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Mulheres migrantes nas obras de Najat El Hachmi e
Chimamanda Ngozi Adichie
Mujeres migrantes en las obras de Najat El Hachmi y
Chimamanda Ngozy Adichie
Luciane Alves*
Resumen: Este trabajo busca analizar cómo se representa y se construye la identidad de los personajes
mujeres migrantes en las obras de Chimamanda Adichie y Najat El Hachmi. Pretendo mostrar en este
estudio que en la escritura de estas autoras el desplazamiento lleva a las protagonistas a encontrar nuevos
espacios de habla y (auto)representación que provocan una ruptura de los papeles de género tradicionales,
simbolizados por las figuras maternas. En un enfrentamiento con las historias creadas sobre sí mismas por
la cultura dominante, las mujeres extranjeras buscan tejer su narrativa a partir de su perspectiva, más allá
de la incompletud de los estereotipos y de lo que Chimamanda Adichie llama “historia única”. El contacto
con el “otro” es un elemento fundamental para construir la propia identidad ya que esta se da por la
diferencia. La mujer extranjera o migrante representa doblemente la busca del “yo”, considerando que
dentro de su espacio de origen está sometida a la cultura del hombre. En la formación identitaria de lo
femenino hay casi siempre un margen, una frontera a ser cruzada en la búsqueda de ser y pertenecer a una
cultura que muchas veces relega la mujer a un lugar periférico. Al analizar la migración de las mujeres,
es necesario considerar este primer nivel, la primera fuerza migratoria que parte del lugar marcado por
el género. Además, en el caso de las narrativas citadas, está la cuestión del racismo, que coloca a las
mujeres negras y pardas en un nivel aún más marginado que el ocupado por las mujeres blancas. Al buscar
afirmarse y entender su diferencia de modo positivo y libertador, sucede una ruptura permanente para
estos personajes. Se suma a esto el hecho de analizar los personajes mujeres, que como las autoras, tienen
origen en países africanos, por lo que es posible percibir de forma más amplia la complejidad de los
estándares de pertenencia y representación, pasando a niveles más profundos de lo que es ser “otro”.
Finalmente, la elección de autoras y personajes mujeres y migrantes de origen africano busca reafirmar
la idea de la Literatura Comparada como lugar de revisión de los modelos canónicos tradicionales y
ampliación del espacio de representación cultural y de habla en los estudios literarios.
Palabras clave: migración, género, identidad, Najat El Hachmi, Chimamanda Adichie
Resumo: Este trabalho procura analisar como é representada e construída a identidade das personagens
mulheres migrantes nas obras de Chimamanda Adichie e Najat El Hachmi. Pretendo mostrar neste estudo
que na escrita destas autoras o deslocamento leva as protagonistas ao encontro de novos espaços de fala e
(auto)representação que ocasionam uma ruptura dos papéis de gênero tradicionais, simbolizados pelas
figuras maternas. Em um confronto com as histórias criadas sobre si mesmas pela cultura dominante, as
mulheres estrangeiras procuram tecer a narrativa a partir de sua perspectiva, para além da incompletude dos
estereótipos e do que Chimamanda Adichie chama de “história única”. O contato com o “outro” é elemento
fundamental para a construção da própria identidade visto que esta se dá pela diferença. A mulher
estrangeira ou migrante representa duplamente a busca pelo “eu”, considerando que dentro de seu espaço
de origem está subjugada à cultura do homem. Na formação identitária do feminino há quase sempre uma
margem, uma fronteira a ser cruzada na busca de ser e pertencer a uma cultura que muitas vezes relega a
mulher a um lugar periférico. Ao analisarmos a migração de mulheres, é necessário considerar este primeiro
nível, a primeira força migratória que parte do lugar marcado pelo gênero. Além disso, no caso das
narrativas citadas, há a questão do racismo, que coloca as mulheres negras e pardas em nível ainda mais
marginalizado que o ocupado por mulheres brancas. Ao procurar afirmar-se e entender sua diferença de
modo positivo e libertador, ocorre uma ruptura permanente para estas personagens. Somando-se a isso o
fato de analisarmos personagens mulheres, que assim como as autoras, são originadas de países africanos,
com o que é possível perceber de forma mais ampla a complexidade dos padrões de pertencimento e
representação, passando-se a níveis mais profundos do que é ser “outro”. Por fim, a escolhas de autoras e
personagens mulheres e migrantes de origem africana procura reafirmar a ideia da Literatura Comparada
como lugar de revisão dos modelos canônicos tradicionais e ampliação do espaço de representação cultural
e de fala nos estudos literários.
* Mestre em Literatura Comparada pelo PPGLET-UFRGS. Doutoranda em Teoria, Crítica e Comparatismo
no PPGLET-UFRGS/Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].
Palavras-chave: migração, gênero, identidade, Najat El Hachmi, Chimamanda Adichie
1 Introdução
Ao analisarmos as representações identitárias de sujeitos migrantes ou estrangeiros, é
necessário considerar diferentes níveis para entender a construção destas identidades,
desde o individual, até o coletivo, perpassando as ideias de nação e pertencimento. Na
análise proposta por este estudo, voltado à produção de autoras migrantes e a figuração
de personagens na mesma situação, também se faz necessário examinar as diferenças
existentes entre os locais de origem e de fala dos e nos textos literários, assim como os
aspectos referentes a gênero e raça.
Na literatura contemporânea os trânsitos e as migrações aparecerem com certa
frequência e referente a isso se destacam duas situações: o número de autores que vivem
pessoalmente a experiência da migração ou de algum tipo de deslocamento ou até mesmo
permeiam outras culturas em seu universo literário e o fato de haver, neste cenário, um
crescente número de mulheres que escrevem fora de seu local de origem.
Por levar em conta o contexto mundial dos deslocamentos, os estudos feministas, que
cresceram intensamente nas últimas décadas, se voltam, entre outros temas, para a questão
da migração, procurando estabelecer discussões que ajudem a pensar a situação das
mulheres migrantes, e no caso específico da literatura, a figuração de personagens e a
representatividade de escritoras que se inserem neste cenário. No entanto, é necessário
entender de que feminismo se fala, de onde vem e para quem se dirige, levando em conta
que cada experiência cultural possui suas complexidades e articulações internas que
precisam ser consideradas para que se construam discursos não homogeneizantes e que
privilegiem as diferenças.
No projeto de tese que desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Letras da
UFRGS desde 2016, estudo como são representadas e construídas as identidades
femininas de personagens migrantes nas obras de Chimamanda Adichie e Najat El
Hachmi. Procuro analisar se na escrita destas autoras o deslocamento propicia a subversão
de papéis tradicionais de gênero. Entende-se subversão aqui como a negação e
rearticulação dos modelos identitários criados discursivamente tanto pela cultura de
origem como a cultura de chegada onde se localizam as personagens.
A escrita migrante de mulheres, principalmente no caso das duas autoras analisadas,
pode ser vista como subversiva tanto pela formação identitária das personagens
protagonistas como pelo espaço em movimento (e movimentador dos) nos cânones
nacionais. Partindo dos estudos de Ottamr Ette, podemos considerar estas produções
como tipos de escrita em movimento. De acordo com o teórico, este termo se refere a
textos literários “que desacatam o subvierten las fronteiras establecidas” (2008, p 67),
uma dinâmica de escrita que ultrapassa fronteiras em diversos níveis e contextos e que
“debe representar a través de su própia dinâmica un mundo en movimiento” (2008, p.67).
São escritas interculturais e duplamente deslocadas, que ao cruzar fronteiras físicas e
culturais, também cruzam os limites designados aos papéis de gênero e ao lugar de fala.
De modo geral, as biografias e obras das duas autoras, possuem semelhanças. Ambas
vivem pessoalmente a experiência da migração, suas personagens são mulheres provindas
de culturas opressoras e patriarcais, que precisam deslocar-se tanto fisicamente como
culturalmente para poderem expressar-se como sujeitos. Por se tratarem de personagens
e autoras africanas, negras e pardas, originarias do Marrocos e da Nigéria em contexto
pós-colonial, temos além das questões de gênero, o racismo como um forte entrave no
desenvolvimento identitário destas mulheres.
A análise de personagens que representam mulheres migrantes é uma tentativa de se
ter acesso a novas perspectivas e vozes de sujeitos relegados tradicionalmente ao lugar de
outro. Na retomada do direito à fala e do confronto com as histórias criadas sobre si
mesmo pela cultura dominante, o sujeito estrangeiro procura tecer a narrativa a partir de
sua perspectiva, para além da incompletude dos estereótipos e do que Chimamanda
Adischie chama de “história única”. O contato com o outro é elemento fundamental para
a construção da própria identidade visto que esta se dá através da diferença e do
reconhecimento, antes de tudo, do que não se é.
No caso de mulheres estrangeiras ou migrantes, se representa duplamente a busca pelo
eu, considerando que dentro de seu espaço de origem está subjugada à cultura do homem.
Ao procurar afirmar-se e entender a diferença de modo positivo e libertador, ocorre uma
ruptura permanente para as personagens.
A busca por si mesmas cria um novo espaço identitário que não se encaixa no padrão
essencialista, que nega a diversidade existente nas comunidades, e que aparece
principalmente nas questões de gênero, onde a diferença é vista de forma binária e
excludente. Somando-se a isso o fato de analisarmos personagens mulheres, que assim
com as autoras, são originadas de países tratados como periféricos pelo discurso
eurocentrista, é possível perceber de forma mais ampla a complexidade dos padrões de
pertencimento e representação, passando-se a níveis muito mais profundos do que é ser
outro.
Como vimos, a mulher, por si só já é um outro, estrangeira e estranha em si mesma
dentro da tradição do patriarcado. Na formação identitária do sujeito feminino há quase
sempre uma margem, uma fronteira a ser cruzada na busca de ser e pertencer a uma
cultura que relega um lugar periférico às mulheres. Ao analisarmos a migração destes
sujeitos, é necessário considerar este primeiro nível, a primeira força migratória que parte
do lugar marcado pelo gênero. Somando-se a isso, está a questão do racismo, que coloca
as mulheres negras e pardas em nível ainda mais marginalizado que aquele ocupado por
mulheres brancas. Através do estudo destes temas e de autoras mulheres migrantes,
originarias de dois contextos culturais diferentes no continente africano, também procuro
a ampliação do leque de representações culturais e lugares de fala nos estudos literários
comparatistas.
2 Sobre as autoras e obras
2.1 Chimamanda Ngozi Adichie
Chimamanda Adichie se tornou mais conhecida no Brasil após a repercussão de sua
palestra no TED, Os perigos da história única, de 2009. Nesta fala, Adichie mostra como
a manutenção dos estereótipos, as “histórias únicas”, nos levam ao desconhecimento de
outras realidades, devido a sua incompletude. A autora conta que chegou a ser criticada
por um professor que afirmava que seu romance não era “autenticamente africano”, por
não apresentar personagens famintas, mas pelo contrário, protagonistas que levavam uma
vida muito parecida com a da classe média ocidental.
A “história única” diz que todos os africanos morrem de fome, vivem catástrofes e
privações. Uma forma de poder na qual a identidade de uma pessoa é criada por outro,
que inventa uma história “definitiva” para este sujeito, da qual é muito difícil se
desvencilhar. Segundo Adichie, a consequência da “história única” é que ela rouba a
dignidade das pessoas, tornando o reconhecimento da humanidade compartilhada muito
difícil, enfatizando diferenças ao invés de semelhanças.
Posteriormente, em nova fala no TED, intitulada Todos devemos ser feministas e na
publicação da carta enviada a uma amiga, Para educar crianças feministas, a autora
procurou refletir sobre a importância do feminismo para a sociedade de modo geral,
embora fale principalmente da Nigéria e do continente africano, procura pensar como as
posturas machistas presentes em pequenos detalhes da vida social, afetam homens e
mulheres desde a infância.
Todos estes temas aparecem em seus romances, Hibisco Roxo (2003), Meio Sol
Amarelo (2006) e Americanah (2013). Neste último a questão do estereótipo é
apresentada de forma mais profunda. O romance conta a história de Ifemelu, adolescente
nigeriana que vai cursar a universidade nos Estados Unidos. Durante os 13 anos de estada
no país americano, diversas situações a colocam em confronto com a busca de
pertencimento, seu lugar de estrangeira, de mulher e de africana.
Antes de ir aos Estados Unidos Ifemelu, assim como seus colegas africanos, não tinha
noção do que significava ser “negro”. É nos Estados Unidos que a questão racial passa a
ser uma preocupação, passa a existir de fato, como algo pessoal. Da mesma forma as
“histórias únicas” sobre a África e os africanos ocasionam um confronto entre a vivência
individual e o estereótipo criado pela cultura ocidental: “Eles contavam, brincando, o que
os americanos lhes falavam: Você fala inglês tão bem. Tem muita aids no seu país? É tão
triste que as pessoas vivam com menos de um dólar por dia na África.” (2014, 152). É
somente com os outros alunos estrangeiros que há uma tentativa de identificação. Neste
espaço todos ocupam um lugar de não-pertencimento, há uma cumplicidade silenciosa,
que não exige explicações.
No entanto, o grupo de não-americanos não apresenta sempre a mesma configuração.
No salão de beleza onde Ifemelu vai fazer suas tranças antes de voltar para a Nigéria, a
fragmentação do “ser africano” reaparece através das personagens das cabeleireiras, cada
qual de um país diferente, que lembram a Ifemelu também as diferenças étnicas existentes
na Nigéria. Uma vez mais a personagem é colocada em um lugar de pertencimento fluido,
instável, dependente de um ponto de referencia.
Há, ainda, o blog escrito por Ifemelu, que mostra uma análise sobre a postura dos
negros americanos e da sociedade em relação a eles. Destaca-se, assim, outro elemento
importante da configuração identitária da protagonista. Existem os afro-americanos e os
africanos americanos, aqueles que migraram, e esta diferença posiciona os sujeitos entre
quem pode ou não falar. Em certa passagem, a cunhada afro-americana de Ifemelu
comenta:
“Sabe por que Ifemelu pode escrever aquele blog, aliás?” disse Shan. “Por que
ela é africana. Está escrevendo do lado de fora. Na realidade, ela não sofre tudo
aquilo sobre o que está escrevendo. São coisas excêntricas, curiosas para ela.
Então pode escrever sobre isso, receber todos esses elogios e ser chamada para
dar palestras. Se fosse afro-americana, ia ser considerada uma pessoa cheia de
raiva e condenada ao ostracismo.”(2014, p 365)
A volta para a Nigéria passa a ser o sonho idílico, o desejo de encontrar-se, de
pertencer. No entanto, a busca pela origem também se vê frustrada; aquele que vai não
volta o mesmo e nem ao mesmo lugar: “Assim, Ifemelu teve a sensação estonteante de
que caía, caía dentro dessa nova pessoa que se tornara, caía no estranho familiar. Será que
sempre tinha sido daquele jeito ou tinha mudado tanto em sua ausência? (2014, p 415)”.
Ifemelu passa a ser uma americanah, expressão que dá nome ao romance e se refere ao
caráter híbrido daqueles que retornam do estrangeiro. A mudança de pronúncia marca a
perda da origem e a condição de sujeito fronteiriço. Em seu país, ela também é um
“outro”, uma estrangeira, o “próprio traidor traído” como define Kristeva (1994, p 16).
Hibisco Roxo e Meio Sol Amarelo, tratam de deslocamentos internos e das tensões
existentes entre as diferentes etnias que habitam a Nigéria. O primeiro conta a história de
Kambili, uma menina de 15 anos, e de sua família, que se configura de forma bastante
patriarcal, com o pai em posição de chefe de família. O Papa, como se refere a
protagonista, é um fanático religioso que impõe regras muito duras à família,
principalmente à esposa, que sofre intensa violência doméstica.
Através da figura do pai é possível ver o alcance da colonização perpetuada através da
religião, o chefe de família renega sua identidade nigeriana (igbo) considerando suas
práticas tradicionais como manifestações demoníacas. O avô de Kambili, Papa Nwukwu,
que representa o elo com o passado por manter sua pratica religiosa pré-colonial, é
rejeitado pelo filho, que prefere seguir a cultura dos colonizadores. Além disso, a
preferência pelo uso do idioma inglês na casa da família é justificada como forma
civilizada de fala. O nível extremo de exigência com a educação dos filhos e a violência
contra a esposa, também passam pelo viés religioso e colonial, onde o homem é quem
toma as decisões na casa e a mulher é sua subalterna e lhe deve obediência.
É através do deslocamento, em uma visita a casa da tia Ifeoma, que mora em outra
região da Nigéria, que Kambili se tornará consciente da violência que impera em sua casa.
Até então, aquela era a vida normal, a única que conhecia, onde obedecer ao pai era
indiscutível. A partir da viagem e do conhecimento de outro estilo de vida, e
principalmente do modelo de uma mulher não submissa, Kambili passa a ver-se como
sujeito dotado de desejos e escolhas.
Em Meio sol amarelo, o foco na questão das etnias é muito maior que nas demais
obras. O romance resgata o conflito histórico da Guerra de Biafra, uma guerra civil
nigeriana decorrente do conflito de etnias. A importância de contar esta história,
desconhecida ou pouco referida no ocidente, é retomar a ideia de O perigo da história
única, pois é preciso mostrar outras versões da história contadas pelos próprios
nigerianos. É interessante notar, que este espaço de fala tão negado aos africanos, que
frequentemente têm suas histórias narradas pela voz dos brancos, é justamente
reivindicado pela escrita de uma mulher, que evidentemente subverte a ordem da
literatura canônica tradicional.
A narrativa apresenta perspectivas de diferentes personagens, mas é a história de
Olanna a que interessa mais para o recorte desta análise. A personagem apresenta uma
configuração identitária diferente das protagonistas de Americanah e Hibisco Roxo, pois
é uma mulher que já possui certa liberdade dentro do contexto social, por pertencer a uma
classe privilegiada, com recursos financeiros que lhe permitem grande acesso ao
conhecimento e ao meio intelectual. Embora a família não aprove sua união com
Odenigbo, viver com ele sem estarem casados é possível pela liberdade de decisão e
meios financeiros que ela possui. Olanna rompe com o estereótipo de submissão e falta
de acesso a recursos com que é caracterizada a mulher negra africana, retratada ao longo
da história literária como personagem subalterna.
O deslocamento de Olanna propiciará outros pontos de formação identitária, por causa
da guerra ela se vê em situações que nunca havia passado, como a fome, a miséria e o
contato com pessoas de outras classes sociais. Suas viagens trazem uma formação humana
e de desenvolvimento da alteridade, que permitem compreender a situação de outras
mulheres, inclusive a da empregada que engravida de seu marido. Além disso, acontece
a reflexão a respeito do pertencimento étnico, ao ter que confrontar-se com o fato de que
não há homogeneidade no país.
As personagens protagonistas dos romances de Chimamanda Adichie apresentam
diferentes perspectivas identitárias e de representação das mulheres negras africanas,
especificamente nigerianas, o que propicia uma visão mais pluralizada destes sujeitos.
Em todas as narrativas é possível perceber a importância do deslocamento para o
reconhecimento de aspectos que contribuem à formação das protagonistas, em meio a um
contexto social patriarcal, muito marcado pela religião, opressão e papéis de gênero
subalterno relegado às mulheres. É também relevante o fato de essas histórias serem
apresentadas por e a partir de uma escrita de autora mulher e feminista, o que pode
considerar-se a abertura de um espaço de fala na historiografia literária.
2.2 Najat El Hachmi
Najat El Hachmi nasceu no Marrocos e migrou com a família para a comunidade
autônoma da Catalunha, Espanha, aos oito anos. Em 2004 publicou o ensaio Jo tambè soc
catalana onde aborda o tema dos imigrantes na região e, principalmente, o pertencimento
e o lugar de “eterno estrangeiro” delegado aos imigrantes. Embora ainda pouco conhecida
no Brasil a escritora tem conquistado prêmios e elogios da crítica europeia desde seu
primeiro romance L'últim patriarca (O último patriarca) de 2008, pelo qual recebeu o
premio Ramon Llull, o mais importante das letras catalãs. Toda sua obra foi originalmente
publicada em catalão, e a própria escritora comentou em entrevistas, que seria impossível
fazê-lo diferente, pois esse é o idioma em que pensa, sente e se expressa melhor.
Assim como na obra de Chimamanda Adichie, os textos de Najat El Hachmi
apresentam a visão estereotipada com que são vistos os estrangeiros/imigrantes nos países
ocidentais. Nos três romances publicados até o momento há predominância de temas
relacionadas à situação das mulheres, principalmente nas sociedades de origem árabe e a
condição como migrantes na Espanha, além dos aspectos do racismo e discriminação
sofridos devido à origem étnica e a opressão do fundamentalismo religioso.
La filla estrangera (A filha estrangeira) de 2015, é narrado em primeira pessoa e conta
a história de uma jovem marroquina que migrou com a mãe para o interior da Catalunha
em busca do pai que as abandonou. Não sabemos seu nome, o que marca um aspecto
importante da falta de identificações da personagem. De certa forma, o enredo nos leva a
perceber que ela, em nível subjetivo, não sabe quem é. Dos 18 para 19 anos, se vê forçada
a escolher entre seguir os costumes de sua cultura de origem ou procurar novos caminhos
na Espanha. Ao aceitar casar-se com o primo marroquino, que mal conhece, suas
perspectivas individuais são sufocadas em uma tentativa de aliviar o sofrimento e as
preocupações que marcam a existência de sua mãe.
A figura da mãe é um elemento muito importante na elaboração do pertencimento. Ela
é a personificação da origem, das raízes e da cultura natal, pois não se integra a cultura
do novo país. De volta ao Marrocos, a protagonista não identifica aquele como seu local,
passando a ser a terra e a língua da mãe. A falta de pertencimento e referências
relacionadas com esse território, inclusive, leva a um excessivo apego a figura materna,
último lugar de marcação de uma origem, uma ilusão de unidade.
O lugar híbrido do sujeito migrante é bastante marcado nesta obra, principalmente no
que se refere à linguagem. A tradução é destacada em diversas passagens, em que a
protagonista se debate ente a "língua do seu pensamento" (o catalão) e a língua da mãe (o
rifenho):
De repente, este desajuste léxico, tan insignificante, tan banal, me ha hecho
recordar cuán lejos estoy de ella, de su mundo, de su manera de ver y entender
las cosas. Por más que traduzca, por más que intente verter las palabras de una
lengua a otra, nunca lo conseguiré, siempre habrá diferencias. Pese a ello,
traducir continúa siendo una distracción dulce, una forma tangible al menos,
de desear llevar a cabo este acercamiento de nuestras realidades, que me ha
sido útil desde que vinimos aquí. (2015, p 10)
A consciência do não pertencer vivida por ela leva a um sentimento de frustração e
incapacidade de ser compreendida. Sua expressão de linguagem não é a da suposta
origem e está longe de ser a do local onde se encontra. A identidade fronteiriça, que marca
inclusive o espaço íntimo, mostra a solidão provinda da falta de pertencimento:
Solo con alguien que fuese como yo, alguien que también tuviera una madre
como la mía y hubiese aprendido esta lengua que nos es extranjera y la hubiera
interiorizado, como yo, hasta el punto de que se hubiera convertido en la lengua
principal de sus pensamientos, solo con alguien así podría hablar como yo me
hablo a veces, mezclando las dos lenguas. (2015, p 16)
A obra também propicia a discussão dos elementos culturais mais amplos a partir de
uma perspectiva cotidiana e íntima, onde a personagem, ao decidir seguir a tradição
familiar, evidencia o lugar que cabe à sua cultura dentro do cenário europeu, no qual é
“apenas mais uma marroquina”. A exclusão do árabe, o racismo, a falta de melhores
oportunidades e a marcação de estranheza, mostram que, apesar do tempo, não acontece
a verdadeira incorporação do imigrante ao meio cultural:
Aunque, bien pensado, en esta ciudad es poco probable que una marroquí pase
desapercibida, porque su sola presencia, con la cabeza cubierta y los ropajes
largos, ya llama la atención de quienes han vivido aquí toda la vida y no
entienden esta repentina presencia de forasteros. (2015, p.96)
A obra de Najat el Hachmi dialoga com Orientalismo de Edward Said, ao mostrar
como o discurso estereotipado sobre o oriente procura enaltecer os valores nacionais dos
estados europeus em detrimento da figura do outro, assim como a manutenção desta
imagem pelos próprios sujeitos orientalizados. Ao pensarmos na análise que o autor
palestino faz da obra de Flaubert também é possível perceber o silenciamento das
mulheres pelo patriarcado e a importância da recuperação do lugar de fala pela escrita de
mulheres migrantes, um espaço silenciado pelo homem branco e também pelo homem da
cultura de origem.
Quando Flaubert descreve uma realidade “tipicamente oriental”, através da figura da
cortesã egípcia, ele um homem branco europeu que fala por ela, é negado à mulher
“oriental” o direito de autoexpressão, que, de certa forma, se pode pensar que é recuperada
na escrita contemporânea:
Ele era estrangeiro, relativamente rico, do sexo masculino, e esses eram fatos
históricos de dominação que lhe permitiram não apenas possuir fisicamente
Kuchuk Hanem, mas falar por ela e contar a seus leitores de que maneira ela
era “tipicamente oriental (2007, p 33).
Na introdução da coletânea Tendências e Impasses Heloísa Buarque de Holanda já
apontava para o fato de que Said, em Orientalismo “ao examinar a forma como são
constituidos, na perspectiva ocidental, os discursos e as interpretações sobre o Oriente,
reconhece explicitamente que está lidando com questões idênticas àquelas propostas pelas
tendências atuais dos estudos feministas.” (1994, p.8) O principal ponto destacado pela
autora em sua leitura da obra de Said é o fato de que
os estudos feministas, assim como os estudos étnicos e antiimperialistas,
promovem um deslocamento radical de perspectiva ao assumirem como ponto
de partida de suas análises o direito de grupos marginalizados de falar e
representar-se nos domínios políticos e intelectuais que normalmente os
excluem, usurpam suas funções de significado e representação e falseiam suas
realidades históricas. (1994, p.8)
Neste sentido, podemos pensar que no caso das duas autoras estudadas, isto se dá
duplamente, pois além de sujeitos marginalizados pelo discurso do orientalismo e os
diversos estereótipos criados sobre a África, se tratam de mulheres que escrevem sobre
mulheres, dentro de sistemas de opressão de gênero.
Em L’últim patriarca, vemos algumas situações semelhantes ao romance
anteriormente citado, mas neste o tema da opressão das figuras patriarcais é mais
desenvolvido. A narrativa se assemelha muito à história de Hibisco Roxo, pois é através
da perspectiva da filha adolescente, sem nome, que conhecemos a história de Mimoun
Driouch, desde a infância até o momento presente da narradora. O ambiente apresentado
é muito próximo ao de La filla estrangera, passando por cenas da família na região
rifenha, costumes e modos sociais, e os conflitos vividos pelo processo de migração na
Catalunha.
Mimoun é último patriarca da família, cuja tradição será rompida através da libertação
da filha. É descrito como um homem que desde a infância foi acostumado a ter seus
desejos atendidos, impositivo e mimado que se torna um adulto extremamente autoritário,
delegando à família regras muito cruéis que não são seguidas por ele mesmo. A violência
exercida contra a mulher, submissa e muito aferrada aos costumes, vai pouco a pouco
trazendo consciência a sua filha de que este modelo social não pode mais ser seguido.
Através da liberação sexual, tema bastante presente na obra de El Hachmi, a narradora
humilha o pai a tal ponto que só lhe resta como opção deixá-la livre.
A liberdade da protagonista, assim como em La fila estrangeira, é encontrada no
espaço de questionamento e negação de ambas as culturas, pois como defende a escritora
feminista egípcia Nawal El Saadawi em muitas entrevistas, nenhumas das sociedades
religiosas, dará espaço de liberdade plena às mulheres, assim como nos sistemas
capitalistas a falsa liberação corporal será a base de uma objetificação em favor do
mercado. Os mecanismos de opressão e silenciamento, simbolizados, por exemplo, pelo
uso do véu, não se originam nas culturas muçulmanas, como o discurso do orientalismo
pretende mostrar. Segundo a autora egípcia, estes elementos são anteriores a esta cultura
e já tinham o mesmo significado na tradição judaico-cristã. A escrita, nesta linha de
pensamento funciona como um “rompimento do véu”.
3 Conclusões
Em todos os romances de Najat El Hachmi, assim como nos de Chimamanda Adichie,
se pensa a situação das mulheres, em diferentes perspectivas. Além das protagonistas
sempre há outras personagens femininas importantes na narrativa, que permitem analisar
possibilidades identitárias. A liberdade das protagonistas de “La filla estrangera” e
“L’últim patriarca” é todo o tempo tensionada pelo antagonismo da opressão simbolizada
pelas figuras das mães, da mesma forma que ocorre em Hibisco Roxo e Americanah.
Deste modo se apresenta uma importante diferença geracional e as consequências de
infâncias e adolescências como migrantes na Espanha, no caso de Najat El Hachmi e com
experiência de deslocamento nos EUA ou dentro da Nigéria no caso de Chimamanda
Adichie. O conhecimento de outros espaços permite que apesar do machismo, racismo e
outras dificuldades, as protagonistas possam conhecer diferentes linguagens e códigos
que propiciam a expressão em um espaço entre duas culturas, ao contrário das mulheres
mais velhas que são como exiladas em um meio cultural e até mesmo linguístico
totalmente incompreensível.
REFERENCIAS
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