pesquisador qualitativo não habituado aos programas de computador, o que estes podem fazer. Há programas mais complexos, com funções mais amplas, é verdade; não obstante, a lógica de trabalho deverá estar compreendida com o entendimento do funcionamento do QUALPRO. Por outro lado, sempre surgem dúvidas quando se vai apresentar as funções e potencialidades de um pacote de computador. A forma tradicional é a de seguir um roteiro do tipo "como está no Manual", tão usado por autores que popularizam em livros os programas de computador mais comuns.

Optamos por um procedimento diferente. Em primeiro lugar, trabalharemos com uma entrevista (ver Anexo) transcrita, como forma de exemplificação, sempre que isso for necessário. Trata-se de uma entrevista com um antigo profissional de contabilidade, agora aposentado, que discorre sobre seus primeiros tempos em São Paulo. É uma entrevista relativamente curta, mas adequada aos nossos propósitos. No QUALPRO, a entrevista foi transformada em um arquivo texto, denominado CONTADOR.TXT. Em segundo lugar, a lógica de apresentação não seguirá os passos do manual do QUALPRO. Procuraremos fazer entender ao pesquisador o que o programa permite fazer, sem preocupação de indicar os passos segundo o manual[3]. Nosso texto, portanto, orienta-se para o entendimento do que o programa pode fornecer como subsídio à análise, mas não dispensa completamente o manual se o pesquisador pretender usar o pacote efetivamente. Na verdade, porém, o manual poderá ser visto sob um ângulo mais favorável (e mais inteligível) após a leitura do trabalho.

O plano do trabalho é o que se segue: no item 2 seguinte, forneceremos alguns poucos conceitos básicos em pesquisa qualitativa, o suficiente para que o leitor entenda o ambiente e as pressuposições fundamentais de trabalho do QUALPRO; no item 3 dar-se-á uma primeira idéia da utilidade do computador para a pesquisa qualitativa, formando um quadro geral onde se encaixam todos os programas dedicados à análise qualitativa; no item 3 será apresentada uma classificação bastante conhecida dos tipos de programas de análise qualitativa, de forma que possamos aí enquadrar o QUALPRO; o item 4 apresenta rapidamente o QUALPRO, fornecendo suas características como programa; os itens 6, 7, 8 e 9 descrevem a forma de entrada de dados e os principais resultados obtidos com o programa; finalmente, no item 10 apresentamos alguns comentários conclusivos.

 

2. Pesquisa qualitativa: conceito básico

Para compreendermos melhor como funciona o QUALPRO, é preciso notar antes de tudo que o programa incide sobre dados colhidos segundo uma certa concepção de pesquisa qualitativa. Por outro lado, a temática da natureza da pesquisa qualitativa

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é extremamente vasta e precisamos nos limitar tão somente ao conceito básico de pesquisa qualitativa, que seja genérico o suficiente para se ater à tradição corrente e, ao mesmo tempo, que permita entender o objeto de trabalho sobre o qual o QUALPRO atua.

Embora o termo "pesquisa qualitativa" cubra um amplo espectro de técnicas de pesquisa, existem algumas características genéricas definidoras deste tipo de investigação (Cassell e Symon, 1994):

a) a pesquisa qualitativa focaliza a interpretação e não a quantificação: em geral, a pesquisa quantitativa segue o chamado modelo hipotético dedutivo, segundo o qual o pesquisador "inventa" hipóteses sobre o fenômeno de interesse, partindo depois para o teste destas hipóteses, através da dedução de suas conseqüências. Se as conseqüências não se verificarem, as hipóteses devem ser ou refeitas ou abandonadas. Diz-se que a pesquisa quantitativa opera no chamado "contexto da verificação" (de hipóteses). Ao contrário, a pesquisa qualitativa opera menos com hipóteses e mais com questões amplas de pesquisa. O caráter é mais de exploração e menos de provas de hipóteses. Diz-se que a pesquisa qualitativa opera preferencialmente no "contexto da descoberta" (descoberta indutiva de relações e processos).

b) a pesquisa qualitativa coloca mais ênfase na subjetividade que na objetividade: este é mais um ponto de distanciamento entre os contextos de trabalho das pesquisas qualitativa e quantitativa. A pesquisa quantitativa, característica das ciências naturais e de uma certa postura de trabalho nas ciências humanas e sociais, permanece dentro de um pretenso quadro de "objetividade", que pressupõe a neutralidade do pesquisador em relação ao objeto da pesquisa e a não intromissão dos métodos de pesquisa nos resultados. Ao contrário, a pesquisa qualitativa reconhece a subjetividade inerente ao processo de pesquisa e abdica, pelo menos parcialmente, da suposta neutralidade científica.

c) a pesquisa qualitativa é flexível em termos de processo: devido ao fato de buscar exploração e entendimento, ao invés de provas de hipóteses, na pesquisa qualitativa o delineamento é mais flexível. Em geral, o pesquisador parte de questões abrangentes de pesquisa, adaptando-se ao processo de pesquisa à medida que o tempo transcorre. Existem "descobertas", "mudanças de percurso", "indagações não planejadas", etc., que virtualmente reconduzem o pesquisador e alteram rumos. É uma concepção de trabalho totalmente diferente, por exemplo, da encontrada na pesquisa experimental ou mesmo nos levantamentos amostrais, onde a pesquisa é planejada cuidadosa e criteriosamente do início ao fim, inclusive no que toca à análise de resultados. Na pesquisa qualitativa a análise dos resultados em geral é concomitante ao próprio processo da pesquisa, exatamente por conta da necessidade de flexibilidade. Neste sentido, a pesquisa qualitativa é mais orientada para o processo que para o resultado.

Amplo da mesma forma que o próprio conceito de pesquisa qualitativa é o conceito de "dado qualitativo". Qualquer informação não numérica pode ser entendida como um dado qualitativo. Em primeiro lugar, temos as palavras oral e escrita, sem dúvida a matéria prima dominante na pesquisa qualitativa. Entrevistas e depoimentos orais estão entre as formas mais comuns de coleta de dados; o uso de documentos como revistas, jornais, atas, diários, etc., também é popular. Além das palavras, podem ser usados como dados qualitativos desenhos, pinturas, fotografias, filmes, vídeos, áudios, trabalhos de arte, etc. Virtualmente não há limites para a gama de materiais possíveis.

Não obstante, a palavra escrita é o objeto básico da grande maioria dos programas de análise qualitativa, inclusive o QUALPRO. Entrevistas e depoimentos orais são transcritos para a palavra escrita para fins de análise.

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Para Tesch (1990), a análise qualitativa tradicional deve ser feita em constante interação com os dados. Costumeiramente, os dados são palavras escritas, obtidas de documentos escritos ou documentos orais que foram previamente transcritos, como entrevistas e depoimentos. Os dados encerram sentidos que devem ser descobertos por meio de uma segmentação. Pedaços de texto com sentido próprio e relevante para o estudo do fenômeno em pauta (unidades de sentido) são destacados e rotulados, num processo chamado de codificação. Esta codificação é o eixo fundamental da pesquisa qualitativa, pois dela nascerão as explicações e o entendimento do fenômeno, bem como a descoberta de eventuais regularidades. Os programas de computador conhecidos como recuperadores e codificadores de texto procuram auxiliar o pesquisador neste trabalho de codificação, facilitando uma série de operações tediosas, principalmente se os dados forem numerosos. O QUALPRO pertence a essa categoria de programas, como será visto mais adiante.

 

3. Utilidades potenciais do computador para a pesquisa qualitativa

Os computadores podem ser de muita utilidade no processo de pesquisa, e não apenas na análise de dados. A lista abaixo ilustra 14 possíveis usos dos computadores(Miles e Huberman, 1994; Weitzman, 1999), variando desde funções simples, que os processadores de texto comuns podem cumprir, até funções sofisticadas, específicas de programas desenvolvidos especialmente para a análise qualitativa:

1) tomar notas durante o trabalho de campo;

2) transcrever notas de campo;

3) editar: corrigir, estender ou revisar notas de campo;

4) codificar: atribuir palavras chaves ou rótulos a segmentos de texto para permitir recuperação posterior;

5) Estocar: guardar textos em bases de dados organizadas;

6) busca e recuperação: localizar segmentos de texto e disponibilizá-los para inspeção;

7) conexão de dados: conectar segmentos de dados uns aos outros para formar categorias, agrupamentos ou redes de informação;

8) escrita de memorandos: escrever comentários reflexivos sobre alguns aspectos dos dados como base para uma análise mais profunda;

9) análise de conteúdo: localizar palavras, frases, caracteres ou combinações entre eles e contar frequências (vide Nota 4);

10) disposição dos dados: colocar dados selecionados ou reduzidos num formato organizado e condensado, como tabelas e matrizes;

11) retirada de conclusões e verificação: ajudando o pesquisador a interpretar os dados dispostos e testar ou confirmar resultados;

12) construção de teoria: desenvolver explanações de resultados coerentes e sistemáticas, bem como testar hipóteses;

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13) mapeamento gráfico: criar diagramas que mostrem os resultados ou teorias;

14) escrita de relatórios: intermediários e finais.

Exatamente por ser bastante genérica, a lista abrange praticamente todas as funções atuais dos pacotes de computador aplicados à análise qualitativa, conforme o leitor poderá verificar no item seguinte.

 

4. Tipos e funções dos programas para análise qualitativa

Weitzman e Miles (1995) argumentam que, na verdade, a maior parte dos programas é uma mistura de tipos genéricos. Dividem os programas nos seguintes tipos: Processadores de texto; recuperadores de texto; gerenciadores de base de textos; programas de recuperação e codificação de textos; construtores de teoria baseada em códigos; construtores de redes conceituais.

Os três primeiros são programas "genéricos" que foram construídos não necessariamente pensando em pesquisadores qualitativos. Vejamos algumas poucas informações sobre cada um dos tipos.

Processadores de texto

Com a popularização dos microcomputadores, os processadores de texto são hoje de uso comum. Sua função básica é a produção de texto e a sua revisão. No caso de pesquisa qualitativa, são úteis para a transcrição de entrevistas orais, para a redação de notas de campo, memorandos, etc. A forma mais usual de produzir um texto para análise em computador é utilizar um arquivo produzido inicialmente num processador de texto (Como o Word for Windows, por exemplo). Quando o volume de texto produzido pelo pesquisador é pequeno, o processador de texto pode ser usado e resolver todos os problemas, já que a maioria das operações feitas sobre os textos será manual, o que não terá problemas com pouco volume. Para volumes intermediários ou grandes de texto, os processadores de texto, mesmo tendo algumas funções de certa utilidade para o pesquisador qualitativo, serão geralmente insuficientes.

Recuperadores de texto

Dado um ou mais textos, os recuperadores de texto são projetados para encontrar todas as espécies de palavras, combinação de palavras, frases, caracteres, ou quaisquer combinações entre todos eles. Todo recuperador de texto pode realizar operações com o material recuperado, tal como distribuir o que foi encontrado em novos arquivos. Muitos dos chamados programas de análise de conteúdo[4] podem ser vistos como recuperadores de texto (Alexa, 1997; Alexa e Zuell, 1999).

Gerenciadores de bases de textos

Em relação aos recuperadores de texto, os gerenciadores são mais completos nas funções de organizar, alocar e construir subconjuntos dos textos, de maneira automática. Após isso, segue-se a função de busca e recuperação, onde os gerenciadores buscam palavras, frases, anotações, caracteres e combinações, etc. Podem nessa função apresentar melhor desempenho que os próprios recuperadores de texto.

Programas de recuperação e codificação de texto

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Esta é a primeira categoria de programas considerados verdadeiramente como software para pesquisa qualitativa. Segundo Weitzman e Miles (1995, página 17) eles são freqüentemente desenvolvidos por pesquisadores qualitativos, enquanto que programas mais complexos (construtores de teorias e de redes conceituais) são via de regra fornecidos por empresas especializadas. Os programas de recuperação e codificação são especializados em dividir o texto em segmentos, apondo depois códigos a esses segmentos. Há várias funções que podem ser cumpridas, dependendo do particular programa: marcação de texto, cópia, corte e colagem, distribuição e alocação de texto, formação de subconjuntos de textos segundo certas regras, etc. Em suma, fazem o que foi descrito anteriormente como funções manuais tradicionais do pesquisador qualitativo sobre os seus dados. Mais adiante, conforme proposto, estaremos levando ao leitor o funcionamento do QUALPRO, um dos programas de recuperação e codificação de texto mais populares, sendo o objetivo deste trabalho a demonstração de quanto se pode obter com a utilização de programas deste tipo.

Construtores de teoria

Estes programas vão um passo além dos programas de recuperação e codificação de textos, pois ajudam o pesquisador a fazer conexões entre os códigos que foram apostos aos textos. Isso permite formular proposições que implicam uma estrutura conceitual concordante com os dados; os construtores de teoria também permitem o teste destas proposições (se são válidas ou não). Alguns desses programas são melhores até que os recuperadores de texto e codificadores nessas mesmas funções; outros podem recuperar e codificar outros dados além de texto: filmes, vídeos e áudios.

Construtores de redes conceituais

Funcionam como os construtores de teoria, mas adicionalmente permitem que o pesquisador construa redes gráficas mostrando relações entre as variáveis. Estas são visualizadas como nós da rede, ligadas a outros nós por meio de linhas ou flechas que representam determinados tipos de relação (pertence a, conduz a, é uma espécie de, etc.).

 

5. Sobre o QUALPRO

Vejamos algumas informações gerais sobre o QUALPRO. O programa foi desenvolvido pelo Dr. Bernard I. Blackman, que também é autor do seu manual (Blackman, 1996). A comercialização é feita pela Impulse Development Company, de Oakland, Califórnia. Estaremos usando a versão 4.1 para microcomputador, versão esta que é resultado de melhorias no produto ao longo de aproximadamente 10 anos. Do ponto de vista da classificação de Weitzman e Miles, o QUALPRO identifica-se como um programa de recuperação e codificação de texto, ou seja, um programa efetivamente projetado para análise qualitativa. O QUALPRO roda em ambiente DOS em microcomputadores com processadores 286 e acima. Pode operar com o Windows 3.0 ou acima, como uma aplicação não-Windows. Pode rodar em tela cheia ou em uma janela, o que permite cortes e colagens de textos entre os próprios arquivos do QUALPRO ou entre estes e outras aplicações.

 

6. Acesso ao QUALPRO

Partamos da suposição que o leitor, seguindo as instruções que constam no Manual do QUALPRO, procedeu à instalação do programa no Hard Disk. Quando o QUALPRO

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é instalado no Hard Disk (digamos, o drive C) cria-se um diretório chamado CP. O programa trabalha em ambiente DOS. O Menu de Acesso (Access Shell) pode ser aberto seja clicando duas vezes no ícone QP (a partir do ambiente Windows), seja em ambiente DOS, quando no diretório CP, executando o programa QP.EXE:

C:\CP\QP (Enter)

O Menu de Acesso é a porta de entrada para o QUALPRO. Esse menu apresenta 12 opções para o usuário, as quais permitem o acesso a ferramentas diferentes, que poderão ser usadas em diversos momentos do trabalho do pesquisador. A escolha de uma opção qualquer pode ser feita clicando-se a letra destacada em cada opção, ou meramente movendo o cursor até a opção desejada e clicando Enter.

Vamos listar as 12 opções, embora para o momento seu sentido nem sempre esteja claro para o leitor:

1. ABOUT : Fornece informações gerais sobre o QUALPRO

2. FREQ: Sumaria freqüências de códigos estocados num arquivo criado pelo QUALPRO

3. HELP: Ajuda on line

4. CROSS-TAB: Cria uma tabela de freqüências de códigos por arquivo codificado

5. QUALPRO: Entrada para o programa "básico"

6. RELIABILITY: Computa a confiabilidade inter-codificadores para dois codificadores diferentes

7. STRIP A FILE: Converte um arquivo gerado por um processador de texto em arquivo texto (caracteres ASCII)

8. SEARCH: Cria subgrupos de arquivos com características escolhidas pelo pesquisador

9. SUMMARY: Coloca a lista de códigos em ordem alfabética

10. UNCODED: Encontra segmentos de texto não codificados

11. DOS Acess: Acesso ao DOS; digitando-se EXIT volta-se ao Menu de Acesso

12. QUIT: Permite deixar o Menu de Acesso

Infelizmente, o Menu de Acesso não permite visualizar imediatamente a lógica de funcionamento do programa e nem mesmo as suas potencialidades. Entretanto, é possível ir por partes de forma que o leitor possa ter uma visão clara do funcionamento do programa. Em primeiro lugar, há três opções auto explicativas: 1. ABOUT; 3. HELP e 12. QUIT. A opção 11. DOS Access é importante se o usuário quiser rodar os programas diretamente a partir do DOS, o que é feito por aqueles já com alguma prática no programa. Deixando de lado por ora a opção 5. QUALPRO, o manual chama as outras sete restantes de "Ferramentas de Produtividade", ou Productivity Tools. Esse nome é muito inapropriado, em primeiro lugar porque as opções assim denominadas estão longe de ter a mesma importância para o pesquisador. Além disso, o rótulo dá a entender que essas opções fornecerão resultados avançados para o pesquisador, o que não é verdade para todas. O que é

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importante notar neste momento é que as ferramentas de produtividade podem ser todas elas rodadas a partir do DOS. Neste ponto, podemos citar mais um detalhe importante: na verdade, o manual do programa comunica ao usuário que as ferramentas de produtividade são na verdade 8. Há uma opção que não está presente no Menu de Acesso e só pode ser obtida via rodada no DOS. É a opção VIEW que, executada, permite visualizar o arquivo pedido no formato texto.

Como funciona realmente o programa? Na verdade, o Menu de Acesso provê a opção 5. QUALPRO, que é a opção de entrada no programa. Essa opção é a chave que abre a porta do programa, e por onde o pesquisador via começar. Entrando nessa opção, vai-se encontrar outros menus, que permitirão um conjunto de operações nos arquivos de pesquisa. O Menu de Acesso não é muito eficaz, pois coloca todas as suas opções de uma só vez, confundindo o usuário. Para facilitar o entendimento, vamos dividir as explicações que se seguem em 3 segmentos.

a) entrada de dados no QUALPRO;

b) resultados simples oferecidos pelo QUALPRO;

c) resultados mais elaborados oferecidos pelo QUALPRO (na verdade, algumas das chamadas ferramentas de produtividade).

Os dois primeiros segmentos operam apenas com o programa básico, ou seja, com a opção 5. QUALPRO do Menu de Acesso. Já o último segmento opera ou com o Menu de Acesso ou diretamente no ambiente DOS.

 

7. Características gerais e entrada de dados no QUALPRO

Todas as operações descritas a seguir são efetuadas por meio dos menus obtidos com a opção 5. QUALPRO no Menu de Acesso. A única exceção é a operação de transformação de um arquivo gerado por um processador de texto para o formato txt (caracteres ASCII), que pode ser realizada com a opção 7. STRIP A FILE do Menu de Acesso. Para facilitar a visualização de resultados, usaremos o arquivo CONTADOR.TXT, que aparece no Anexo, no formato doc. Este arquivo é a fala de um contador aposentado, vindo do interior do estado para a cidade de São Paulo na década de 40. Na entrevista, ele fala sobre seus primeiros tempos em São Paulo.

O QUALPRO trabalha com textos que foram gerados durante a pesquisa. Mais especificamente, reconhecem-se os seguintes tipos de texto: Contato; Diário; Documento; Entrevista; Memo; Observação; Registro; Forma livre; Nome apenas. Os textos mais comuns são provavelmente as transcrições de entrevistas e os memos dos pesquisadores. De qualquer forma, os nove tipos acima englobam quaisquer possibilidades.

Vamos imaginar que o nosso pesquisador possui um certo número de textos sobre os quais queira apor códigos. Inicialmente, o programa permite que o pesquisador crie um rótulo para o conjunto de textos, rótulo chamado de base de dados. A base de dados deve ter um nome. Os títulos dos arquivos constantes da base de dados ficam armazenados num arquivo gerado automaticamente pelo programa, chamado CATALOG.DAT.

Criada uma base de dados para abrigar os textos do pesquisador, é necessário colocar os textos no QUALPRO. Isso pode ser feito escrevendo-se o texto, diretamente no programa, ou então importando o texto. Importar é uma operação simples, de transferir o texto de um arquivo onde ele originalmente está, para o

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QUALPRO. Há porém uma restrição importante: os textos devem estar no formato txt, ou seja, em caracteres padrão ASCII. Como usualmente os textos são escritos com o auxílio de um processador de texto (Windows Word, por exemplo), é necessário transformá-los no formato *.txt. O próprio Word, por exemplo, faz esse serviço automaticamente (usando o comando Arquivo, Salvar como Apenas texto), mas, segundo nossa experiência, com resultados não satisfatórios. No Menu de Acesso, o usuário encontra a opção 7. STRIP A FILE, ligada ao subprograma chamado STRIP.EXE, que pode ser rodado via DOS para a transformação. Outra forma de usar o STRIP é diretamente via Menu de Acesso, usando a letra chave ou movendo o cursor sobre a opção e clicando Enter. Antes de usar o STRIP, porém, o pesquisador pode trabalhar sobre o texto preliminarmente, usando os recursos do processador de texto, para eliminar preventivamente os acentos, como á, é, í, ó, ú, à, â, ê, ô, ã, õ, ou o ç. O programa permite colocar em cada texto um cabeçalho (Heading), que definirá o tipo de texto (Diário, Entrevista, Memo, etc.).

O QUALPRO oferece a possibilidade de dividir o texto em blocos, ou seja, pedaços com sentido, tipo parágrafo, página, texto inteiro, etc. Isso é útil em algumas situações, como por exemplo quando se quer separar, numa entrevista, as perguntas do entrevistador das respostas do entrevistado. Outra coisa que o programa pode fazer é colocar números nas linhas do texto. Isto é particularmente útil na hora de codificar o texto, devido às características dessa operação no QUALPRO.

Uma vez criada a base de dados e importados (ou digitados diretamente) os arquivos, devidamente colocados em formato ASCII, cada um com seu cabeçalho, é chegada a hora de codificar cada um deles. Esta é a função operacional básica do QUALPRO, que justifica que ele seja conhecido como um programa do tipo "code and retrieve". Para codificar um dado texto, é conveniente que se tenha à mão uma cópia do texto, com numeração das linhas. Para cada código, deve-se identificar o número da linha inicial (onde começa o pedaço de texto com o código) e o número da linha final. O programa permite colocar o código na seguinte forma:

(nome do código), (número da linha inicial), (número da linha final).

Assim, por exemplo, se um dado trecho que se inicia na linha 45 e termina na linha 52 puder ser rotulado com o código "Família", escrever-se-á:

Família, 45, 52

O programa permite que os códigos sejam colocados bloco a bloco.

Assim que termina a codificação, pode-se passar aos resultados oferecidos pelo QUALPRO. É aqui que residem as vantagens do programa em relação ao trabalho manual. Diversas funções que seriam demoradas manualmente agora ficam aceleradas. Reparar que até aqui o trabalho praticamente não se altera em relação às opções manuais. Se fosse trabalhar manualmente, o pesquisador deveria agora tirar várias cópias dos textos, de forma a manipular os códigos e trechos de texto com cola e tesoura.

 

8. Resultados simples oferecidos pelo QUALPRO

Esses resultados também são obtidos com a aplicação dos menus da opção 5. QUALPRO. Derivam diretamente dos dados colocados no programa como descrito anteriormente. Os principais são os seguintes:

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I. Recuperação das informações básicas do texto: pode-se recuperar o texto, impresso opcionalmente com números em ambas as margens, que ajudarão o pesquisador a apor os códigos. Abaixo, na Figura 1, reproduzimos uma parte do arquivo CONTADOR.TXT.

 

Figura 1. Parte do arquivo CONTADOR.TXT

II. Cabeçalho do texto: pode ser recuperado o cabeçalho (Heading) do texto, conforme mostrado abaixo para o arquivo CONTADOR.TXT na Figura 2.

Figura 2. Cabeçalho para o arquivo CONTADOR.TXT

III. Informações sobre os códigos: o programa permite dispor o texto com os códigos que foram apostos, bloco a bloco, inclusive informando os códigos com ocorrência conjunta. O texto contido no arquivo CONTADOR.TXT foi codificado, encontrando-se ao todo 9 códigos. Os códigos, suas linhas inicial e final, bem como os códigos que ocorrem conjuntamente, estão mostrados abaixo. Como o texto é longo para uma total reprodução, mostramos apenas uma parte, na Figura 3 abaixo, que deverá ser suficiente para o entendimento da mecânica de exibição dos códigos.

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Figura 3. Visualização dos códigos para uma parte do arquivo CONTADOR.TXT

IV. Freqüência de comparecimento dos códigos: o programa dá a freqüência com que cada código comparece no texto. Estas freqüências devem ser salvadas pelo usuário em um arquivo nomeado pelo QUALPRO como (nome do arquivo).FREQ. É importante gerar este arquivo, pois será a partir dele que será acionada a opção 2. FREQ do Menu de Acesso. Abaixo na Figura 4 fornecemos os códigos usados no arquivo CONTADOR.TXT e suas freqüências.

 

 

Figura 4. Freqüência dos códigos para o arquivo CONTADOR.TXT

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9. Resultados especiais oferecidos pelo QUALPRO (Ferramentas de Produtividade)

Os resultados especiais do QUALPRO são encontrados sob o rótulo de "ferramentas de produtividade" (productivity tools). São resultados que vão além da mera apresentação do que foi colocado no programa. As ferramentas de produtividade aparecem como opções no Menu de Acesso (Access Shell), exceto a opção VIEW, que deve ser acessada via DOS. Abaixo, no Quadro 1 são listadas as ferramentas da forma como aparecem no Menu de Acesso (mais a ferramenta VIEW) e o nome pelo qual podem ser rodadas via DOS. É claro que, exceto para a ferramenta VIEW, todas as outras podem ser acessadas diretamente pelo Menu de Acesso, da forma já comentada. No caso de se usar o ambiente DOS, para se rodar, por exemplo, a ferramenta SUMMARY, deve-se digitar C:\CP\SUM (Enter), e assim por diante.

Quadro 1. Ferramentas de produtividade

Ferramenta Descrição Nome DOS

2. FREQ Freqüências dos códigos FREQ

4. CROSS TAB Tabela de dupla entrada código/arquivo

TAB

6. RELIABILITY Confiabilidade intercodificadores ICR

7. STRIP A FILE Conversão de arquivo para txt STRIP

8. SEARCH Seleciona sub grupos SEARCH

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9. SUMMARY Lista códigos em ordem alfabética SUM

10. UNCODED Identifica texto não codificado UNCODED

VIEW Mostra arquivos em formato txt VIEW

 

Como referimos anteriormente, nem todas as ferramentas de produtividade tem a mesma importância para o pesquisador. Podemos, portanto, discorrer apenas ligeiramente sobre algumas delas, detendo-nos nas mais importantes.

A rigor, a opção 7. STRIP A FILE não deveria constar como ferramenta de produtividade, pois sua função, já comentada em outra oportunidade, é de apenas converter um arquivo gerado por um processador de texto em arquivo no formato ASCII. Trata-se de uma função de introdução de dados, e não de resultados a partir dos dados. Por seu lado, VIEW também é uma função tipicamente auxiliar; ela permite visualizar qualquer texto em formato ASCII, e não fornece resultados. Dificilmente poderíamos chamá-la de ferramenta de produtividade.

E quanto às seis opções restantes? É o que veremos a seguir.

Opção 2.FREQ

Esta opção fornece a lista de códigos (uma segunda opção, se comparada com a Figura 4) em cada um dos textos do pesquisador, seguida pela freqüência dos códigos. Fornece também uma tabela resumo, como se pode ver abaixo na Figura 5 para o texto codificado CONTADOR.TXT.

Figura 5. Lista de freqüência de códigos para o arquivo CONTADOR.TXT

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Na tabela sumário, a data representa a data em que o resultado foi criado, neste caso em 06/07/00. Input File representa o arquivo criado pelo QUALPRO e sobre o qual a opção trabalhou. Unique Codenames é o total de códigos criados. Total Codenames é o número total de vezes em que esses códigos são encontrados. Total Frequencies é a freqüência total de todos os códigos. Formatted File Name é o arquivo criado pelo QUALPRO a partir do qual as tabelas acima foram geradas.

Opção 4. CROSS-TAB

A nosso ver, esta é uma das mais interessantes opções do QUALPRO. O que se obtém com ela é uma tabela de dupla entrada, com os códigos nas linhas e os textos do pesquisador nas colunas. Um exemplo real exigiria que tivéssemos pelo menos dois textos em que trabalhar. Hipoteticamente, entretanto, e supondo que temos 4 códigos em 3 arquivos do pesquisador, a tabela gerada tem o aspecto da Tabela 1 abaixo, onde as células contém a freqüência (hipotética) com que cada código compareceria em cada arquivo:

Tabela 1. Aspecto da tabela obtida com a opção CROSS-TAB

 Arquivo 1 Arquivo 2 Arquivo 3

Código 1 1 0 0

Código 2 3 4 2

Código 3 1 1 1

Código 4 0 0 1

A grande utilidade da tabela é a de mostrar que alguns códigos ou temáticas existem em todos os textos. Este resultado pode mostrar que certas essências ou temas são comuns pelo menos à maioria dos textos (não esqueçamos que os textos geralmente representam a fala dos sujeitos). Em pesquisas qualitativas ou fenomenológicas, esta constância indica as temáticas procuradas, ou seja, as essências do fenômeno em estudo.

Opção 6. RELIABILITY

O resultado mais importante dado por esta opção é a chamada "confiabilidade intercodificadores" (intercoder reliability), que se obtém quando dois codificadores independentes codificam o mesmo texto. É possível calcular um índice numérico que mede a concordância entre os dois codificadores, chamado Pi de Scott. Há também outros resultados que a opção oferece, quais sejam, a Matriz de Confusão e a Tabela de Concordâncias e Discordâncias.

Qual é a importância dessa opção? Evidentemente, essa importância deve residir no fato de se precisar comparar codificações feitas por pessoas diferentes. Isso pode ser útil, em princípio, em situações de treinamento, quando a grande massa de dados irá forçar a que vários codificadores trabalhem partes diferentes do

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material. Nessas circunstâncias, é preciso assegurar de alguma forma a concordância entre os codificadores, o que só pode ser feito através de treinamento específico.

Opção 8. SEARCH

Tal como acontecia com a opção anterior (Opção 6. RELIABILITY), também esta Opção 8. SEARCH parece ser útil com grandes massas de dados. A opção trabalha sobre os cabeçalhos dos textos, que foram anteriormente preparados pelo pesquisador, buscando textos que apresentem uma dada palavra chave ou uma combinação delas (usando os operadores booleanos and, or e not. Os textos assim selecionados são estocados em outros arquivos do tipo CATALOG, podendo ser trabalhados independentemente pelo QUALPRO. Desta forma, a função SEARCH na verdade permite obter partições da amostra, definidas segundo particularidades de interesse. É possível, pela análise cuidadosa de cada partição, testar eventuais hipóteses ou levantar regularidades. Testes estatísticos sobre o comportamento de variáveis diversas em relação às partições escolhidas podem ser efetuados. Quando aumenta o volume de texto e/ou a diversidade nas possíveis partições na amostra original, também aumentam tanto a utilidade como a possibilidade de aplicação da opção SEARCH.

Opção 9. SUMMARY

Esta opção fornece os códigos, em ordem alfabética dos arquivos (textos). Além de uma lista de sumários de códigos, a opção fornece também uma tabela resumo, de fácil compreensão, como mostrado abaixo para o arquivo CONTADOR. A maior novidade em relação à listagem simples de códigos, como se pode ver abaixo na Figura 6 é o fornecimento da linha de início e de fim de cada código.

Figura 6. Lista de códigos de acordo com a opção SUMMARY

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Opção 10. UNCODED

Esta opção fornece as linhas não codificadas de todos os arquivos (textos) do CATALOG, o que pode ser útil para uma conferência eventual sobre falhas na codificação.

10. Considerações finais

Esperamos que as informações aqui contidas ajudem o pesquisador não acostumado a programas de análise qualitativa a ter uma primeira compreensão das possibilidades desse tipo de ferramenta. O QUALPRO, que escolhemos para essa tarefa, é considerado um programa simples, embora todos saibamos que essa qualificação pode ser bastante enganosa. A linguagem do manual é simples, embora a lógica de apresentação das funções do programa não o seja sempre. Mesmo tendo uma linguagem acessível, o manual do QUALPRO, no afã de defender o programa, apresenta algumas informações excessivamente otimistas, como por exemplo: "A experiência também sugere que usar o QUALPRO pode contribuir para o entendimento do (pesquisador) novato acerca de métodos qualitativos, desde que o QUALPRO provê um completo quadro geral para a organização e manipulação de dados qualitativos e para a condução de pesquisa qualitativa." (Blackman, 1996, página 18). É difícil aceitar que um programa de computador possa ter tal influência sobre esse tal aprendizado, que requer sensibilidade, cultura e prática. É querer mecanizar excessivamente a pesquisa qualitativa, risco do qual muitos pesquisadores alertam aos usuários dos pacotes.

Polêmicas à parte, deve ter ficado claro ao leitor que existem vantagens sensíveis no manuseio dos dados, especialmente se forem volumosos. O programa pode ajudar o pesquisador nas operações de manuseio de arquivos e na exposição de regularidades e características dos dados que seriam difíceis de serem percebidas sem o seu uso.

A maioria dos programas opera com textos, que podem ter sido obtidos diretamente nessa forma, como artigos, documentos escritos e matérias de jornais e revistas "escaneados", bem como de transcrição de entrevistas e depoimentos. No caso específico do QUALPRO, esses textos devem compor em arquivos em formato ASCII. Várias operações são possíveis com os textos, mas tudo começa com a codificação feita pelo pesquisador. Neste sentido, não há programa de computador que "faça a análise qualitativa". Verdadeiramente, os programas ajudam no manuseio dos dados, de muitas formas, mais úteis ou menos úteis. O fato de que os mais entusiasmados defensores dos softwares qualitativos reconheçam que poucos pesquisadores usam essas ferramentas acena de imediato para a sua dificuldade. Nem todos sentem-se à vontade com o computador, principalmente se tiverem que lidar com programas mais ou menos sofisticados. O fato de existirem até cursos de pós graduação em torno de pacotes como o NUDist parece indicar que algum tempo mais deverá se passar antes que tais programas se tornem populares no real sentido da palavra.

 

BIBLIOGRAFIA

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Notas:

[1]Conrad, P.; Reinharz, S. (eds) (1984). Computers and Qualitative Data. (Special issue). Qualitative Sociology, 7(1-2).

[2] Tesch, Renata (ed.) (1991). Computers and qualitative data II. (Special issue, parts 1,2). Qualitative Sociology, 14 (3,4).

[3] O manual do QUALPRO é de entendimento fácil, se considerado fracionadamente. Sob o ponto de vista de uma lógica geral de apresentação, a nosso ver deixa a desejar. Ver Blackman, 1996.

[4] A análise de conteúdo, um método de pesquisa popularizado durante a Segunda Guerra Mundial, busca descrever sistematicamente a forma e o conteúdo de material escrito e falado. Considerado geralmente uma abordagem do tipo positivista, é aplicada na seguinte seqüência: em primeiro lugar, o pesquisador desenvolve um esquema de codificação, codifica o texto, calcula freqüências ou porcentagens, e finalmente conduz testes de hipóteses (Lacity e Janson, 1994). Ver também Krippendorff, 1980 e Sommer e Sommer, 1997 (especialmente Capítulo 11).

 

ANEXO: TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA - ARQUIVO CONTADOR

(Observação: Tércio, o entrevistado, é um contador aposentado residente em São Paulo, com 73 anos de idade à época da entrevista, em 1999. Foi-lhe pedido que relatasse seus primeiros tempos em São Paulo, após chegar de sua cidade natal - Bauru. Perguntas intermediárias, de mero auxílio ao entrevistado, foram retiradas da transcrição.)

 

Vim para São Paulo em 1942, acho que em Outubro ou Setembro, não estou bem certo. Sei que era quase no fim do ano, porque minha mãe pediu muito que eu esperasse o Natal. Para dizer a verdade, ela não queria que eu viesse de jeito nenhum. Chorou muito. Meu pai, não, foi mais durão, mas também não queria. Ninguém queria, nem sei se eu mesmo queria. Não era fácil largar todo mundo, a família, os amigos, a namorada, a turma lá da Praça Rui Barbosa. Mas, o senhor sabe, não tinha jeito. Um primo mais velho da minha mãe tinha me arrumado o emprego. Era para aquele momento. Ou pega ou larga, porque era numa banca do Mercado Municipal, na banca de um português e do irmão dele. O irmão tinha voltado para Portugal e o português que ficou estava se matando de trabalhar. Precisava de alguém de confiança. Então o primo da minha mãe, que era amigo desse português, disse que eu era de confiança, gente boa do interior, sem malícia, o senhor sabe. E ele mandou eu ir depressa, no mesmo dia, sei lá, na semana seguinte, que o emprego era meu. Eu tinha que ir, porque em Bauru a barra estava pesada. Meu pai ganhava pouco e havia muito pouco emprego. Para ajudar, só saindo de lá.

Cheguei num domingo, de trem, porque naquele tempo só tinha trem, nem ônibus tinha. Muito menos avião. O trem demorava mais de 7 horas para chegar. Saí de Bauru lá pelas 11 e meia da noite e fui chegar em São Paulo às 7 da manhã. O

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primo da minha mãe já estava me esperando na Estação da Luz. Dali fomos direto para o mercado, para eu conhecer o português. No domingo ele também trabalhava. Botei a mala num canto e já comecei. Ali, na hora, porque não tinha essa coisa de ficar tratando muito tempo. Só depois de muitos meses é que tive a carteira assinada. Mas já comecei a trabalhar ali mesmo, chegando do interior. Não sabia nada no começo, era uma barraca de frutas e legumes. Com o tempo, aprendi tudo e gostei da coisa. Gostava de tratar bem os fregueses, queria ajudar. Tinha gente que entendia mesmo, e tinha outros que só fingiam. Muita mulher entendia, mas algumas eram nó cego. E eu ajudava. Se escolhiam coisa que não estava boa, eu aconselhava a trocar. Se uma fruta estava cara, eu dizia e mandava comprar outra. O português brigava comigo, mas no fundo ele gostava porque eu era honesto. Se era honesto com os fregueses que não conhecia, era honesto com ele também. Eu morria de medo de que ele achasse que eu não era honesto, por causa do primo da minha mãe. Eu sabia que lá em Bauru eles faziam força para tudo dar certo. A vida estava dura, mas tinha melhorado, porque de vez em quando eu mandava algum dinheiro. Não dava para mandar muito, porque eu comecei a estudar. O português dava uma força, me liberando de trabalho extra. Então eu mandava o que podia, que já ajudava um pouco. Minha irmã menor estava no grupo escolar Lourenço Filho, que era muito bom. Meu irmão já fazia o ginásio no ginásio do estado. Eram muito novos para trabalhar. Eu fui engraxate, mas combinei com meu pai que o mano não seria. A gente tem de dar a mão um para o outro, o senhor não acha? Mais tarde, muitos anos depois, o mano acabou me ajudando também. A gente ainda se quer muito.

Eu não me divertia muito, não. Primeiro, que o dinheiro era pouco, como eu disse, e tinha de mandar para casa. Segundo, que eu estudava e precisava comprar livros e pagar a escola. Fazia Contabilidade na Álvares Penteado, que existe até hoje. Uma escola boa, muito conceituada. Até hoje, quando passo no Largo São Francisco, me dá um aperto no coração. Muita saudade, dos professores, dos amigos, da Igreja de São Francisco. Quando podia, eu ia mais cedo para rezar para meu pessoal. Namorada eu não tinha, porque não dava tempo. Farra era difícil e bebida eu nunca gostei. Eu gostava de ir ao Ornabi, um sebo lá do centro, que ainda existe. Conversava com o dono, que era português como meu patrão. Ele tinha dó porque eu gostava de livros mas não tinha dinheiro, e então me vendia barato. Eu gostava de poesia: Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, aqui entre os brasileiros. Guerra Junqueiro dos portugueses. Lia muito, nas horas em que a barraca ficava mais calma. Gostava também de romances. Deixa eu ver, isso mesmo, Erich Marie Remarque, o senhor conhece? O nome parece francês, mas era alemão. Contra a guerra. Eu lia. Nada de novo no front. Três Camaradas. Arco do Triunfo. Fui ver o filme do Arco do Triunfo, com o Frederich March, que acho que não é do seu tempo. Escrevi ao meu pai e minha mãe para que não perdessem o filme quando passasse em Bauru. Eles foram e gostaram também.

No ano que a guerra acabou, aconteceu uma coisa chata lá no Mercado. Sumiu um dinheiro alto da barraca do português, não sei dizer quanto, porque o dinheiro mudou muito e a gente se perde. Não sei quantos mil réis. Só sei que era muito, porque o patrão tinha um costume, só depositava dinheiro no banco duas ou três vezes por mês. Então era a féria de uma semana ou mais. E sumiu. Ele tinha um cofrinho, que tinha uma combinação que eu fiz questão de não saber. Quando era para por dinheiro, eu pedia para ele abrir e virava a cara. Ele dizia que não precisava aquilo, mas precisava sim. Porque quando o dinheiro sumiu, ele não disse nada, mas eu sabia que ele suspeitava de mim. E eu não tinha culpa. O problema é que era só a gente, como o dinheiro podia ter sumido com o cofre fechado. Eu disse: "Seu Olegário, eu não sei abrir o cofre. Será que o senhor não levou o dinheiro para outro lugar?" Ele dizia que não, e eu sabia que ele tinha medo de ter esquecido de ter fechado o cofre. Fiquei muito angustiado. Ele não me acusava, mas me olhava esquisito de vez em quando. Num fim de semana, fui visitar o primo da minha mãe e contei a história. Antes eu que o português. Ele também não gostou, mas prometeu que ia falar com o português. Eu tinha medo que a minha

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mãe soubesse. E o meu pai. Eles iam ficar num desespero danado. E o senhor sabe o que aconteceu? O português lembrou que o sobrinho dele (filho daquele irmão que tinha voltado para Portugal) pediu um dinheiro emprestado quando eu não estava. Ele veio quando eu tinha ido para a Álvares, então eu não sabia que ele tinha vindo. O português emprestou o dinheiro e esqueceu. Só fiquei sabendo porque o primo da minha mãe foi falar com o português, alguns dias depois que eu falei com ele. Aí então o português tinha lembrado, ou o sobrinho tinha alertado ele, sei lá. Ele falou para o meu primo que nunca tinha me acusado. É verdade, não tinha. Mas a gente fica apavorado com essas coisas, achando que todo mundo está te olhando torto.

Logo que eu cheguei, o primo da minha mãe queria que eu fosse morar com ele, com a família dele. Achei que era incomodar muito, agradeci e peguei uma pensãozinha no Brás. Naquele tempo o Brás era um bairro bom, ainda não tinha tanto comércio, que agora nem comércio tem. Está acabando. Mas naquele tempo era bom. Eu lembro que a dona era uma nordestina muito chegada em limpeza. Dona Doca, era isso. Dona Doca, não sei o nome mesmo, só Doca. Muito boa pessoa. Limpa, exigente, mas de um coração de ouro. Mãe para quem não tinha e tia para quem tinha. Morreu em 1968, e foi enterrada como indigente. Só fiquei sabendo uns dois anos depois, senão teria ajudado. Gostava muito da Dona Doca. A pensão era modesta, mas boa. Comida de boa qualidade, cama limpa, café da manhã. Um bolo de vez em quando. Eu trazia frutas que o português me dava. Morei ali até depois de formado. Acho que até 1948 ou 1949. O dinheiro era pouco, mas dava para os livros e o cinema. Aos domingos, o cinema com o pessoal da escola ou da pensão. Havia um que estudava Engenharia na Poli, o Ernesto, que já morreu, num acidente de estrada. Outro, o Luigi, um italiano, trabalhava na estrada de ferro. Esse eu sei que está vivo, mas não vi mais. A última vez que o vi, ainda morava no Brás. Pois é, essa turma costumava sentar na frente da pensão e bater papo. Dá muita saudade, muitos morreram, outros sumiram, alguns se viraram bem, outros não. A vida é isso, mas dá saudade.