Mulheres na Prisão: entre família, batalhas e vida normal.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL NATÁLIA BOUÇAS DO LAGO Mulheres na prisão: Entre famílias, batalhas e a vida normal (Versão Corrigida) São Paulo 2014

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Pretende compreender as elaborações produzidas por mulheres em privação de liberdade, de como dão continuidade para as relações pessoais e familiares.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    NATLIA BOUAS DO LAGO

    Mulheres na priso:

    Entre famlias, batalhas e a vida normal

    (Verso Corrigida)

    So Paulo 2014

  • ii

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    Mulheres na priso:

    Entre famlias, batalhas e a vida normal

    Natlia Bouas do Lago

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia.

    Orientador: Prof. Dr. Jlio Assis Simes

    (Verso Corrigida)

    So Paulo 2014

  • iii

    Folha de aprovao

    Nome: Natlia Bouas do Lago

    Ttulo: Mulheres na priso: entre famlias, batalhas e a vida normal

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Antropologia

    Aprovada em: _____ /_____ /_____

    Banca Examinadora:

    Prof(a). Dr(a). ___________________________________________________________

    Instituio: ____________________ Assinatura: _______________________________

    Prof(a). Dr(a). ___________________________________________________________

    Instituio: ____________________ Assinatura: _______________________________

    Prof(a). Dr(a). ___________________________________________________________

    Instituio: ____________________ Assinatura: _______________________________

  • iv

    Aide e ao Divino, me e pai que me ensinaram a lutar.

    Ao Samuel, irmo e comparsa.

    Bom mesmo dividir a vida com vocs.

  • v

    Agradecimentos

    Essa coisa de que a vida acadmica solitria uma meia verdade. O processo da

    escrita passa, sim, por momentos de isolamento que ajudam a organizar as ideias, mas

    mesmo essas ideias ficam mais interessantes quando discutidas. A pesquisa se

    enriquece com as anlises que so conspiradas. E ao longo desse mestrado tive sorte e

    convivi com muitas pessoas que conspiraram comigo, velhos conhecidos e gente que

    encontrei justamente por estar na universidade e na Antropologia. S tenho a

    agradecer, no apenas pelas boas experincias que a pesquisa me trouxe, mas

    tambm pela generosidade de todos que percorreram o caminho comigo.

    O Julio Simes, orientador querido, merece os maiores agradecimentos do mundo.

    Pela ateno, conversas e comentrios que sempre me deram estmulo e nimo para

    prosseguir. Agradeo ao Julio, tambm, pela troca de ideias, a (enorme) pacincia, a

    amizade e a compreenso que transcendem qualquer tentativa de obrigada que eu

    possa tentar fazer aqui. Valeu por tudo, mesmo.

    Para xs lindxs do Numas o meu agradecimento vai com o desejo de que a gente

    continue fazendo muita baguna por a, nas universidades e na vida: Bernardo

    Fonseca, Bruno Barbosa, Bruno Puccinelli, Gibran Braga, Gustavo Saggese, Isabela

    Venturoza, Lais Higa, Luiza Ferreira, Marcio Zamboni, Marcella Betti, Mariane Pisani,

    Marisol Marini, Michele Escoura, Pedro Lopes, Rafael Noleto, Ramon Reis, Renata

    Mouro, Roco Alonso. Vocs fizeram esse perodo mais produtivo e mais divertido.

    Obrigada pelas leituras generosas e comentrios to certeiros sobre este trabalho.

    Deixo registrado meu amor eterno aos queridos e queridas da comisso de atividades:

    Gibran, Gustavo, Marcella, Marcio, Marisol e Pedro, o melhor companheiro de caf e

    cigarros que eu tenho a sorte de ter.

    O Numas ainda me apresentou a Isadora Lins Frana, com quem tive a felicidade de

    me encontrar no fim desse mestrado. Obrigada pelo apoio, estmulo e, sobretudo, pelo

    carinho, que fizeram dos momentos finais de escrita da dissertao um perodo muito

    maravilhoso para mim.

    O grupo Prises em Gnero foi o primeiro lugar de troca de ideias que o mestrado me

    trouxe, e continua sendo um espao de conversas-delcia sobre o campo e sobre

  • vi

    nossas vidas. Agradeo Bruna Bumachar, Natlia Corazza Padovani e Natalia Negretti

    por essa possibilidade. Tenho em comum com as Natlias no apenas nossos nomes e

    campos de pesquisa, mas uma amizade que torna o trabalho ainda mais prazeroso.

    Agradeo aos professores Gabriel Feltran e Helosa Buarque de Almeida por

    acompanharem este trabalho nos diferentes momentos de sua execuo: Gabriel

    discutiu comigo uma primeira verso do projeto e Helosa foi uma das professoras com

    quem pude conviver em uma disciplina e tambm no Numas. Os comentrios e

    sugestes no exame de qualificao foram determinantes para os caminhos da

    pesquisa. Obrigada, por fim, pela pronta disposio de ambos em participar da banca

    de defesa da dissertao.

    Obrigada s professoras e professores da Antropologia da USP com quem convivi

    nesse perodo. Ana Claudia Marques, Helosa Buarque de Almeida, Marta Amoroso,

    Paula Montero e Renato Sztutman foram responsveis pelas disciplinas que cursei na

    ps-graduao e que fazem parte do meu processo de formao. Laura Moutinho eu

    agradeo pelo interesse e pelas sugestes criativas s minhas angstias de pesquisa.

    Agradeo tambm Fapesp pela concesso da bolsa que financiou esse mestrado e

    permitiu que eu me dedicasse exclusivamente sua execuo.

    Obrigada Ivanete, Soraya e Rose, funcionrias do PPGAS-USP, pelo auxlio em muitos

    momentos e demandas urgentes. Agradeo tambm ao Celso, do Departamento de

    Antropologia, sempre disposto a ajudar.

    Esses mais de dez anos de USP tm sido incrveis, sobretudo pelas pessoas

    fundamentais que conheci e que me fazem ter a certeza de que "os mais legais so das

    cincias sociais". Agradeo especialmente ao Augusto Capistrano, Bruno Ranieri, Celso

    Jorgetti, Daniel Vio e Tli Pires. Maia Fortes e s fotos do Pedroca sorridente. Ao

    Flvio Mendes e Tas Viudes, pela convivncia e por terem me empurrado para

    comear essa vida de mestrado isso aqui culpa de vocs!

    Marina Gurgel Neves, obrigada pelos almoos, pasteis da feira e, sobretudo, por ser

    essa amiga-vizinha-companheira to generosa. bom dividir histrias contigo.

  • vii

    Ao Tiago Rangel, Mari Sucupira e ao Carlos Freire agradeo o carinho, a troca de

    ideias e a convivncia que me to cara. Junto com a Marina e com vocs as cervejas

    e os sambas, da raiz folhagem, so mais divertidos.

    Ao Felipe Moreira eu agradeo muitssimo pela vida compartilhada de antes e pela

    amizade de sempre, indispensvel.

    Milena Lima, amiga-irm, agradeo a cumplicidade e presena constantes, ainda que

    a quilmetros de distncia, e a pacincia com as muitas mancadas da irm ausente.

    So inenarrveis os agradecimentos Mari Tavares, a comear pela disposio em

    revisar esse texto em um prazo inexistente, e tambm pelo apoio e conversas-delcia

    sobre blogs de qualidade duvidosa e planos de negcios pro futuro. Roberta

    Jereissati, um muito obrigada pela amizade e doura, to presentes e importantes ao

    longo desse perodo. Ao Lucas Brando, um agradecimento pelas acolhidas sempre

    amorosas e festivas. A toda a turma do "gordinho", meu obrigada pelos anos de

    convivncia, conversas e polmicas em gerais: Milena, Mari, Robs e Lucas, e tambm

    Chico Dayrell, Lus Felipe Hirano, Marcos Iki, Natalia Moraes, Otavio Zani, Paula Delage,

    Tulio Custdio, Sheila Cruz, Sidney Ferrer, Uyr Lopes e Vando da Paz.

    Obrigada aos amigos que fiz no PPGAS. Tive a sorte de viver esse perodo com pessoas

    muito queridas. Agradeo a convivncia com todos da turma de 2011, em especial

    Ane Talita, Bruna Triana, May Martins e Tatiana Lotierzo. Ao Lucas Amaral, querido da

    Sociologia que eu conheci com esse mestrado. Marina Barbosa, pelos sambas,

    cachaas, e papos. Ao Lo Bertolossi, esse furaco cheio de afeto. Ao querido Vitor

    Grunvald, pelas conversas, sempre boas e divertidas.

    Camila Mainardi, que tambm conheci no PPGAS, um agradecimento pelas muitas

    tardes na USP e na Mrio de Andrade que construram, com alegria, uma amizade

    dessas que se quer pra vida.

    Miri Granato, amiga desde os tempos da escola. Obrigada pela companhia e pela

    infinidade de assuntos que a gente debate com tanto prazer.

    Alessa Camarinha, que me trouxe msica em aulas to divertidas. Pelas muitas coisas

    que descobri e aprendi contigo e que so a trilha sonora desse texto.

  • viii

    O pessoal da Ao Educativa teve o infortnio de me acompanhar nos momentos mais

    difceis de toda a caminhada: o incio e o fim do mestrado. Raquel Souza e Magi

    Freitas, os agradecimentos a essas duas acolhidas nunca sero suficientes: muito

    obrigada! A vocs, e tambm Babi Lopes e ao Gabriel Di Pierro, valeu pela parceria e

    pelo clima de trabalho mais incrvel que h. A Babi ainda companheira na criao de

    tradies que certamente se repetiro por muitos anos. Carla Corrochano eu

    agradeo por ter participado desse processo em seu incio. Aos Jades, aos dezenove,

    obrigada por me ensinarem tanto e despertarem em mim a vontade de continuar

    nesse caminho da educao.

    Foram os primeiros contatos com o mundo da Justia Criminal que me trouxeram a

    vontade de conhecer mais sobre as prises. Agradeo sobretudo Aline Yamamoto,

    Dennis van Wanrooij e Fabiana Leibl, a querida ex-equipe do Ilanud. A Thais Pavez, que

    conheci nesse perodo, at hoje uma amiga e companheira de debates que sempre

    trazem olhares instigantes. Obrigada ainda Fernanda Emy Matsuda, Bruna Angotti e

    Gorete Marques pelos encontros e sugestes que tanto ajudaram nesse processo.

    O Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas foi onde tive um primeiro olhar

    sobre a vida das mulheres presas. Um obrigada com admirao a todas vocs.

    A Pastoral Carcerria me recebeu como uma das suas voluntrias e me possibilitou

    conhecer as mulheres que apresento na pesquisa. Agradeo a todas e todos, em

    especial Heidi Cerneka, Margaret Gaffney e Dona Duca, pelo carinho e apoio

    incondicional pesquisa.

    O agradecimento s minhas interlocutoras caminha ao lado da sensao de que nunca

    vou conseguir retribuir as suas acolhidas to calorosas e a disposio em dividir comigo

    suas histrias, suas intimidades, suas vidas. Muito obrigada!

    Agradeo, por fim, a toda a minha famlia, parte de mim e da minha mineiridade. Aos

    tios e tias, obrigada pelo carinho de sempre com a sobrinha sumida. Aide, Divino,

    Samuel e Adriana: valeu pelo amor, o colo, o interesse, o apoio constante, a

    convivncia (em Poos, em So Paulo, via skype) e, ainda, por entenderem minhas

    ausncias e respeitarem minhas escolhas. Sempre me surpreendo com a generosidade

    e a compreenso de vocs.

  • ix

    As partidas. Eram sempre as mesmas. Sempre as primeiras partidas pelos mares. A separao da terra sempre se fazia

    em meio dor e ao mesmo desespero, mas isso nunca havia impedido que os homens partissem, os judeus, os

    pensadores e os simples viajantes da viagem martima, e isso nunca havia impedido que as mulheres os deixassem ir,

    elas que nunca partiam, que ficavam cuidando do lar, da raa, dos bens, da razo de ser do retorno.

    Marguerite Duras, em O amante.

  • x

    Resumo

    O presente trabalho se prope a compreender as elaboraes, produzidas por

    mulheres em privao de liberdade, que buscam conectar os mundos de dentro e de

    fora da priso. A pesquisa apresenta quatro principais personagens para discutir que o

    encarceramento altera profundamente as formas pelas quais as mulheres do

    continuidade s relaes previamente estabelecidas, mas no as retira completamente

    dessas mesmas relaes e promove outras, antes inexistentes. O gnero um

    marcador central para compreender o posicionamento dessas mulheres ao

    estabelecer expectativas e desempenhos especficos, e se articula situao social

    dessas mulheres, pobres. As articulaes entre os marcadores so aludidas ao longo

    do trabalho diante dos discursos que as personagens produzem sobre famlia e sobre

    seus relacionamentos amorosos. Tais formulaes ajudam a situ-las no mundo da

    priso e vincular a experincia do crcere vida na rua, tanto em relao ao perodo

    anterior privao de liberdade como em relao s suas perspectivas de futuro.

    Palavras-chave:

    Gnero Mulheres Priso Famlia Marcadores Sociais da Diferena

  • xi

    Abstract

    This study seeks to understand the elaborations produced by women in prison seeking

    to connect the worlds inside and outside prison. The research presents four main

    characters to discuss that imprisonment deeply changes the ways in which women

    continue those previously established relations, but not completely cut off those

    relations and promotes other, previously nonexistent. Gender is a central marker to

    understand the positioning of these women to establish specific expectations and

    performances, and is articulated to the social situation of these women, poor. The

    joints between the markers are alluded throughout the work with the speeches that

    the characters produce about family and their relationships. Such formulations help to

    situate them in the prison world and link the experience of prison with the life on the

    street, in relation to the previous incarceration and to the expected future period.

    Keywords:

    Gender Women Prison Family Social Markers of Difference

  • xii

    Sumrio

    Apresentao ........................................................................................................... 1

    Quando elas aparecem ............................................................................................. 3

    i) Mudana de perspectiva: do trfico famlia ...................................................... 6

    ii) Trabalhadores e bandidos .............................................................................. 9

    iii) Mulheres e famlia .............................................................................................. 11

    iv) Recolocando o problema .................................................................................... 14

    v) Gnero, classe e suas articulaes ..................................................................... 17

    vi) Das estratgias para contar estrias .................................................................. 19

    vii) A busca pela chave ou a entrada no campo ....................................................... 21

    viii) Escolher os pertences, entrar na priso: o roteiro da dissertao..................... 25

    1| A chave da priso ............................................................................................... 26

    i) Os caminhos que levam ao ptio ........................................................................ 26

    ii) A priso em visitas, trabalho e educao ........................................................... 32

    iii) PCC e algumas distines.................................................................................... 35

    iv) Uma crtica da priso .......................................................................................... 39

    v) Notas sobre uma dinmica da cadeia ................................................................. 41

    vi) Um contraponto: Dita, sofrimento e agncia ..................................................... 44

    vii) Uma tentativa de se apropriar da chave ............................................................ 52

    2 | Retalhos de uma Ana: me, perigueti, traficante ............................................... 54

    i) A filha da Ana ...................................................................................................... 55

    ii) Da famlia e dos amores ..................................................................................... 61

    iii) Do crime e das drogas ........................................................................................ 65

    iv) Anna de Amsterdam ........................................................................................... 68

  • xiii

    3 | Duas mulheres na batalha: cadeias, drogas e maridos ....................................... 70

    i) Mariana, a sofredora .......................................................................................... 71

    ii) Mariana e o caminho de redeno ..................................................................... 74

    iii) Cris: Corajosa e destemida ................................................................................. 76

    iv) Conversas entre batalhadoras ............................................................................ 85

    Consideraes Finais .............................................................................................. 87

    Referncias Bibliogrficas ....................................................................................... 90

  • 1

    Apresentao

    - A senhora tem filhos?

    - No, no tenho.

    - Mas a senhora ainda jovem, n?! Deve ter o qu, uns 25?

    - No, 27.

    - Ahhhh... Mas, se Deus quiser, a senhora h de ter filho!

    Quando eu dizia a quem perguntasse que pesquisava mulheres presas, a maior parte

    das pessoas fazia a mesma expresso compadecida que uma mulher fez, na priso,

    quando conversamos sobre filhos. Para ela, no ter filhos sendo uma mulher com vinte

    e muitos anos meio triste e muito estranho. E essas mesmas sensaes (o

    estranhamento e a tristeza) estiveram presentes na maior parte das conversas com as

    pessoas que vivem do lado de fora dos muros.

    H, sim, muito sofrimento na priso. E isso no pode, em absoluto, ser diminudo. Mas

    os mundos de dentro e fora so menos diferentes do que parecem.

    Fui para a priso com uma srie de pressupostos que, talvez, reforassem essa

    distino de mundos. L, porm, me deparei com questes outras, colocadas pelas

    mulheres que esto ali, que as aproximam do mundo de c. Somos, sim, muito

    diferentes; pertencemos a grupos sociais distintos, temos trajetrias distintas que,

    consequentemente, desembocam em concepes distintas sobre muitas questes.

    Mas a diferena que se tornou mais gritante ao longo dessa pesquisa simples: ao

    contrrio de mim, elas foram marcadas pelo sistema de justia. Ao contrrio de mim,

    elas j viviam o crcere antes de serem presas, diante da priso de pessoas queridas.

    Em dado momento de suas vidas, sentiram na prpria pele no mais na pele de

    maridos, filhos, amigos e conhecidos a vida na priso. E mobilizam mbitos diversos

    de suas vidas para formularem essa experincia, experincia esta que afeta

  • 2

    abruptamente as suas relaes e demanda a produo de outras, mas no as retira

    completamente dos seus lugares.

    A proposta dessa dissertao discutir algumas das formas pelas quais as mulheres, na

    priso, negociam posies e projetos que articulam suas vidas dentro e fora do

    crcere. As variaes nesses mecanismos de negociao passam pelo gnero e por

    uma srie de expectativas constitudas diante do gnero que aludem s elaboraes

    que as mulheres fazem das suas vidas, dos seus relacionamentos e de suas famlias.

    Essas elaboraes, marcadas pelo gnero, ganham corpo se analisadas diante das

    expectativas de classe que perpassam a vida dessas mulheres.

    Em ltima anlise, as questes trabalhadas ao longo do texto poderiam ser discutidas

    com mulheres fora de instituies prisionais. Mas esta anlise produzida a partir de

    uma pesquisa com mulheres fora do crcere faria com que o texto deixasse de ter uma

    aspirao fundamental: questionar esse estranhamento inerente imagem

    convencional da priso, mostrar que as mulheres ali encarceradas so Anas, Ditas,

    Marianas. Mulheres que pensam e formulam sobre suas vidas.

  • 3

    Quando elas aparecem

    O Brasil um dos pases com a maior taxa de encarceramento do mundo. As

    informaes coletadas pelo Departamento Penitencirio Nacional (Depen) indicam que

    temos 548 mil1 mulheres e homens privados de liberdade, condenados ou aguardando

    julgamento e presos provisoriamente. A maior parte das acusaes e condenaes que

    levam essas mulheres e homens priso referenciada nos crimes contra o

    patrimnio (furto, roubo, latrocnio) e naqueles relacionados ao trfico de drogas.

    Em nmeros absolutos percebemos que h muito mais homens do que mulheres

    presas; ainda de acordo com os dados do Depen2, os homens correspondem a mais de

    93% da populao carcerria nacional. Contudo, a proporo de mulheres presas vem

    aumentando em maior velocidade, em termos relativos. Nos ltimos anos, a

    populao carcerria de homens cresceu em ritmo menor do que aquele observado

    entre as mulheres. Em artigo recentemente publicado em uma revista de circulao

    nacional, algumas organizaes de defesa dos direitos de pessoas encarceradas

    afirmam que, nos ltimos dez anos, o aumento da populao carcerria de mulheres

    foi de 260%, em comparao ao aumento de 105% da populao de homens presos3.

    1 Informao do Departamento Penitencirio Nacional (Depen) referente a dezembro de 2012. Inclui as

    pessoas presas em penitencirias e delegacias. Disponvel em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D. Acesso em 19/05/2013.

    2 Os dados do Depen so obtidos junto s secretarias estaduais responsveis pela gesto prisional em

    cada estado e podem estar sujeitos a subnotificaes. No caso especfico de So Paulo, o rgo responsvel pelas prises a SAP (Secretaria de Administrao Penitenciria), que no disponibiliza informaes atualizadas da populao carcerria das suas unidades. No entanto, pesquisas realizadas por ncleos de estudos e organizaes da sociedade civil obtiveram resultados parecidos no que concerne s acusaes mais recorrentes no aprisionamento de mulheres e homens em So Paulo. Destas, destaco trs: a pesquisa do Ncleo de Estudos da Violncia (NEV-USP); a do Instituto Sou da Paz; e a do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, todas de 2012.

    3 Publicado na Carta Capital, o texto intitulado Agenda para a poltica prisional - Por um programa

    nacional de desencarceramento e de abertura do crcere para a sociedade foi assinado pelos grupos Mes de Maio, Pastoral Carcerria, Instituto Prxis e Margens Clnicas. Disponvel em:

  • 4

    Vale dizer que o estado de So Paulo aquele que concentra a maior populao

    carcerria nacional, de homens e mulheres4.

    O aprisionamento das mulheres , em larga medida, consequncia das abordagens

    cada vez mais punitivas diante das prticas socialmente circunscritas em torno do que

    chamamos trfico de drogas.

    As atividades relacionadas ao comrcio de drogas, tipificadas como trfico, tornaram-

    se crimes hediondos na dcada de 1990. Essa classificao impede o acusado de

    responder em liberdade ao longo do processo, imputa penas de recluso mais longas

    do que as aplicadas aos crimes comuns e impe um perodo maior de cumprimento da

    sentena em regime fechado antes de possibilitar a progresso da pena para medidas

    no privativas de liberdade5. Mais recentemente, em 2006, a Lei 11.343/2006 (a

    chamada Nova lei de drogas) entrou em vigor e buscou descriminalizar o usurio,

    mas aumentou a punio ao traficante6. A nova legislao tambm manteve a cargo da

    autoridade judicial a definio quanto s quantidades de drogas que configuram uso

    ou trfico, de acordo com o caso. Essa abertura valoriza a subjetividade da deciso e

    mantm a discricionariedade dos operadores, o que d margem ao aprofundamento

    da seletividade do sistema de justia7. Assim, ela revigora a poltica de privao de

    liberdade voltada a traficantes, grandes ou pequenos8.

    http://www.cartacapital.com.br/sociedade/agenda-para-a-politica-prisional-1057.html. Acesso em 23/11/2013).

    4 O Estado de So Paulo possua, em dezembro de 2012, mais de 195 mil pessoas privadas de liberdade

    (ou, cerca de 35% da populao carcerria nacional); destes, 12.674 so mulheres. Dados do Depen referentes a dezembro de 2012.

    5 O Superior Tribunal Federal (STF) j tem resolues que possibilitam aos acusados por trfico de

    drogas o direito de responderem ao processo em liberdade, deciso que, em teoria, criaria uma jurisprudncia e poderia ser replicada em todo o territrio nacional. No entanto, no a prtica mais observada no sistema de justia.

    6 A legislao anterior a 2006 previa, em seu artigo 12, a recluso de 3 a 15 anos e multa para

    condenaes por trfico (Lei 6368/76). A partir da Nova Lei de Drogas, o artigo 33 estabelece como punio para trfico uma pena de recluso de 5 a 15 anos, mais multa. Esse aumento da pena mnima para 5 anos impede que a condenao por trfico seja convertida para uma restritiva de direitos, o que possibilitaria o cumprimento das medidas em liberdade.

    7 O artigo da Nova Lei de Drogas que outorga ao juiz a deciso sobre a droga apreendida ser considerada

    uso ou trfico deixa claro o carter seletivo do sistema de justia quando remete aos critrios que devem ser considerados na definio: Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atender natureza e quantidade da substncia apreendida, ao local e s condies em que se

  • 5

    Vale dizer que as discusses sobre os efeitos da Nova Lei de Drogas na populao

    prisional e as alternativas s imprecises da lei que concedem uma grande margem de

    subjetividade diferenciao entre trfico e uso de drogas do lugar a controvrsias

    entre especialistas. O estabelecimento, em lei, das quantidades de droga que seriam

    consideradas para dividir os flagrantes entre uso e trfico um dos exemplos de

    discordncia entre especialistas e operadores do Direito que discutem a legislao de

    drogas.

    Grillo, Policarpo e Verssimo (2011) analisam alguns dos impactos da Nova Lei de

    Drogas no Rio de Janeiro e argumentam que a legislao proporciona espao para

    prticas policiais arbitrrias. Segundo os autores, a distino entre uso e trfico no

    flagrante do porte de drogas torna-se mercadoria poltica, uma mercadoria cuja

    produo ou reproduo depende fundamentalmente da combinao de custos e

    recursos polticos, para produzir um valor de troca poltico ou econmico (Misse,

    1999, apud Grillo, Policarpo e Verssimo, 2011, p. 138). Segundo a pesquisa, a deciso

    da tipificao criminal realizada na Polcia Civil baseia-se na palavra de quem conduziu

    o flagrante delegacia, geralmente um policial militar. O espao da discricionariedade

    se estabelece desde o flagrante e caminha ao lado da deciso entre considerar a

    quantidade de droga apreendida como uso ou trfico.

    A mesma pesquisa levanta informaes que sugerem que a Nova Lei de Drogas

    poderia impactar o aumento da populao carcerria tendo em vista que as punies

    dirigidas aos traficantes preveem penas mais longas de priso (Boiteux apud Grillo,

    Policarpo e Verssimo, 2011). Essa sugesto coerente com o contexto das prises de

    mulheres, motivadas, em parte considervel dos casos, por acusaes e condenaes

    relacionadas ao trfico de drogas.

    desenvolveu a ao, s circunstncias sociais e pessoais, bem como conduta e aos antecedentes do agente. (Lei 11.343/2006, Art. 28, 2).

    8 Vale dizer que outra lei de drogas, ainda mais rigorosa do que a vigente, vem sendo discutida no

    Congresso.

  • 6

    i) Mudana de perspectiva: do trfico famlia

    A presente pesquisa surgiu diante do quadro de aprisionamento crescente de

    mulheres e sua ntima relao com o trfico de drogas e partiu de algumas

    interpretaes geralmente vinculadas a esse quadro. A principal que possui bastante

    aderncia diante de elementos identificados na priso dessas mulheres que elas

    agem para auxiliar seus homens maridos, companheiros, namorados, irmos, pais

    e acabam sendo presas durante o processo. H, inclusive, uma proporo

    significativa de mulheres presas por trfico que foram flagradas dentro do prprio

    sistema penitencirio, tentando entrar com drogas para seus homens.

    H ainda a percepo, por parte dessas mulheres e referenciada na literatura, de que o

    comrcio de drogas no requer, necessariamente, um envolvimento profundo e

    exclusivo com um mundo do crime9, possibilitando a articulao de uma dita vida

    normal10 com atividades ilegais realizadas pontualmente. A dinmica do trfico de

    drogas, sobretudo no comrcio de pequenas quantidades, possui especificidades que,

    como ressalta Cunha (2006), possibilitam a criao de nichos facilitadores entrada

    das mulheres, ainda que elas se insiram de forma perifrica e sejam facilmente

    substituveis. A elas seria possvel se envolver com o comrcio da droga e,

    cumulativamente, responsabilizar-se por outras demandas cuja responsabilidade

    outorgada s mulheres o sustento e o cuidado com a casa e os filhos, por exemplo.

    Algumas das mulheres, organizaes e militantes em defesa de direitos de mulheres

    presas11 tambm se utilizam de outra explicao para responsabilizar o trfico pelo

    9 Feltran (2008) afirma que seu uso da expresso "mundo do crime" parte de uma acepo "nativa" e

    utiliza a expresso para designar "o conjunto de cdigos sociais, sociabilidades, relaes objetivas e discursivas que se estabelecem, prioritariamente no mbito local, em torno dos negcios ilcitos do narcotrfico, dos roubos, assaltos e furtos" (p.31). Ramalho (2008 [1979]) se utiliza da expresso sendo que em sua anlise o desvendamento do mundo do crime passa necessariamente pela compreenso dessa categoria-chave que a massa do crime, conjunto de normas de comportamento, de regras do proceder, que regem a vida do crime dentro e fora da priso (p. 15).

    10 Aqui fao referncia fala de Cris, personagem do captulo 3. Presa por trfico, ela comentou que

    encarava a atividade como um trabalho como outro qualquer e levava uma vida normal. Aliada a essa ideia, afirmava que a gente no tinha aspecto de bandido.

    11 Ainda que a situao econmica e a desigualdade social sejam questes trazidas por muitas das

    organizaes que atuam na defesa de direitos das pessoas presas, aqui penso, especificamente, nas

  • 7

    fenmeno do encarceramento de mulheres: o sofrimento diante de dificuldades

    econmicas e a necessidade de prover o sustento da famlia, contexto que as levaria a

    buscar retornos financeiros com a realizao de atividades vinculadas ao trfico. A

    plasticidade da atividade que permite esse envolvimento pontual das mulheres pode

    se articular a essa tese se considerarmos a possibilidade que se abre, com o trfico, de

    obter ganhos paralelos realizao de atividades legais.

    Essa necessidade de lidar com o sustento da famlia pode se relacionar tanto quelas

    mulheres que so as nicas ou principais responsveis pela renda da casa, mas

    tambm s mulheres que trabalham diante da perspectiva que encara os seus ganhos

    como complementares renda obtida pelo marido. De todo modo o trabalho

    remunerado das mulheres, ainda que percebido como uma necessidade circunstancial

    e no um ideal a ser buscado, frequente em pesquisas mais antigas sobre famlia e

    classes populares (Caldeira, 1984; Durham, 2004 [1980]; Zaluar, 1985). A despeito de

    ser enunciada nas hipteses relacionadas ao envolvimento das mulheres com o trfico

    de drogas, proponho retomar essa discusso mais frente, para problematizar a

    anlise das interlocutoras da pesquisa que viam no trfico um trabalho como outro

    qualquer.

    Em artigo recentemente publicado, Cordeiro (2013) apresenta a pesquisa que realizou

    com mulheres privadas de liberdade no Talavera Bruce, penitenciria situada no Rio de

    Janeiro. Ao fazer um balano das produes brasileiras que discutem as mulheres

    presas, a pesquisadora afirma que os estudos geralmente concentram-se em discutir

    representaes da criminalidade feminina, o perfil sociodemogrfico dessas mulheres

    e as circunstncias que envolveram as prises, e indica, ainda, que vm crescendo os

    estudos sobre maternidade e religiosidade no crcere de mulheres; gnero e

    sexualidade, por sua vez, continuam sendo aspectos negligenciados nos olhares para

    essas mulheres.

    Ao longo da realizao das disciplinas na ps-graduao e do desenvolvimento da

    pesquisa de campo em unidades prisionais de mulheres, por meio da Pastoral abordagens percebidas na Pastoral Carcerria e no Grupo de Estudos e Trabalho (GET) Mulheres Encarceradas, nos quais participei anteriormente pesquisa e durante a sua realizao. Ambos sero apresentados no tpico relativo ao desenvolvimento da pesquisa de campo.

  • 8

    Carcerria12, algumas questes ainda relativas participao de mulheres no trfico

    foram impulsionadas em detrimento de outras, deixadas em suspenso; seria

    necessrio investigar essa mesma participao sob a perspectiva delas. De que

    maneira encaravam seu prprio envolvimento com a prtica? Existiriam no trfico

    especificidades recortadas pelo gnero? Em que medida ser mulher possibilitaria

    arranjos diferentes nas atividades envolvidas no trfico para alm das articulaes

    possibilitadas pela plasticidade da atividade?

    Com efeito, a recolocao das perguntas permitiu um melhor delineamento de um

    objeto de pesquisa, mas no reverberou em campo. Se eu buscava conversar sobre a

    vida daquelas mulheres antes do crcere na tentativa de entrar no assunto trfico,

    elas queriam conversar sobre outras coisas. Falavam sobre o dia-a-dia do crcere, as

    fofocas e as brigas, o sofrimento e a solido. Contavam sobre as festas e as famlias.

    Mostravam cartas e fotografias, dividiam os planos para o futuro fora dali13.

    Independentemente de meus esforos para dirigir o foco para o tema da participao

    das mulheres no trfico, as questes que emergiam e mobilizavam as interlocutoras

    diziam respeito s suas vidas pessoais, relacionamentos e famlia.

    Fonseca (2007), ao comentar o pouco interesse das discusses sobre famlia entre os

    cientistas sociais nas ltimas dcadas, faz uma provocao que serviu bem para rever

    as perspectivas iniciais desta pesquisa: como se o material sobre as relaes

    familiares emergisse apesar dos analistas (p.9). Enfrentando a provocao, passei a

    discutir com as mulheres os temas sobre os quais elas efetivamente queriam falar.

    Em meio s conversas, alguns pontos tornavam-se recorrentes. A convivncia com a

    droga era compartilhada pelas minhas interlocutoras, seja por conta das atividades

    que levaram ao aprisionamento por trfico, seja pelo uso contnuo de substncias

    ou pela articulao entre essas duas formas de contato. A priso, alm de ter sido o

    espao privilegiado de dilogo com essas mulheres, tambm estava muito presente

    em suas falas no somente a partir das suas prprias experincias de

    12

    Os detalhamentos sobre a pesquisa de campo sero apresentados logo frente.

    13 Agradeo a leitura e os comentrios preciosos dos professores Gabriel Feltran e Helosa Buarque de

    Almeida no exame de qualificao, fundamentais para perceber as informaes que o campo proporcionava ainda que fossem distintas daquelas que eu, a princpio, buscava.

  • 9

    encarceramento, mas tambm pelas experincias com o crcere vivenciadas por filhos,

    maridos, vizinhos e conhecidos. Com efeito, como nota Telles (2009, p. 172),

    indivduos com passagens pelos dispositivos judiciais-carcerrios so cada vez mais

    presentes no cenrio urbano atual. Famlia, portanto, tornou-se questo diante da

    persistncia das mulheres em contarem sobre suas famlias e de produzirem

    mediaes entre suas experincias familiares e a vida no crcere.

    ii) Trabalhadores e bandidos

    A experincia social das classes populares marcada pelas associaes que so

    constitudas entre pobreza e criminalidade. Os trabalhadores e bandidos se

    colocam em oposio, como indica Zaluar (1985), mas no h uma segregao

    absoluta entre as duas categorias, que coexistem e, em alguns momentos, so

    anuladas em favor de uma estigmatizao que classifica a todos como bandidos.

    Zaluar estabelece dois movimentos relacionados convivncia dessas categorias em

    um mesmo bairro que caminham para momentos de diferenciao e de

    identificao. H, por um lado, uma diferenciao entre trabalhadores e

    bandidos constituda, sobretudo, diante das relaes estabelecidas com o mundo do

    trabalho. No entanto, a identificao de todos os que vivem no bairro com a

    categoria bandido opera em contextos que perpassam as relaes com o Estado e,

    sobretudo, com a ao policial quando todos, trabalhadores e bandidos, so

    tratados como pertencentes ltima categoria.

    A coexistncia e a confuso entre as duas categorias operam no apenas entre os

    moradores dos bairros, mas tambm dentro das famlias. Feltran (2011) constri a

    trajetria de uma famlia formada por trabalhadores e bandidos com muitos de

    seus membros marcados pela experincia da priso. A distino entre essas duas

    categorias apresentada pelo autor diante das formas pelas quais opera em diferentes

    nveis: no interior da famlia, na sociabilidade local e na forma como toda a famlia e

    seus pares so vistos no espao pblico.

  • 10

    No interior da famlia, os filhos que no aderiram ao mundo do crime se valem da

    distino trabalhador para distinguir suas trajetrias daquelas de seus irmos que,

    em diferentes medidas, se envolveram com atividades consideradas criminosas; mas,

    como afirma Feltran, os irmos que no se envolveram so obrigados a encontrar

    justificativas para o fato de no terem optado pelo crime. (Feltran, 2010, p. 410). A

    justificao que aparece em seus discursos faz referncia ao fato de que o crime

    deveria render mais ganhos do que efetivamente rende. Os irmos que se envolveram

    com o mundo do crime, por sua vez, no se valem da distino bandido para se

    constiturem enquanto grupo, mas ressaltam as compensaes financeiras das quais

    toda a famlia se beneficia. No h, assim, uma diferena intransponvel estabelecida

    entre os trabalhadores e os bandidos, ao menos entre os familiares. Segundo

    Feltran, os trabalhadores so os provedores simblicos, orgulham a me; os

    bandidos garantem o sustento da famlia.

    Se duas categorias coexistem no interior da famlia, so dissolvidas em episdios onde

    todos so considerados bandidos. Enquanto as operaes policiais de rotina

    mantinham a separao dos filhos da mesma famlia em dois grupos e incidiam sobre

    os bandidos das famlias, operaes policiais mais amplas no atuam diante dessa

    distino; a identificao de bandido recai no apenas sobre as pessoas associadas a

    um envolvimento com o crime, mas tambm sobre aqueles prximos a elas14. A

    distino entre trabalhadores e bandidos, que funciona no interior da famlia,

    deixa espao para uma vitimizao generalizada, onde todas e todos so suspeitos.

    A convivncia em uma mesma famlia entre pessoas com e sem envolvimento com

    atividades consideradas criminosas aparecia tambm entre as interlocutoras da

    pesquisa. As experincias com aprisionamentos para alm dos seus prprios perodos

    de crcere e a vivncia mais ou menos intensa com atividades ligadas ao crime

    representadas, sobretudo, pelo comrcio de drogas eram questes que permeavam

    suas relaes familiares.

    14

    Feltran usa os exemplos da Operao Saturao e do perodo posterior aos ataques do PCC, em 2006, para falar sobre a associao indiscriminada de todos os filhos da famlia com a categoria bandido. Naqueles contextos, pouco importava ter uma ficha sem antecedentes criminais a polcia reprimia a todos.

  • 11

    iii) Mulheres e famlia

    H na literatura que discute mulheres e famlias de classes populares uma srie de

    questes que ecoam nesta pesquisa. Por um lado, existem percepes de que

    determinadas famlias seriam mais estruturadas do que outras e as mulheres aqui

    apresentadas discutem suas prprias concepes de famlia tambm diante dessas

    percepes. H, ainda, uma identificao das mulheres como guardis da moral da

    famlia, e responsveis pela sua continuidade. Se a me da famlia pesquisada por

    Feltran vivenciava um sofrimento intenso na tentativa de produzir alguma unidade, as

    interlocutoras desta pesquisa so, muitas vezes, vistas com outros olhos: percebidas

    como pertencentes a famlias desarranjadas, ao mesmo tempo que so apontadas

    como culpadas pelo desarranjo de suas famlias.

    Zaluar (1985) comenta que as famlias que participaram da sua pesquisa

    apresentavam, de modo geral, uma demarcao clara dos papis femininos e

    masculinos. Enquanto os maridos tinham a responsabilidade de serem os provedores

    principais, cabia s mulheres a gerncia da casa e a socializao das crianas. Esse lugar

    das mulheres de responsabilidade pela socializao e, deste modo, pela transmisso

    dos valores morais utilizado pela autora para fazer referncia presena das

    famlias matrifocais na "organizao social dos trabalhadores pobres" (Cardoso e

    Durham, 1977 apud Zaluar, 1985). A me, segundo a autora, "tem importncia crucial

    no estabelecimento e reforo de suas redes de relaes, na transmisso dos valores

    morais do grupo, e, acima de tudo, na atividade que os possibilita afastar-se da

    fronteira que separa a misria da pobreza".

    Em Sarti (2005), a diferenciao de papis entre o homem e a mulher na famlia

    tambm bastante demarcada, mas enquanto ao homem caberia a mediao com o

    mundo externo (e, assim, a manuteno da moralidade), a mulher se responsabilizaria

    pela manuteno da unidade do grupo o aspecto do cuidado e a garantia de que

    tudo est em seu lugar.

  • 12

    As mulheres das classes trabalhadoras aparecem nessa literatura a partir de lugares

    diversos. Elas se colocam como colaboradoras na obteno dos ganhos da famlia,

    sobretudo quando essa demanda se impe diante das dificuldades financeiras. Ainda,

    elas so as responsveis pela socializao dos filhos e, em grande medida, pela

    manuteno da moral na famlia; cabe a elas guardar a moralidade.

    A viso de que existem modelos certos e errados de famlia ser apresentada diante do

    debate sobre a matrifocalidade, que faz referncia s famlias chefiadas por

    mulheres15. Neves (1985) discute esse arranjo a partir de uma perspectiva que o

    enxerga como uma variao dos padres sociais que seria a resposta a uma estratgia

    de sobrevivncia diante da impossibilidade de reproduo da organizao (que seria)

    dominante: pai, me, filhos. Assim, a matrifocalidade aparece no de maneira

    independente, mas como estratgia que substituiria, pelo perodo necessrio, a

    constituio relativamente estvel de famlia; o matrimnio continuaria sendo um

    valor, e um valor desejvel. Alm de transitria, a matrifocalidade expressaria uma

    acentuao do desempenho do papel da esposa quando a complementaridade entre

    marido e mulher estaria prejudicada.

    O trabalho da mulher seria, nessa abordagem, percebido como complementar ao

    trabalho do homem ainda que se afirme que o trabalho delas como empregadas

    domsticas16, por exemplo, poderia ser um fator de ampliao do poder interno

    famlia por constituir um saber especfico que assegura a manipulao de valores e

    relaes (p.204). A despeito de reconhecer a matrifocalidade como existente, Neves

    no a descreve como um tipo de famlia, mas como uma alternativa construda para

    se enfrentar as tenses e crises de reproduo de famlias nucleares. A organizao

    das famlias centralizada nas mulheres seria, assim, resultado de um desarranjo e fonte

    de conflitos.

    15

    Woortmann e Woortmann (2002) retomam uma literatura sobre monoparentalidade e chefia feminina e afirmam que o monoparentalismo feminino cinco vezes maior que o masculino, espelhando talvez a permanncia de uma ideologia de gnero tradicional, onde criana assunto de mulher. (p.27).

    16 O trabalho como empregada domstica permitiria acessar bens materiais preteridos por outros

    grupos sociais (os patres).

  • 13

    J Fonseca (2000) prope uma discusso sobre a lgica subjacente organizao

    familiar nos segmentos populares baseando a anlise nas relaes de

    consanguinidade. A autora parte de uma proposta distinta daquela que organiza a

    elaborao sobre famlia a partir de um modelo (que seria o correto) e variaes (que

    seriam situacionais); defende, ao invs, o reconhecimento da diversidade de arranjos e

    da existncia de modelos alternativos. A autora tambm nega a ideia de que

    arranjos alternativos de famlia sejam necessariamente resultantes de estratgias de

    sobrevivncia, argumentando que esses outros modelos no so exclusivos dos

    segmentos populares.

    A noo de matrifocalidade problematizada por Fonseca a partir de uma retomada

    da elaborao produzida por R. T. Smith, que indica as mulheres enquanto mes como

    o centro das relaes sociais e familiares e, posteriormente, o centro de uma coalizo

    econmica e poltica (decision-making coalition) junto com seus filhos (Smith, 1973

    apud Fonseca, 2000, p. 64). No entanto, o caso estudado pela pesquisadora apresenta

    distines que colocam em questo o uso da matrifocalidade como referncia. Mesmo

    nas redes de ajuda mtua entre as mulheres, h a necessidade de apoio da presena

    masculina. A dependncia dos homens ilustrada pelo controle sobre as finanas. As

    mulheres no controlam o dinheiro da casa e dependem do marido para qualquer

    despesa. Dessa forma, o auxlio a parentes, por exemplo, passaria pela necessidade de

    apoio do marido. Essa relao alienada com o dinheiro existiria mesmo quando a

    mulher possui uma remunerao, fator que no aumenta seu status dentro da casa:

    ainda que tenha um trabalho, o controle do dinheiro seria do marido.

    Fundamentalmente, a autora retoma criticamente uma produo sobre famlia e

    chega crtica da prpria noo de matrifocalidade, que no funciona

    conceitualmente se o poder que seria das mulheres extremamente mediado por

    homens, seja por meio do casamento, seja pela existncia de laos consanguneos.

    Interessante notar que o carter de desarranjo e potencial produtor de conflitos

    vinculado noo de matrifocalidade tal como se apresenta em Neves (1985) pode ser

    percebido se traado um paralelo com algumas falas que remetem a mulheres

    acusadas de envolvimento com delitos. Julita Lemgruber (2010), ao relembrar histrias

  • 14

    do perodo em que fazia pesquisa na Penitenciria Feminina Talavera Bruce, no Rio de

    Janeiro, relata um dilogo com um funcionrio da penitenciria que entende o

    envolvimento de mulheres com o crime como um desarranjo:

    - Pra mim, mulher delinquente pela segunda vez tem de mandar esterilizar. No pode ser me, no tem condies de educar uma criana. Ento perguntei: - E o homem que for reincidente? Tem que ser castrado? - Claro que no. Com homem diferente. (Lemgruber e Paiva, 2010, p. 28).

    As prprias presas levantavam a diferena de percepo de homens e mulheres

    infratores e a imagem que elas possuam de si mesmas:

    No h mulher to oprimida como a mulher marginal. (...) Ela algum que se perdeu, portanto, uma mulher que no presta. Para o homem, ser malandro pode ser uma arte. Para a mulher, ser marginal nunca ser uma arte. Ser sempre uma desonra. O prprio malandro vai recrimin-la por estar presa, largando os filhos prpria sorte. (Lemgruber e Paiva, 2010, pp. 28-29).

    Para alm da noo de desarranjo, os relatos apontam para uma crtica da mulher que

    cometeu delitos como incapaz ou no merecedora de cuidar dos filhos. Esse

    mesmo olhar reproduzido na trajetria de Ana, uma das interlocutoras desta

    pesquisa, conforme mostraremos no segundo captulo. Ana teve sua filha na priso e

    seus familiares no obtiveram a guarda provisria da criana sob a justificativa de que

    no teriam as condies de cri-la. Em sua defesa, e na tentativa de recuperar a

    custdia da menina, Ana ressalta que tem famlia.

    iv) Recolocando o problema

    A retomada sobre aspectos de produes sobre famlia e classes populares ajudou-nos

    a levantar as noes mobilizadas pelas interlocutoras da pesquisa diante do

    entendimento da famlia como uma noo poltica e cientfica historicamente

    situada (Fonseca, 2007). Com efeito, as mulheres aqui apresentadas mobilizam

    noes de "famlia" para elaborarem suas experincias na priso. Essa tentativa de

    conectar as concepes de famlia aqui debatidas s elaboraes das mulheres que

    colaboraram com a pesquisa motivada por uma advertncia da prpria Fonseca:

  • 15

    A famlia no deixa de ser apreciada enquanto um valor de importncia crucial para muitas pessoas. Porm, fica acordado que usar essa categoria nativa como termo analtico encerra certo perigo. Arrisca criar uma confuso que coloque a cincia a servio das verdades conservadoras do senso comum. (Fonseca, 2007, p. 16).

    Quando discute famlia e os lugares nela ocupados por mulheres e homens pobres,

    Sarti (2005) conclui seu argumento com a afirmao de que famlia seria uma

    linguagem atravs da qual os pobres traduzem o mundo social, orientando e

    atribuindo significado a suas relaes dentro e fora da casa. (p.32).

    As mulheres presas com quem conversei atribuem valor s suas famlias e constroem

    noes de famlia que dialogam, como argumento e contra-argumento, com

    concepes outras presentes no crcere que saem da boca de colegas encarceradas,

    de agentes prisionais, do sistema de justia. , portanto, uma categoria nativa que

    ajuda a elaborar significados para as experincias dessas mulheres com a priso ou,

    nos termos de Sarti, uma linguagem que serve traduo do mundo social. E como

    categoria nativa que se pretende discutir os significados atribudos famlia pelas

    mulheres aqui apresentadas.

    Ainda que a priso no seja o centro das discusses propostas por essa dissertao, ela

    foi o local onde parte da pesquisa se desenvolveu e atravessa as trajetrias dessas

    mulheres para alm das suas prprias experincias com o crcere. A despeito de as

    relaes com a droga e o trfico no (mais) serem o fulcro de meu interesse na

    trajetria dessas mulheres, a prtica incorporada nessas mesmas trajetrias por

    meio das condenaes que as encarceraram e o uso contnuo de substncias. A priso

    e o trfico so dois aspectos presentes nas estrias dessas mulheres e nas relaes que

    elas estabelecem, tanto com as suas famlias quanto dentro da prpria priso. Durante

    todo o tempo, o crcere e a droga constroem e mediam relaes com filhos,

    namorados, maridos e, em ltima anlise, com os prprios agentes da Pastoral

    Carcerria.

    Em um dos muitos dias de visita penitenciria, uma das interlocutoras que colaborou

    com a pesquisa comentou que h um programa de rdio dedicado populao

    prisional. O Momento do presidirio transmitido por uma rede ligada a uma igreja

  • 16

    evanglica17 e oferece um espao para que pessoas possam enviar recados aos seus

    familiares e amigos encarcerados. Quando comentou sobre o programa, minha

    interlocutora pediu que eu contatasse a rdio para mandar um salve18 a elas,

    justificando seu pedido: porque s mandam salve pra homem.

    Esse momento do campo e a comparao que minha interlocutora prope entre a

    ateno dada aos presos e s presas foram retomados para remeter ao desafio mais

    geral do trabalho aqui apresentado: falar sobre as mulheres em contextos em que, na

    maior parte das vezes, os homens vm sendo o centro da questo. E a identificao

    das estratgias de atuao empregadas por essas mulheres, em um contexto como o

    da priso, o enfoque que d substncia a esse desafio mais geral.

    H elementos que indicam que o lugar das mulheres na famlia algo relevante para

    entender as formas pelas quais as interlocutoras da pesquisa elaboram as suas

    experincias na priso. Isso pode, de certa forma, significar uma reafirmao das

    prprias mulheres acerca das suas obrigaes no mbito do privado, mesmo aps

    terem ocupado o espao pblico do crime. Mas, independente dos significados

    desse movimento pblico-privado, como veremos, as mulheres mobilizam a categoria

    famlia quando produzem suas elaboraes.

    As personagens que apresentarei ilustram, sua maneira, as formas pelas quais

    algumas relaes so constitudas e reposicionadas diante e a despeito da

    experincia da priso. A perspectiva que articula as histrias dessas mulheres a

    noo de que a privao de liberdade altera profundamente as formas pelas quais elas

    do continuidade s relaes estabelecidas antes do encarceramento; mas o crcere

    no as retira completamente dessas mesmas relaes e promove relaes outras,

    anteriormente inexistentes. Estar na priso requer posicionar-se diante das dinmicas

    17

    O programa transmitido pela Rede Aleluia, vinculada Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Mais informaes sobre o programa podem ser obtidas no endereo: http://www.arcauniversal.com/noticias/brasil/noticias/momento-do-presidiario-12525.html (Acesso em 04/10/2013).

    18 O salve, nesse contexto, apresenta-se como um recado, uma mensagem s mulheres que

    conversaram comigo. A ideia de salve como recado ou mensagem pode ganhar o sentido de orientao a ser seguida em contextos outros, sobretudo relacionados presena do Primeiro Comando da Capital (PCC) nas unidades prisionais. As consideraes sobre o PCC e sua presena ao longo da pesquisa sero apresentadas no primeiro captulo.

  • 17

    produzidas pela convivncia com outras mulheres presas, com as igrejas e

    organizaes no governamentais, com o Primeiro Comando da Capital (PCC), que

    estabelece procederes e regulaes para a vida dentro do crcere, e com o Estado

    que ganha corpo a partir da prpria instituio prisional e tambm a partir do sistema

    de justia.

    O gnero um marcador central para compreender o posicionamento dessas

    mulheres, na medida em que estabelece expectativas e desempenhos especficos que

    so aludidos pelas suas falas; elas dialogam com papis de gnero j descritos em

    pesquisas realizadas com famlias de classes populares que remetem s mulheres

    lugares como os de me, esposa e trabalhadora/batalhadora. Se no caso de Ana,

    apresentada no segundo captulo, a maternidade e a sexualidade so aspectos que a

    posicionam, Mariana e Cris, personagens do terceiro captulo, constituem

    possibilidades para a elaborao da figura da mulher batalhadora. Dita, como

    contraponto, se apresenta diante da srie de abandonos que, dentro e fora da priso,

    inspira uma dificuldade em posicionar-se de outra maneira que no pela tica do

    sofrimento e da carncia.

    a partir das trajetrias dessas quatro mulheres, dentro e fora da priso, que sero

    discutidas as variaes sobre como elas negociam suas posies e projetos,

    conectando as suas vidas intra e extramuros.

    v) Gnero, classe e suas articulaes

    A utilizao do gnero enquanto categoria analtica til para pensarmos nas questes

    mobilizadas pela interlocuo com as mulheres na priso. Scott (1990, p. 14) apresenta

    o gnero como elemento constitutivo de relaes sociais fundadas sobre as

    diferenas percebidas entre os sexos e como um primeiro modo de dar significado s

    relaes de poder. Gnero no existe em isolado, mas na relao, e central para

    perscrutar as relaes de poder e as desigualdades que perpassam as experincias

    vivenciadas pelas mulheres aqui apresentadas. No entanto, o gnero tampouco se

  • 18

    produz em separado, mas sim na imbricao com outros marcadores sociais; no caso

    das mulheres presas, inter-relacionar gnero e classe central.

    Diante da necessidade de trabalhar os dois marcadores, parto da proposta formulada

    por McClintock (2010), que sugere uma anlise articulada das categorias (em seu

    trabalho, o gnero, a classe e a raa) argumentando que tais marcadores:

    (...) no so distintos reinos da experincia, que existem em esplndido isolamento entre si; nem podem ser simplesmente encaixados retrospectivamente como peas de um Lego. No, eles existem em relao entre si e atravs dessa relao ainda que de modos contraditrios e em conflito. (McClintock, 2010, p. 19).

    Articular marcadores um desafio no sentido de evitar o que McClintock nega; no

    encaix-los como peas de um Lego ou pens-los como instncias separadas de uma

    mesma questo. Nesse sentido, experincias relacionadas ao gnero e classe esto

    presentes nas vivncias de minhas interlocutoras, e perdem sentido se apartadas.

    Com o cuidado de no cair em uma das teses equivocadas sobre a criminalidade

    urbana no Brasil (Misse, 1995), no quero assumir que o envolvimento com

    atividades ilcitas exclusivo das classes populares, tampouco reforar essa falsa

    associao19. O recrudescimento da punio para pessoas envolvidas com as

    atividades consideradas trfico de drogas se inscreve em um contexto mais amplo de

    endurecimento penal que multiplicou a populao carcerria brasileira. possvel

    fazer uma leitura do crescimento significativo da populao carcerria como resultado

    de uma poltica que percebe a priso como um instrumento de gesto social

    (Wacquant, 2011).

    Silvestre (2012) discute a inaugurao de duas prises instaladas em momentos

    diferentes em Itirapina, municpio do interior do estado de So Paulo, e analisa as

    mudanas da poltica penitenciria paulista a partir desse estudo de caso. Sua anlise

    contribui para compreendermos como o paradigma punitivo que v a priso como um

    dispositivo de gesto da populao (Foucault, 2009 [1979]) tem eco nas decises

    relativas ao sistema carcerrio paulista. No perodo de instalao da primeira

    19

    H pesquisas que abordam atividades ilegais sem o olhar para as classes populares. Grillo (2008), por exemplo, faz um estudo de caso entre jovens de classe mdia envolvidos com o trfico de drogas no Rio de Janeiro.

  • 19

    penitenciria, na dcada de 1970, Silvestre indica que o paradigma vigente (e presente

    nas falas dos seus interlocutores) era o da priso como um local para a ressocializao

    dos presos20. Contudo, a implementao da segunda penitenciria j no fim dos anos

    1990 parte de uma poltica de expanso e interiorizao penitenciria que, no estado

    de So Paulo, teve incio na gesto Mrio Covas, em 1996. Silvestre ainda remete ao

    trabalho de Biondi (2009), que argumenta que a poltica de interiorizao dos presdios

    ajudou a camuflar o aumento massivo do encarceramento em So Paulo como as

    unidades prisionais so pulverizadas em todo o estado, perde-se o impacto visual que

    o aumento do encarceramento poderia causar.

    A expanso e interiorizao prisional se articulam ao paradigma da punio e da

    gesto das chamadas pessoas indesejveis. Com efeito, o sistema de justia

    seletivo e leva para o crcere aqueles e aquelas acusados e condenados pelo

    envolvimento com atividades socialmente consideradas criminosas e, geralmente,

    pertencentes s camadas mais pobres.

    vi) Das estratgias para contar estrias

    Ao longo do perodo que compreendeu a pesquisa de campo, pude observar uma srie

    de movimentaes no crcere, conhecer e falar com muitas mulheres. Essas conversas

    ocorreram em diferentes nveis: dialoguei com mais tranquilidade com ao menos cinco

    mulheres ao longo de diversas visitas priso e, assim, obtive mais informaes sobre

    suas vidas; com outras, no foi possvel estabelecer conversas mais alongadas, mas

    alguns assuntos debatidos de maneira pontual trouxeram questes interessantes para

    a produo dos dados apresentados nesta pesquisa. Tambm tive a oportunidade de

    20

    Trabalhar e estudar dentro do crcere so direitos da pessoa presa estabelecidos pela Lei de Eexecues Penais LEP (Lei n 7210, de 11 de julho de 1984). No entanto, esse paradigma da ressocializao cristalizado na ideia de que o/a preso/a deve trabalhar (e/ou estudar) dentro do crcere. Em Silvestre (2012), a fala de agentes penitencirios referenciados nesse antigo paradigma exalta as qualidades do trabalho como possibilidade de ressocializao dos presos e caminho para a construo de uma trajetria longe do crime aps a sua liberdade. No atual contexto penitencirio paulista, os Centros de Ressocializao (CRs) representam um eco deste mesmo paradigma; nessas unidades, os presos devem trabalhar. Especificamente sobre os CRs de mulheres, ver: Massaro, 2013.

  • 20

    encontrar parte dessas mulheres em um momento posterior ao perodo prisional, j

    em suas casas, em um contexto onde a (falta da) autorizao da SAP tornou-se

    irrelevante. E, por fim, a convivncia com essas mulheres me proporcionou o acesso a

    cartas, bilhetes e fotografias que as ajudavam a contar suas histrias e me ajudaram a

    trazer para a dissertao as formas pelas quais essas mulheres mobilizam a categoria

    famlia em seus relatos.

    A proposta metodolgica seguiu Bourdieu (2006), que discute a elaborao de

    histrias de vida apontando o quanto esses relatos tendem a ser construdos a partir

    de uma perspectiva linear que se espelha em um modelo oficial da apresentao de

    si (p. 188). Tal anlise o leva a defender a ideia de trajetria, que busca uma

    compreenso da vida do sujeito no a partir dos acontecimentos, mas a partir das

    posies ocupadas pelo agente no espao e sujeitas a transformaes21. Reconhecer

    que essas mulheres so um devir, agentes em processo de constante transformao, e

    entender a experincia da priso como uma das posies de sua trajetria ajuda a

    explorar e sugerir articulaes entre essas posies.

    Mas se o exerccio da antropologia implica ter cuidado com a apresentao dos dados,

    a pesquisa com mulheres que passaram pela priso requer um cuidado ainda maior. As

    histrias aqui apresentadas so atravessadas pelas relaes com a justia e com

    prticas social e judicialmente condenveis. Diante da necessidade de proteger ao

    mximo a identidade das mulheres que se dispuseram a dividir suas experincias

    comigo e com esta pesquisa, a apresentao das informaes foi organizada de modo

    a aglutinar, nas quatro trajetrias, os aspectos pertinentes dissertao. As mulheres

    com quem pude conversar mais detidamente so o fio condutor da narrativa e trazem

    as questes que so sobrepostas s experincias de outras mulheres. Da mesma

    maneira, e partindo da mesma preocupao, a apresentao da priso foi organizada

    de modo a condensar em um relato as observaes ocorridas nas muitas visitas a mais

    de uma penitenciria.

    21

    (...) trajetria como srie de posies sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espao que ele prprio um devir, estando sujeito a incessantes transformaes. (Bourdieu, 2006, pg. 189).

  • 21

    Ortner (2003), em uma pesquisa com ex-colegas de escola, se utiliza da produo de

    personagens a partir de histrias dispersas como forma de diluir histrias que possuem

    sentido, ainda que desvinculadas de pessoas em especfico22. A estratgia utilizada por

    Ortner garante, tambm aqui, a segurana e a no identificao das interlocutoras. A

    mistura de histrias cria estrias que impedem ou, ao menos, dificultam a

    identificao dessas mulheres e o aprisionamento dessas mesmas estrias em uma

    unidade prisional especfica. Ao mesmo tempo, a apresentao das informaes

    coletadas em campo por meio de estrias no prejudica o carter da pesquisa; se h

    certa composio ficcional de personagens, os fatos contados e atribudos a elas no

    so inventados.

    vii) A busca pela chave ou a entrada no campo

    A pesquisa de campo foi realizada entre dezembro de 2011 e maio de 2013, perodo

    em que visitei, semanalmente, unidades prisionais de mulheres localizadas na regio

    metropolitana de So Paulo23. Em outras oportunidades, tambm pude conversar com

    mulheres com quem tive contatos prvios na priso, mas se encontravam em

    liberdade.

    Parte dessas visitas foi realizada em companhia de outra pesquisadora do campo de

    mulheres e priso, Natlia Corazza Padovani, doutoranda em Antropologia na

    Unicamp. Integro, com ela, um grupo de estudos intitulado "Prises em Gnero", que

    ainda congrega Bruna Bumachar, tambm doutoranda em Antropologia na Unicamp, e

    Natalia Negretti, mestranda em Cincias Sociais na PUC-SP. Nossos interesses comuns,

    a despeito das diferentes questes trabalhadas, nos possibilitam dialogar sobre

    leituras e abordagens tericas e tambm compartilhar as nossas pesquisas tanto em

    22

    Essa tornou-se uma sada metodolgica possvel a partir dos debates realizados no mbito do Ncleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferena (Numas-USP), especialmente na discusso de parte desse trabalho na I Jornada Interna do Numas, realizada em maio de 2013.

    23 Opto por no revelar as unidades prisionais visitadas porque no obtive autorizao da Secretaria de

    Administrao Penitenciria para a realizao da pesquisa no ambiente prisional.

  • 22

    termos de impresses do campo quanto em relao a eventuais interlocutoras. As

    conversas entre as integrantes do grupo resultam em anlises riqussimas construdas

    a muitas mos.

    A obteno de autorizao para a realizao de pesquisas no interior das unidades

    prisionais da Secretaria de Administrao Penitenciria do estado de So Paulo (SAP)

    um processo permeado por dificuldades24 que, muitas vezes, so incompatveis com o

    tempo existente para a realizao de uma pesquisa de mestrado. Tais dificuldades

    levaram necessidade de buscar caminhos alternativos que garantissem a realizao

    da pesquisa de campo. Diante disso, decidi desenvolver a pesquisa em conjunto com a

    atuao enquanto agente25 da Pastoral Carcerria, organizao com a qual eu possua

    um contato anterior ao ingresso no mestrado. Vale dizer que esse caminho tambm

    utilizado por outros pesquisadores de prises.

    Conheci integrantes da Pastoral Carcerria porque participei, entre 2008 e 2012, do

    Grupo de Estudos e Trabalho (GET) Mulheres Encarceradas. O grupo congrega pessoas

    interessadas e representantes de instituies que se propem a discutir a situao das

    prises femininas, de modo geral ou por meio de casos especficos, e pensar em aes

    voltadas garantia dos direitos das mulheres presas. Essas aes geralmente passam

    por promover articulaes institucionais e envolver a Defensoria Pblica nas demandas

    no sentido de garantir uma atuao do Estado para alm das iniciativas pontuais. Foi a

    partir desse contexto que me aproximei do tema das mulheres encarceradas e conheci

    o trabalho de instituies da rea da justia criminal entre elas, a Pastoral. Ainda,

    vale dizer que minha interlocuo com a Pastoral teve incio com o dilogo com alguns

    dos profissionais envolvidos com o trabalho nas penitencirias. Destaco, sobretudo, a 24

    A autorizao da entrada de pesquisadores(as) nas unidades prisionais paulistas passa por um processo, lento e burocrtico, que implica a leitura e aprovao da pesquisa em questo por um Conselho de tica, vinculado Secretaria de Administrao Penitenciria e formado por funcionrios da pasta e representantes de organizaes sociais. Aps o envio de documentos e de uma cpia do projeto, o Conselho de tica decide se o aprova, reprova, ou prope modificaes que passam, por exemplo, pela mudana de metodologia ou unidade de interesse da pesquisa. Finalmente, aps a aprovao definitiva do projeto pelo Conselho, o(a) pesquisador(a) deve solicitar uma autorizao de visita ao juiz corregedor das unidades prisionais de interesse, que pode ou no deferi-la. Vale dizer que a Associao Brasileira de Antropologia tem realizado debates sobre a necessidade ou no das pesquisas passarem por Comits de tica.

    25 Os agentes so pessoas voluntrias, ligadas Pastoral, que realizam visitas peridicas a unidades

    penitencirias.

  • 23

    relao com Joana26, envolvida com o trabalho da instituio e fundamental para que

    eu conhecesse algumas das interlocutoras da pesquisa como Dita, personagem

    trazida no final do captulo um, e Ana, personagem do segundo captulo.

    A Pastoral organizada no interior da igreja catlica e tem por objetivos levar o

    evangelho de Jesus Cristo s pessoas privadas de liberdade e zelar para que os direitos

    humanos e dignidade humana sejam garantidos no sistema prisional 27. Dessa forma,

    a Pastoral se prope a aliar os trabalhos de evangelizao e observncia dos direitos

    humanos no interior das prises. Com efeito, o perfil das suas voluntrias e voluntrios

    acaba refletindo essas duas frentes distintas: h militantes de direitos humanos e

    pesquisadoras(es) interessados em utilizar parte das visitas para dar andamento aos

    seus estudos, mas tambm h freiras, padres e leigos vinculados a parquias e

    subgrupos religiosos, internos Igreja Catlica. O trabalho dos agentes tambm reflete

    essa mesma diferenciao: geralmente, os pesquisadores e militantes prestam

    orientaes relacionadas s muitas dvidas das presas sobre processos judiciais,

    progresses de medida, guarda dos filhos etc.28; a orientao religiosa, por sua vez,

    costuma ficar a cargo dos voluntrios mais ligados igreja.

    Se a Pastoral Carcerria uma organizao aberta incluso de pesquisadoras e

    pesquisadores entre os seus voluntrios, realizar uma pesquisa sob a insgnia da

    Pastoral implica conviver com situaes que ora contribuem para a observao, ora

    estabelecem limites que devem ser transpostos. Em primeiro lugar, ser um agente da

    Pastoral permite a entrada nas unidades penitencirias. Mesmo que seja necessrio

    solicitar SAP a expedio de uma carteirinha29 que autorize a entrada como

    26

    Com exceo das pesquisadoras do grupo Prises em Gnero, todos os nomes apresentados na dissertao so fictcios.

    27 Os objetivos transcritos acima, bem como outras informaes sobre a Pastoral Carcerria podem ser

    encontrados no endereo www.carceraria.org (acesso em 13/05/2012).

    28 Como no tenho formao em Direito, tive que aprender a realizar as consultas do andamento dos

    processos judiciais e a entender (para explicar s mulheres) quais os significados dos diferentes procedimentos que apareciam ali. As orientaes jurdicas mais complexas eram conversadas ou com o departamento jurdico da Pastoral Carcerria ou repassadas Defensoria Pblica.

    29 A SAP s permite a entrada de agentes pastorais que possuam essa carteirinha, que vlida por um

    ano a partir da data de expedio e indica as unidades que aquela pessoa est autorizada a visitar. Para obter a carteirinha necessrio enviar Secretaria uma foto 3x4, cpias dos documentos pessoais (RG e CPF), comprovante de residncia, uma certido de quitao eleitoral e o atestado de antecedentes

  • 24

    voluntria, o processo e os trmites que envolvem essa autorizao so menos

    morosos e invasivos do que aqueles que envolvem a autorizao da entrada na priso

    na condio de pesquisadora. No entanto, essa entrada tambm passa pela mediao

    com o procedimentos da prpria Pastoral Carcerria. A deciso sobre quais pavilhes

    visitar, por exemplo, no partia das minhas sugestes ou interesses de pesquisa, mas

    sim das necessidades da organizao em termos de quais pavilhes demandavam mais

    agentes, ou quais seriam as equipes30 que realizariam as visitas em determinado

    pavilho.

    Um segundo aspecto bastante marcado pela mediao da Pastoral diz respeito ao

    contato com as mulheres, dentro da priso. Os dilogos eram iniciados a partir da

    minha condio de voluntria da igreja, fator que, em alguma medida, era facilitador

    dessa primeira aproximao. Quando as conversas com as mulheres deixavam pistas

    de que suas histrias seriam interessantes para a pesquisa, eu me apresentava como

    pesquisadora e, a partir da, buscava estabelecer essa nova relao ponte nem

    sempre fcil de ser construda. Os meus dois lugares dentro da priso pesquisadora e

    voluntria da Pastoral exigiam uma costura cuidadosa e necessria para definir os

    limites desses mesmos dois lugares. Enquanto pesquisadora, meus interesses

    geralmente se relacionavam necessidade de estabelecer longas conversas com uma

    mesma mulher; enquanto voluntria da Pastoral, tinha o dever de conversar com o

    maior nmero de mulheres e buscar os encaminhamentos possveis para as demandas

    trazidas por elas. A mediao entre esses dois lugares que ocupavam um mesmo

    espao o dia da visita religiosa foi obtida com a minha permanncia por longas

    horas dentro das unidades: eu realizava o trabalho da Pastoral at que as

    criminais. Ao que tudo indica, a existncia de antecedentes criminais critrio para autorizar ou negar a expedio da carteirinha para voluntrias e voluntrios que tenham interesse em participar de visitas das igrejas nas penitencirias.

    30 Em geral, as visitas aos pavilhes das penitencirias so realizadas em duplas. A coordenao busca

    fazer um equilbrio entre as duplas tendo em vista o perfil dos agentes, se mais religiosos ou se militantes/pesquisadores. A coordenao, muitas vezes, acaba por redesenhar a diviso dos agentes diante de celeumas que se impem entre as partes de algumas duplas; ao longo da pesquisa de campo, pude vivenciar trocas de pavilhes motivadas pela necessidade de reorganizao de duplas que no se deram bem na atuao conjunta.

  • 25

    companheiras de visita, tambm da Pastoral, encerrassem suas atividades e, a partir

    da, fazia as conversas que eram exclusivamente voltadas pesquisa do mestrado.

    viii) Escolher os pertences, entrar na priso: o roteiro da dissertao

    Apresentadas as questes que permearam a realizao da pesquisa, necessrio

    indicar o roteiro da dissertao, que est estruturada em trs captulos. O primeiro, A

    chave da priso, se prope localizar a pesquisa de campo no contexto onde foi

    realizada. Assim, procuro apresentar a priso a partir de eventos presenciados e diante

    do olhar das mulheres ali encarceradas. Proponho, por fim, uma reflexo sobre o

    processo da pesquisa articulado convivncia com Dita, uma das personagens da

    dissertao.

    O segundo captulo apresenta a trajetria de Ana a partir da sua experincia com a

    priso que se articula famlia, maternidade e aos seus relacionamentos amorosos

    experimentados fora e dentro do crcere.

    O terceiro captulo, por fim, justape duas mulheres Mariana e Cris que, a despeito

    de distintos caminhos que as levaram privao de liberdade, compartilham

    referncias que situam suas vidas dentro da priso. Ambas se veem como

    batalhadoras e tm em seus companheiros personagens importantes na elaborao

    dessa autorreferncia.

  • 26

    1| A chave da priso

    Sabe o senhor: serto onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.

    Joo Guimares Rosa, em Grande Serto: Veredas

    Este captulo se prope a situar a pesquisa em seu lugar privilegiado de investigao.

    Ainda que algumas das conversas com as mulheres tenham sido realizadas em espaos

    externos ao crcere, uma parte considervel das informaes foi coletada ao longo das

    visitas enquanto agente da Pastoral Carcerria. Nesse sentido, importante demarcar

    alguns aspectos concernentes priso e apresentar observaes sobre o cotidiano

    daquele lugar a partir da anlise das interlocutoras da pesquisa em relao,

    especialmente, s mediaes estabelecidas que fazem referncia ao Primeiro

    Comando da Capital (PCC). Essa a proposta deste captulo.

    H, por fim, uma reflexo sobre os processos da pesquisa em dilogo com as

    experincias decorrentes da vivncia com uma das interlocutoras, Dita. Dentre as

    quatro personagens que compem esta dissertao, Dita a que mais vivencia a priso

    diante do sofrimento; traz-la para o texto tem a inteno de pensar a relao

    pesquisadora-interlocutora e tambm fazer um contraponto s outras perspectivas da

    priso acionadas pelas interlocutoras apresentadas nos captulos seguintes.

    i) Os caminhos que levam ao ptio

    Se a proposta apresentar estrias sobre mulheres que vivem nos ambientes

    prisionais visitados, vale retomar alguns aspectos presentes nas visitas semanais s

    unidades penitencirias. Reconstruir os percursos de um dia de visita contribui para

    desvelar os contextos nos quais ocorreu parte das conversas com as quatro

    personagens dessa dissertao. Ajuda tambm a pensar na priso enquanto uma

  • 27

    instituio permeada por porosidades que permitem que os fluxos de informaes

    entre prises, e tambm entre as prises e a rua, estejam presentes.

    No apenas as informaes transitam entre priso e rua. A pesquisa realizada por

    Godoi (2010) discute a presena da priso para alm dos seus muros31 a partir de uma

    investigao junto a mediadores que, pela natureza de suas atividades, ligam a priso

    a diversas outras dimenses do mundo social (p.16). A priso transborda para alm

    dos seus espaos fsico-institucional e se faz presente tambm nos territrios

    perifricos, onde parte da criao e da reconfigurao de vnculos. O

    encarceramento de um membro de uma famlia marcado no apenas pela ausncia

    desse ente, mas tambm pela presena da priso, que reestrutura as relaes e

    permeia as dinmicas cotidianas. Percebe-se, a partir dessa argumentao, que a

    priso est na rua.

    Em Manicmios, prises e conventos, Goffman (2007 [1961]) se dedica a estudar os

    internados nesses locais definidos pelo autor como instituies totais: um local de

    residncia e trabalho onde um grande nmero de indivduos com situao semelhante,

    separados da sociedade mais ampla por considervel perodo de tempo, leva uma vida

    fechada e formalmente administrada (Goffman, 2007 [1961], p. 11). A priso seria,

    assim, uma instituio fechada que separa da sociedade as mulheres e homens ali

    confinados. No entanto, algumas pistas levam a uma necessidade de colocar alguns

    matizes na perspectiva apresentada por Goffman para pensarmos na priso percebida

    a partir das visitas e da convivncia com as mulheres.

    Cunha (1994) afirma que a priso no verdadeiramente totalizante ao argumentar

    que o perodo de encarceramento no apaga os campos de vida estabelecidos fora

    do contexto prisional. A priso seria um intervalo e uma parte da existncia das

    pessoas presas, mas no as retiraria completamente de suas vidas.

    Um segundo trabalho de Cunha (2003) tambm indica questes que ajudam a

    problematizar o modelo proposto por Goffman. A antroploga retornou, aps alguns

    anos, a uma priso de mulheres onde havia realizado uma pesquisa. Nesse primeiro

    31

    Nas palavras de Godoi, para alm dos seus limites fsicos ou institucionais. (Godoi, 2010, p. 19).

  • 28

    perodo de investigao, ser presa significava estar separada de uma srie de relaes

    anteriores, em uma espcie de hiato social, e acarretava um estigma que, nesse

    momento, era circunstancial o estigma estava relacionado ao perodo que a mulher

    passava confinada no crcere. Ainda, as mulheres ali presas estabeleciam distines

    bastante demarcadas entre si e as outras, em uma tentativa de desconstruir qualquer

    tipo de pertencimento em relao s colegas; essa diferenciao era uma tentativa de

    afirmar que as verdadeiras relaes estariam apenas fora do contexto prisional

    (Cunha, 2002, p. 6).

    No segundo momento da pesquisa, Cunha depara-se com um contexto onde se

    desenha um fenmeno de encarceramento em massa em que boa parte das mulheres

    ali presas tinha envolvimento com prticas relacionadas ao trfico de drogas32. Muitas

    das mulheres j se conheciam antes mesmo de serem presas porque viviam em um

    mesmo bairro, conviviam umas com as outras e compartilhavam redes de relaes; as

    mulheres e suas amigas vo e vm da priso, e a experincia do crcere deixou de ser

    um hiato na vida para tornar-se uma etapa dela. O estigma, que antes era

    circunstancial diante da experincia da priso, alargou-se, deixou de se confinar aos

    muros da priso para remontar ao bairro (Cunha, 2003, p. 6).

    A configurao da priso, onde muitas das mulheres j se conheciam antes mesmo de

    serem presas, passa a incorporar fsica e simbolicamente o bairro (Cunha, 2003, p.

    11). O bairro e a priso transbordam, dilatam-se um em direo outra. O

    cotidiano da priso e do bairro e as relaes constitudas nesses espaos so afetados.

    diante dessa ligao intensa estabelecida entre bairro e priso que a antroploga

    defende a eroso da fronteira entre esses dois lugares.

    Esta dissertao parte da perspectiva presente em Godoi e em Cunha para apresentar

    o contexto da priso. No se pode perder de vista a constatao de que a priso

    32

    Cunha explica que o trfico vem se organizando em Portugal em um modelo free lance, caracterizado por uma feio mais flexvel e colocada em contraposio ao modelo chamado empresarial. A distino entre os dois modelos define-se a partir de alguns aspectos, nas palavras da antroploga: Grosso modo, o primeiro tipo [free-lance] caracteriza-se pela fluidez, assentando as operaes na iniciativa individual ou na cooperao pontual e varivel entre indivduos. (...); o modelo empresarial uma outra rigidez, constatvel numa forte hierarquizao interna de largas equipes fixas que incluem assalariados submetidos a uma estreita superviso e controle. (Cunha, 2007b, p. 175).

  • 29

    encerra pessoas e as distancia de uma srie de vivncias e convvios; mas a vida fora

    dos muros e as relaes estabelecidas desde antes do crcere esto intensamente

    envolvidas nas relaes que se definem dentro da priso. Do mesmo modo, a priso

    est presente na vida dessas mulheres ainda antes da prpria experincia com o

    crcere, cristalizada nas vivncias de familiares, amigos, conhecidos; o bairro e a priso

    se conversam todo o tempo.

    Mas se a priso no uma instituio total nos moldes definidos por Goffman, ela

    tambm no um campo de porosidade infinita; visitar uma unidade prisional um

    exerccio de mediao constante com o Estado.

    Entrar na priso difcil. Quem v, de fora, o porto da Penitenciria pode no

    perceber o que aquele local abriga. Passar por esse primeiro ponto relativamente

    tranquilo: basta dizer sou da Pastoral. Os guardas j esto acostumados com uma

    quantidade significativa de pessoas de diversas igrejas que ali transitam todas as

    semanas33. Passando por essa primeira porta possvel ver, ao fundo, um muro

    bastante alto com um porto de ferro grosso e alguns guardas parados. Acima do

    porto, o nome da penitenciria marcado na parede soma-se presena dos guardas

    para demarcar, escancaradamente, que chegamos a uma priso.

    Os processos para a entrada efetiva na penitenciria tm incio em um balco, que

    concentra uma grande quantidade de pessoas todas as semanas. Quem aguarda so os

    agentes ligados a diversas igrejas, sobretudo as evanglicas pentecostais e

    neopentecostais. Muitas mulheres e poucos homens. Elas, na maior parte das vezes,

    de cabelos e saias compridas; eles, em trajes sociais, devidamente engravatados.

    No basta chegar ao balco. So muitas as paradas, at que seja possvel finalmente

    entrar nos pavilhes. A primeira, j mencionada, o porto que separa a priso da rua.

    A segunda o balco onde os agentes se aglomeram para entrar; ali, todos os

    materiais que sero levados s presas so vistoriados por agentes penitencirios e

    passam por um equipamento de raio-x. Esse procedimento costuma ser demorado,

    pois diversas bblias e panfletos, instrumentos musicais e outros apetrechos passam

    33

    A assistncia religiosa um direito da pessoa presa estabelecido pela Lei de Execues Penais (LEP). Ver: Artigo 11 - VI.

  • 30

    por essa observao. As bolsas e pertences dos integrantes das igrejas ficam em um

    canto, amontoadas e sob os cuidados dos agentes penitencirios (ASPs)34. Liberados os

    materiais, os agentes das igrejas devem entregar seus RGs e a carteirinha expedida

    pela SAP, que fica retida pelos funcionrios da penitenciria. Tambm necessrio

    passar pelo detector de metais. Aps os procedimentos, finalmente temos acesso ao

    porto que se abre para o corredor comum a toda a priso35. Para chegar aos

    pavilhes necessrio passar por mais portes, internos. Ainda que os voluntrios das

    inmeras igrejas que realizam atividades nas unidades no tenham que passar pelas

    revistas vexatrias36 s quais so submetidos os familiares das presas, o processo

    moroso.

    H imagens de santas e crucifixos em muitas dependncias da p