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Museu Vivo da Memória Candanga: a musealização do patrimônio arquitetônico Maria Cecília Filgueiras Lima Gabriele Professora Assistente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UnB Mestre em Gestão Pública, Universidade Complutense de Madrid Doutoranda em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [email protected] RESUMO Este artigo versa sobre o Museu Vivo da Memória Candanga, seu patrimônio arquitetônico e sua contribuição para a preservação da memória de Brasília. Sediado no imóvel destinado a ser o primeiro hospital da Capital Federal, o Hospital Juscelino Kubitscheck de Oliveira foi construído para ser demolido logo após a inauguração de Brasília, mas resistiu graças a manifestações e reivindicações populares. Prestou, por quase duas décadas, assistência médica à população candanga, que habitava os acampamentos das construtoras e que foi o núcleo gerador de três Regiões Administrativas (RA). O Museu tem como principal acervo suas instalações arquitetônicas, tombadas pelo Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal em 1985. Embora situado na via expressa de maior movimento do entorno, possui difícil acesso para a população adjacente, que poderia ser a maior beneficiária da privilegiada implantação do museu no lote. Possui alguns interessantes projetos de integração com a comunidade, imaginados pela atual diretora, entre os quais o de coleta da memória da geração que viveu a implantação de Brasília. O Museu enfrenta atualmente uma série de problemas para firmar-se como fiel depositário da memória candanga. Neste aspecto, sua arquitetura pode contribuir para a consolidação da identidade do lugar, aproximando as pessoas do seu patrimônio construído, através de processos de comunicação de sua importância para a memória da cidade. Portanto, a musealização deste significativo espaço urbano, que é um equipamento cultural de destaque no cenário da capital brasileira, pode viabilizar a apropriação de seu significado enquanto parte da história da construção da cidade. Palavras-chave: (Museu Vivo da Memória Candanga - Arquitetura de Museus –Patrimônio Arquitetônico)

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Museu Vivo da Memória Candanga: a musealização do

patrimônio arquitetônico

Maria Cecília Filgueiras Lima Gabriele

Professora Assistente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UnB Mestre em Gestão Pública, Universidade Complutense de Madrid

Doutoranda em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

[email protected]

RESUMO Este artigo versa sobre o Museu Vivo da Memória Candanga, seu patrimônio

arquitetônico e sua contribuição para a preservação da memória de Brasília. Sediado

no imóvel destinado a ser o primeiro hospital da Capital Federal, o Hospital Juscelino

Kubitscheck de Oliveira foi construído para ser demolido logo após a inauguração de

Brasília, mas resistiu graças a manifestações e reivindicações populares. Prestou, por

quase duas décadas, assistência médica à população candanga, que habitava os

acampamentos das construtoras e que foi o núcleo gerador de três Regiões

Administrativas (RA). O Museu tem como principal acervo suas instalações

arquitetônicas, tombadas pelo Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico do

Distrito Federal em 1985. Embora situado na via expressa de maior movimento do

entorno, possui difícil acesso para a população adjacente, que poderia ser a maior

beneficiária da privilegiada implantação do museu no lote. Possui alguns interessantes

projetos de integração com a comunidade, imaginados pela atual diretora, entre os

quais o de coleta da memória da geração que viveu a implantação de Brasília. O

Museu enfrenta atualmente uma série de problemas para firmar-se como fiel

depositário da memória candanga. Neste aspecto, sua arquitetura pode contribuir para

a consolidação da identidade do lugar, aproximando as pessoas do seu patrimônio

construído, através de processos de comunicação de sua importância para a memória

da cidade. Portanto, a musealização deste significativo espaço urbano, que é um

equipamento cultural de destaque no cenário da capital brasileira, pode viabilizar a

apropriação de seu significado enquanto parte da história da construção da cidade.

Palavras-chave: (Museu Vivo da Memória Candanga - Arquitetura de Museus

–Patrimônio Arquitetônico)

ABSTRACT

This article is about the Living Museum of “Candanga” Memory, its

architectural heritage and its contribution to preserving the memory of Brasilia. Housed

within the building intended to be the first hospital in the Federal Capital, the Juscelino

Kubitschek de Oliveira Hospital, was built to be demolished soon after the inauguration

of Brasilia, but resisted because of demonstrations and popular demands. For almost

two decades, it made the medical support for the “candanga” population that inhabited

the camps of builders and that was the core generator of three administrative regions

(AR). The Museum has as its main collection the architectural installations, listed by the

Department of Historical and Artistic Heritage of the Federal District in 1985. Although

situated on the busiest expressway in the vicinity, the access to the adjacent

population, which could be the biggest beneficiary of privileged implantation in the

museum lot, is very difficult. It has some interesting integration projects with the

community, imagined by the current director, including the collection of the memory of

the generation that lived through the deployment of Brasilia. The Museum is currently

facing a number of problems to establish himself as a faithful custodian of the

“candanga” memory. In this respect, its architecture can contribute to the consolidation

of place, bringing people to its built heritage, through processes of communication of its

importance to the city's memory. Therefore, the “musealization” of this significant urban

space, which is a prominent cultural facility in the scenario of the Brazilian capital, can

facilitate the appropriation of its meaning as part of the history of the city.

Keywords: (Living Museum of “Candanga” Memory - Architecture of Museums -

Architectural Heritage)

Introdução

Em 1957 foi escolhido o projeto para a construção de Brasília, a Capital

Federal, há muito pensada como uma forma de apropriação do interior do Brasil. De

todos os lugares do país vieram trabalhadores dispostos a tornar realidade o projeto

do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, atendendo seus chamados veiculados

pela televisão, jornais e revistas da época, atraídos pela possibilidade de emprego e

pelo desejo de participar da obra quase utópica, intensamente propagada.

Enquanto a cidade era construída a partir do cruzamento dos dois eixos

principais e consolidavam-se a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes,

seguia crescendo no mesmo compasso outra realidade bem distante, os

acampamentos das construtoras, que abrigavam os chamados candangos1.

Para dar apoio a todos os trabalhadores que viviam a intensa rotina da

construção, foi erguido ao lado destes assentamentos pretensamente provisórios, em

1957, o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira, HJKO, posteriormente transformado

no Museu Vivo da memória Candanga (MVMC). É sobre esta edificação que trata o

texto apresentado e que se baseia na convicção de que a comunicação da

arquitetura2, com base na história, pode contribuir para a construção de um olhar mais

comprometido com o patrimônio constituído fortalecendo a relação de pertencimento

de um lugar. As histórias da edificação, do bairro e da cidade podem desvelar

informações aos visitantes a partir deste potencial acervo museológico, que é a

arquitetura do imóvel.

A idéia é compatível com o conceito de acervo: um conjunto de bens que

integram um patrimônio (Ferreira 1975) ou ainda o conjunto de bens culturais, de

natureza material ou imaterial, móveis ou imóveis, que constituam indícios históricos,

científicos, culturais e de costume, que configurem a documentação relevante sobre

um determinado assunto e que possam ser trabalhados dentro de ações de

salvaguarda e comunicação3(Bruno 2006).

1 Segundo o Dicionário Michaellis candango é o trabalhador braçal vindo de fora da região e nome como se designam os trabalhadores comuns que trabalharam na construção de Brasília. 2 Arquitetura é compreendida aqui não apenas como o edifício construído em si, mas o sítio no qual está inserida a edificação e seu contexto urbano. 3 Este conceito foi construído com base na definição de acervo da Secretaria de Cultura de Minas Gerais e da cadeia operatória da museologia, teoria da museóloga Maria Cristina Oliveira Bruno.

Museu Vivo da Memória Candanga No vazio do planalto central, chegava gente de todos os estados do país para

trabalhar, principalmente, na construção civil. Os candangos foram se instalando em

acampamentos e vilas improvisadas pelas construtoras e pela Companhia de

Urbanização da Nova Capital, a Novacap.

O acampamento conhecido como Cidade Livre4, foi pensado para ser uma

área de comércio e serviços. Recebeu este nome porque não eram cobrados impostos

dos estabelecimentos comerciais ali instalados. Em pouco tempo possuía mercearias,

açougues, escolas, barbearia, cabeleireiros, lojas de tecido, pensões e toda sorte de

negócios. As casas que foram surgindo a despeito das orientações contrárias, foram

construídas em madeira com telhados de zinco, alumínio e até de palha e pintadas de

cores variadas, abrigando a população que cresceu em uma proporção assustadora.

Em dois anos já contava com 6.000 habitantes e em 1960 eram mais de 12.000

moradores. A energia elétrica era fornecida por meio de geradores particulares, a água

era obtida no córrego de Vicente Pires e as ruas eram de terra batida. Entre a Cidade

Livre e o acampamento da Lonalândia5, muito próximo à sede da Novacap, foi

instalado o HJKO, hospital mantido pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos

Industriários, IAPI, sigla que batizou também a invasão que se desenvolveu nas

imediações da área.

Figura 3: Avenida Central da Cidade Livre –

1957. Fonte: Arquivo Público DF

Toda esta estrutura tinha tempo determinado de duração, pois com o fim das

obras elas deveriam ser extintas. Mas a população que se instalou na capital em

busca de trabalho lutou pela garantia de permanência da Cidade Livre, que se

desenvolveu às margens do que viria a ser uma das vias mais importantes do atual

Núcleo Bandeirante e do Distrito Federal (DF), a Estrada Parque Indústria e

4 Os dados apresentados foram obtidos junto à Administração Regional do Núcleo Bandeirante. 5 O acampamento da Lonalândia recebeu este nome porque era formado por barracos feitos de lona.

Figura 2: MVMC. Fonte: SEC-DF

Figura 1: HJKO. Fonte: SEC-DF

Abastecimento, conhecida como EPIA, e que configura uma importante via de

integração da cidade com o entorno (Holanda 2010). Com os rumores sobre a

dissolução da Cidade Livre, foi criado o Movimento Pró-Fixação e Urbanização do

Núcleo Bandeirante. Em 1961 foi aprovada a regularização da área, quando os

habitantes passaram a lutar pela implantação de infra-estrutura básica. Ao longo dos

anos de 1960 as edificações em madeira foram substituídas pelas de alvenaria e em

1964 o Núcleo Bandeirante passou a integrar uma das Regiões Administrativas de

Brasília6. Atualmente é identificada como RA VIII - Núcleo Bandeirante. A comunidade

da Lonalândia, conseguiu sua estabilidade com a transferência para a atual

Candangolândia e a comunidade da invasão do IAPI, participou da formação da

Ceilândia7. Portanto, os que resistiram conseguiram moradia nestas áreas que

atualmente são identificadas como Regiões Administrativas (RA) do DF. Há que se

ressaltar a capacidade de articulação da população que conseguiu manter-se na área

e foi aos poucos revertendo a situação e transformando o caráter provisório dos

assentamentos em bairros com infra-estrutura urbana adequada e reconhecimento do

Estado.

Construído em madeira, o HJKO também tinha um caráter provisório, pois

existia a mesma intenção inicial de destruí-lo após a inauguração da capital8. Foi

edificado em apenas 60 dias e inaugurado em 06 de junho de 1957, três anos e dez

meses antes de Brasília. Suas atividades estenderam-se até 1968, quando passou a

funcionar apenas como posto de saúde. Em 1974, com a implantação dos serviços de

saúde do Núcleo Bandeirante, o HJKO, foi desativado, mas em seu terreno alojavam-

se, em situação irregular, muitas famílias, inclusive de ex-servidores do hospital. Na

década de 1980, o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência

Social (IAPAS), fez várias tentativas de desocupação da área. O propósito era demolir

os edifícios, que já se encontravam bastante deteriorados. Nesta ocasião, a

comunidade organizou-se com uma série de protestos solicitando o tombamento do

espaço. Em 13 de novembro de 1985, o Departamento do Patrimônio Histórico e

Artístico (DEPHA), da Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal, SEC-DF,

6 As Regiões Administrativas são geridas por um administrador indicado pelo governador do DF. Alguns pesquisadores as entendem como bairros, mas houve um período em que algumas destas regiões eram vistas como cidades-satélites. Atualmente compõem o Distrito Federal 30 Regiões Administrativas e a RA-I é a que se refere ao Plano Piloto e ao Parque Nacional. 7 A Campanha de Erradicação de Invasões, CEI, serviu de inspiração para o nome do que na época era chamada de cidade-satélite Ceilândia. 8 Várias edificações do tipo foram demolidas, exceção feita ao Catetinho e a Igreja da Vila Planalto.

declarou o tombamento do conjunto arquitetônico do HJKO9, considerado então

Patrimônio Histórico e Artístico da Cidade. Foi nesta ocasião que os moradores do

terreno foram transferidos para a Candangolândia e para a Ceilândia10. Em 1986 a

sede do DePHA foi transferida para o local. Na ocasião foram executadas ações de

restauração do conjunto e algumas intervenções com vistas à implementação do

Museu Vivo da Memória Candanga11. A grande preocupação do tombamento foi com a

preservação de elementos essenciais da tipologia construtiva das obras da fase inicial

da construção de Brasília e do espaço formado pelas edificações, que por sua vez

estavam em péssimo estado. Grande parte do hospital já havia caído e parte dele foi

reconstruída.

Vinculado à Secretaria de Cultura do Distrito Federal, (SEC-DF), o MVMC não

é um organismo autônomo, não tem domínio do terreno12 onde está implantado e não

possui dotação orçamentária. Sua gestão é toda feita via SEC-DF. Por uma questão

de política financeira o cargo de Diretor do Museu é exercido e remunerado como

Gerente de Museu e atualmente está à frente da instituição a Educadora Artística

Luciana Maya Ricardo. Nesta situação o MVMC não tem como requerer ações de

restauração e, portanto, são realizados apenas reparos, via SEC-DF, com todos os

trâmites burocráticos que envolvem estas ações nos governos de forma geral. Assim,

o museu não pode se beneficiar dos projetos via Lei de Incentivo à Cultura, por não

ser uma entidade independente, o que restringe muito as ações que podem ser ali

desenvolvidas.

Localizado a cerca de 3 km da estação de metrô mais próxima, ao lado de um

importante shopping da cidade, a área é servida por linhas de ônibus, mas o acesso

da Candangolândia, que fica em frente, separada pela EPIA, é de difícil travessia. A

passarela fica a 100m de distância e o lugar é ermo. Portanto, apesar de ter uma

localização estratégica em termos de vias de circulação, o acesso para os pedestres é

bastante complicado e nada estimulante. Uma das estratégias pensadas pela atual

direção é a disponibilização de um micro-ônibus circulando entre a referida estação de

metrô e as comunidades do entorno.

9 Decreto de Tombamento de N° 9.036, de 13/11/85. 10 A Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) foi o núcleo gerador da Ceilandia, atual cidade do entorno. 11 As ações aconteceram em sete das oito casas dos médicos, na alameda principal, em quatro dos sete galpões de alojamento, no galpão de serviços e necrotério e na edificação que abrigava o atendimento hospitalar e ambulatorial 12 O terreno pertence ao Instituto Nacional de Seguro Social, INSS, e o Governo do Distrito Federal, GDF, está negociando a permuta com outra área.

O hospital que atendia aos trabalhadores de todos os níveis e a seus

familiares ocupava uma área total construída era de 1.265 m². Aberto 24 horas, era

composto de ambulatório, centro cirúrgico, administração, serviços gerais, residência

para médicos e funcionários com famílias e alojamentos para os solteiros. Possuía os

melhores equipamentos da época e dispunha de 50 leitos, oito enfermarias com alas

feminina e masculina, duas salas cirúrgicas, aparelhos de Raio-x, laboratório de

análise clínica, sala de ortopedia, maternidade, berçário, farmácia e gabinete dentário

com Raio-x.

O projeto foi concebido pelo escritório da Novacap, cujo Departamento de

Urbanismo e Arquitetura, era dirigido pelo arquiteto Oscar Niemeyer. O conjunto do

antigo HJKO é formado por 17 edificações originais13 e foi restaurado por uma equipe

de arquitetos, engenheiros, antropólogos e técnicos. A técnica construtiva do hospital

utilizava, como fechamento do vão entre os pilares, dupla camada de tábuas de

madeira com um espaço interno, que funcionava como um colchão de ar. Este artifício

atuava como auxiliar nas questões de conforto térmico. A técnica foi parcialmente

mantida na restauração, em alguns lugares foram construídas paredes de alvenaria e

revestidas em madeira.

Figura 4. Implantação do Museu Vivo da Memória Candanga. Fonte: SEC-DF.Folder da OSCIP Arte Vida

A entrada era feita pelo centro da alameda onde ficavam as casas dos

médicos que ali moravam com suas famílias. Eram casas geminadas, quatro de cada

lado, com espaço para dezesseis famílias (15-22). A alameda bifurca no final, onde

estava implantado, no centro, o hospital (01).

13 Em 2003 quando uma Oscip administrava o local, permitiu a construção de um galpão para exposição de carros antigos. Esta edificação ainda permanece no local.

Um pátio central fazia a ligação das diversas áreas do hospital. Por trás da

ala esquerda da alameda, ficavam os alojamentos dos médicos e funcionários

solteiros, divididos em setores masculinos e femininos (23-28). A construção, apesar

de singela tem um caráter aglutinador. Passagens internas ligam os alojamentos entre

si e um corredor com venezianas, dava acesso aos quartos. Entre os alojamentos

ficou configurada uma área de convivência para os que trabalhavam e viviam no

HJKO.

Internamente, muito pouco se guardou da distribuição original, pois as casas

foram bastante modificadas. Mas na segunda edificação da ala esquerda da alameda

ainda se consegue perceber a concepção das residências.

O projeto de adaptação da estrutura hospitalar em museu foi desenvolvido

pelo DePHA-DF, sob a orientação do arquiteto Silvio Cavalcanti, com a colaboração

dos arquitetos Antônio Menezes Junior e Carlos Madson Reis. A situação das

edificações era bastante precária por conta do tempo em que estavam sem

manutenção e da ação de cupins. Alguns prédios já estavam praticamente destruídos

e o tombamento era referente ao espaço urbano, ou seja, ao espaço composto pelas

casas dos médicos com família, dispostas ao longo da alameda, do hospital no final do

conjunto e dos alojamentos dos servidores e médicos solteiros à esquerda e não à

área interna das edificações.

O Programa de Necessidades14 do Museu contempla: áreas para exposições

permanentes e temporárias, administração, biblioteca, área de atividades

pedagógicas, telecentro, área de copa e lanches, galpão para oficinas, banheiros,

reserva técnica, almoxarifado, salão de eventos, sala de segurança, depósito, área de

lazer para crianças, campo de futebol e um pequeno bosque15. Mas o partido

arquitetônico do museu tem potencial para induzir o visitante a apreender muito sobre

o lugar e sua utilização inicial. Os espaços foram ajustados às condições climáticas16 e

no local destinado às oficinas, onde estavam os alojamentos dos solteiros, houve

reestruturação funcional compatível. Estão dotados de banheiros em bom estado, e

todo o aparato físico necessário ao desenvolvimento das funções. O conjunto foi

pintado com cores fortes, cada ambiente de uma cor. As cores originais foram

14 Programa de Necessidades de uma edificação é o conjunto de demandas funcionais da construção, gerado à partir da expectativa de ações que devem desenvolver-se nos espaços e suas relações entre si. 15 No período em que a OSCIP Arte Vida esteve à frente da instituição compunham ainda o programa uma lojinha, uma sala de exposição de artesanato e a lanchonete. O lugar da lanchonete funciona atualmente como apoio para os funcionários e pode ser utilizado pela comunidade na eventual programação de almoços ou festas. 16 As paredes foram transformadas, em parte, em portas pivotantes, resguardando o desenho original da construção e propiciando ventilação e iluminação adequadas às atividades desenvolvidas.

identificadas a partir de pesquisas com antigos moradores do local. Esta peculiaridade

segue a lógica das construções da Cidade Livre, pintadas de cores diferentes,

atribuindo um colorido muito peculiar ao acampamento. Assim, as ‘casinhas’17 são

identificadas pelos funcionários e visitantes, pelas cores de sua fachada. Além da

lógica da pesquisa, eventualmente as cores são modificadas por questões de ordem

prática, como a disponibilidade de material doado para a pintura. O que se percebe é

que houve um grande respeito pelo conceito do projeto inicial e que a adaptação da

função para a museologia tem toda uma lógica refletida nas escolhas dos espaços. A

figura 04 permite que se tenha uma noção do conjunto do museu. A alameda central

acolhe o visitante e é o local onde estão as exposições temporárias, a área de

administração, o espaço pedagógico e a lanchonete. Ao final depara-se com a sala da

exposição permanente.

A adequação dos espaços às condições climáticas é bem interessante. As

paredes foram transformadas, em parte, em portas pivotantes, resguardando o

desenho original da construção e propiciando ventilação e iluminação adequadas às

atividades desenvolvidas.

Na implantação, o espaço indicado com o ‘i’ de informação, da época da

Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, era o necrotério. Os espaços de

N. 11 e 12 foram construídos nesta mesma ocasião para abrigar uma exposição de

carros antigos. Este projeto ainda segue, mesmo sem a aprovação dos que trabalham

no museu, somente no espaço 12. O espaço 11 funciona como depósito, assim como

o antigo necrotério.

A área externa possui muitas árvores frutíferas que compõem uma área de

lazer muito agradável. Este espaço é utilizado eventualmente pelas professoras das

escolas. O que se percebe é que apesar do cuidado que se teve com a preservação

do conceito original e com a adaptação da função para a museologia, o museu não

tem autonomia para funcionar. Por maior boa vontade que a gestora do museu tenha,

as atividades de manutenção e as práticas ligadas ao bom funcionamento da

instituição esbarram em questões de ordem prática.

Sem um Projeto Museológico aprovado, o Museu trabalha com um Plano de

Ação. O acervo do museu é identificado como sendo composto principalmente pelas

edificações históricas, além de peças, objetos e fotos da época da construção da

17 Forma carinhosa como são chamadas as ex-residências dos médicos que moravam com suas famílias.

nova capital18. A instituição tem por objetivo ser referência dos “saberes e fazeres” das

várias manifestações artísticas e regionais que constituíram Brasília. Além da

exposição permanente “Poeira, Lona e Concreto”, com a história de Brasília desde sua

concepção até a inauguração em 196019, há mais duas exposições: “Casa do Mestre

Popular” e “Renovação e Tradição – Novos Caminhos”. As “Oficinas dos Saberes e

Fazeres”, de artesanato e arte popular, são oferecidas à comunidade em geral, com o

intuito de divulgar o espaço do museu, promovendo integração e resgate de

identidades. As oficinas trabalham com os saberes e os fazeres que as pessoas trouxeram quando vieram para cá. Brasília é uma junção do Brasil inteiro... cada um traz um pouco do seu saber, da sua região. Isto se mescla e forma Brasília. Um não é mais que o outro. Brasília é todos juntos(...).As oficinas são um espaço de manutenção de identidades e de recriação destas identidades.(Maciel 2010)20

O Programa ‘Viva o Museu’ é a visita guiada que atende grupos de

estudantes das escolas públicas e particulares onde é trabalhado o histórico do local

na área externa, um pequeno filme histórico e as exposições. O projeto ‘Histórias

Contadas’ é um programa de coleta de dados, documentos e imagens da história da

cidade, que está virtualmente disponibilizando, mas que na prática ainda não funciona

por falta de apoio e financiamento. Em sua maioria, estas iniciativas buscam incentivar

a apropriação espacial do museu pela comunidade circunvizinha. No Projeto ‘Rodas da Paz’, a idéia é a de utilização de bicicletas, de

propriedade do museu, na área externa. É uma tentativa de disponibilizar o espaço

externo para a comunidade, mas atualmente está parado. O projeto ‘Casa das Rodas

Candangas’, que ainda não está funcionando por conta de entraves burocráticos,

enfatiza a utilização da área externa para aulas de educação para o trânsito com o

Detran.

O MVMC recebe, em média, três escolas por turno, com até três turmas de

quarenta e cinco alunos. Os projetos com a comunidade são pautados nas oficinas e

vinculados a escolas da Candangolândia e do Núcleo Bandeirante. Possui vários

projetos vinculados às oficinas: o “Projeto Manga Verde” é vinculado à oficina de

18 Esta idéia é muito enfatizada pela gestora do museu e encontra-se na página oficial da Secretaria de Cultura. O material de divulgação mais antigo, apesar de ressaltar a importância da edificação para a compreensão do tema principal que é a história da formação da cidade de Brasília, não identifica claramente o patrimônio arquitetônico como acervo, diferentemente do que é feito atualmente. 19 Esta exposição é composta por fotografias de Mário Moreira Fontenelle (primeiro fotógrafo oficial de Brasília), Peter Scheir e Joaquim Paiva; além de acervo do Brasília Palace Hotel e do HJKO 20 Entrevista da gestora do MVMC para o Correio Braziliense.

pintura, o “Menino do Pote” à oficina de barro, o “Lançando Fio” à de tecelagem e o

“Fazendo Papel” à de reciclagem de papel.

O público do ano de 2009 foi de dez mil visitantes. Seis mil eram alunos de

escolas públicas e privadas que participaram de visitas organizadas. O Museu

Nacional Honestino Guimarães21, recebeu 789 mil pessoas no mesmo período. O

ponto de atração do museu são as oficinas de marcenaria, papel, tecelagem e

cerâmica. Novos equipamentos foram comprados por meio de verba vinda de emenda

parlamentar e de um convênio de R$ 450 mil com o Ministério da Ciência e

Tecnologia.

Dentro do Plano de Ação Anual, o patrimônio arquitetônico é visto como o

principal acervo do museu. Há uma série de ações que buscam incentivar a

apropriação espacial do museu pela comunidade, através de uma série de atividades,

algumas em andamento, outras planejadas e esperando condições de implementação.

Na década de 1990 o museu era muito conhecido na comunidade do DF,

principalmente em função das oficinas. Havia lista de espera para participar destas

atividades. A equipe fazia um trabalho interdisciplinar, com reuniões semanais, onde

eram discutidos seus conceitos geradores. O trabalho com as escolas consistia em um

treinamento com os professores, que faziam uma visita preliminar ao museu, recebiam

informações acerca do acervo, incluindo o núcleo urbano, participavam das visitas

com os alunos e depois as crianças fixavam os conteúdos com trabalhos de artes no

próprio museu e, posteriormente, com os professores. O Museu também tinha um

jornal, publicava livros, montava seminários e tinha pesquisadores trabalhando em

suas dependências. Atualmente, a falta de funcionários qualificados para as funções é

um sério problema que o museu enfrenta. Os que lá estão são todos funcionários da

Secretaria de Cultura ou da Secretaria de Educação, lotados temporariamente na

instituição. A visita guiada é realizada por um antigo funcionário do museu, que não

tem formação pedagógica ou museológica. De acordo com o folheto que é distribuído na visita ao local:

O Museu Vivo da Memória Candanga, espaço de registro, preservação e difusão das histórias e da cultura candanga, cumpre seu papel social, propondo e realizando ações que contribuem para a educação e formação de crianças, jovens e adultos em diferentes programas, representando ainda, um espaço de transformação social e de desenvolvimento educacional e cultural da sociedade,

21 O Museu Nacional Honestino Guimarães, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer foi construído em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, e inaugurado em dezembro de 2006.

que resguarda identidades e estabelece vínculos com o passado, para fazer conhecer o presente.(SCDF 2010)

Atualmente a gestora Luciana Ricardo, que trabalhou no museu na década de

1990 e fez parte desta equipe multidisciplinar, cogita a possibilidade de, através da

Associação de Amigos, viabilizar uma série de ações. Os cursos estão sendo

reativados, as oficinas já estão em processo de reequipagem e estão sendo

providenciadas obras de melhoria dos espaços. A biblioteca já foi restaurada.

O museu (Museu Vivo da Memória Candanga) só vai existir, só vai persistir quando as pessoas entenderem que o museu está contando a história delas, aí ele não vai sobreviver, mas vai viver.22

A visita guiada é, muitas vezes, realizada por um funcionário muito antigo da

casa, que tem grande apego à obra, mas não tem formação em pedagogia ou

museologia. Há uma preocupação de Luciana com a formação dos funcionários.

Eventualmente tem promovido reuniões onde aborda questões conceituais e do

acervo, mas não há uma ação continuada com este objetivo formativo. Os 184.000m²

de área verde, com muitas árvores frutíferas, contam com apenas oito funcionários

para fazer a guarda, que tem constantemente a cerca cortada por moradores de uma

invasão próxima.

Não raro, principalmente com a comemoração dos 50 anos da Capital

Federal, chegam pessoas com fotos antigas, querendo visitar o museu e contar

histórias passadas no local. São momentos de muita emoção. Mas o único museu

dedicado à história da capital recebe poucas visitas. Entre os fatores destacam-se

uma deficiente infraestrutura e empecilhos administrativos. A lojinha e a lanchonete

não funcionam por questões de legislação. Por esta mesma razão o museu também

não cobra ingresso. A Secretaria de Cultura planeja entregar o museu a uma

Organização Social, OS, o que poderia viabilizar a implementação de projetos através

de leis de incentivo à cultura. As oficinas voltadas para a comunidade procuram

manter vínculos com as escolas do entorno.

As ações identificadas pelos funcionários do museu como sendo de

comunicação da arquitetura são duas: o filme que conta a história do surgimento da

nova capital, desde os primeiros estudos até sua inauguração e a explicação por parte

dos funcionários da casa.

22 Luciana Maya Ricardo, Diretora do Museu Vivo da Memória Candanga em entrevista para o Correio Brasiliense. (Janeiro de 2010)

Acontece que o filme não trabalha a arquitetura do HJKO. Não diz claramente

o que funcionava onde, informação que tampouco é de conhecimento dos funcionários

da casa que só sabem, parcialmente, como se dava esta ocupação.

Quando se entra no conjunto não há indicação nas fachadas, ou internamente

da função das casinhas. Muito menos de como elas eram antes das várias

intervenções. As oficinas também não deixam transparecer por nenhum meio a

instalação dos funcionários que aí viviam. O mesmo acontece dentro do hospital. Fica

claro que houve uma intervenção, mas não se consegue identificar o que é original e

quais adaptações foram feitas.

Conclusão

Percebe-se que apesar de haver uma vontade explícita de se trabalhar o

patrimônio arquitetônico como acervo, não é o que acontece na prática. As ações

identificadas pelos funcionários do museu como sendo de comunicação da arquitetura,

o filme sobre a construção da cidade e a explicação dos funcionários, são superficiais.

O filme não trabalha a arquitetura do HJKO. Não há informações sobre o que

funcionava onde e os funcionários só sabem, parcialmente, como se dava a ocupação

dos ambientes. Quando se entra no conjunto não há indicações sobre a função das

‘casinhas’ ou sobre como elas eram antes das várias intervenções. As oficinas

também não deixam transparecer por nenhum meio a instalação dos funcionários que

aí viviam. O mesmo acontece dentro do hospital. Fica claro que houve uma

intervenção, mas não se consegue identificar as adaptações realizadas. Seria

necessária uma pesquisa mais aprofundada sobre essa mudança na utilização dos

espaços, aproveitando-se da rara oportunidade de que as pessoas que ali viveram

ainda estão vivas. Paralelo a isso, é fundamental anular os entraves burocráticos, de

maneira a possibilitar a manutenção do conjunto e o treinamento dos funcionários,

dentre as várias medidas que se podem vislumbrar para revitalizar o museu e fazer

com que cumpra seu importante papel memorial na sociedade.

O Museu Vivo da Memória Candanga é um exemplo claro de que através da

comunicação da arquitetura é possível trabalhar diferentes conteúdos didáticos. Mas é

necessário investir em concepções museológicas que sejam capazes de comunicar

tais objetos tão ricos em informações, de forma compreensível e envolvente com

vistas à formação de cidadãos conscientes de seu patrimônio cultural e de sua

participação no desenvolvimento social de sua comunidade.

Bibliografia

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dos indicadores da memória.” In: As várias faces do Patrimônio, por LEPA. Santa

Maria: LEPA/UFSM, 2006.

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www.sc.df.gov.br (acesso em 02 de Abril de 2010).