Na segunda metade do século XIX algumas influências vieram ... · só portugueses, mas...

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Na segunda metade do século XIX algumas influências vieram alterar a visão-de-mundo vinculada ao Romantismo, sobretudo o pensamento científico vinculado ao Positivismo e a preocupação com os problemas sociais. No caso do Brasil, que é o que particularmente nos interessa, tivemos a importação de padrões culturais europeus, não só portugueses, mas notadamente franceses. O autor que se dizia realista queria fazer uma literatura mais próxima da realidade. Ele apresentava uma preocupação quase documental com os personagens, os eventos e os ambientes, usando um recurso literário que a Teoria da Literatura chama de verossimilhança. Com isso, procurava trazer para o conhecimento do leitor um mundo mais imediato e contemporâneo, mais próximo da realidade em que então se vivia. João Maciel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João da Mata, habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e de onde se avistava a Estação da linha férrea de Baturité. Era amanuense, amigado, e gostava de jogar víspora em família aos domingos. Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em torno de uma mesa coberta com um pano xadrez, à luz parca de um candeeiro de louça esfumado, em forma de abajur, corriam os olhos sobre as velhas coleções desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as sílabas numa cadência morosa: — Vin...te e quatro! Sessen...ta e nove!... Cinqüen...ta e seis!... Havia um silêncio morno e concentrado em que destacava o rolar abafado das pedras no saquinho da baeta verde. A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas para o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiação geral. À direita, defronte da janela, dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho não menos gasto. O resto da mobília compunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie de console, colocada à esquerda, onde pousavam dois jarros com flores artificiais. De onde em onde zunia o falsete do amanuense: Quadra! Ou caçoava: — Os anos de Cristo!... Os óculos do Padre Eterno! Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas — uma pilhéria ricocheteava nos quatro ângulos da mesa.

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Na segunda metade do século XIX algumas influências vieram alterar a visão-de-mundo

vinculada ao Romantismo, sobretudo o pensamento científico vinculado ao Positivismo

e a preocupação com os problemas sociais. No caso do Brasil, que é o que

particularmente nos interessa, tivemos a importação de padrões culturais europeus, não

só portugueses, mas notadamente franceses.

O autor que se dizia realista queria fazer uma literatura mais próxima da realidade. Ele

apresentava uma preocupação quase documental com os personagens, os eventos e os

ambientes, usando um recurso literário que a Teoria da Literatura chama de

verossimilhança. Com isso, procurava trazer para o conhecimento do leitor um mundo

mais imediato e contemporâneo, mais próximo da realidade em que então se vivia.

João Maciel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João da Mata, habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e de onde se avistava a Estação da linha férrea de Baturité. Era amanuense, amigado, e gostava de jogar víspora em família aos domingos. Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em torno de uma mesa coberta com um pano xadrez, à luz parca de um candeeiro de louça esfumado, em forma de abajur, corriam os olhos sobre as velhas coleções desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as sílabas numa cadência morosa: — Vin...te e quatro! Sessen...ta e nove!... Cinqüen...ta e seis!... Havia um silêncio morno e concentrado em que destacava o rolar abafado das pedras no saquinho da baeta verde. A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas para o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiação geral. À direita, defronte da janela, dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho não menos gasto. O resto da mobília compunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie de console, colocada à esquerda, onde pousavam dois jarros com flores artificiais. De onde em onde zunia o falsete do amanuense: — Quadra! Ou caçoava: — Os anos de Cristo!... Os óculos do Padre Eterno! Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas — uma pilhéria ricocheteava nos quatro ângulos da mesa.

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— É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo a cabeça, mostrando a dentuça. Depois voltava o silêncio, e a voz fina de mulher continuava a cantar os números solenemente. .........................................................................................

A Normalista, de Adolfo Caminha. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00728.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

Lembra que, quando estudamos a literatura romântica, dissemos que ela era centrada na

primeira pessoa, no “eu”? Pois agora, na literatura realista, vai ser diferente. Os poetas e

os escritores vão ter uma atitude mais objetiva, mais distanciada de seu intimismo, da

sua subjetividade. Eles vão ter que mostrar menos proximidade com a emoção do que

descrevem. O escritor realista, pretensamente, deve parecer um fotógrafo, sem emitir

suas próprias opiniões ao retratar uma certa realidade.

Soneto Decadente Medeiros e Albuquerque

Morria rubro o sol e mansa, mansamente... sombras baixando em flocos, lentas, pelo espaço... Um morrer pungitivo e calmo de inocente: doces, as ilusões fanadas no regaço. Passa um cicio leve e suave... Num traço, ave rápida passa súbita e tremente... A tristeza, que vem, cinge como um baraço a garganta: o soluço estaca ali fremente... Lembranças de pesar... Navio que na curva do mar, de água pesada e funda e escura e turva, some-se de vagar das ondas ao rumor... Ó crepúsculos sós! os exilados sentem a angústia sem igual de amantes que pressentem o derradeiro adeus do derradeiro amor!

Texto eletrônico: http://www.secrel.com.br/jpoesia/mea01.html. Acessado em 26/04/2006, às 11h.

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Uma outra característica é a preocupação em dar detalhes. Nesse sentido, eles

queriam se aproximar da ciência, que se detém na minúcia, nas descrições, na análise

das partes, nas informações.

.............................................................................................. Estava esta a meia encosta de um outeiro a cuja balda corria um ribeirão. Em frente estendia-se o grande pasto. A monotonia de verdura clara era quebrada aqui e ali pelo sombrio da folhagem basta de alguns paus-d'alho, deixados propositadamente para sombra, e pelo amarelo sujo das reboleiras de sapé. Ao fundo, de um lado, em corte brusco, a mata virgem, escura, acentuada, maciça quase, confundindo em um só tom mil cores diversíssimas; de outro em colinas suaves, o verde-claro alegre e uniforme dos canaviais agitados sempre pelo vento; mais além, os cafezais alinhados, regulares, contínuos, como um tapete crespo, verde-negro, estendido pelo dorso da morraria. Em um ou outro ponto, a terra roxa de pedra de ferro, desnudada, punha uma nota estrídula de vermelho-escuro, de sangue coagulado. E sobre tudo isso, azul, diáfano, puro, cetinoso, recurvava-se o céu em uma festa de luz branca, vivificante, mordente...

Quando se embruscava o tempo a paisagem mudava: o céu pardacento, carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixava, como que queria afogar a terra. O revestimento verde perdia o brilho, empanava-se, amortecia em um desfalecimento úmido. .........................................................................................

A Carne, de Júlio Ribeiro. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-00722.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

O objetivo final dos escritores, poetas e romancistas, que escreveram durante o

Realismo era, assim, realizar uma profunda análise crítica da sociedade da segunda

metade do século XIX. Para isso, faziam tanto uma análise psicológica dos

personagens, quanto uma análise sociológica do ambiente em que viviam.

......................................................................................... A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo o ar severo e recolhido está a dizer no seu silêncio os rigores do velho comércio português. Compunha-se do vasto armazém ao rés-do-chão, e mais dois andares; no primeiro dos quais estava o escritório e à noite

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aboletavam-se os caixeiros, e no segundo morava o negociante com a mulher — D. Maria Hortênsia, e uma cunhada — D. Carlotinha. A mesa era no andar de cima. Faziam-se duas: uma para o dono da casa, a família, o guarda-livros e hóspedes, se os havia, o que era freqüente; e a outra só para os caixeiros, que subiam ao número de cinco ou seis. Apesar de inteligente e de brasileiro, Campos nunca logrou espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia. À mesa, quando raramente se palestrava, era sempre com muita reserva; não havia risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria. Os hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia espessa; o guarda-livros poucas vezes arriscava a sua anedota e só se determinava a isso tendo de antemão escolhido um assunto discreto e conveniente. Campos não apertava a bolsa em questões de comida; queria mesa farta: quatro pratos ao almoço, café e leite à discrição; ao jantar seis, sopa e vinho. Os caixeiros falavam com orgulho dessa generosidade e faziam em geral boa ausência do patrão, que, entretanto, fora sempre de uma sobriedade rara: comia pouco, bebia ainda menos e não conhecia os vícios senão de nome. Aos domingos, às vezes mesmo em dia de semana, aparecia para o jantar um ou outro estudante comprovinciano dos Campos ou algum freguês do interior, que estivesse de passagem na Corte e a quem lhe convinha agradar. Luís Campos era homem ativo, caprichoso no serviço de que se encarregava e extremamente suscetível em pontos de honra; quer se tratasse de sua individualidade privada, quer de sua responsabilidade comercial. Não descia nunca ao armazém, ou simplesmente ao escritório, sem estar bem limpo e preparado. Caprichava no asseio do corpo: as unhas, os cabelos e dentes mereciam-lhe bons desvelos e atenções. Entre os companheiros, passava por homem de vistas largas e espírito adiantado; nos dias de descanso dava-se todo ao Figuier, ao Flammarion e ao Júlio Verne; outras vezes, poucas, atirava-se à literatura; mas os verdadeiros mestres aborreciam-no e entreturbavam-no com os rigorismos da forma. — É um bom tipo! diziam os estudantes à volta do jantar, e no seguinte domingo lá estavam de novo. O “bom tipo” tratava-o muito bem, levava-os com a família para a sala, oferecia-lhes charutos, cerveja, e nunca exigia que lhe restituíssem os livros que lhes emprestava. .........................................................................................

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Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00742.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

Você conseguiu entender as atitudes assumidas pela literatura realista? Vamos

sintetizar agora para você.

Atitude documental

Atitude objetiva

Atitude distanciadas das paixões e das emoções

Atitude crítica da realidade

Linguagem clara e objetiva

Temas do mundo contemporâneo

Observação da raça, do meio e do momento em que os personagens vivem

Antes de você conhecer o escritor brasileiro mais representativo da literatura realista,

vamos conhecer alguns fragmentos e poemas realistas e naturalistas.

No trem de ferro Lúcio de Mendonça

Vinha sentado gravemente, mudo, D'olhos baixos, obeso e venerando, Mãos cruzadas no ventre, ruminando Velhas rezas ou santo e duro estudo. Ergue tímido o olhar, triste; contudo, É paternal e bom; de quando em quando Ao céu o volve, ao céu que vai passando Pelas vidraças, empoeirado. Tudo Nele respira a fé e cheira a igreja. Por todos os seus poros Deus poreja. Do seu breviário agora passa as folhas. Pio varão! para este já começa

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O reino do Senhor!... mas sai à pressa E cai-lhe da batina — um saca-rolhas!

Texto eletrônico: http://www.releituras.com/lmendonca_menu.asp. Acessado em 26/04/2006, às 11h.

Cérebro e coração Medeiros e Albuquerque

Dizia o coração: "Eternamente, eternamente há de reinar agora esta dos sonhos teus nova senhora, senhora de tu'alma impenitente." E o cérebro, zombando: "Brevemente, como as outras se foram, mar em fora, ela se há de sumir, e há de ir embora, esquecida também, também ausente." De novo o coração: "Desce! Vem vê-la! Dize, já viste tão divina estrela no firmamento de tu'alma escura?" E o cérebro por fim: - "Todas o eram... Todas... e um dia sem amor morreram, como morre, afinal, toda ventura!"

Texto eletrônico: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/medeiros04.htm. Acessado em 26/04/2006, às 11h.

Estátua Medeiros e Albuquerque

Eu tenho muita vez a estranha pretensão de me fundir em bronze e aparecer nas praças para poder ouvir da voz das populaças a sincera explosão; senti-la, quando, em festa, as grandes multidões aclamam doidamente os fortes vencedores, e febris, pelo ar, espalham-se os clamores das nobres ovações; senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor

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nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte e curva para o chão a entristecida fronte do povo sofredor; poder sempre pairar solenemente em pé, sobre as mágoas cruéis do miserando povo, e ter sempre no rosto, eternamente novo, uma expressão de fé. E, quando enfim cair do altivo pedestal, à sacrílega mão do bárbaro estrangeiro, meu braço descrever no gesto derradeiro a maldição final.

Texto eletrônico: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/medeiros01.htm. Acessado em 26/04/2006, às 11h.

......................................................................................... As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar. Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los. E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco. E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. II

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Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo. Posto que lá na Rua do Hospício os seus negócios não corressem mal, custava-lhe a sofrer a escandalosa fortuna do vendeiro "aquele tipo! um miserável, um sujo, que não pusera nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa com uma negra!" À noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando ele, recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar estendido numa preguiçosa, junto à mesa da sala de jantar, e ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem numa exalação forte de animais cansados. Não podia chegar à janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito. E depois, fechado no quarto de dormir, indiferente e habituado às torpezas carnais da mulher, isento já dos primitivos sobressaltos que lhe faziam, a ele, ferver o sangue e perder a tramontana, era ainda a prosperidade do vizinho o que lhe obsedava o espírito, enegrecendo-lhe a alma com um feio ressentimento de despeito. Tinha inveja do outro, daquele outro português que fizera fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; daquele outro que, para ser mais rico três vezes do que ele, não teve de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de algum fazendeiro freguês da casa! Mas então, ele Miranda, que se supunha a última expressão da ladinagem e da esperteza; ele, que, logo depois do seu casamento, respondendo para Portugal a um ex-colega que o felicitava, dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada de dinheiro, cujas rédeas um homem fino empolgava facilmente; ele, que se tinha na conta de invencível matreiro, não passava afinal de um pedaço de asno comparado com o seu vizinho! Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se escravo de uma brasileira mal-educada e sem escrúpulos de virtude! Imaginara-se talhado para grandes conquistas, e não passava de uma vitima ridícula e sofredora!... Sim! no fim de contas qual fora a sua África?... Enriquecera um pouco, é verdade, mas como? a que preço? hipotecando-se a um diabo, que lhe trouxera oitenta contos de réis, mas incalculáveis milhões de desgostos e vergonhas! Arranjara a vida, sim, mas teve de aturar eternamente uma mulher que ele odiava! E do que afinal lhe aproveitar tudo isso? Qual era afinal a sua grande existência? Do inferno da casa para o purgatório do trabalho e vice-versa! Invejável sorte, não havia dúvida!

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Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem sequer gozava o prazer de ser pai. Se ela, em vez de nascer de Estela, fora uma enjeitadinha recolhida por ele, é natural que a amasse e então a vida lhe correria de outro modo; mas naquelas condições, a pobre criança nada mais representava que o documento vivo do ludibrio materno, e o Miranda estendia até à inocentezinha o ódio que sustentava contra a esposa. Uma espiga a tal da sua vida! — Fui uma besta! resumiu ele, em voz alta, apeando-se da cama, onde se havia recolhido inutilmente. .........................................................................................

O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-01122.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

Agora você vai conhecer um dos escritores mais representativos da Literatura Brasileira.

Seu nome é Joaquim Maria MACHADO DE ASSIS. Na internete, há inúmeras

informações sobre ele, mas o endereço mais confiável é o de um projeto que conta

com a participação da Academia Brasileira de Letras:

http://www.machadodeassis.org.br/.

http://www.unesp.br/destaques/imagens/machado_de_assis.jpg

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http://www.ddooss.org/cuatro/Machado_de_Assis.gif

http://www.senado.gov.br/sf/biblioteca/LViana/IMAGES/MANU.JPG

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http://www.storm-magazine.com/red/images/articles/Machado-de-assis.jpg

http://www.ccqhumor.com.br/noticias/imagens/machado72.GIF

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http://www2.uerj.br/~edai/sueni/nabuco%20e%20assis.jpg

http://www.bairrodocatete.com.br/ministeriobuarque.jpg

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http://www.vidaslusofonas.pt/machad6.jpg

Embora tenha se destacado amplamente na prosa, Machado de Assis escreveu em todos

os gêneros literários: conto, romance, poesia, teatro, crônica, crítica literária,

epistolografia. No início da sua carreira de escritor, seus romances estavam mais

próximos da literatura romântica. Todavia, se eram histórias em que se contavam casos

de amor, não deixava de incluir a crítica dos casamentos motivados pelo desejo de

ascensão social, assunto pouco explorado pelos românticos e que seria, mais tarde,

matéria importante nas mãos dos realistas. Você pode encontrar na Biblioteca da sua

cidade ou da sua Universidade, esses romances: Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena

e Iaiá Garcia.

Veja um fragmento do que escreveu Machado de Assis em duas destas narrativas.

................................................................................................................ CAPÍTULO XXII Não era preciso grande esforço para adivinhar a dona das mãos. Estácio, com as suas, afastou as mãos de Helena, segurando-lhe os pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche: — Você é muito mau! Pagou-me a carícia com um apertão. Deixe estar que nunca mais cairei em outra. Vim vê-lo, porque você hoje não se lembrou ainda de dar à gente um ar de sua graça... Doeu-me!

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continuou ela olhando para os pulsos. Mas... tenho os dedos molhados; seria...você estaria...que é? que foi? Estácio, que ouviu o discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar ansioso, não lhe respondeu às últimas interrogações, e continuou a olhar para ela, como a querer ler na fisionomia da moça a explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, aterrada e aflita. Indo pegar-lhe nas mãos, Estácio desviou o corpo, dirigiu-se à parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia de seus anos, e aproximou-se da moça. — Que é? repetiu esta admirada. A única resposta de Estácio foi estender o dedo sobre a misteriosa casa reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste fê-la atenta no ponto indicado. Súbito empalideceu; os lábios tremeram-lhe como a murmurar alguma coisa, mas a alma falou tão baixo que a palavra não chegou à boca. Durou aquilo poucos instantes. A angústia lia-se no rosto dos dois; a moça, para ocultar a sua, cobriu os olhos com as mãos. O gesto era eloqüente; Estácio lançou para longe de si o quadro, com um movimento de cólera. Helena atirou-se para o corredor. D. Úrsula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes, dirigiu-se ela própria ao gabinete de Estácio. A porta estava aberta; D. Úrsula entrou e deu com ele, sentado numa poltrona, com o lenço na cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permitiam os anos. Estácio não a ouviu entrar; só deu por ela quando as mãos da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos, O assombro de D. Úrsula foi indescritível, sobretudo quando Estácio, erguendo-se, atirou-se-lhe aos braços, exclamando: — Que fatalidade! — Mas. .. que é?. . . explica-te. Estácio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com o gesto decidido de um homem que se envergonha de um ato de debilidade. A explosão desabafara-lhe o espírito; podia enfim ser homem, e era preciso que o fosse. D. Úrsula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicável aflição em que viera achá-lo. Estácio recusou dizê-la. — Saberá tudo amanhã ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e eu sei o que ele me há custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu conselho e apoio. D. Úrsula resignou-se à demora. Quando chegou à sala de jantar, achou um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira

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repentinamente incomodada e que a dispensasse naquela tarde e noite. Dona Úrsula suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a aflição de Estácio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meio inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada, e o corpo tranqüilo e como morto. Ao sentir os passos de D. Úrsula, ergueu a cabeça. A palidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lágrimas. A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificado. O que restava ainda vivo na figura da moça, eram os olhos, que não perderam o fulgor natural. Ela ergueu-os a medo, e abraçou a tia com um olhar de súplica e de amor. D. Úrsula travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou: — Conta-me tudo. — Saberá depois! suspirou a moça. — Não tens confiança em tua tia? Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lágrimas rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que eles verteram naquela meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura: — Pode receber estes beijos, disse ela, os anjos não os têm mais puros. Foram as últimas palavras que D. Úrsula pôde arrancar-lhe; a moça recolheu-se ao silêncio em que ela a encontrou. D. Úrsula saiu; e foi dali ter com Estácio. O sobrinho encaminhava-se para a sala de jantar. — Vamos para a mesa, disse ele, não convém que os escravos saibam de tais crises. D. Úrsula referiu o estado em que achara Helena e as palavras que trocara com ela. Estácio ouviu-a sem nenhuma expressão de simpatia. O jantar foi um simulacro; era um meio de iludir a perspicácia dos escravos, que aliás não caíram naquele embuste. Eles conheceram perfeitamente que algum acontecimento oculto trazia suspensos e concentrados os espíritos. As iguarias voltavam quase intactas; as palavras eram trocadas com esforço entre a sinhá velha e o senhor moço. A causa daquilo era, com certeza, nhanhã Helena. Estácio deu ordem para que a todas as pessoas estranhas se declarasse estar ausente a família. A única exceção era o Padre Melchior. A esse escreveu pedindo-lhe que os fosse ver. — Não posso esperar até amanhã, disse D. Úrsula; se tens de revelar alguma coisa a um estranho, por que o não fazes a mim primeiro? Dize-me o que há. Não posso ver padecer Helena; quero consolá-la e animá-la.

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— O que tenho para dizer é longo e triste, retorquiu Estácio; mas, se deseja sabê-lo desde já, peço-lhe ao menos que espere a presença do Padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas coisas; seria revolver o punhal na ferida. A curiosidade de D. Úrsula cresceu com estas meias palavras do sobrinho; mas era forçoso esperar, e esperou. Foi dali ao quarto de Helena. Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena escrevia. Esta nova circunstância veio complicar as impressões de D. Úrsula. — Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ela ao sobrinho. — Naturalmente, respondeu este, com sequidão. O Padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estácio. O bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; ele o reconheceu desde logo, não só no aspecto lúgubre da família, como na ânsia com que era esperado. Os três recolheram-se a uma das salas interiores. — Helena? perguntou Melchior. — Vamos tratar dela, respondeu Estácio. Referir o que se passara naquela fatal manhã era mais fácil de planear que de executar. No momento de expor a situação e as circunstâncias dela, Estácio sentiu que a língua rebelde não obedecia à intenção. Achava-se num tribunal doméstico, e o que até então fora conflito interior entre a afeição e a dignidade, cumpria agora reduzi-lo às proporções de um libelo claro, seco e decidido. Inocente ou culpada, Helena aparecia-lhe naquele momento como uma recordação das horas felizes, — doce recordação que os sucessos presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não destruiriam nunca, porque é esse o misterioso privilégio do passado. Reagiu, entretanto, sobre si mesmo; e, ainda que a custo, referiu minuciosa e sinceramente o que se passara desde aquela manhã. Não fora talhado para tão melindrosas revelações o coração de D. Úrsula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que dão os grandes golpes. Esperava, decerto, um grande infortúnio de Helena, um episódio da família anterior, alguma coisa que desafiasse a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente o contrário; a estima era impossível e a compaixão tornava-se apenas provável. — Mas não! é impossível! exclamou ela daí a pouco, logo que a razão, obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz... não! eu

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a vi há pouco; senti-lhe as lágrimas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a inocência pode proferir. E, além disso, seu procedimento irrepreensível, um ano quase de convivência sem mácula, a elevação de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre Helena! Vamos chamá-la, ela explicará tudo. Interroguemos o Vicente. Um gesto dos dois homens mostrou que nenhum deles julgava digno este último recurso para conhecer a verdade. D. Úrsula caíra em prostração, recordava suas apreensões do primeiro dia, e recuava com horror à idéia de ter acertado. Defronte dela, Estácio ocupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os cotovelos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma ruminava a dor. Um só dos três vingava a dignidade da situação. O Padre Melchior não sentira menor assombro que os dois parentes de Helena, nem padeceu menos profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dois corações ulcerados e sem força, compreendeu Melchior que lhe cabia a principal ação, e não recuou ante a responsabilidade que daí poderia deduzir. Viu de um lance a extensão possível do mal, a desunião da família, os desesperos da ocasião, os ódios do dia seguinte, as amarguras indeléveis, e, talvez, as indeléveis saudades; mas nem este quadro o aterrou, nem ele o aceitou sem exame. Melchior não condenava nem absolvia; esperava. Ele pertencia ao número dessas virtudes singelas para as quais o vício é uma rara exceção; natureza sincera e franca, era-lhe difícil crer na hipocrisia. Enquanto Estácio prosseguia calado e pensativo, e D. Úrsula, ora sentada, ora de pé, intercalava o silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e refletia também consigo. Enfim, proferiu estas palavras de animação: — Sossegue, D. Úrsula; a verdade há de aparecer, e não estamos certos de que seja o que nos parece. Em todo o caso, não antecipemos a aflição. Seria padecer duas vezes. Há tempo de chorar à larga. Melchior levantou-se: — Convém sacudir o abatimento, continuou, dirigindo-se a Estácio; é a hora da ação e do vigor. Sobretudo, é necessário não boquejar de semelhante assunto por agora; daria azo às vozes estranhas e seus naturais comentários. Eu tomarei nesta colisão o lugar que me compete, se mo não contestam... — Oh! exclamou Estácio.

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— ...Mas, desejo que desde já se compenetrem bem de que, se a dignidade pede uma coisa, a caridade pede outra, e que o dever estrito é conciliá-las. Nada de ódios; perdão ou esquecimento. — Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Úrsula com ansiedade. — D. Úrsula, disse o padre, é preciso agora que a razão fale e trabalhe; o sentimento deve retrair-se e esperar. Examinarei o caso, e aconselharei o necessário remédio. Talvez estejamos a debater-nos no vácuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma aparência. — Oh! ela confessou tudo! interrompeu Estácio. Vi-lhe a expressão da culpa nos olhos. Mas, enfim, estou pronto para tudo, continuou ele erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pai? Não o é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer melhor. Na situação em que nos achamos, nenhum de nós tem o espírito bastante senhor de si para colher os elementos da verdade, apurá-la e resolver. Esse papel é seu. Vieram trazer a Estácio uma carta. Era do Dr. Camargo, anunciando-lhe que a madrinha de Eugênia falecera, e que ele no prazo de alguns dias estaria na Corte. Era o pior momento para semelhante vinda; Estácio não pôde reprimir um gesto de desgosto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no regresso de Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o assunto que os afligia. — D. Úrsula, continuou ele, deixe-nos agora sós alguns instantes; vá tranqüila, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguém o que se passa nesta casa. D. Úrsula obedeceu. Logo que ela saiu, Melchior fechou a porta. Estácio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capelão. Este deu alguns passos entre a porta e uma das janelas. Ia anoitecendo; Estácio acendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pé dele, sem lhe falar nem lhe voltar sequer os olhos. Meditava ou lutava consigo mesmo; a fronte pesada e merencória traduzia a agitação interior. Já não era a inalterável placidez, reflexo de uma consciência religiosa e pura. Se a consciência era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise nova. Após dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou. ................................................................................................................

Helena, de Machado de Assis. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00989.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

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........................................................................................... A carta de Iaiá fora escrita naquela manhã, depois de uma noite de agitação e luta. Nem foi a única. Iaiá escrevera outra, menos lacônica, a Procópio Dias. Morto o pai, esse homem fora ali três vezes, sem trocar com a moça uma só palavra relativa à estranha confidência que lhe fizera antes. Eram visitas de meia hora, não mais; durante esse curto lapso de tempo, Procópio Dias não discrepava um instante da gravidade um pouco triste que adotara. Não era o folgazão primitivo, mas também não era um poeta desesperado e pálido; ficava a igual distância de um e outro modelo. Os acontecimentos pareciam aconselhar-lhe uma discreta ausência; mas, além de não ter melindres nem escrúpulos, floria-lhe no peito a esperança, a esperança tenaz dos cobiçosos. Não a sussurrava ao ouvido da moça, nem a ostentava nos olhos, na compostura, nos meneios, todos eles impregnados da submissão de uma alma desenganada e passiva. Iaiá tratava-o com bondade, já agora mais constante; posto não lhe passasse pela cabeça a idéia de vir a desposá-lo, não lhe destoava o aspecto dessa paixão resignada e muda. Depois de soltar a palavra decisiva, Iaiá entendeu que lhe devia dar a forma última, desligando-se da solene promessa. Não o fez sem muita lágrima solitária. A pobre criança amava o filho de Valéria com a singeleza de um coração quase adolescente; e só então mediu todo o império que ele adquirira sobre ela. Mas duas circunstâncias a induziam ao desfecho; era a primeira a revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada no chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe metera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabelo em ondas amplas sobre a espádua, com a desordem da pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os olhos se umedecessem, o ódio complicou-se de piedade. — Que se casem! Disse a moça resolutamente. Desligando-se da promessa feita, Iaiá refletiu que ia ficar só, e que precisava forçosamente de um amparo; foi então que lhe lembrou Procópio Dias. Não encarou a idéia sem repugnância; aceitável na palestra, Procópio Dias era-lhe antipático para a convivência conjugal. Não o podia amar, e, uma vez resoluta a aceitá-lo, começou logo de o aborrecer. Que muito? Era um marido; não exigia outro mérito. A carta que lhe escreveu não saiu de um jato, foi trabalhada e repisada; o texto definitivo dizia que fosse ali sem demora para lhe falar de objeto que interessava à felicidade de ambos. Isto, e nada mais que uma

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lágrima, que lhe resvalou dos cílios no papel como um protesto contra o que ia nele escrito. Raimundo, chamado para levar essa carta, recebeu-a depois de alguma hesitação. Olhou para o papel e para a sinhá-moça. Depois sacudiu a cabeça com um ar de dúvida. Iaiá simulou não ver nada, mas o gesto do preto impressionou-a. Ia afastar-se, Raimundo reteve-a dizendo: — Iaiá me desculpe... esta carta... Raimundo não gosta de falar àquele homem. — Não lhe fales; basta deixar a carta em casa dele. Raimundo não insistiu; acompanhou com os olhos a filha de seu antigo senhor, abanando a cabeça com o mesmo ar de alguns momentos antes. Depois olhou para a carta, como se quisesse adivinhar o que ia dentro. Não era só pressentimento, mas também dedução do que ele via naquelas últimas semanas. Tinham-lhe dado notícia do casamento; falara-se nisso todos os dias antes da morte de Luís Garcia. Morto este, cessou toda a alusão ao projeto, que parecia dever executar-se dentro de pouco tempo. O coração do preto dizia que aquela carta era alguma cousa mais do que um recado sem conseqüência. Quis levá-la a Estela; mas rejeitou o expediente, por lhe parecer infidelidade. Dez minutos depois saiu em direção à casa de Procópio Dias. Entretanto, chegavam às mãos de Estela o bilhete de Jorge e o de Iaiá. A viúva não podia crer o que lera. A carta da enteada era um ato de insubordinação, inexplicável na essência e na forma; e se essa carta a fez pasmar, a de Jorge fê-la gemer. O noivo desenganado recorria à intervenção de Estela. A primeira amada desse homem era agora a sua confidente, a quem ele escrevia sem saudade, sem remorso, talvez sem hesitação. — Sogra! concluiu Estela com amargura; e erguendo os olhos do papel para o espelho, que pendia da parede fronteira, contemplou caladamente as suas graças ainda em flor. Iaiá entrou nessa ocasião. A madrasta chamou-a ao pé de si; e mostrando-lhe o bilhete que escrevera ao noivo, perguntou-lhe o que queria dizer aquilo. A enteada ficou silenciosa durante alguns segundos; mas a resolução deu-lhe força e tranqüilidade. — Quer dizer o que aí está escrito, respondeu ela; não posso casar com o Dr. Jorge. — Por quê? — Não posso.

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— Por quê? repetiu Estela com autoridade. — Amo a outra pessoa. — Não creio; tem decerto outro motivo. — Que motivo? — Nenhum que seja sensato, acudiu a madrasta, mas algum há de haver, que não seja esse. O passo que deu é grave; não é próprio de uma moça obediente; chega a ser contrário à cortesia. Não importa; tudo se pode explicar; explique-me esta carta. Iaiá não obedeceu à intimação da madrasta; e para tirar à recusa qualquer aparência ofensiva, conservou um ar de modéstia e resignação. Estela não se deu por vencida; demonstrou-lhe que só um motivo grave podia justificar semelhante procedimento, e que era forçoso dizê-lo ao noivo; lembrou-lhe finalmente a estima que sempre houve entre Jorge e o pai. Neste ponto Iaiá estremeceu e fitou na madrasta uns olhos que não eram os de pouco antes. Parecia-lhe sacrilégio evocar o nome do pai. Não se pôde ter; deu um passo e interrompeu-a com sequidão: — Não posso casar, porque a senhora o ama. Estela, que já então estava sentada, ergueu-se de golpe ao ouvir esta súbita e inesperada explicação. Sua face pálida, que o traje de viúva ainda mais empalidecia, tingiu-se de uns longes de vermelho. Podia ser confusão ou indignação. Durante uma pausa relativamente longa, Iaiá não tirou os olhos da madrasta. Essas duas lâmpadas buscavam examinar-lhe, no momento supremo, todos os recantos da consciência e todos os atalhos do passado. Não disse nada, para melhor gozar do abalo que acabava de produzir em Estela; era o juro do sacrifício. Mas Estela sentou-se daí a pouco, e foi a primeira que rompeu o silêncio. — Tu estás louca, disse ela tranqüilamente. Quem te meteu semelhante idéia na cabeça? — Não examinemos agora quem foi ou o que foi que me fez adivinhar a verdade, respondeu Iaiá; basta saber que decidi romper o casamento, que o mandei dizer ao Dr. Jorge, e que talvez dentro de poucos dias outra pessoa lhe pedirá minha mão. Estas palavras transtornaram de todo a viúva, que atônita e irritada deu alguns passos na sala, buscando conter a explosão de seus sentimentos. Iaiá foi ter com ela, falou-lhe com brandura e submissão.

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— Não se zangue, mamãezinha, se lhe não disse antes o que fiz agora mesmo; estava certa de que aprovaria, ou me perdoaria, quando menos. O homem de que lhe falo ama-me; e a senhora mesma não rejeitou a idéia de me ver casada com ele. — Não tens culpa da imprudência que cometeste, disse Estela; porque antes disso tinhas perdido a razão. Vem cá; disseste-me aí uma palavra absurda, e é preciso que me digas outra com que expliques a primeira. Por que eu o amo? Continuou depois de alguns instantes. Que quer dizer com isso? Iaiá curvou a cabeça. — Fala! — Não direi nada; essa palavra explica tudo. Se o ama, como eu creio, é a sua felicidade que lhe trago, não digo a troco da minha, porque seria lançar-lhe em rosto o sacrifício, mas a troco de uma ilusão, e nada mais. Não pense que lhe quero mal; não posso querer mal a quem me tem ou teve alguma afeição e substituiu dignamente minha mãe. Se lhe quisesse mal, é provável que não fizesse o que fiz. Enquanto falava a enteada, Estela tinha a fronte inclinada e pensativa; atitude em que se conservou ainda durante algum tempo. — Bem vê que o ama, disse Iaiá; seu silêncio confirma a minha suposição. — Eu! exclamou Estela estremecendo. E lançando-lhe um dos olhares de gelo, que eram o reflexo do seu orgulho: — Tu não entendes nada dos sentimentos, não conheces o coração. Eu amá-lo? eu? Não! não é possível! — Talvez não, mas o que está feito, está feito. A madrasta quis retê-la, mas não pôde; Iaiá saiu sem dizer nada. Estela ficou atordoada, confusa e até medrosa; reboavam-lhe aos ouvidos as palavras de Iaiá, não como um som exterior, mas como o brado da própria consciência. Venceu o abatimento, reagiu depressa como lho pediam as circunstâncias e a própria necessidade de sua natureza. Não teve tempo de cogitar no modo por que a enteada chegara a suspeitar um sentimento que ela recalcara no coração. Urgia reparar o mal feito pela imprudência da moça. Estela dispôs-se a responder desde logo à carta de Jorge, e não sabia ainda claramente o que havia de dizer. Tratou primeiro de chamar Raimundo, e vendo que ele não acudia foi ter com Iaiá.

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— Raimundo foi levar uma carta minha ao Procópio Dias, respondeu esta. Estela caiu numa cadeira. Pela primeira vez, alumiou-lhe o espírito uma idéia cruel: a idéia de que a suspeita de Iaiá fosse mais do que uma simples e inocente conjectura, fosse um ultraje. Os olhos que lançou à moça ardiam de indignação. Cobriu-os depressa, não para chorar, mas para fugir aos da outra. O olhar de Estela fez vacilar por um instante a convicção da enteada; a cólera pareceu-lhe sincera e até excessiva; mas o gesto que se lhe seguiu atenuou e desvaneceu a primeira impressão. Iaiá supôs ver na atitude da madrasta uma confissão involuntária, uma expressão de abatimento e desespero, como de pessoa que entrevê a felicidade própria e julga dever sacrificá-la à de outrem. Era generosa. Caminhou para ela, dobrou as curvas, pousou-lhe no regaço os braços, trêmulos de comoção; com as mãos desviou as de Estela e fitou-lhe os olhos, que estavam sombrios. — Fui estouvada, confesso, disse ela; devia tê-la consultado antes de fazer o que fiz. Mas eu temia a sua oposição; e não queria torná-la desgraçada. Sou mais moça que a senhora; se tivesse de consolar-me, consolava-me depressa. Mas não tenho; não amava; cedi a um capricho, e não sinto a menor dor ao despedir-me dele. Ande, perdoe-me; e esteja certa de que não a amarei menos do que até agora. Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou instintivamente a cabeça; era um resto de repugnância, que a fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina tamanha dissimulação? Estela concluiu que a ação da enteada vinha, não de uma suposição ultrajante, mas de um impulso desinteressado. Qualquer que fosse o fundamento da suspeita, o procedimento da enteada trazia o cunho da candura e da boa fé; assim pensando, Estela sentiu desoprimir-se-lhe a alma. Não era generosa, — ou tinha somente a generosidade fria e altiva, que nasce da soberba. Mas não era insensível; e o desinteresse da menina tocou-lhe profundamente o coração. Inclinou-se para ela, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e fitou-a, com um olhar severo e maternal ao mesmo tempo. — Perdôo-te, disse finalmente, porque não sabes o que fizeste. A intenção é que te salva do meu ódio; digo mal, do meu desprezo. Se queres medir bem a profundidade do abismo que acabas de cavar, fica sabendo que me injuriaste, pensando servir-me, e que o resultado do teu erro pode talvez arrancar-te lágrimas amargas e inúteis. Teu castigo será que só eu as enxugarei; — ouves bem? só eu.

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Dizendo isto, soltou a cabeça da enteada com um gesto ríspido, em que havia ainda um pouco de irritação. Iaiá estava pálida. Sentiu na palavra seca e fria da madrasta um alento de indignação sincera; e a alma caiu-lhe prostrada, mais ainda do que o corpo, que não podendo suster-se, procurou amparar-se no móvel que achou mais próximo. A dúvida, que já antes atravessara o espírito da moça, começou a invadi-lo. Iaiá fitou Estela com o mais agudo de seus olhares, acompanhou-a de um lado para outro, porque a madrasta, logo depois das palavras que lhe disse, entrara a andar e refletir. Se a viúva era sincera, Iaiá acabava de fazer gratuitamente a sua própria desgraça; foi o que a moça pensou, e esse pensamento justificou-a como um latejo. No atordoamento moral em que esta hipótese a lançou, Iaiá achou-se entre dous desejos, mal definidos, mas inteiramente opostos um ao outro. Quisera e não quisera ter-se enganado; aspirava a conciliar o coração e a consciência. Seu espírito evocou a hora inicial da suspeita, — aquela funesta manhã, em que a carta de Jorge foi lida por Estela; recordou o gesto da madrasta, o tremor, a lividez, os vivos sintomas da consternação, do medo ou do remorso. Seria engano aquilo? não era evidente que eles se haviam amado, que se amavam ainda naquela ocasião; e, dada a afirmativa, era acaso impossível que Estela, ao menos, o amasse ainda hoje? Iaiá ateve-se a esta conclusão, embora confirmasse a ruína de suas esperanças; a conclusão, porém, contrastava com a impassibilidade da madrasta. Já então perdera Estela o alvoroço do primeiro momento. Depois de alguns minutos de reflexão, parara em frente da enteada. Era difícil ver na atitude quieta, no aspecto de matrona severa e digna, alguma cousa que se parecesse com as ânsias, o triunfo ou o abatimento de uma rival. Iaiá deixou-se estar diante dela, a fitá-la e a revolvê-la. A porção da alma que transparecia do rosto da viúva era tão fria, tão indiferente, que mal se podia combinar com o sentimento que Iaiá lhe atribuía. Foi o que esta pensou ver com seus olhos finamente sagazes; e no meio desse contraste entre o aspecto presente e a revelação passada, Iaiá acabou por não saber definitivamente onde ficava a verdade, e esteve a ponto de lha pedir de joelhos. Achavam-se então no gabinete de Luís Garcia, defronte da secretária, onde o finado encontrara, com outros papéis, a carta que dera lugar às conjecturas de Iaiá. Não havia mudança nem no número nem na disposição dos móveis. Só a luz era diferente, porque a daquele dia era viva e clara, coada através de uma atmosfera serena, como a vida anterior dessa família, ao passo que a de hoje vinha turva e meio apagada pelas nuvens de um céu chuvoso e triste. Na longa pausa que houve entre a madrasta e a enteada, os únicos sons que se ouviam eram o

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rufar da chuva na folhagem do jardim e o tic-tac de um relógio de parede. — Vou fazer-te o maior mal que é possível receber na tua idade, disse finalmente Estela. Mas assim o quer; e se alguma razão tens para crer que amo esse homem, é necessário mostrar-te a realidade das cousas. Estela abriu duas ou três gavetinhas da secretária, e depois de alguma busca entre os maços de cartas que aí encontrou, tirou uma, abriu-a e deu-a à enteada. Iaiá recebeu-a com as mãos trêmulas de curiosidade; leu-a toda; devia ser a mesma que o pai mostrara à madrasta. — Essa moça era a senhora? murmurou ela como se ainda esperasse resposta negativa. — Era eu. Iaiá deixou-se cair numa cadeira rasa, a mesma em que Estela estivera sentada, quando ouviu a confidência do marido. — Vês? disse Estela; foi por mim que ele fez o sacrifício de ir para a guerra, sem esperança de ser retribuído nem de contar um dia com a minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns anos. É duro de ouvir, minha filha, mas não há nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida, afronta a vontade de sua mãe, rebela-se, e pede a morte; e essa paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre duas xícaras de chá... — A senhora não o amou nunca? interrompeu Iaiá, ao sentir o tremor e o despeito com que a madrasta proferira as últimas palavras. — Havia entre nós um fosso largo, muito largo, disse Estela. Eu era humilde e obscura, ele distinto e considerado; diferença que podia desaparecer, se a natureza me houvesse dado outro coração. Medi toda a distância que nos separava e tratei simplesmente de evitá-lo. Foi então que ele embarcou; interiormente aprovei-o. Talvez lhe não neguei um pouco de compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento entre nós, era impossível, ainda que todos trabalhassem para ele; era impossível, sim, porque o consideraria uma espécie de favor, e eu tenho em grande respeito a minha própria condição. Meu pai já me achava, em pequena, uns arremessos de orgulho. Como querias tu que, com tal sentimento, pudesse desposar um

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homem, socialmente superior a mim? Era preciso dar-me outra índole. Todas as felicidades do casamento achei-as ao pé de teu pai. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e por isso acertada. Não tínhamos ilusões; pudemos ser felizes sem desencanto. Teu pai não tinha os mesmos sentimentos que eu; era mais tímido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do seu desapego ao mundo, bastava que o tivesse, para me fazer feliz; vivemos assim alguns anos de inteiro isolamento, sem conhecer o amargor, que é o que fica no fundo da vida, sem necessidade de dissimulação... Minto; tive necessidade de fingir, desde que aquele homem aqui apareceu; era necessário. Um dia teu pai mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão encoberta que aí se conta; podes imaginar se ouvi tranqüila. Mas fora desse acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi nenhuma porta abrir-se-me por obséquio, nenhuma mão apertou a minha por simples condescendência. Não conheci a polidez humilhante, nem a afabilidade sem calor. Meu nome não serviu de pasto à natural curiosidade dos amigos de meu marido. Quem é ela? donde veio? Ninguém me perguntou donde vinha, não é verdade? Perguntaste-me quem era eu? Não; amaste-me como tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras minha filha. E para isso bastou-nos estender os braços; não foi preciso descer nem subir. — Não foi, bradou Iaiá comovida, apertando-lhe as mãos. — Já vês quem eu era e sou; uma espécie de animal feroz, que prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisonjeada com a paixão que inspirei; rejeitei, talvez, um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois aí tens a minha história, a história dessa carta, que já agora podemos rasgar... Estela pegou na carta e rasgou-a lentamente, em pedaços miúdos, enquanto a enteada refletia nas revelações que acabava de ouvir. A madrasta deitou os fragmentos do papel à cesta. Talvez a mão lhe tremia um pouco; o rosto, porém, era de granito. — Resta concertar a imprudência e casar, disse Estela dando à palavra um tom galhofeiro. — Não sei! murmurou Iaiá. O que a senhora me disse é grave; não há sentimentos eternos. Parece que depois de tamanha paixão qualquer outro afeto não terá longa vida. — Por que não? Não hás de querer agora uma paixão que o leve à guerra; seria um desastre. Mas está nas tuas mãos fazer que ele te ame sempre e muito.

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Iaiá refletiu um instante. — Jure-me que o não ama! Estela franziu o sobrolho; depois mostrou-lhe o bilhete que Jorge lhe escrevera poucos antes, e cuja redação dissiparia à moça qualquer dúvida em relação ao noivo. Era uma evasiva para lhe não confessar nem mentir. A primeira vez que lhe negara o amor, foi antes um grito do coração que queria enganar-se a si próprio; agora preferia calar-se. Iaiá caiu no laço. O coração humano é tão egoísta! A certeza da isenção de Jorge importava muito mais que a de Estela; a alma da moça no primeiro instante, respirou à larga. O respeito que tinha à madrasta, e um pouco de ciúme retrospectivo que a mordia, ao pensar naquela paixão tão violenta e tão desenganada, empeciam à moça qualquer outra manifestação. Quando se achou a sós consigo, levava o espírito arejado da suspeita que o oprimira durante largos meses; mas o vento que o lavou das sombras, lá lhe queimou algumas das flores desabotoadas ao calor do primeiro sol. A felicidade tinha um travo de desgosto e humilhação; o coração tremia de medo. Quando mais absorta estava nesse contraste de sensações, viu Raimundo transpor a porta do jardim. ........................................................................................

Iaiá Garcia, de Machado de Assis. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-00990.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

Mas são seus romances da segunda fase como escritor, já mais amadurecido, na idade e

intelectualmente, que vão representar um grande momento literário da história da

Literatura Brasileira: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom

Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Vamos conhecer algumas passagens

desses romances, em que Machado de Assis explora temas como:

Abordagem psicológica refinada dos personagens

Análise crítica profunda da sociedade brasileira do século XIX

Ironia na descrição e na análise do comportamento do homem e da sociedade brasileira

Conversas com o leitor durante a narrativa

Romances escritos em capítulos curtos

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Vamos conhecer passagens destes romances para você entender as características

apontadas acima.

CAPÍTULO II Do Livro

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão. Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa. O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.

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Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal. Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam re-constituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...? Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.

CAPÍTULO IV

Um Dever Amaríssimo! José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição

monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um aro de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa

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antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!

Dom Casmurro, de Machado de Assis. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-01149.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

CAPÍTULO 68

O vergalho Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova. — Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado! — Meu senhor! gemia o outro. — Cala a boca, besta! replicava o vergalho. Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele. — É, sim nhonhô. — Fez-te alguma coisa? — É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber. — Está bom, perdoa-lhe, disse eu. — Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado! Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio

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achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!

CAPÍTULO 32 Coxa de nascença

Fui dali acabar os preparativos da viagem. Já agora não me demoro mais. Desço imediatamente; desço, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo passado é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação... Ai, não contava com Dona Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha convidar-me para transferir a descida, e ir lá jantar nesse dia. Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude deixar de aceitar; demais, era-lhe devida aquela compensação; fui. Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por minha causa, — se é que não andava muita vez assim. Nem as bichas de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um simples vestido branco, de cassa,sem enfeites, tendo ao colo, em vez de broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos, fechando as mangas, e nem sombra de pulseira. Era isso no corpo; não era outra coisa no espírito. Idéias claras, maneiras chãs, certa graça natural, um ar de senhora, e não sei se alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual me lembrava o episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar o mesmo mote à filha... — Agora vou mostrar-lhe a chácara, disse a mãe, logo que esgotamos o último gole de café. Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear: — Não, senhor, sou coxa de nascença. Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que

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a vi — na véspera — a moça chegara-se lentamente à cadeira da mãe, e que naquele dia, já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito; mas porque razão o confessava agora? Olhei para ela e reparei que ia triste. Tratei de apagar os vestígios de meu desazo; — não me foi difícil, porque a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a chácara, árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia... Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranqüilos. Creio que duas ou três vezes baixaram, um pouco turvados; mas duas ou três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem biocos.

CAPÍTULO 33 Bem-aventurados os que não descem

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo. Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a manhã era límpida e azul, e apesar disso deixei-me ficar, não menos que no terceiro dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e a noiva, e o arlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral.Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor, ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigiava-nos, mas pouco; temperava a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira explosão da natureza, entregava-me a alma em flor.

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— O senhor desce amanhã? Disse-me ela no sábado. — Pretendo. — Não desça. Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: — Bem-aventurados os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das moças. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia, — o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem... D. Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até a janela. Eugênia sentou-se a consertar uma das tranças. Que dissimulação graciosa! que arte infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural, vivo, não estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto melhor! Dona Eusébia não suspeitou nada.

CAPÍTULO 34 A uma alma sensível

Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez..., sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana! Esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma coisa nesse mundo. Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemônio, alma sensível, uma barafunda de coisas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Smirna até a arruda do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, — que isso às vezes é dos óculos, — e acabemos de uma vez com esta flor da moita.

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Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0052-01754.html. Acessado em

26/04/2006, às 11h.

Também no conto se afirma a maestria de escritor de Machado de Assis. Ele vai ser o nosso primeiro grande contista. Vamos interromper agora um pouco o nosso conhecimento da história da literatura brasileira para pensarmos um pouco sobre um esse gênero literário.

Você sabe o que é o conto?

O conto é uma narrativa de menor extensão do que o romance. Ele se originou nos mitos, nos contos infantis, nas histórias do folclore, nos contos falados. Todavia, o conto literário é escrito e elaborado segundo características estéticas, que dizem respeito à arte literária. É importante também dizer que o contista não se preocupa com a totalidade de uma grande história; ele enfatiza um lampejo, uma minúcia, um pequeno detalhe, ele contar um fato, um episódio interessante, a partir do que se vislumbrar talvez a totalidade. Sem chegar a repetir a frase de Mário de Andrade, para quem “conto é o que o autor diz que é conto”, poderíamos talvez saber o que um importante contista disse. Para Eça de Queirós, “No conto tudo precisa de ser apontado num risco leve e sóbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha flagrante e definidora que revela e fixa uma personalidade; dos sentimentos apenas o que caiba num olhar ou numa dessas palavras que escapa dos lábios e traz todo o ser; da paisagem somente os longes, numa cor unida” (Prefácio” a Azulejos, volume de contos publicado pelo Conde de Arnoso). .

Para você entender vamos colocar aqui um conto de um escritor russo, que está

traduzido para a língua portuguesa. Veja o que ele fez e como ele contou a história de

uma forma bem sintética, sem perder a qualidade da história. O conto elimina as

análises minuciosas e as complicações do enredo e delimita fortemente o tempo e o

espaço.

A CARTA EXTRAVIADA Nicolai Gogol Um dia, o serenissimo hetmã lembou-se de mandar uma carta para a czarina. O escriba do regimento (que o diabo o carregue), esqueci como se chamava! Era Viskriak ou não? Motuzotchka ou não? Goloputsek ou não?... Como quer que seja, o que sei é que seu nome era dificilimo. Enfim, o escriba do regimento chamou meu avô e disse-lhe que o hetmã o encarregara de levar uma carta para a czarina. Meu avô não gostava de fazer preparativos demorados. Coseu a carta em seu

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gorro, arreou o cavalo, beijou a mulher e os dois (como ele os chamava) porquinhos, um dos quais era meu pai, e partiu levantando após si tanta poeira quanta teriam levantado quinze malandros que estivessem jogando barra no meio da rua. No dia seguinte pela manhã, ainda não cantara o galo pela quarta vez e meu avô já estava em Konotop. Realizava-se aí, então, uma feira: tão grande era a multidão que entulhava as ruas, mas como ainda era muito cedo, todas as pessoas dormiam deitadas no chão. Junto a uma vaca, estava deitado um "parabok" gozador, de nariz vermelho como um pisco; mais adiante roncava, sentada junto a suas coisas, uma vendedora de pederneiras, de anil, de chumbo para fuzil e de "bubliki". Debaixo de uma carriola, estava deitado um cigano; sobre outra carriola carregada de peixe estava estendido o carroceiro; e, na estrada real, de pernas abertas, permanecia deitado o moscovita barbudo com um carregamento de cinto e de luvas... numa palavra, havia toda a especie de pessoas que é costume encontrar nas feiras. Meu avô parou para olhar ao derredor. As tendas começavam gradativamente a se animar: as judias arrumavam seus frascos, a fumaça subia em espirais aqui e ali e o odor das iguarias aquecidas espalhava-se por todo o acampamento. Meu avô lembrou-se de que estava sem fumo e sem estopa, e começou a procurá-los na feira. Mal dera vinte passos, encontrou um "zaporoga" um verdadeiro gozador; bastava olhá-lo para verificar-se isso. Calções vermelhos como fogo, um "caftã" azul; um cinturão escarlate, e sobre à cintura, um cachimbo de canudo curto com uma correntinha de cobre que ia até os pés, numa palavra, um verdadeiro "zaporoga"Ah! que rapagões! como eles param, como se espreguiçam ao passar a mão pelos valentes bigodes, como fazem tinir as esporas e começam a dançar: suas pernas giram com a velocidade de uma roca em mãos femininas! Fazem ressoar e depois, com as mãos nas cadeiras, atiram-se em "prissiadka" e entoam uma canção arrebatadora!... Não! passou-se o tempo. Não se verão mais "zaporogas"! Então, meu avô encontrou um desses "zaporogas". Palavra puxa palavra, não lhes foi preciso muito tempo para se tornarem amigos. Começaram a tagarelar, a tagarelar a tal ponto que meu avô esqueceu inteiramente sua viagem. Beberam tanto quanto num festim antes da quaresma. Finalmente, cansaram-se de quebrar jarros e de espargir dinheiro pela multidão; aliás, a propria feira não podia durar eternamente; os dois novos amigos combinaram então não se separarem e prosseguirem juntos. A tarde já ia adiantada quando eles se encontravam em pleno campo. O sol partiu para o descanso, só deixando aqui e ali, após si, algumas faixas avermelhadas. A campina, com seus prados multicores, lembrava os trajes festivos das raparigas de negras sobrancelhas. Uma tagarelice terrivel dominou nosso "zaporoga"; meu avô, com outro gozador que se reunira a eles, já estava pensando que um diabo penetrara certamente nele. Onde ia o homem buscar historias e contos tão engraçados que meu avô segurava as ilhargas e quase passou mal da barriga? Mas quanto mais caminhavam, mais aumentava a escuridão, e concomitantemente as narrativas do rapaz perdiam sua jovialidade. Afinal o contador calou-se inteiramente, e começou a estremecer ao menor ruido. - Eh! eh! patricio. Vejo que estas seriamente entretido a contar as corujas. Já pensar em correr o mais depressas possivel para casa e sentar-te de novo sobre a tua estufa!

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- Pois bem! Não quero ocultar-lhes a coisa - disse de subito o "zaporoga" - voltando-se para os companheiros e olhando-os fixamente. - Saibam que há muito tempo vendi minha alma ao maligno. - E que importancia tem isso? Quem, em sua vida, não teve algum negocio a resolver com os impuros? Esse é exatamente o caso em que é necessario, como se diz, folgar desabridamente. - Eh! companheiros, bem que eu folgaria; mas acontece que o prazo expira justamente esta noite. Eh! irmãos - disse ele batendo-lhes nas mãos - ajudem-me, não durmam esta noite, jamais esquecerei, enquanto viver, esse favor. Como não auxiliar um homem às voltas com tão grande desgraça! Meu avô declarou imediatamente que preferia que lhe cortassem a propria nuca a deixar o diabo farejar com seu focinho canino uma alma cristã. Nossos cossacos talvez houvessem prosseguido o caminho, se a treva não envolvesse todo o céu como num manto negro e a treva não fosse tão densa nos campos quanto debaixo de um capote de pelo de carneiro. Na distancia brilhava apenas uma debil luz e os cavalos, sentindo proxima a estrabaria, aceleravam a andadura, com as orelhas erguidas e varando com os olhos a escuridão. A luzinha parecia caminhar ao encontro deles, em frente aos cossacos, surgiu uma pequena taverna, inclinada para o lado, como uma mulher ao voltar de um alegre batismo. Nessa epoca, as tavernas não eram o que são hoje. Um homem de bem não encontrava ai somente lugar para se pôr à vontade e dançar o "hopak", mas tambem para se deitar quando o vinho lhe pesasse na cabeça e suas pernas começassem a fazer ziguezagues. O patio todo estava cheio de carriola de "tchumaks". Nos galpões nas cavalariças, no vestibulo, todos ressonavam como gatos uns encolhidos, outros arreganhados. O taverneiro estava sozinho em frente ao lampião fazendo entalhes num bastão para marcar quantas medidas as cabeças de "tchumaks" haviam esvaziado. Meu avô, após pedir o terço de um cantaro de aguardente para três, dirigiu-se para o galpão, onde ele e os companheiros se estiraram lado a lado. Ainda não tivera tempo para se voltar quando verificou que os companheiros já estavam dormindo a sono solto. Acordando o terceiro cossaco que se reunira a eles, durante o trajeto, meu avô lembrou-lhe a promessa feita ao companheiro. O homem levantou-se, esfregou os olhos e adormeceu novamente. Que fazer, a não ser resignar-se a montar guarda sozinho? Para afugentar o sono, meu pai foi examinar todas as carriolas e certificar-se do que os cavalos estavam fazendo; depois acendeu o cachimbo voltou e sentou-se outra vez junto aos companheiros. Tudo estava tão calmo que se poderia ouvir uma mosca voar. Eis que de repente ele vê qualquer coisa cinzenta mostrar uns chifres por cima de uma carriola que estava perto; ao mesmo tempo seus olhos começaram a fechar-se, de sorte que ele se pós a esfregá-los continuamente com os punhos e lavá-los com a aguardente que restava; mal seus olhos ficavam desanuviados, tudo desaparecia, mas pouco depois o monstro se apresentava novamente atrás da carriola. Meu avô arregalou os olhos o mais que pode, mas o maldito sono tudo baralhava em sua frente. Seus braços ficaram pesados, sua cabeça inclinou-se e dominou-o tão profundo sono que ele caiu que nem morto.

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O avô dormiu por longo tempo; só quando o sol já havia aquecido muito sua tonsura é que ele se levantou rapidamente. Após se haver espreguiçado duas vezes e coçado as costas, reparou que há havia menos carriolas que na vespera. Provavelmente os "tchumaks"haviam partido ao amanhecer. Olhou para onde estavam os companheiros: o cossaco lá estava e ainda dormina, mas o "zaporoga" desaparecera. Começou a interrogar as pessoas, mas ninguem sabia de cois alguma. Somente a "sivitk"do "zaporoga" ficara no lugar onde ele estivera deitado. Apavorado, meu avô refletiu um instante. Foi ver os cavalos, mas não encontrou nem o seu, nem o do "zaporoga". "Que significaria isso? Admitamos que a força maligna se houvesse apoderado do "zaporoga"; mas quem levou os cavalos?" Depois de refletir muito tempo, o avô concluiu que o diabo viera e, como era longe o caminho para voltar ao inferno, furtara-lhe o cavalo. Ele estava muito pesaroso por não haver cumprido a sua palavra de cossaco. "Nesse caso - pensou - nada há que fazer! Irei a pé! Talvez encontre na estrada algum almocreve de volta da feira que me queira vender um cavalo." Quis botar o gorro, mas o proprio gorro desaparecera. Meu finado avô juntou as mãos de desespero ao se lembrar de que na vespera o trocara pelo do "zaporoga". E então o impuro tambem o roubara! Não adiantava agora ele procurar em todos os bolsos. O hetmã havia mesmo de lhe dar presentes!... Ei-lo bem arranjado para levar a carta à czarina! E meu avô pôs-se então a deblaterar contra o diabo, a tal ponto que as orelhas lhe deviam ter ficado a arder no recesso do inferno. Mas as palavras não resolvem os impasses; não adiantou a meu avô coçar a nuca, não lhe acudiu coisa alguma. Que fazer? Ele recorreu então à inteligencia dos outros. Reuniu todas as boas criaturas que estavam na taverna, "tchumaks" e outros viandantes, e contou-lhes sua desdita. Os "tchumaks" ficaram muito tempo a refletir, com o queixo apoiado no cabo do chicote, depois baixaram a cabeça e acabaram dizendo que nunca tinham ouvido falar, em todo o mundo cristão, em alguma carta de hetmã roubada pelo diabo; outros acrescentaram que nada havia a esperar, quando um diabo ou um moscovita roubava alguma coisa. Só o taverneiro permanecia quieto em seu canto. O avô dirigiu-se a ele: "Quando um homem permanece calado é que tem muito engenho." Somente o taverneiro não era muito prodigo em palavras; e se meu avô não houvesse puxado do bolso cinco escudos, não lhe arrancaria uma única palavra. - Vou ensinar-te a maneira pela qual poderás recuperar tua carta - disse o homem afastando-se um pouco com meu avô. Foi como se tirasse um peso de cima de meu avô. - Já vejo em teus olhos que és um cossaco e não uma mulher. Pois bem! ouve: Pertinho daqui há um caminho que dobra à direita e entra na floresta. Logo que a noite descer sobre os campos, prepara-te para partir. Na floresta existem ciganas que somente saem de seus esconderijos para forjar o ferro nas horas da noite em que somente as feiticeiras passeiam montandas em seus atiçadores. Qual é, de fato, sua verdadeira profissão? Isso não é contigo. Haverá muita bulha na floresta; apenas, não te dirijas para o lado onde a ouvires. Chegarás em frente a uma veredazinha que passa junto a uma arvore queimada pelo raio; segue essa trilha, e caminha, caminha, caminha... As moitas espinhosas hão de te esfolar; densos matagais de aveleiras hão de barrar-te o caminho - mas continua a caminhar e quando chegares junto a um regato, só então é que poderás parar, e verás o que desejas. Tambem não te esqueças de botar nos bolsos a coisa para qual eles são

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feitos... Compreendes, diabo ou homem, todos gostam dele... Depois de assim falar, o taverneiro retirou-se para seu quarto e não quis dizer mais uma palavra. Meu finado avô não era um poltrão. Quando lhe acontecia encontrar um lobo agarrava-lhe pela cauda; quando abria caminho entre os cossacos, com seus punhos, todos caiam à sua volta como peras. Contudo, um arrepio percorreu-lhe a espinha quando entrou na floresta naquela noite escura. Nem uma estrela no céu. Estava tão escuro e deserto como num subterraneo. Só se ouvia lá em cima, muito acima da cabeça, o vento frio que passeava pelas copas das arvores, e estas, como outras tantas cabeças de cossacos bebados, cambaleavam, como se fossem calaceiros, murmurando com suas folhagens arengas desconexas. Foi quando ele sentiu o frio aumentar e lamentou não ter trazido o seu capote de pelo de carneiro que , subitamente, a floresta ficou iluminada como pela aurora, e ao mesmo tempo um fragor semelhante ao de cem martelos retumbou em seus ouvidos com tanta força que a cabeça lhe parecia estalar. Meu avô depressa viu em sua frente uma vereda que serpenteava entre as moitas; a arvore consumida pelo raio tambem apareceu, bem como os arbustos espinhosos. Tudo era exatamente como lhe haviam dito. Não! O taverneiro não mentira. Mas não era nada facil, nem divertido, abrir o caminho através das sarças. Aos poucos foi saindo desse lugar e chegou a local mais desolado onde, tudo quanto pôde notar, as arvores tornavam-se mais raras, mas ao mesmo tempo tão grandes que ele nunca encontrara iguais, nem mesmo do outro lado da Polonia. Subitamente, entre as arvores, deparou-se-lhe um regato que brilhava com reflexos de aço, de um negrume azulado. O avô ficou muito tempo na margem, olhando para todos os lados. No lado oposto resplandecia um fogo que ora reavivar-se, refletindo sua chama ao regato que estremecia sob ela como um polonês subjugado por um cossaco. Afinal, surgiu a pontezinha, Ah tem graça! Poderia acaso atravesá-la alguma coisa que não fosse a carruagem do diabo? Não obstante, meu avô pisou na ponte animosamente e em menos tempo do que um tomador de rapé precisa para retirar uma pitada de tabaco e levá-la ao nariz, já se encontrava do outro lado. Só então foi que ele pôde verificar que ao redor do fogo havia homens de caratonhas tão atraentes, que em qualquer outra ocasião ele daria sabe Deus o que para evitar encontrá-los. Mas a situação não comportava recuos e era preciso entabular conversação. Meu avô inclinou-se até quase a cintura e disse: - Deus seja convosco, boa gente! Ninguém respondeu sequer com um aceno de cabeça. Conservando o mesmo mutismo, derramaram qualquer coisa no fogo. Ao reparar que a havia um lugar vago, meu avô ocupou-o sem maior cerimonia. Ficaram muito tempo assim sem trocar palavra. Meu avô já estava começando a se entediar. Remexeu no bolso, tirou o cachimbo e tranquilamente, examinou as fisionomias dos companheiros. Ninguem lhe prestou atenção. - Poderiam ter a bondade?... Como direi... de... (meu avô era educado e sabia como dizer as coisas; perante o proprio czar não teria ficado embaraçado) de... de permetir que eu esteja à vontade sem ofendê-los com isso? Tenho muito fumo, um cachimbo, mas nada para acendê-lo.

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Seu discurso ainda não obteve a menor resposta. Apenas uma caratonha adiantou-lhe um tição até o rosto, de maneira tal que, se meu avô não afastasse a cabeça, teria podido despedir-se para sempre de um olho. Vendo, afinal, que estava perdendo inutimente seu tempo, decidiu-se ele - escutasse ou não aquela gente impura - a contar seu caso. As caratonhas aguçaram então os ouvidos e adiantaram as garras. Meu avô compreendeu-as: reunindo num só punhado todo o dinheiro que trouxera, atirou-o ao centro, num movimento circular, como se eles fossem cães. Mal atirou o dinheiro, tudo turbilhonou à sua frente; a terra tremeu, e como aconteceu isso? Nunca ele pode explicá-lo, mas desceu até o inferno. - Oh! lá! lá! paizinho - exclamou olhando para todos os lados. Que monstros viu então! eram só as caratonhas e mais caratonhas, como se diz. Havia lá feiticeiras em quantidade não inferior à da neve que cai pelo Natal, todas enfeitadas, pintadas; pareciam raparigas na feira; e todas, todas que haviam, dançavam como embriagadas, uma sarabanda qualquer do diabo! E que poeira levantavam! Um cristão tremeria só ao ver os saltos que eles davam. Meu avô, apesar de todo o seu pavor, não pode deixar de rir, ao ver que de que maneira os diabos com seus focinhos de cão e sua compridas pernas de alemães, sacudindo o rabo, viravam ao redor das feiticeiras como rapazes junto às moças, enquanto os músicos, batendo nas bochechas com os punhos como se fossem pandeiros, faziam seus narizes assobiarem como flautas. Mal avistaram eles meu avô, precipitaram-se todos em bando ao seu encontro. Focinhos de porco, de cão, de bode, de betarda, de cavalo, todos estendiam o pescoço e procuravam beijá-lo. Meu avô sentiu-se tão repugnado que cuspiu; afinal, agarraram-no e o fizeram sentar em frente a uma mesa tão comprida que iria perfeitamente de Konotop a Baturin. "Muito bem! Ainda podia ser pior!" pensou o avô ao avistar em cima da mesa carne de porco, salsichão, cebola e repolho misturados, e muitas outras iguarias. "Bem se vê que esse crapula de Diabo não observa o jejum da quaresma" Preciso dizer-lhe que meu avô nunca perdia a oportunidade, quando possivel, de mastigar qualquer coisa; o finado tinha bom apetite; por isso, sem perder tempo, puxou para si o prato onde estavam o toucinho e o presunto, apanhou um garfo quase tão grande quanto o forcado com que os mujiques espetam o feno, fisgou o pedaço maior, fixou com a mão uma codea de pão debaixo do queixo e, no instante em que se dispunha a engolir o bocado, mandou-o, involuntariamente, para outra boca, e junto a seus ouvidos ouviu uma caratonha mastigar com um ruido de queixo que chegava às duas pontas da mesa. Meu avô não disse palavra; espetou outro pedaço; já estava com ele entre os lábios, mas novamente a garfada foi para outra boca. O mesmo acontece na terceira vez. A colera dominou meu avô; esquecendo o medo e as garras entre as quais se encontrava, avançou ameaçador para as feiticeiras. - Mas como! raça de Herodes! estão pensando que vão continuar zombando de mim? Que eu me torne católico se não lhes virar pelo avesso as carrancas, caso não resistituam imediatamente meu gorro de cossaco! Mal acabou de proferir essas palavras, todos os monstros mostraram os dentes e

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desandaram numa tal gargalhada que o coração de meu avô se gelou. -Está combinado - miou uma das feiticeiras que meu avô julgou ser a presidente, porque sua caratonha ainda era mais feia que a das outras: - Nós te restiruiremos o gorro... sob condição de jogares conosco três partidas seguidas de "durak". - Que fazer! Um cossaco jogar "durak" com mulheres! Meu avô a principio protestou, mas teve que ceder. Trouxeram cartas tão sebentas quanto aquelas com as quais a filha de um pope procura adivinhar qual será o noivo. - Mas ouve - ladrou pela segunda vez a feiticeira - se ganhares, uma vez que seja, terás o gorro, porem se ficares "durak" todas as três vezes, não te deves queixar, nunca mais verá teu gorro, nem talvez o mundo! - Dá mesmo assim as cartas, feiticeira, aconteça o que acontecer. As cartas foram dadas; meu avô apanhou seu jogo - nem valia a pena olhar; pois se não recebera, por pilheria que fosse, um trunfo sequer! Entre os outros naipes, a carta mais forte era um dez; nenhuma figura, enquanto a feiticeira jogava sempre as cartas altas. Meu avô teve que ficar "durak", e mal terminara a primeira partida, de todos os lados as caratonhas começaram a ladrar, a rinchar, a grunhir: "Durak", "durak", "durak!" - Que a pele de vocês arrebente, raça do diabo - exclamou meu avô tapando os ouvidos. "Vamos, pensou ele, a feiticeira trapaceou ao embaralhar as cartas; agora é minha vez de dar." Deu, voltou a carta do trunfo, olhou seu jogo que era bom; tambem tinha trunfos; sem mais refletir, bateu com esse trunfos nos bigodes dos reis. - Eh! eh! não está jogando como cossaco? Com que estás cobrindo minhas cartas, camarada? - Como, com que? com trunfos. - Talvez em tua terra isso seja trunfo, mas aqui não. Meu avô olhou as cartas e, de fato, eram de naipe comum. Que velhacaria! - teve de ficar "durak" pela segunda vez e a impuras puseram-se novamente a gritar ensurdecedoramente: "Durak"!, "durak"!, "durak"! A mesa tremia e cartas pulavam. Meu avô cada vez mais se exaltava. Deu para a terceira partida. Como na anterior, as coisas começaram muito bem. A feiticeira exibiu cinco cartas. Meu avô cobriu-as e apanhou, no baralho, toda uma mão de trunfos. - Trunfo! - exclamou ele, batendo com a carta na mesa a ponto de voltá-la. A feiticeira, sem dizer palavra, cobriu-a com um simples oito. - E com que estas cobrindo, velha diaba? A feiticeira levantou a carta e meu avô viu que a dele não passava de um simples

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seis. - Estão vendo essa trapaça infernal? - disse meu avô ; e, despeitado, deu um soco fortissimo na mesa. Felizmente a feiticeira só tinha cartas desirmanadas, enquanto que meu avô tinha cartas que faziam par. Mostrou-as e, de novo, apanhou as cartas no baralho; mas todas eram tão ruins que lhe cairam os braços, e aquelas eram as ultimas. Com um gesto de indiferença, deixou cair sobre a mesa um simples seis. A feiticeira apanhou-o. - Ah! Tem graça, que significa isso! Alguma coisa está sendo tramada. Meu avô pôs então disfarçadmente as cartas em cima da mesa e marcou-as com o sinal da cruz. E de repente em suas mãos os ás, o valete de trunfo; o que ele pensara ser um seis, era a dama do trunfo. - Ah! Que imbecil fui eu! Queres o rei do trunfo? Ah, ah! ah! estás apanhando-o. Ah! sua gata! e o ás, tambem o queres? ás! valete! A trovoada ribombou pelo inferno. A feiticeira debatia-se numa convulsão, e não se sabe de onde, bum! o gorro caiu na cara de meu avô. - Não, isso ainda não me basta - bradou meu avô que recuperara a coragem e punha o gorro na cabeça - se, imediatamente, meu valente cavalo não se apresentar aqui em minha frente, seja eu estendido morto pelo raio, neste lugar impuro, caso não os esbofeteie a todos com a cruz. Já erguia o braço, quando de repente estalou diante dele o esqueleto de seu cavalo. - Eis teu cavalo. O pobre homem chorou como uma criança ao olhar o esqueleto. Sentia falta de seu velho companheiro. - Forneça-me então qualquer outro cavalo para sair de seu antro. O diabo fez estalar o chicote: um cavalo de fogo surgiu debaixo de meu avô e levou-o como um passaro para as nuvens. Entretanto, dominou-o o medo no meio do trajeto quando o cavalo, não atendendo a seus gritos, não obedecendo às redeas, voou sobre os abismos e pantanais. Que sitios não viu ele? Tremia-se só de ouvi-lo contar. Quando ele se lembrava de olhar para baixo, avistava um abismo a pique, e aquele animal de Satanaz, sem se inquietar, marchava diretamente sobre ele. Meu avô fazia todos os esforços para se sustentar, mas uma vez não conseguiu. Foi atirado num precipicio e seu corpo bateu com tanta força no chão que ele já pensava estar morrendo, ou pelo menos, para falar a verdade, perdeu a noção do que estava passando; quando recuperou os sentidos e olhou em torno, já era dia e ele reconheceu os sitios que lhe eram familiares: estava estendido no telhado da sua propria "kata". Desceu e persignou-se. - Que feitiçaria! que coisas estranhas podem acontecer aos homens! Olhou para as mãos, estavam ensanguetadas. Mirou-se no tonel cheio de agua e viu seu rosto também estava ensanguentado.

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Depois de se lavar muito bem para não assustar os seus, entrou mansamente na "kata", e viu seus filhos andando de costas e mostrando-lhe com o dedo a mãe deles, dizendo: - Olha, olha, a mãe está saltando como uma louca. De fato, sua mulher estava sentada, adormecida em frente a seu torno de fiar, com a roca na mão e, em seu torno, estremecia sob o banco. Meu avô tomou-lhe docemente a mão e acordou-a. - Bom dia, mulher! Estás passando bem? Ela, com os olhos arregalados, olhou-o longamente, e por fim, reconhecendo o marido, contou-lhe que, em sonhos, vira a estufa andar pela "kata" afugentando com a pá as caçarolas, as tinas e o diabo sabe mais o quê. - Vamos - disse meu avô - tu só viste as diabruras em sono e eu acabo de vê-las realmente. Muito convicto estou de que será preciso mandar exorcizar nossa "kata". Quanto a mim, não tenho mais um minuto a perder. Depois de rapido repouso, meu avô apanhou um cavalo e, desta vez, sem parar dia e noite, chegou a seu destino e entregou a carta à czarina. Em Petersburgo meu avô viu tantas maravilhas que durante muito tempo não lhe faltou o que contar: como o conduziram a um palacio tão alto que nem dez "katas" colocadas umas sobre as outras o alcançariam; como atravessou um quarto sem encontrar ninguém, outro, ninguém, um terceiro ainda sem ninguém, ninguém ainda no quarto e somente no quinto é que olhou e viu a pessoa sentada com uma coroa de ouro, com sua "svitk" cinzenta, nova, de botas vermelhas a comer "galucki" de ouro; como a czarina mandou que enchessem de cedulas azuis o gorro de meu avô; como... Mas seria um nunca mais acabar! Quantos às suas rixas com o diabo, meu avô esqueceu-se mesmo de pensar nelas, e se acontecia alguem lembrá-las, meu avô conservava-se calado como se o caso não fosse com ele. Para castigá-lo, provavelmente, por não haver, como dissera, feito exorcizar sua "kata", todos os anos, exatamente no aniversario da aventura, acontecia à sua mulher o fato extraordinario de dançar involuntariamente. Não havia meio de ela evitá-lo. Estivesse cuidando do que fosse, suas pernas começavam a se mover e, Deus que me perdoe, acabavam executando as mais extravagantes cabriolas.

Texto eletrônico: http://almanaque.folha.uol.com.br/leituras_12ago00.htm. Acessado em 26/04/2006, às 11h.

Vamos conhecer igualmente um conto de uma escritora brasileira chamada Clarice

Lispector, que mais tarde você vai conhecer melhor. O conto chama Uma galinha.

Uma Galinha

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Clarice Lispector

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre. Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos: — Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem! Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai

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afinal decidiu-se com certa brusquidão: — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida! — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros. Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

Texto extraído do livro “Laços de Família”, Editora Rocco — Rio de Janeiro, 1998, pág. 30. Selecionado por Ítalo Moriconi, figura na publicação “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”.

Texto eletrônico: http://www.releituras.com/clispector_galinha.asp. Acessado em 26/04/2006, às 11h.

O que você encontrou neste conto chamada Uma galinha?

Uma estrutura concentrada

Ações externas

A fuga da galinha como se ela tivesse desejo

A superioridade do ser humano sobre os animais

A maternidade como valor (o ovo)

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A galinha como animal de estimação

A humanização da galinha

O destino final de todas as galinhas

Era um tema do cotidiano. Mas a escritora Clarice Lispector deu um caráter poético a

um simples fato cotidiano.

Acho que agora estamos prontos para retomar Machado de Assis e conhecer dois contos

dele. Um deles é muito interessante, porque ele transforma uma agulha e uma linha em

personagens para fazer uma crítica ao século XIX.

Um apólogo

Um Apólogo, de Machado de Assis

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? — Deixe-me, senhora. — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. — Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou. — Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

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— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando... — Também os batedores vão adiante do imperador. — Você imperador? — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima... A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: — Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

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Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0037-01629.html. Acessado em 27/04/2006, às 11h.

Se fosse fazer uma crítica ao Brasil do século XXI que personagens inanimados

você escolheria? Poderia ser, por exemplo, uma máquina de escrever, um

computador...

Vamos ler agora um conto memorialístico de Machado de Assis. Chama-se Missa do

Galo. É um conto muito interessante, pois trabalha com as memórias de um velho e de

uma lembrança dele, quando ainda era jovem, e sua relação com uma mulher mais

velha. Machado de Assis coloca nesse conto o que também elemento importante em

seus romances: a ambigüidade feminina. É como se ele estivesse sempre perguntando: o

que pensam e o que desejam as mulheres?

Missa do Galo, de Machado de Assis

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um

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eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na corte”. A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. — Mas, sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? — perguntou-me a mãe de Conceição. — Leio, D. Inácia. Tinha comigo um romance, os Três mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Commercio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. — Ainda não foi? perguntou ela. — Não fui, parece que ainda não é meia-noite. — Que paciência! Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal-apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

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— Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa. — Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. — Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. — Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. — Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. — Justamente: é muito bonito. — Gosta de romances? — Gosto. — Já leu a Moreninha? — Do dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. — Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. — Talvez esteja aborrecida, pensei eu. E logo alto: — D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... — Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? — Já tenho feito isso.

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— Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. — Que velha o quê, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na corte, e não queria perdê-la. — É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. — Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: — Mais baixo! mamãe pode acordar. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:

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— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. — Eu também sou assim. — O quê? perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. — Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada. — Foi o que lhe aconteceu hoje. — Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: — Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. — Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava “ Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.

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— São bonitos, disse eu. — Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. — De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. — Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. — Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo — não posso dizer quanto — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo! missa do galo!” — Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.

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— Já serão horas? perguntei. — Naturalmente. — Missa do galo! repetiram de fora, batendo. — Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo ano-bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

Texto eletrônico: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0037-01650.html. Acessado em 27/04/2006, às 11h.

Você sabia que pode ler o mais famoso conto de Machado de Assis, O Alienista, em Libras?

Machado também escreveu poemas. Vamos conhecer dois deles: “Círculo Vicioso” e

“À Carolina” (este último escrito para sua esposa, quando já falecida).

A CAROLINA

Machado de Assis

QUERIDA, ao pé do leito derradeiro Em que descansas dessa longa vida, Aqui venho e virei, pobre querida, Trazer-te o coração do companheiro. Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro Que, a despeito de toda a humana lida, Fez a nossa existência apetecida E num recanto pôs um mundo inteiro.

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Trago-te flores, - restos arrancados Da terra que nos viu passar unidos E ora mortos nos deixa e separados. Que eu, se tenho nos olhos malferidos Pensamentos de vida formulados, São pensamentos idos e vividos.

Poesias dispersas de Machado de Assis. Texto eletrônico:

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0043-01801.html. Acessado em 27/04/2006, às 11h.

CÍRCULO VICIOSO Machado de Assis

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: "Quem me dera que fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: "Pudesse eu copiar o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela" Mas a lua, fitando o sol, com azedume: "Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela Claridade imortal, que toda a luz resume!" Mas o sol, inclinando a rútila capela: "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"

Machado de Assis também escreveu crônicas. Uma delas é muito interessante, porque

ele fez umas normas para as pessoas que andavam de bonde, um dos meios de

transportes mais modernos no final de século XIX. Veja a contemporaneidade dela.

Hoje ela poderia se chamar Como andar de ônibus.

OCORREU-ME compor umas certas regras para uso dos que freqüentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

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ART. I — Dos encatarroados Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc. ART .II — Da posição das pernas As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação. ART. III — Da leitura dos jornais Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente. ART. IV — Dos quebra-queixos É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao descer. ART. V — Dos amoladores Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstancias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra. ART. VI — Dos perdigotos Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

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ART. VII — Das conversas Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras. ART. VIII — Das pessoas com morrinha As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela. ART. IX — Da passagem às senhoras Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado , apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação. ART.X — Do pagamento Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

Balas de Estado, de Machado de Assis. Texto eletrônico:

http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0042-01160.html. Acessado em 27/04/2006, às 11h.

Depois de conhecer fragmentos dos vários gêneros literários por que o nosso

principal escritor incursionou, podemos pensar um pouco sobre a poesia do final

do século XIX.