Nahra, C.; Oliveira, A. C. Aperfeiçoamento Moral (Moral Enhancement)

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CINARA NAHRA ANSELMO CARVALHO DE OLIVEIRA

(ORGANIZADORES)

APERFEIÇOAMENTO MORAL

(MORAL ENHANCEMENT)

1º edição

NATAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA-UFRN

2012

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Aperfeiçoamento moral (Moral Enhancement) / Cinara Nahra, Anselmo Carvalho de Oliveira (Organizadores). - 1.ed. - Natal: Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2012.

123p. ISBN: 978-85-66377-00-2

1. Ética. 2. Biotecnologia. 3. Filosofia. I. Nahra, Cinara. II. Oliveira, Anselmo Carvalho de. III. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. IV. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 17

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Campus Universitário, Km 1, BR 101,

Lagoa Nova, Natal, RN –Brasil

CAPA: Imagem tridimensional desenvolvida em computador de uma cadeia de DNA por Nelson Dewey. www.nelsondewey.com Agradecemos ao autor pela autorização do uso da imagem.

Catalogação da Publicação na Fonte Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA)

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SUMÁRIO

Apresentação Cinara Maria Leite Nahra

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Introduction Cinara Maria Leite Nahra

7

Moral Enhancement (Aprimoramento Moral) Thomas Douglas

10

Aperfeiçoamento (enhancement) Moral: considerações éticas Anselmo Carvalho de Oliveira

35

Moral Enhancement: o aprimoramento moral da humanidade Cinara Maria Leite Nahra

57

Rawls e o Enhancement Fortunato Monge de Oliveira Neto

71

Moral Enhancement: princípios de uma questão, uma questão de princípios

Lindoaldo Campos

82

Moral Enhancement – uma discussão de seus pressupostos Maria Fernanda Cardoso Santos

95

Ensaio sobre o aprimoramento moral Rafael Lucas de Lima

105

Reflexões sobre o aprimoramento moral: humanos podem ser perfeitos?

Sônia Soares

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________________________________ APRESENTAÇÃO

APRIMORAMENTO MORAL (MORAL ENHANCEMENT)

Cinara Nahra (UFRN/CNPQ)

A história da humanidade é uma história de aprimoramento. Não custa lembrar que foi um aprimoramento, a escrita, um dos maiores que nossa espécie já foi capaz de realizar, que marcou nosso ingresso na História, quando saímos da chamada pré-história. Assim como a escrita a roda, o automóvel, o rádio, o telefone, a televisão, os computadores, são alguns entre as milhares de máquinas e aparelhos que construímos e que foram formas de aprimoramento, tornando nossa vida substancialmente diferente das vidas dos primeiros homo sapiens que surgiram há milhares de anos. Como espécie fomos capazes, inclusive, de nos libertar da nossa condição natural de seres não alados construindo o avião, máquina de voar, e voamos. E voamos mais alto que qualquer outra espécie na Terra. De animais à humanos, de seres exclusivamente terrestres à seres que já visitaram a lua e que um dia provavelmente muito mais longe haverão de ir, nós os humanos demasiadamente humanos construímos nossa humanidade nos aprimorando.

Sendo a história da humanidade uma história de aprimoramento, é compreensível que o conceito de aprimoramento (enhancement) emergisse então como uma categoria filosófica. Enhancement seria então não apenas uma melhoria, ou um avanço tecnológico, mas todo e qualquer tipo de intervenção mecânica ou biotecnológica em nosso corpo destinada a melhorar nossas capacidades e habilidades corporais. Enhancement assim definido seria bastante diferente de terapia. Na terapia usamos a tecnologia para restaurar capacidades naturais, e no enhancement usamos a tecnologia e/ou a biotecnologia para melhorar nossas capacidades. A diferença é clara: se alguém perde suas duas pernas em um acidente de trânsito, e os médicos colocam pernas mecânicas nesta pessoa, restaurando assim sua capacidade de andar, o que se está fazendo é terapia. Se, entretanto, forem colocadas nesta pessoa pernas mecânicas que sejam capazes de fazê-la correr a 200 km/h, isto seria enhancement. Do mesmo modo usar uma poderosa droga em um paciente com Alzheimer a fim de curá-lo da doença seria terapia. Usar, entretanto, esta ou uma outra droga a fim de fazer com que uma pessoa com memória normal melhore consideravelmente sua memória e capacidade cognitiva seria considerado enhancement. É neste ponto que duas correntes com posições claramente distintas surgem. Por um lado os bioconservadores dirão que a

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terapia é moralmente admissível, mas terão objeções morais ao enhancement. Por outro lado teremos aqueles (incluindo nesta posição os transhumanistas mas não apenas estes) que argumentam que o enhancement não é, em princípio, moralmente objetável, podendo ser, muitas vezes, desejável.

É no seio desta discussão que surge o artigo de Thomas Douglas, “Moral Enhancement” publicado em 2008 e traduzido neste livro. Este revolucionário artigo escrito por um jovem e promissor pesquisador da Universidade de Oxford propõe um novo conceito, o de moral enhancement, dentro de uma estratégia de se opor a tese bioconservadora, apresentando o moral enhancement como um contraexemplo para a tese bioconservadora de que o enhancement biotecnológico é sempre não permissível. Para Douglas o enhancement moral é um tipo de aprimoramento que evidencia que uma das principais objeções ao enhancement - a de que ele seria ruim para a sociedade porque colocaria as pessoas que não fossem aprimoradas em desvantagem em relação aos aprimorados, exacerbando as desigualdades sociais - não se sustenta, já que a existência de pessoas moralmente aprimoradas tenderia a ser algo vantajoso para todos.

Desde então a discussão sobre o moral enhancement se torna cada vez mais importante e frutífera. Estamos autorizados ou não a nos aprimorar moralmente através de meios biotecnológicos, é agora a pergunta filosófica, conjuntamente com o questionamento sobre o que contaria como aprimoramento moral. Será possível realizar o aprimoramento moral por meios biotecnológicos a curto ou médio prazo, é a pergunta científica. Estaríamos preparados para uma pílula da moralidade, nos pergunta Peter Singer? Seja qual for a resposta que demos a estas questões é urgente que a sociedade, os filósofos e os eticistas aprofundem o debate sobre o tema, e neste ponto parece que mais uma vez temos algo a aprender com a filosofia anglo-saxônica. No cenário filosófico anglo-saxônico dos últimos quatro anos, desde que surgiu o conceito de moral enhancement, o debate sobre o tema tem se aprofundado, protagonizado especialmente pelos artigos de Tom Douglas, Julian Savulescu e John Harris e a polêmica por eles estabelecida, com os dois primeiros argumentando que se for possível realizar o aprimoramento moral por meios biotecnológicos este deveria ser realizado, e com Harris sustentando que o aprimoramento moral por meios biotecnológicos pode colocar em risco a liberdade humana, e aquilo que ele chama de “nossa liberdade para a queda”.

Com o intuito de fomentar a discussão sobre moral enhancement também nos países de língua portuguesa lançamos este e-book. Nele o leitor encontrará o artigo de Thomas Douglas “Moral Enhancement” traduzido na língua portuguesa, e gostaríamos aqui de agradecer imensamente à Wiley-Blackwell, editora responsável pela publicação do Journal of Applied Philosophy, revista na qual foi publicado o artigo, pela permissão que nos deu para que

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publicássemos esta tradução. O e-book conta também com mais sete artigos sobre o tema escrito por professores e estudantes que participaram de uma série de disciplinas sobre enhancement e moral enhancement ministradas nos cursos de mestrado e de doutorado de nosso programa de pós-graduação. Os artigos aqui publicados refletem a diversidade das posições sobre o moral enhancement com alguns dos autores se posicionando a favor do aprimoramento moral por meios biotecnológicos e outros adotando uma visão mais crítica em relação ao tema. A intenção é justamente apresentar os argumentos permitindo que o leitor entenda a discussão e possa formar sua opinião.

Chamamos atenção aqui para a riqueza da discussão sobre moral enhancement. Ela traz a tona não apenas a palpitante temática filosófica do livre arbítrio, sua existência e seus limites, mas também faz com que nos questionemos sobre o futuro da nossa espécie e sobre o nosso compromisso com o bem e com a preservação do nosso planeta e da vida sobre a terra. Ela também nos desafia a responder questões como: Há influências genéticas no agir bem e no agir mal, ou mesmo no ser uma boa ou uma má pessoa? Existem de fato contra-emoções morais como aversão racial e o impulso a violência disfuncional que podem ser diminuídas ou mesmo suprimidas não apenas através da educação moral, mas também por meios biotecnológicos? Os fármacos podem nos ajudar a ser mais altruístas ou cooperativos? Estas perguntas, para serem respondidas, necessitam de intensa pesquisa interdisciplinar, e nos levam a fazer eco ao clamor de Savulescu de que é necessário que se estabeleça um intenso programa de pesquisa sobre os fundamentos biológicos do comportamento moral, sendo que acrescentamos aqui que este programa de pesquisa deve ser desenvolvido internacionalmente.

Deixamos aqui ao leitor todas estas reflexões. Esperamos que o livro lhe agrade. Ele é destinado especialmente ao público acadêmico e aos que se interessam por filosofia, ética, bioética, neuroética e ciência de ponta, mas interessa também a todos aqueles que querem construir um mundo menos cruel, menos violento, menos preconceituoso e que acham que esta tarefa tem alguma coisa a ver com moralidade. O e-book está livre e gratuitamente disponível na internet, facilitando o acesso em língua portuguesa a esta temática tão polêmica quanto fascinante: o moral enhancement. Boa leitura!

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________________________________ INTRODUCTION

MORAL ENHANCEMENT

Cinara Nahra (UFRN/CNPQ)

The history of mankind is a history of enhancement. It is worth

remembering that it was the art of writing, one of the biggest enhancements of humankind, which marked the passage from pre-History to History. Along with the invention of writing, the wheel, the car, radio, telephone, television and computers were only some of the millions of machines and devices that we built, and all were forms of enhancement, which have made our lives considerably different. As a species we were able to liberate ourselves from our natural state of being incapable of flying. We built airplanes, flying machines, and so we flew. We flew higher and faster than any other species on earth. Evolving from animals to humans, from being only terrestrial to being able to fly to the moon, and no doubt capable of going much further in the future, we, the human all too human, built our mankind enhancing ourselves.

If the history of mankind is a history of enhancement, it is understandable that the concept of enhancement emerged as a philosophical category. Enhancement is not only an improvement, or a technological advance, but all and any kind of mechanical or biotechnological alteration in our body in order to improve our capacities and body skills. So, enhancement is very different from therapy. In therapy technology is used in order to restore our natural capacities, while in enhancement technology and/or biotechnology is used to improve our capacities. The difference is clear: if someone loses both their legs in a traffic accident and doctors attach mechanical legs to this person, restoring their ability to walk, then this is therapy. If, however, the doctors attach mechanical legs allowing them to run 200 miles/hr., then this is enhancement. Also the use of powerful drugs in Alzheimer´s patients in order to cure them is therapy, however, using this or other drugs in order to make a person with average memory considerably improve his cognitive capacity would be enhancement. At this point two clearly different views emerge, on one side the bioconservatives will say that therapy is morally admissible, but will have moral objections to enhancement, on the other there will be those (the transhumanists, but not only them) who argue that enhancement is not, in principle, morally objectionable.

In 2008 Thomas Douglas published his article “Moral Enhancement” (translated into Portuguese in this book). This breakthrough article, written by this young and promising researcher from Oxford

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University proposes a new concept, the moral enhancement presenting the moral enhancement as a counter-example to the bioconservative thesis that biotechnological enhancement is never permissible. For Douglas, moral enhancement shows that one of the main objections to enhancement, i.e., that it would be bad for society because it would disadvantage the non-enhanced in relation to the enhanced, does not hold up, as the existence of enhanced people tends to be advantageous for everyone.

Since then the discussion on moral enhancement has become more and more fruitful. Is it morally permissible to enhance ourselves through biotechnological ways? What counts as a moral enhancement? Will it be possible to morally enhance people through biotechnological means in the short or medium terms? Are we ready for a morality pill as Peter Singer asked? Whatever the answer is, it´s urgent for society, philosophers and scientists to discuss this subject, and at this point, once again, we have something to learn from the Anglo-American philosophy. In the philosophical anglo-american scene of the last four years, since the emergence of the concept of moral enhancement the debate on the subject has grown, thanks especially to the articles of Thomas Douglas, Julian Savulescu and John Harris and the polemic established by them, with Douglas and Savulescu arguing that if it was possible to morally enhance people by any biotechnological means we should do it and Harris arguing that biotechnological moral enhancement may put in risk the human freedom, and what we call our “freedom to fall”.

This e-book is being launched in order to stimulate the discussion on moral enhancement in Portuguese countries. Here the reader will find Thomas Douglas´s article “Moral Enhancement” translated into Portuguese, and we would like to thank very much Wiley-Blackwell, the publishers of Journal of Applied Philosophy, where Tom Douglas´s article was first published, for kindly giving us permission to reproduce the article in Portuguese. Included in this e-book are also seven more articles written on this subject by professors and students who participated in a series of courses on enhancement and moral enhancement in our post-graduation program. These articles reflect the diversity of views on this subject, with some of the contributors being in favour of moral enhancement by biotechnological means whilst others adopt a more critical view in relation to the subject. The aim is precisely to present their arguments, allowing the reader to understand the discussion and form their opinion.

The discussion on moral enhancement brings to the forefront not only the thrilling philosophical subject of free will and its limits, but also forces us to question our commitment with “good” and with the preservation and conservation of our planet and life on earth. It also challenges us to answer questions such as: Are there genetic influences concerned with being good or bad or acting right or wrong? Are there, in fact, counter moral

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emotions such as racial aversion and the impulse to dysfunctional violence that can be diminished or even suppressed by technological means? Are there drugs that could help us to be more altruistic or cooperative? To answer these questions we need intense multidisciplinary research and this leads us to support Savulescu´s claim that it is necessary to establish an intense research program on the biological underpinnings of moral behavior, and on a personal note I would like to suggest that this program should be internationally developed. We leave it to the reader to reflect on these questions.

This e-book has been written with the academic public in mind, particularly those who are interested in the fields of philosophy, ethics, bioethics and neuroethics, and all those who want to build a less cruel, less violent and less prejudiced world. This e-book is freely available on the internet, making it easier for Portuguese speakers to access this polemic and fascinating subject: moral enhancement. Enjoy your reading!

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MORAL ENHANCEMENT (APRIMORAMENTO MORAL)*

Thomas Douglas**

RESUMO: Oponentes do enhancement biotecnológico (aprimoramento biotecnológico) frequentemente afirmam que, mesmo que tal enhancement beneficiasse os aprimorados, iria causar danos a outros. Mas essa objeção parece não persuasiva quando o aprimoramento em questão é um aprimoramento moral – um aprimoramento que provavelmente deixará as pessoas aprimoradas com motivos melhores do que aqueles tidos previamente. Neste artigo, irei (1) descrever um tipo de alteração psicológica que plausivelmente se qualificaria como um aprimoramento moral; (2) argumentar que nós iremos, a médio prazo, no futuro, provavelmente ser capazes de induzir tal alteração, via intervenção biomédica; e (3) defender engajamentos futuros em tais aprimoramentos morais contra possíveis objeções. Meu objetivo é apresentar esse tipo de aprimoramento moral como um contraexemplo para a visão que aprimoramento biomédico é sempre moralmente não-permissível.

Tecnologias biomédicas são rotineiramente empregadas em tentativas de manter ou restaurar a saúde. Mas muitas podem ser também usadas para alterar as características das pessoas já saudáveis. Sem, portanto, atribuir qualquer valor a essas últimas alterações, irei me referir a elas como sendo aprimoramentos biomédicos.

O aprimoramento biomédico é, talvez, mais visível no esporte, onde drogas têm sido, por muito tempo, usadas para melhorar a performance1, mas é também difundido em outras esferas. Alguns músicos tomam beta-bloqueadores para acalmar seus nervos antes das performances2. Uma proporção significativa de estudantes americanos afirmaram tomar metilfenidato, Ritalina, quando estudam, a fim de melhorar suas performances

* Publicado pela primeira vez no Journal of Applied Philosophy, Vol. 25, No. 3, 2008. p. 228-245. Agradecemos ao Dr. Thomas Douglas por ter gentilmente autorizado a publicação deste texto e agradecemos também a permissão concedida para a tradução em língua portuguesa pela Wiley-Blackwell e a John Wiley & Sons Ltd. através de James Ducan, Associate Permissions Manager. Tradução de Avelino Aldo de Lima Neto, Cinara Maria Leite Nahra, Rafael Lucas de Lima, Sônia Soares. Revisão de Davi Tintino Filho. ** Faculty of Philosophy and Christ Church, University of Oxford, St Aldates,Oxford OX1 1DP, UK. [email protected] 1 M. Verroken, ‘Drug use and abuse in sport’, in D. R. Mottram (ed.) Drugs in Sport (London: Routledge, 2005), pp. 29–63. 2 B. Tindall, ‘Better playing through chemistry’, New York Times, 17 Oct 2004.

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em exames3, e há também, é claro, a cirurgia cosmética. A pesquisa sobre drogas que podem melhorar a memória4, a retenção de habilidades complexas5 e contribuir para manter as pessoas alertas6, sugere que as possibilidades para o aprimoramento biomédico muito provavelmente crescerão rapidamente nos anos vindouros. Entretanto, a moralidade ou não do uso de tecnologias biomédicas para o aprimoramento permanece um tema controverso. Alguns argumentam que seria melhor se as pessoas fossem mais inteligentes, vivessem mais e fossem fisicamente mais fortes, e que não deve haver objeção ao uso de tecnologias biomédicas para alcançar esses objetivos. Mas outros sustentam que aprimoramentos biomédicos deveriam ser evitados.

A TESE BIOCONSERVADORA Nem todos os oponentes do aprimoramento defendem uma tese

comum e claramente especificada. Entretanto, muitos iriam concordar, ou estariam atraídos pela seguinte afirmação-tese, que chamarei de tese bioconservadora:

Mesmo se fosse tecnicamente possível e legalmente permissível para as pessoas realizarem aprimoramentos biomédicos, não seria moralmente permissível fazê-lo7.

3 L. D. Johnston, P. M. O’Malley & J. G. Bachman, Monitoring the Future National Survey Results on DrugUse, 1975–2002: II. College Students and Adults Ages 19–40 (Washington DC: US Department of Health and Human Services, 2003); C. J. Teter, S. E. McCabe, K. LaGrange et al., ‘Illicit use of specific stimulants among college students: prevalence, motives, and routes of administration’, Pharmacotherapy, 26, 10 (2006): 1501–1510. 4 G. Lynch, ‘Memory enhancement: the search for mechanism-based drugs’, Nature Neuroscience 5 (2002): 1035–1038; R. Scott, R. Bourtchouladze, S. Gossweiler et al., ‘CREB and the discovery of cognitive enhancers’, Journal of Molecular Neuroscience 19 (2002): 171–177; T. Tully, R. Bourtchouladze, R. Scott et al., ‘Targeting the CREB pathway for memory enhancers’, Nature Reviews Drug Discovery 2 (2003):267–277. 5 J. Yesavage, M. Mumenthaler, J. Taylor et al., ‘Donezepil and flight simulator performance: effects on retention of complex skills’, Neurology 59 (2001): 123–125. 6 J. A. Caldwell, J. L. Caldwell & N. K. Smythe, ‘A double-blind, placebo-controlled investigation of the efficacy of modafinil for sustaining the alertness and performance of aviators: a helicopter simulator study’, Psychopharmacology 150 (2000): 272–282; D. C. Turner, T. W. Robbins, L. Clark, A. R. Aron, J. Dowson & B. J. Sahakian, ‘Cognitive enhancing effects of modafinil in healthy volunteers’, Psychopharmacology 165 (2003): 260–269. 7 Alguns escritores podem se opor somente a certos tipos de aprimoramento, mas outros parecem achar todos aprimoramentos problemáticos, e talvez impermissíveis, proferindo que a tecnologia biomédica seja usada apenas para manter e restaurar a saúde. O mais recente e proeminente expoente desta visão é Michel Sandel. Ver M. J. Sandel ‘The case against perfection’, The Atlantic Monthly 293, 3 (2004): 50–65; and his The Case Against Perfection: Ethics in the Age of Genetic Engineering (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2007) esp. at pp. 12, 47–49.

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O escopo desta tese necessita ser clarificado. Por ‘pessoas’ eu incluo aqui todas as pessoas que correntemente existem, assim como aquelas que podem existir a médio prazo - digamos, os próximos cem anos - mas não incluo pessoas que possam existir em um futuro mais distante.

Similarmente entendo por ‘aprimoramento biomédico’ somente aquelas praticas de aprimoramento que podem plausivelmente se tornar tecnicamente realizáveis a médio prazo. Os oponentes do aprimoramento podem justificadamente ter pouco a dizer sobre aprimoramentos que aconteceriam a longo prazo ou que requereriam tecnologias fantasiosas. No que segue argumentarei que a tese bioconservadora, assim qualificada, é falsa.

UM POSSÍVEL CONTRAEXEMPLO À TESE

BIOCONSERVADORA A tese Bioconservadora pode ser defendida de vários modos. Mas,

muitos dos argumentos mais prevalentes para tal, estão baseados em considerações sociais: embora o enhancement possa ser bom para os indivíduos aprimorados, ele poderia ser ruim para outros8.

Então, em relação ao aprimoramento da inteligência, poderia ser argumentado que se uma pessoa se torna mais inteligente, ela estaria causando uma desvantagem aos não-aprimorados, por exemplo, na competição por empregos ou discriminando estes com base na sua pouca inteligência9.

Estes argumentos podem ser persuasivos quando dirigidos contra os mais comumente discutidos aprimoramentos biomédicos – aprimoramento das habilidades físicas, inteligência e memória, e alargamento do tempo natural de vida. Mas há outros tipos de aprimoramentos biomédicos contra os quais os argumentos bioconservadores parecem ser muito menos persuasivos. Neste artigo, focarei em uma possibilidade: que pessoas futuras possam usar tecnologias biomédicas para aprimorar moralmente a si mesmas.

Há várias maneiras de entender a sugestão para que nós nos aprimoremos moralmente. Para nomear algumas, nós podemos entender isso

8 Ver, por exemplo, G. A. Annas, ‘Cell division’, Boston Globe, 21 April 2002; F. Fukuyama, Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution (New York: Farrar, Straus, and Giroux, 2002), p. 97; B. McKibben, ‘Designer genes’, Orion, 30 April 2003; M. J. Mehlman, ‘Genetic enhancement: plan now to act later’, Kennedy Institute of Ethics Journal 15, 1 (2005): 77–82. 9 Para objeções ao aprimoramento baseadas na competitividade ver A. Buchanan, D. Brock, N. Daniels & D. Wikler, From Chance to Choice: Genetics and Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 2000), pp. 188–191; McKibben (2003) op. cit.; M. J. Farah, J. Illes, R. Cook-Deegan et al., ‘Neurocognitive enhancement: what can we do and what should we do?’ Nature Reviews Neuroscience 5 (2004): 421–425 at p. 423; Sandel (2007) op. cit., pp. 8–12. Para objeções baseadas em discriminação, ver, por exemplo, Sandel (2007) op. cit., p. 15.

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como uma sugestão para que nos tornemos mais virtuosos, mais louváveis mais capazes de responsabilidade moral, ou que venhamos a agir ou nos comportar mais moralmente. Mas eu não entenderei o aprimoramento moral em nenhum desses modos acima descritos. Antes eu sugiro que nós nos demos motivos moralmente melhores (portanto frequentemente omitindo o ‘moralmente’). Entendo motivos como sendo os estados ou processos psicológicos – mentais ou neurais – que irão, dada a ausência de motivos opostos, fazer com que a pessoa aja10.

Uma vez que eu estou interessado somente em motivos, não reivindicarei que a pessoa moralmente aprimorada é mais moral, tem um caráter mais moral ou irá agir mais moralmente do que seu eu anterior, não aprimorado. Não me comprometerei também com qualquer visão particular sobre o que determina a bondade moral de um motivo. Por exemplo, irei, à medida do possível, permanecer neutro em relação às visões que a bondade moral de um motivo é determinada pelos tipos de atos que ele motiva, os traços de caráter que ele parcialmente constitui, as consequências de sua existência ou de suas propriedades intrínsecas.

Com essas qualificações, estabeleço agora a fórmula para o aprimoramento moral:

Uma pessoa aprimora moralmente a si própria se ela altera a si mesma de um modo que podemos razoavelmente esperar que resulte em que ela tenha melhores motivos morais futuros, tomados em conjunto, do que ela teria sem essa alteração. Essa fórmula me parece um meio natural de capturar a ideia de

aprimoramento moral, considerando nosso foco na bondade moral dos motivos. Entretanto, há três aspectos dignos de nota. Primeiro, a fórmula compara conjunto com motivos, e não motivos individuais. Mais especificamente ela compara o conjunto completo de futuros motivos que um agente teria após o aprimoramento com os que ele teria sem o aprimoramento. Segundo, ela está focada sobre se podemos razoavelmente esperar que uma alteração resulte em que o agente tenha motivos moralmente melhores (ou, como direi, se esperamos que ela leve o agente a ter melhores motivos) não em se ele realmente terá melhores motivos. Sem essa segunda

10 Foco na moralidade de motivos porque tomo isso como sendo comumente aceito. Alguns Kantianos podem negar que atos ou comportamentos são o objeto próprio de apreciação moral, e alguns daqueles que veem os atos como sendo a unidade básica maior da apreciação moral podem abster-se de fazer julgamentos de caráter moral. Mas penso que todos, ou quase todos, aceitariam que motivos aparecem em diferentes graus de moralidade, mesmo se sua moralidade deriva, em última instância, do comportamento que eles motivam ou das virtudes das quais eles derivam ou constituem.

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condição, seria difícil saber, de antemão, se qualquer alteração constituir-se-ia em aprimoramento moral. Terceiro, minha fórmula permite que um aprimoramento moral possa ser alcançado por meios não-biomédicos. Focarei especificamente no caso do aprimoramento moral biomédico mais adiante.

Diferentemente das mais frequentemente mencionadas variedades de aprimoramento, aprimoramentos que satisfazem essa fórmula para aprimoramentos morais, não poderiam ser facilmente criticados sob o fundamento de que seu uso, por alguns, causaria desvantagens a outros. Em qualquer teoria moral plausível, o fato de alguém ter motivos morais tenderia a ser vantajoso também para os outros. Certamente, para alguns, o fato de que ter alguns motivos tenderia a dar uma vantagem a outros é o que faz disso um motivo moralmente bom. Adquirir um melhor conjunto de futuros motivos pode fazer com que, em algumas vezes, alguém cause uma desvantagem para outras pessoas, mas fará isto somente quando: a) os melhores motivos falharem em produzir seus efeitos típicos (como quando um desejo apropriado de ajudar outros tem, devido a circunstancias imprevisíveis, efeitos danosos; b) a desvantagem servir a algum propósito moral (como quando uma preocupação por justiça leva alguém a punir apropriadamente alguém que fez algo errado); ou c) ter um conjunto médio de futuros motivos moralmente melhores envolve ter alguns motivos individuais piores. Alguém poderia não objetar ao aprimoramento moral baseado em que isso iria sistematicamente impor desvantagem moral gratuita sobre outros.

De fato argumentarei que, quando realizado sob certas condições, não haveria boas objeções – sociais ou outras - ao aprimoramento moral biotecnológico. Sugerirei, contrariamente à tese bioconservadora, que seria moralmente permissível para as pessoas realizarem tais aprimoramentos. Antes de prosseguir, entretanto, é necessário dizer algo mais sobre como o aprimoramento moral poderia funcionar.

A NATUREZA DO APRIMORAMENTO MORAL Há claramente espaço para que a maioria das pessoas aprimorem a

elas próprias. De acordo com qualquer teoria moral plausível, as pessoas frequentemente têm maus motivos ou não têm os melhores motivos. E de acordo com muitas teorias morais plausíveis, alguns dos mais importantes problemas do mundo – tais como o desenvolvimento da pobreza no mundo, mudanças climáticas e guerras – podem ser atribuídas a esses déficits morais.

Mas não é imediatamente claro que tipos de mudanças psicológicas contariam como aprimoramento moral. Há, ao menos, duas razões para essa falta de clareza.

A primeira razão é que há pouca concordância sobre quais motivos são moralmente bons e em que grau. Enquanto alguns diriam que é melhor

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ser motivado por crenças normativas formadas como resultado do correto raciocínio11, outros enfatizariam a importância das emoções morais, tais como a simpatia12. Outros ainda favoreceriam a mistura dos dois13. Além disso, esse desacordo não pode ser resolvido através do apelo a algumas concepções sobre que espécie de considerações determinam a bondade moral de um motivo, mesmo que aqui haja ainda menos concordância. Por exemplo, alguns sustentam que um motivo é moralmente bom à medida em que ele tende a produzir boas consequências, enquanto outros sustentam que os motivos são bons à medida em que são parcialmente constitutivos de certas virtudes.

A segunda razão é que tanto o que conta como sendo um bom motivo, quanto o que conta como sendo uma melhoria nos motivos de alguém, seria diferente para pessoas diferentes, ou para pessoas em diferentes papéis. Para um juiz, uma certa espécie de raciocínio legal pode ser o melhor motivo, enquanto que para os pais, o amor pode ser o mais apropriado. Similarmente, para uma pessoa que tem pouca simpatia para com os outros, um aumento em simpatia pode contar como melhoria moral. Mas para alguém que já é bastante simpático é improvável que qualquer aumento de simpatia conte como sendo uma melhoria.

Apesar dessas dificuldades, penso que seria possível identificar vários tipos de mudanças psicológicas que seriam, para algumas pessoas, sob certas circunstâncias, certamente consideradas como aprimoramento moral. Focarei apenas em uma possibilidade aqui. Penso que há algumas emoções –as emoções contra-morais - cuja atenuação iria algumas vezes contar como aprimoramento moral independentemente de qual plausível teoria moral ou psicológica aceitemos. Tenho em mente aquelas emoções que podem interferir com todos os supostos bons motivos (emoções morais, processos de raciocínio e combinações destas) e/ou aquelas que são nelas mesmas, sem controvérsia, maus motivos. Atenuar tais emoções plausivelmente deixaria uma pessoa com melhores futuros motivos, considerados em sua totalidade.

Um exemplo de uma emoção contra-moral pode ser uma forte aversão a certos grupos raciais. Tal aversão seria, penso, um exemplo inequívoco de um mau motivo. Pode também interferir com o que, de outro 11 Immanuel Kant é, claro, o expoente clássico dessa visão, afirmando como ele fez a única coisa ‘boa nela mesma’, que é uma boa vontade, entendida como a capacidade de envolvimento em operações da razão prática, que são governadas de modo correto pela lei moral. Ver especialmente sua Critique of Practical Reason, 3rd edn., L. W. Beck, trans. (New York: Macmillan, 1993) Book I, Chapter I. 12 Ver, por exemplo, J. S. Mill, Utilitarianism G. Sher, ed. (Indianapolis: Hackett, 1979), pp. 27–28. 13 O exemplo clássico vem de Aristóteles. Ver sua Nicomachean Ethics, T. Irwin, trans. (Indianapolis: Hackett, 1985).

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modo, seriam bons motivos. Pode, por exemplo, levar a um tipo de preconceito inconsciente em uma pessoa que está tentando pesar as reinvindicações em competição como parte de algum processo de raciocínio. Pode, também, limitar a extensão na qual uma pessoa é capaz de sentir simpatia por um membro do grupo racial em questão.

Um segundo exemplo seria o impulso para a agressão violenta. Esse impulso pode ocasionalmente contar como sendo um bom motivo. Se estou presente quando uma pessoa ataca outra nas ruas, o impulso agressivo pode ser exatamente o que é requerido de mim. Mas, em muitas ocasiões, o impulso agressivo parece ser um motivo moralmente ruim - por exemplo, quando se é apenas levemente provocado. Além disso, como acontece com a aversão racial, pode também interferir com bons motivos. Pode, por exemplo, obscurecer a mente de uma pessoa de um modo que se torna difícil raciocinar e improvável que experimente as emoções morais.

Suspeito, então, que, para muitas pessoas, a diminuição ou supressão de uma aversão a certos grupos raciais, ou a redução do impulso à agressão violenta, qualificar-se-ia como sendo um aprimoramento moral – isto é, espera-se que levaria aquelas pessoas a ter melhores motivos morais, considerando seu somatório, do que teriam na ausência do aprimoramento. Entretanto, não quero e não preciso me comprometer aqui com essa reinvindicação. Antes, irei me restringir à seguinte reivindicação, mais fraca: há algumas emoções tais que a redução no grau que o agente experimenta tais emoções, em certas circunstâncias, constitui um aprimoramento moral.

Duas objeções Kantianas gerais podem aqui ser feitas. Primeiro pode ser objetado que, quando uma pessoa tem certos motivos à bondade moral, esses motivos são totalmente determinados pelos motivos anteriores que os causaram. O foco da valoração moral muda dos motivos (posteriores), que são provocados pelos motivos (anteriores) para causá-los. Então, embora normalmente poderia ser verdadeiro que a atenuação de algumas emoções melhoraria os motivos de alguém, isso não necessariamente será o caso quando a atenuação da emoção é ela própria uma ação motivada. Se, digamos, alguém for motivado a alterar suas emoções por algum mau motivo, a maldade dos motivos anteriores pode contaminar os motivos subsequentes.

É implausível, entretanto, que a bondade dos motivos das pessoas em algum tempo seja determinada totalmente pelos motivos anteriores que causaram os motivos posteriores. Suponha que um neonazista participe de um protesto antissemita a fim de protestar contra o número de judeus em sua cidade. Mas suponha que ele fique, inesperadamente, enojado pelo comportamento de seus colegas de protesto e impressionado pela conduta dos judeus que olham aterrorizados o protesto. Resulta disso que sua aversão a pessoas judias é grandemente diminuída. Intuitivamente essa pessoa tem melhores motivos após o protesto do que ela tinha antes. Mas é difícil ver

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como essa melhoria em seus motivos poderia ser explicada com referência aos motivos que causaram isso. Afinal de contas, aqueles motivos anteriores eram motivos racistas.

Uma segunda objeção à minha proposta de aprimoramento moral sustentaria que nada que altera somente emoções poderia verdadeiramente dar a um agente melhores motivos. A única coisa susceptível de valoração moral é, pode ser argumentado, a vontade. Então os únicos motivos capazes de serem bons ou ruins são aqueles que consistem no exercício da vontade. E se alguém experimenta certas emoções ou não é simplesmente irrelevante para a questão sobre se alguém tem tais motivos, pois as emoções residem fora dos limites da vontade. Antes, a vontade é exercida através do engajamento em processos de raciocínio que são independentes de estados emocionais: esses processos de raciocínio são os únicos motivos que podem ser bons ou ruins (eles serão bons, na visão Kantiana, quando são propriamente dirigidos pela lei moral – ou, como irei dizer a partir de agora, quando estão corretos)14.

A visão de que processos de raciocínio são os únicos motivos suscetíveis de valoração moral me parece implausível. Intuitivamente, podemos, algumas vezes, melhorar moralmente nossos motivos, por exemplo, cultivando sentimentos de simpatia. Mas isso não contaria como melhoramento na visão Kantiana acima retratada, desde que ser movido por simpatia seguramente não conta como envolvimento em raciocínio. Além disso, mesmo se nós aceitamos que processos de raciocínio são os únicos motivos suscetíveis de apreciação moral, atenuar uma emoção pode ainda contar como aprimoramento moral. Embora as emoções possam estar fora do âmbito da vontade, elas podem interferir em seu exercício corrompendo processos de raciocínio. Então, atenuar as emoções problemáticas pode permitir que um agente se engaje em processos corretos de raciocínio prático, o que não seria possível de outro modo.

Existe, devemos admitir, uma versão mais forte da posição Kantiana. Poderia ser argumentado que alguém exercita sua vontade somente quando se engaja em processos de raciocínio que não são suscetíveis de interferência emocional. Nessa visão, mesmo que atenuar emoções contra-morais possa capacitar um agente a engajar-se em processos de raciocínio, os quais não poderiam em si mesmo contar como sendo bons (ou maus) motivos, precisamente porque foram suscetíveis de interferência emocional.

Não posso adequadamente responder a essa objeção aqui. Entretanto, desde que duvido que muitas pessoas aceitariam a forte versão Kantiana sobre a natureza da vontade, não estou certo de que é preciso alguma resposta. Simplesmente lembrarei que, assim como a versão Kantiana 14 Assumo, por razões de argumento, que raciocínio não envolve em si mesmo a emoção. Para uma visão oposta, ver Antonio Damasio, Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Human Brain (London, Vintage, 2006).

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fraca, essa versão mais forte implica que cultivar certas emoções não pode, de modo algum, melhorar os motivos de alguém. Diferentemente da visão fraca essa também implica (a meu ver contraintuitivamente) que nem treinar a si mesmo para suprimir emoções tais como aversão racial, nem evitar circunstâncias que as provoquem, poderia afetar a bondade dos motivos de alguém.

A POSSIBILIDADE DE APRIMORAMENTO MORAL

BIOMÉDICO Defenderei aqui, com cautela, que, algumas vezes, seria moralmente

admissível para as pessoas atenuar biomedicamente (por meios biomédicos) suas emoções contra-morais. Mas, inicialmente, quero considerar rapidamente o que parece ser uma questão central. Será possível esse tipo de aprimoramento biomédico no espaço de tempo médio que estamos considerando?

Há duas razões óbvias para duvidar que o aprimoramento moral, por meios biomédicos, será possível, a médio prazo. A primeira é que há, segundo certas opiniões sobre a relação entre mente e cérebro, alguns aspectos da nossa psicologia moral que não podem, em princípio, serem alterados pela intervenção biomédica15. Aqui não é o lugar para explorar essa questão, espero que sirva apenas para mostrar que não é uma posição filosófica dominante. O segundo fundamento para duvidar é que nossa psicologia moral é presumível e altamente complexa – provavelmente tão complexa que não obteremos compreensão suficiente de sua base neurocientífica, a médio prazo, para permitir o desenvolvimento de intervenções biomédicas apropriadas.

Certamente há alguns aspectos de nossa psicologia moral que são excessivamente complexos. A médio prazo, provavelmente não compreenderemos adequadamente a base neurocientífica da crença no imperativo categórico de Kant. Mas há outros elementos da nossa psicologia moral que podem ser mais fáceis de entender, e estes poderiam incluir, pelo menos, algumas das emoções contra-morais.

Considere as duas emoções que eu mencionei antes – a aversão a certos grupos raciais e os impulsos para a agressão violenta. Os trabalhos em genética comportamental e em neurociência levaram a um recente, mas crescente, conhecimento das bases biológicas de ambos. Há muito tempo

15 Mais obviamente, isto seria sustentado pelos que fazem paralelo entre a mente e o corpo e acreditam que mente e corpo são causalmente separados um do outro. O mais famoso expoente desta visão é G.W.Leibniz. Ver ‘New system, and explanation of the new system’ in his Philosophical Writings, G. H. R. Parkinson, ed., M. Morris, trans. (London: Dent, 1973).

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existe evidência da contribuição genética para a agressão16, a partir de estudos sobre adoção de gêmeos, e agora há evidência crescente de um polimorfismo no gene da Monoamina oxidase A17, e, no nível neurofisiológico, transtornos no sistema neurotransmissor serotonérgico18. A aversão racial tem sido menos estudada. No entanto, uma série de estudos recentes de imagem de ressonância magnética funcional sugerem que a amigdala – parte do cérebro já implicada na regulação de emoções – tem um papel importante19. Dado esse progresso na neurociência, parece razoável supor que tecnologias de aprimoramento moral que operem sobre impulsos emocionais relativamente simples possam ser desenvolvidas a médio prazo.

O CENÁRIO Agora estou em posição de colocar as condições sob as quais, como

defenderei, seria moralmente admissível para as pessoas aperfeiçoar moralmente a si mesmas. Essas condições são colocadas em um cenário que consiste em cinco afirmativas20.

16 R. R. Crowe, ‘An adoption study of antisocial personality’, Archives of General Psychiatry 31 (1974): 785–791; R. J. Cadoret, ‘Psychopathology in adopted-away offspring of biologic parents with antisocial behavior’, Archives of General Psychiatry 35 (1978): 176–184; W. M. Grove, E. D. Eckert, L. Heston et al., ‘Heritability of substance abuse and antisocial behavior: a study of monozygotic twins reared apart’, Biological Psychiatry 27 (1990): 1293–1304. 17 H. G. Brunner, M. R. Nelen, X. O. Breakefield et al., ‘Abnormal behaviour associated with a point mutation in the structural gene for Monoamine Oxidase A’, Science 262, 5133 (1993): 578–580; H. G. Brunner, M. R. Nelen, P. van Zandvoort et al., ‘X-linked borderline mental retardation with prominent behavioural disturbance: phenotype, genetic localization, and evidence for disturbed monoamine metabolism’, American Journal of Human Genetics, 52, 6 (1993): 1032–1039. 18 A. Caspi & J. McClay, ‘Evidence that the cycle of violence in maltreated children depends on genotype’, Science 297 (2002): 851–854; R. M. M. de Almeida, P. F. Ferari, S. Parmigiani et al., ‘Escalated aggressive behavior: Dopamine, serotonin and GABA’, European Journal of Pharmacology 526 (2005): 51–64. 19 A. J. Hart, P. J. Whalen, L. M. Shin et al., ‘Differential response in the human amygdala to racial outgroup vs. ingroup face stimuli’, Neuroreport: For Rapid Communication of Neuroscience Research 11 (2000): 2351–2355; E. A. Phelps, K. J. O’Connor, W. A. Cunningham et al., ‘Performance on indirect measures of race evaluation predicts amygdala activation’, Journal of Cognitive Neuroscience 12 (2000): 729–738; W. A. Cunningham, M. K. Johnson, C. L. Raye et al., ‘Separable neural components in the processing of black and white faces’, Psychological Science 15 (2004): 806–813. 20 Também assumi, como pano de fundo para as assertivas listadas, que Smith é uma pessoa normal, que vive em um mundo similar ao nosso – quer dizer, um mundo governado por princípios científicos e científicos sociais que usamos para governar nosso próprio mundo.

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A primeira assertiva apenas especifica que estamos lidando com um aprimoramento que satisfaz a fórmula que propus para o aprimoramento moral:

Assertiva 1. Através de alguma intervenção biomédica (por exemplo, tomando uma pílula) no tempo T, um agente Smith pode provocar em si mesmo melhores motivos pós-T do que ele teria sem a intervenção. A fim de focar atenção naquela situação em que, creio, o caso para

o aprimoramento moral é mais forte, vou introduzir uma segunda assertiva como segue:

Assertiva 2. Se Smith não realizar a intervenção, ele previsivelmente terá pelo menos alguns maus motivos (e não meramente motivos que não são os melhores). Uma terceira assertiva capta minha alegação anterior sobre como o

aprimoramento moral deve funcionar, em termos psicológicos: Assertiva 3. A intervenção biomédica funcionará atenuando algumas emoções de Smith. E, finalmente, a quarta e quinta assertivas excluem o que considero

objeções não interessantes para o aprimoramento moral: que podem haver efeitos adversos, e que esse aprimoramento pode ser feito coercitivamente ou por outras más razões, desnecessariamente:

Assertiva 4. Os únicos efeitos da intervenção de Smith serão: (a) alterar a psicologia de Smith naqueles (e apenas naqueles) aspectos necessários para que ele previsivelmente tenha melhores motivos pós-T; e (b) as consequências dessas mudanças psicológicas. Assertiva 5. Smith pode, no tempo T, livremente escolher se aprimora ou não a si mesmo moralmente, e, se ele optar por aprimorar, fará esta escolha pelas melhores razões possíveis (quaisquer que estas possam ser)21.

Nessas circunstâncias, seria moralmente permissível para Smith aprimorar moralmente a si mesmo? Defenderei aqui que provavelmente sim. 21 Considero que a assertiva 1 implica que pelo menos não há restrições legais ou morais à Smith aprimorar-se moralmente.

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RAZÕES PARA APRIMORAR Smith claramente tem alguma razão moral para aprimorar,

moralmente, a si mesmo: se ele assim fizer, previsivelmente terá um conjunto melhor de motivos do que teria se não tivesse se aprimorado, e considerarei que, sem dúvidas, ele tem alguma razão moral para provocar esse resultado. (De agora em diante, omitirei o ‘moral’ de ‘razão moral’).

Exatamente porque ele tem tal razão é que é algo aberto a questionamentos. Uma explicação poderia ser a seguinte: quando Smith faz com que ele próprio, esperadamente, tenha melhores motivos, ele esperadamente provoca ao menos uma boa consequência, isto é, ter melhores motivos22. E plausivelmente nós todos temos ao menos alguma razão moral para esperadamente provocar alguma boa consequência.

Essa explicação é fracamente consequencialista porque repousa na premissa de que nós temos boas razões para provocar qualquer boa consequência. Mas não-consequencialistas convictos poderiam oferecer uma explicação alternativa. Eles poderiam, por exemplo, sustentar que o ato de Smith de aprimorar-se moralmente tem alguma propriedade intrínseca – como a propriedade de ser um ato de autoaperfeiçoamento – que dá a ele razão para praticá-lo.

Indiferente à ideia de: “por que Smith tem razão para aprimorar-se moralmente no nosso cenário?”, considerarei intuitivamente claro que ele tem tal razão. Além disso, essa intuição pode ser apoiada por intuições sobre casos intimamente relacionados. Suponha que alguma agente chamada Jones está precisamente na mesma posição que Smith, exceto que, no caso dela, o aprimoramento moral pode ser obtido, não por meios biomédicos, mas por alguma forma de autoeducação – por exemplo, refletindo e lutando para reduzir suas emoções contra-morais. Intuitivamente, Jones tem alguma razão para aprimorar moralmente a si mesma – ou assim parece para mim. E se pressionada sobre por quê ela tem tal razão, parece natural apontar aspectos da sua situação que são compartilhados com a situação de Smith – por exemplo, que seu aprimoramento teria presumivelmente boas consequências, ou que pode expressar uma preocupação com o interesse dos outros23.

22 Smith também pode provocar muitas outras boas consequências previsíveis – por exemplo, aquelas que seguem do fato de ele previsivelmente ter bons motivos. 23 Não defendo que a razão de Smith para se comprometer com o aprimoramento moral é tão forte quanto a razão de Jones.

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RAZÕES PARA NÃO APRIMORAR Smith também pode, claro, ter razões para não aprimorar

moralmente a si mesmo, e considerarei quais poderiam ser essas razões24. Motivos questionáveis Uma possibilidade é que Smith tem razão em não se aprimorar

porque ele só poderia fazer isso a partir de um algum motivo ruim. Assumi, ao colocar o cenário de Smith, que, se ele aprimorar a si mesmo, fará isso a partir do melhor motivo possível. Mas o melhor motivo possível pode não ser bom o bastante.

Há vários motivos que Smith poderia ter para aprimorar moralmente a si mesmo. E alguns destes parecem bastante inquestionáveis: ele pode acreditar que deve aprimorar a si mesmo, ele pode ter o desejo de agir moralmente no futuro, ou ele pode ser apenas movido por uma preocupação com o bem público. No entanto, deveríamos considerar, a essa altura, uma objeção devida a Michael Sandel. Sandel defende que se comprometer com o aprimoramento expressa um desejo excessivo de mudar a si mesmo, ou uma aceitação insuficiente para ‘aquilo que é dado’. E uma vez que temos razões para evitar tais motivos, nós temos, ele pensa, razões para evitar aperfeiçoar a nós mesmos25.

Seria difícil negar que o aprimoramento moral de Smith, como qualquer instância voluntária de aprimoramento, seja conduzido, em alguma medida, por uma falta de vontade em aceitar ‘aquilo que é dado’ (embora isso não precise ser seu motivo consciente). Aqui, devemos concordar com Sandel. Mas o que é menos claro é que isso dá a Smith uma razão para evitar o aprimoramento. Deixando de lado qualquer problema geral com a sugestão de Sandel, esta enfrenta um problema específico quando aplicada ao caso de Smith. Aplicada a esse caso, a alegação de Sandel seria que Smith tem razão para aceitar seus motivos ruins, assim como o que interfere com seus bons motivos. Mas isso é implausível. Certamente, se existem quaisquer aspectos dele mesmo que ele não aceitaria, seus maus motivos e impedimentos para seus bons motivos estão entre eles. A atitude adequada para tomar em direção a tais aspectos é exatamente a de não-aceitação e o desejo de automudança.

24 As razões consideradas, nesta seção, estão baseadas numa gama de diferentes visões morais. Não defendo que exista algum ponto de vista moral que acomodaria todas as razões imputáveis discutidas. 25 Sandel (2004) op. cit., pp. 50–65; Sandel (2007) op. cit.

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Meios questionáveis Uma segunda razão que Smith poderia ter para não se aprimorar

moralmente é que os meios biomédicos pelos quais ele faria isso são questionáveis.

Podemos distinguir entre uma versão fraca e uma versão forte da visão que os meios propostos por Smith são questionáveis. Pela versão fraca, seus meios são questionáveis no sentido de que seria melhor se ele aprimorasse moralmente a si mesmo por meios não-biomédicos. Há certamente algum apelo intuitivo a essa visão. Pode parecer preferível para Smith aprimorar a si mesmo através de algum tipo de treinamento moral ou autoeducação. Quando comparado com autoeducação, tomar uma pílula parece ser ‘muito fácil’ ou muito desconectado da compreensão humana ordinária26. Indiscutivelmente, dada a escolha entre aprimoramento moral biomédico e aprimoramento moral via autoeducação, Smith teria fortes razões para optar pelo último.

Observe, no entanto, que a escolha de Smith não é entre meios alternativos de aprimoramento, mas simplesmente entre comprometer-se ou não com o aprimoramento moral biomédico. Razões que Smith tem para se comprometer com o aprimoramento moral por outros meios serão relevantes para a escolha de Smith apenas se, ao se comprometer com o aprimoramento moral biomédico, isso influenciar a extensão com que ele busca o aprimoramento moral por outros meios. Se aprimorar-se moralmente por meios biomédicos levará Smith a se comprometer com menos aprimoramento por alguns meios superiores (quer dizer, via autoeducação), então Smith pode ter alguma razão para não se engajar em aprimoramento moral biomédico. Mas é difícil ver porque Smith consideraria aprimoramento biomédico e autoeducação como conflitivos desse modo. Parece ao menos provável que ele os consideraria como complementares. Tendo se aprimorado moralmente desse modo, ele pode se sentir mais inclinado a aprimorar moralmente a si mesmo do outro modo (digamos, porque ele gosta da experiência de agir por bons motivos).

Alguém pode, a essa altura, voltar-se para uma versão mais forte da alegação dos meios questionáveis, defendendo que adotar meios biomédicos para o aprimoramento moral é questionável não apenas relativamente a outros meios, mas em um sentido absoluto. Na verdade, é então absolutamente questionável que qualquer beneficio moral de Smith aprimorar a si mesmo moralmente seria reduzido ou sobrepujado pelos custos morais de usar as intervenções biomédicas como meios. 26 See L. R. Kass, ‘Ageless bodies, happy souls: biotechnology and the pursuit of perfection’, The New Atlantis 1 (2003): 9–28 at pp. 21–24; and President’s Council on Bioethics, Beyond Therapy: Biotechnology and the Pursuit of Happiness (Washington DC: President’s Council on Bioethics, 2003) at pp. 290–293.

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Toda alegação de que meios biomédicos para o aprimoramento moral são absolutamente questionáveis provavelmente está baseada na alegação de que eles não são naturais. Certamente, essa é uma crítica comum em relação aos meios aplicada ao aprimoramento biomédico27. Mas o problema é que essa crítica traga, em seu bojo, alguma noção de naturalidade ou de não naturalidade, como aquela que admite como verdadeiro:

[1] usar meios biomédicos para aprimorar-se moralmente é antinatural, e que: [2] essa antinaturalidade dá à pessoa razão para não se comprometer com tal aprimoramento. Pode tal noção ser encontrada? David Hume distinguiu três diferentes conceitos de natureza; um

que pode ser oposto a ‘milagres’, um oposto a ‘raro e não-usual’, e um que se opõem a ‘artifício’28.

Essa taxonomia sugere uma aproximação similar ao conceito de antinatural. Podemos equacionar antinatural com miraculosidade (ou sobrenaturalidade), com raridade ou fora do comum, ou com artificialidade. A seguir, eu considerarei se alguma dessas concepções de naturalidade ocorre ao tentar tornar plausível [1] e [2].

Antinatural como sobrenatural Considere primeiro o conceito de antinatural como sendo

equivalente a sobrenatural. Em uma noção popular desse conceito, algo como segue é verdadeiro: algo é antinatural se, ou na medida em que está fora do mundo, pode ser estudado pelas ciências29. Parece claro, sob esse ponto de vista, que as intervenções biomédicas não são, de modo nenhum, antinaturais, porque tais intervenções são exatamente o tipo de coisa que pode ser estudada pelas ciências. O conceito de antinatural como sobrenatural então torna-se [1] claramente falso.

27 Ver, por exemplo, Kass (2003) op. cit., pp. 17, 20–24; President’s Council on Bioethics (2003) op. cit.,pp. 290–293. 28 D. Hume, A Treatise of Human Nature, L. A. Selby-Bigge, ed. (Oxford: Clarendon, 1888), pp. 473–475. 29 Ver, por exemplo, G. E. Moore, Principia Ethica (Cambridge: Cambridge University Press, 1903), p. 92.

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Antinaturalidade como não-usualidade O segundo conceito de antinaturalidade sugerido pela análise de

Hume é aquele que pode ser equiparado com não-usualidade ou estranheza. A ideia de Leo Kass de antinaturalidade como falta de ligação com a compreensão humana cotidiana pode ser uma variante desse conceito30.

Não-usualidade e estranheza são conceitos relativos da seguinte forma: algo tem que ser não-usual ou estranho por ou para alguém. Assim, classificar a intervenção biomédica de Smith como antinatural pode depender de a quem nós relacionamos não-usualidade ou estranheza. Para nós, habitantes dos dias de hoje, o uso de tecnologia biomédica para fins de aprimoramento moral certamente se qualifica como não-usual e estranho, e assim, talvez, como antinatural. Mas, para algumas pessoas do futuro, pode ser que não. Na ausência de qualquer especificação sobre como relativizar não-usualidade ou estranheza, é indeterminado se [1] é verdadeiro.

De qualquer modo, nós não precisamos complicar uma vez que independentemente de [1] aparecer como verdadeira sobre o atual conceito de antinaturalidade, [2] parece falsa. É questionável se nós temos alguma razão para evitar a adoção de meios meramente porque eles são não-usuais ou estranhos, ou, em relação a esse assunto, desconectados da compreensão humana cotidiana. Nós podemos frequentemente preferir meios familiares aos estranhos, baseados nas previsões de que seus efeitos serão, geralmente, melhor conhecidos por evidências, e, portanto, mais certos. Assim, se me é oferecida a escolha entre duas drogas para alguma condição médica, em que ambas são consideradas igualmente seguras e eficazes, eu posso escolher a mais familiar baseando-me no fato de que ela, provavelmente, terá sido melhor estudada e, assim, terá efeitos mais certos. Mas a preocupação aqui não é, em última análise, com a antinaturalidade – ou qualquer outra característica objetável – dos meios, mas sim com os efeitos da adoção deles. Voltarei a questão dos possíveis efeitos adversos do aprimoramento de Smith abaixo. A posição na qual estou interessado aqui é se a estranheza de alguns meios nos dá motivos para não usá-los, independentemente de seus efeitos. Afirmar isso me parece assumir uma posição que é inexplicavelmente avessa à novidade.

30 Kass (2003) op. cit., pp. 22–24.

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Antinaturalidade como artificialidade Considere, finalmente, o conceito de antinaturalidade como

artificialidade. Esse é, sem dúvida, o mais comum conceito de naturalidade encontrado na filosofia moderna31. Ele pode ser mais ou menos caracterizado como se segue: algo é antinatural se envolve a ação humana, ou certos tipos de ação humana (como a ação intencional).

A objeção [1] é muito plausível em relação a esse conceito de antinaturalidade. Intervenções biomédicas claramente envolvem a ação humana – e quase sempre ação intencional. No entanto, [2] agora parece implausível. Sempre que, intencionalmente, adotamos algum meio para algum fim, aquele meio envolve a ação humana intencional. Mas isso não significa que temos razão para não adotar aquele meio. Se assim fosse, teríamos razão para, intencionalmente, não adotar quaisquer meios para qualquer fim. E isso certamente não pode estar correto.

A implausibilidade de [2] em relação ao atual conceito de antinaturalidade também pode ser evidenciada pelo retorno ao caso no qual o aprimoramento moral é alcançado através de autodidatismo, ao invés de intervenção biomédica. Tal aprimoramento não parece problemático, ainda que claramente envolva meios antinaturais, se a antinaturalidade é analisada como envolvendo ou sendo o produto de ação humana (intencional).

Devemos considerar, nesse momento, uma perspectiva mais restritiva da antinaturalidade como artificialidade: uma que sustenta que, para que algo qualifique-se como antinatural, este algo não deve envolver somente ação humana (intencional), deve também envolver tecnologia – os produtos das práticas sociais altamente complexas e sofisticadas tais como ciência e indústria. Deslocar-se para essa perspectiva talvez evite a necessidade de classificar práticas como treinamento e educação como antinaturais. Mas isso ainda torna antinaturais muitas práticas as quais, intuitivamente, podemos não ter razão alguma, baseada em meios, para evitar. Considere, por exemplo, o tratamento de doenças. Isso frequentemente envolve tecnologia biomédica, ainda que não esteja claro que tenhamos qualquer razão baseada em meios para não praticá-la. Para evitar esse problema, o conceito de antinaturalidade como artificialidade teria que ser ainda mais limitado, de modo que os meios que envolvem tecnologia seriam considerados como antinatural somente se eles não fossem destinados ao tratamento da doença. Desse ponto de vista, os meios de Smith não são antinaturais em si mesmos. Muito antes, a antinaturalidade surge a partir da combinação de seus meios com certas intenções ou objetivos. Talvez por restringir o conceito de antinaturalidade desse modo, nós evitamos classificar, como antinatural, práticas (tais como 31 D. Heyd, ‘Human nature: an oxymoron?’ Journal of Medicine and Philosophy 28, 2 (2003): 151–169 at pp. 156–157.

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autodidatismo ou o tratamento médico das doenças) que claramente parecem inquestionáveis. Contudo, permanece obscuro por que nessa perspectiva do antinatural, nós devemos ter razões para evitar práticas antinaturais. Na tentativa de mostrar que Smith tem razão em não se envolver no aprimoramento moral biomédico, não é suficiente simplesmente estipular algum conceito de antinaturalidade de acordo com o qual seu envolvimento, no aprimoramento moral, surge como antinatural, enquanto práticas aparentemente menos problemáticas surgem como naturais. Deve ser mostrado que o ser antinatural da prática a faz problemática, ou ao menos fornece evidência para o seu ser problemático. Sem tal demonstração, a alegação de antinaturalidade não cumpre nenhum papel filosófico, mas serve meramente como um meio de asseverar que nós temos razões para evitar o aprimoramento moral biomédico.

Meios objetáveis? Argumentei que nenhum dos três conceitos de antinaturalidade

sugeridos pela análise de Hume torna tanto [1] quanto [2] plausíveis. Se minhas conclusões estão corretas, segue-se que nenhum desses conceitos de antinaturalidade apontam para qualquer razão baseada em meios para Smith evitar o aprimoramento moral. Pode haver algum conceito adicional de antinaturalidade baseado no qual alguém poderia argumentar mais convincentemente por [1] e [2]. Ou pode haver algum meio de mostrar que o aprimoramento moral biomédico envolve meios que são objetáveis por outros motivos que não a sua antinaturalidade. Mas eu não estou certo sobre qual seria o conteúdo desses conceitos e argumentos.

Consequências objetáveis As consequências do aprimoramento de Smith lhe forneceriam

razões para evitar o envolvimento naquele aprimoramento? Dois pontos sobre essa possibilidade precisam ser observados anteriormente. Primeiro, já que estamos assumindo que o aprimoramento de Smith não terá efeitos colaterais (Suposição 4), as únicas consequências que sua ação terá são:

(a) Que ele, previsivelmente, terá melhores motivos pós-T do que teria tido sem o aprimoramento (b) Aquelas, e somente aquelas, mudanças psicológicas necessárias

para trazer (a)

(c) Consequências advindas de (a) e (b)

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Assim, se Smith tem razões baseadas em consequências para evitar o aprimoramento moral, aquelas razões devem ser fundamentadas nas características – presumivelmente a maldade intrínseca – de (a), (b) ou (c).

Segundo, há algumas teorias morais que restringem se, ou em que medida, as consequências (a) e (c) poderiam ser más. Considere as teorias segundo as quais somente aqueles estados hedonistas (como estados de prazer ou dor) podem ser intrinsecamente bons ou maus. Nessas teorias, (a) não poderia ser intrinsecamente má, já que os motivos não são estados hedonistas. Considere, alternativamente, uma teoria moral consequencialista, de acordo com a qual a bondade moral de um motivo é determinada pela bondade das consequências de uma pessoa ter esse motivo. Nessa teoria, se Smith, de fato, tem melhores motivos pós-T, então as consequências de ele ter esses motivos – que caem sob (c) – devem ser melhores que as consequências correspondentes que teriam aparecido caso ele tivesse motivos piores. O fato de Smith ter melhores motivos seguramente traz melhores consequências do que se ele tivesse piores motivos, porque provocar melhores consequências é o que faz um motivo ser bom. No que se segue, vou assumir, em função do argumento, que as teorias morais que limitam a possível maldade de (a) e de (c), desse modo, são falsas.

Mudança de identidade Um mau efeito do fato de Smith aprimorar-se moralmente pode ser

a perda de sua identidade. Preocupações sobre a perda de identidade têm sido levantadas como objeções gerais ao aprimoramento, e não há razões óbvias para que elas não devam ser aplicadas aos casos de aprimoramento moral32.

Claramente, o aprimoramento moral do tipo que estamos considerando precisa não alterar a identidade no sentido forte de que Smith, pós-aprimoramento, será uma pessoa diferente da que ele era antes. Nossas psicologias morais mudam todo o tempo, e, algumas vezes, elas mudam dramaticamente, por exemplo, após experiências particularmente traumatizantes. Quando essas mudanças ocorrem, nós não pensamos que uma pessoa foi, literalmente, substituída por outra. Contudo, talvez o aprimoramento moral de Smith seria alteração de identidade no sentido mais fraco, no qual ele mudaria algumas de suas características psicológicas mais fundamentais – características que são, por exemplo, centrais para o modo

32 Ver, por exemplo, P. R. Wolpe, ‘Treatment, enhancement, and the ethics of neurotherapeutics’, Brain and Cognition 50 (2002): 387–395 at pp. 393–394; President’s Council on Bioethics (2003) op. cit., p. 294.

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como ele vê a si mesmo e suas relações com outros, ou que permeiam sua personalidade33.

Suponha que admitimos que o aprimoramento moral de Smith seria de alteração de identidade no seu sentido mais fraco. Isso não daria a Smith nenhuma razão para evitar se submeter à mudança. Plausivelmente, nós temos razões para preservar nossas características psicológicas, fundamentalmente aquelas características que têm algum valor positivo. Embora as emoções contra-morais de Smith possam ter algum valor (Smith pode, por exemplo, achar suas experiências prazerosas), não é necessário que assim seja

Liberdade Restrita Aprimorar moralmente a si mesmo fará com que Smith tenha

melhores motivos pós-T, tomados em conjunto, do que ele teria sem o aprimoramento. No entanto, poderíamos pensar que esse resultado traria algum custo para a liberdade dele: a saber, ele não teria, depois de T, liberdade para ter e agir de acordo com maus motivos. E mesmo que ter e agir de acordo com maus motivos possa em si mesmo ter pouco valor, poderíamos pensar que a liberdade de ter esses maus motivos e agir de acordo com eles é valiosa. De fato, essa liberdade parece ser um elemento central da atividade racional humana. Indiscutivelmente, Smith tem razões para não colocar restrições a essa liberdade.

A objeção que estou considerando aqui pode ser apreendida nas duas afirmações seguintes:

[3] Aprimorar moralmente a si mesmo resultará em que Smith tenha menos liberdade para ter e agir de acordo com maus motivos. [4] Smith tem razões para não restringir a liberdade dele de ter e agir de acordo com maus motivos. A afirmação [4] é, eu penso, problemática. Não é óbvio que a

liberdade aí referida tenha qualquer valor. Além do mais, mesmo que essa liberdade tenha valor, não há problema em restringi-la, desde que a restrição seja ela mesma autoescolhida, como o é no caso de Smith. Contudo, focarei aqui na afirmação [3]. O proponente da afirmação [3] é comprometido com certa compreensão de liberdade. Ele teria que sustentar que a liberdade não consiste meramente na ausência de restrições externas, mas também na ausência de restrições psicológicas internas, pois são apenas as características internas de Smith que seriam alteradas pelo seu próprio aprimoramento 33 Ver, para uma discussão desse sentido mais fraco de ‘identidade’, M. Schechtman, The Constitution of Selves (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1996), esp. at pp. 74–76.

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moral. Essa perspectiva pode ser sustentada se considerarmos o eu como sendo dividido em duas partes – o verdadeiro ou autêntico eu, e um eu bruto, que é externo a esse eu verdadeiro. Alguém poderia então considerar qualquer aspecto do eu bruto que limita o eu verdadeiro como uma restrição à liberdade34. E alguém poderia defender [3] sobre o fundamento de que o aprimoramento moral de Smith irá alterar o seu bruto de tal modo que esse eu constrangerá seu eu autônomo.

Haveria alguma justificativa para pensar que o aprimoramento moral de Smith alteraria o seu eu bruto ao invés do seu eu verdadeiro. Nós estamos assumindo que o aprimoramento de Smith atenuará certas emoções, de maneira que esse aprimoramento presumivelmente funcionará alterando os mecanismos geradores de emoção do cérebro, e esses mecanismos provavelmente são melhor considerados como partes do eu bruto. Certamente, seria estranho considerar os mecanismos predominantemente subconscientes que trazem à tona a aversão racial ou a agressão impulsiva como parte do verdadeiro eu autônomo.

Entretanto, a perspectiva de que o aprimoramento moral alteraria o eu bruto de Smith de um modo tal que interferiria no eu autônomo dele parece estar em desacordo com minha afirmação (Afirmação 3) sobre o mecanismo desse aprimoramento. Visto que assumimos que o aprimoramento de Smith atenua certas emoções, o aprimoramento presumivelmente funcionará suprimindo aqueles mecanismos brutos que geram as emoções relevantes. O aprimoramento parece funcionar reduzindo a influência do eu bruto de Smith e assim permitindo ao eu verdadeiro dele maior liberdade. Seria mais acurado dizer que o aprimoramento aumenta a liberdade de Smith de ter e agir de acordo com bons motivos do que dizer que ele diminui a liberdade de Smith de ter e agir segundo maus motivos.

Induzindo aproveitadores A possibilidade final que eu quero considerar é que Smith pode ter

razão para abster-se do aprimoramento moral porque ele, tendo melhores motivos, poderia induzir outros a tirar proveito dele.

Por que isso poderia ocorrer pode ser ilustrado através do seguinte cenário. Suponhamos que Jack e Jim sejam os únicos pescadores que trabalham numa determinada baía. Os estoques de peixe ficaram exauridos na baía, e ambos prefeririam que os estoques aumentassem, mas nenhum deles quer limitar sua própria quantidade de peixes capturados. Apesar disso, eles formulam um plano: pelo próximo mês eles limitar-se-ão a uma cota de vinte

34 Para um exemplo dessa perspectiva, ver C. Taylor, What’s wrong with negative liberty, em A. Ryan (ed.) The Idea of Freedom (Londres, Oxford University Press, 1979), pp. 175-193.

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peixes por dia – significativamente menos do que ambos poderiam esperar, de outro modo, capturar, mesmo com os estoques exauridos.

Cada pescador pode aderir ao plano (‘respeitar a cota’) ou não aderir (‘exceder a cota’). Existem, então, quatro pares de ações possíveis (Jack respeita a cota, Jim a excede; Jim respeita a cota, Jack a excede; Jack e Jim respeitam a cota, Jack e Jim excedem a cota; et cetera. Os retornos – medidos em termos de bondade – de cada um desses pares de ação para cada pescador são descritos abaixo, na Figura 1. Eles foram escolhidos para refletir o fato de que o retorno para cada pescador é correlacionado negativamente com a medida pela qual os estoques futuros de peixe são exauridos, mas positivamente correlacionado com o número de peixes capturados por ele próprio no presente35.

Jim

Respeita a cota Excede a cota

Jack Respeita a cota (10,10) (5,11) Excede a cota (11,5) (1,1)

Figura 1. Jack e Jim.

Suponhamos que nenhum pescador pode saber o número de peixes

capturados pelo outro, mas cada um deles pode saber os motivos do outro. Além disso, suponhamos que os motivos de Jim são egoístas, significando que ele sempre faz o que quer, que maximize seu próprio retorno, ao passo que os motivos de Jack são moralmente bons – significando que ele sempre adere ao plano, respeitando a cota – ou moralmente maus – significando que ele sempre trai o plano, excedendo a cota.

Se os motivos de Jack são moralmente maus, então Jim saberá que Jack excederá a cota. Ele terá que decidir entre respeitar a cota e ter um

35 Esses retornos são gerados a partir das seguintes premissas: vamos assumir que se cada pescador respeitar a cota, a população de peixes estará elevada ao final do mês, se apenas um deles respeitar a cota, a população diminuirá, e se nenhum deles respeitar a cota, a população estará muito diminuída. O valor para cada um tendo elevada população é 16, tendo baixa população é 11, e tendo uma população muito baixa é 1. Suponhamos, além disso, que o valor a curto prazo para cada um respeitando a cota seja -6 e o valor, caso não a respeitem, seja 0. Então, o valor para um vizinho quando o outro também respeita a cota é 16-6=10, quando um respeita e o outro excede é 11-6=5, quando um excede e o outro respeita a cota é 11-0=11, e quando ambos excedem a cota é 1-0=1.

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retorno de 5, ou excedê-la e ter um retorno de 1. Posto que os motivos de Jim são egoístas, ele respeitará a cota.

Mas agora suponhamos que os motivos de Jack são moralmente bons. Jim, então, saberá que Jack excederá a cota. Consequentemente, ele tem que decidir entre respeitar a cota, e ter um retorno de 10, ou exceder a cota, e ter um retorno de 11. Tendo motivos egoístas, Jim excederá a cota. Tendo motivos moralmente bons, ao invés de moralmente maus, Jack induz Jim a exceder ao invés de respeitar a cota. Isso quer dizer que ele induz Jim a se aproveitar de seus bons motivos de um modo que é danoso a ele, reduz o retorno combinado, e desrespeita seu acordo anterior.

Esse é um cenário bastante estilizado. No entanto, ele ilustra uma via pela qual alguém que tenha melhores (bons) motivos poderia, alterando a estrutura de retorno encarada pelos outros, induzi-los a se aproveitar dele, por modos que poderiam bem ser considerados moralmente maus

No entanto, assim como nós podemos construir cenários nos quais uma pessoa tendo bons motivos induz outra a agir mal, do mesmo modo nós podemos construir cenários nos quais tenhamos o efeito oposto. Considere uma variante do cenário de Jack e Jim no qual Sally e Sam enfrentam um problema similar, mas dessa vez com os seguintes retornos:

Sam

Respeita a cota Excede a cota

Sally Respeita a cota (10,12) (5,9) Excede a cota (11,3) (1,5)

Figura 2. Sally e Sam.

Os retornos de Sally são os mesmos de Jack e Jim, mas os retornos

de Sam mudaram para refletir o fato de que ele tem uma função um pouco diferente sobre o futuro da população de peixes36. Vamos assumir novamente que os pescadores não podem saber quantos peixes os outros pegaram, mas 36 Para Jack, Jim e Sally, o valor de uma baixa população futura de peixes é muito maior do que aquele de uma população muito baixa, mas há pouco ganho decorrente de uma alta ao invés de uma baixa população (cf. supra n. 35). Para Sam, ter uma elevada população tem um valor bem maior do que o de uma baixa população, enquanto há relativamente pouca diferença de valor entre uma população baixa e uma muito baixa. Os retornos para Sam, apresentados na tabela, refletem os seguintes valores: valor de uma alta população de peixes, 18; valor de uma baixa população de peixes, 9; valor de uma população muito baixa de peixes, 5; valor de curto prazo, respeitando a cota, -6; valor de curto prazo, excedendo a cota, 0.

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podem saber os motivos dos outros. Vamos assumir também que Sam tem motivos egoístas. Então, se Sally tem motivos moralmente maus, de modo que ela sempre excede a cota, Sam terá que escolher entre respeitar a cota e ter um retorno de 1 ou excedê-la e ter um retorno de 5. Tendo motivos egoístas, Sam excederá a cota. Por outro lado, se Sally tem motivos moralmente bons, de modo que ela sempre respeita a cota, Sam terá que escolher entre respeitar a cota e ter um retorno de 10, ou excedê-la e ter um retorno de 9. Ele respeitará a cota.

Assim, nós temos uma interação na qual uma pessoa tendo melhores motivos induz outra a não se aproveitar. O efeito é o oposto daquele visto no cenário de Jack e Jim. Existem, é claro, muitos problemas de ação coletiva nos quais uma mudança nos motivos de alguém simplesmente não terá efeito sobre se as outras pessoas se aproveitarão. (O Dilema do Prisioneiro, em sua forma padrão, é um exemplo. Um agente egoísta sempre se aproveitará nesse cenário).

O aprimoramento moral de Smith pode reduzir as inclinações dele para se aproveitar em muitas situações. Mas a discussão precedente sugere que isso aumentará a inclinação dos outros para se aproveitar somente em um subconjunto desses casos. Assim, parece improvável que o aprimoramento dele levaria a um aumento do aproveitamento, como um todo.

IMPLICAÇÕES Argumentei aqui que Smith tem alguma razão para, moralmente,

aprimorar a si mesmo através de meios biomédicos. Rejeitei, também, vários argumentos favoráveis à existência de boas razões contrárias a esse aprimoramento. Assim, espero ter oferecido algum suporte em favor da proposição de que seria moralmente permissível para Smith se engajar num aprimoramento moral por via biomédica. Mas, se fosse permissível a Smith aprimorar-se moralmente a si mesmo, então a Tese Bioconservadora seria quase certamente falsa. Pois, como eu disse anteriormente, é plausível que tecnologias de aprimoramento moral por vias biomédicas se tornarão tecnicamente viáveis num futuro de médio alcance. E é quase certo que, se essas tecnologias se tornarem de fato realizáveis, algumas – provavelmente muitas – pessoas no futuro se encontrarão em cenários bastante parecidos com o de Smith, de modo que nossas conclusões sobre Smith serão aplicáveis a elas também: contrariamente à Tese Bioconservadora, existirão pessoas para as quais seria moralmente permissível se engajar em aprimoramento biomédico.

Finalizo, no entanto, destacando que a Tese Bioconservadora não é o único argumento utilizado pelos opositores do aprimoramento. Assim como eles afirmam que não seria permissível para as pessoas se aprimorarem, muitos bioconservadores afirmariam que não seria permissível para nós desenvolver

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tecnologias para propósitos de aprimoramento, nem deveríamos permitir o aprimoramento. Por tudo o que disse, essas afirmações podem bem ser verdadeiras. Do fato de que seria possível, para algumas pessoas futuras, aprimorar moralmente a si mesmas – dada a existência da tecnologia necessária e a ausência de barreiras legais – não significaria necessariamente que elas estariam autorizadas a fazer isso, ou que nós estaríamos autorizados a desenvolver as tecnologias cuja disponibilidade nós tomamos como dada. Outros fatores necessitariam ser considerados aqui. Pode ocorrer, por exemplo, que se nós fôssemos desenvolver tecnologias de aprimoramento moral, nós seríamos incapazes de prevenir sua utilização de formas indesejáveis – por exemplo, para aprimorar o egoísmo ou a imoralidade. Se desenvolver ou permitir o uso de tecnologias de aprimoramento moral deveria ser permissível ou não, isso dependeria ainda de uma consideração dos bons usos dessas tecnologias em contraposição aos maus.

AGRADECIMENTOS Eu gostaria de agradecer, pelos comentários às versões anteriores

deste artigo, a Julian Savulescu, David Wasserman, Matthew Liao, Ingmar Persson, Allen Buchanan, Rebecca Roache, Roger Crisp, aos dois revisores anônimos do Journal of Applied Philosophy e às audiências nas universidades de Otago, Oxford e na Hong Kong Baptist.

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APERFEIÇOAMENTO (ENHANCEMENT) MORAL: CONSIDERAÇÕES ÉTICAS

Anselmo Carvalho de Oliveira1

BIOÉTICA E APERFEIÇOAMENTO Os avanços nas ciências da vida associados ao desenvolvimento de

novas tecnologias criaram importantes problemas morais e políticos. As biociências construíram uma nova e convincente explicação sobre a origem e a evolução do Homo Sapiens. As biotecnologias desenvolveram um conjunto de produtos e processos que permitem, cada vez com maior eficiência, aos seres humanos interferir e manipular a constituição estrutural biológica do indivíduo, isto é, as características fisiológicas, químicas, físicas e biológicas do corpo com a finalidade de restaurar a saúde, mas que também abre caminho para aperfeiçoar sua constituição física, sua capacidade cognitiva e, até mesmo, seu comportamento moral. O aperfeiçoamento biotecnológico da espécie é visto por alguns dos seus defensores, como o meio científico para o homem se transformar em um super-homem. O Homo Sapiens não será mais o resultado da seleção natural, será o responsável pela própria evolução.

Embora a humanidade seja o produto da luta evolutiva para a sobrevivência, os seres humanos não são mais, como as outras formas de vida, os escravos do senhor gene egoísta, mas estão começando a adquirir o poder de determinar a natureza humana e o seu destino: “[...] seres humanos agora têm o poder não só para controlar, mas para criar novos genes por si mesmos. Por que não aproveitar esse poder? Por que não controlar o que foi deixado ao acaso no passado? […]” [Lee Silver]. Uma ciência que pode influenciar ou determinar a essência de uma pessoa é uma ciência que adquiriu poder sobre-humano (HENRY, 2010, p. 130-131).

Nesse contexto, a bioética depara-se com uma de suas questões

mais importantes: o aperfeiçoamento realizado através de meios biotecnológicos, que modifica a constituição estrutural humana, com o objetivo de favorecer a realização dos objetivos do indivíduo e/ou aumentar o

1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRN. Especialista em Bioética pela UFLA. Link para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8439304597935443 e-mail para contato: [email protected] Agradeço à professora Cinara Nahra pelos importantes comentários à versão preliminar deste texto e aos colegas das disciplinas Tópicos Especiais de Ética I, VII, VIII e IX pelas ricas discussões que tivemos sobre alguns temas aqui tratados.

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bem-estar geral, é permitido – ou obrigatório2 -, do ponto de vista ético? As respostas são controversas. Alguns autores defendem posições

abertamente permissivas (Trans-humanista ou pós-humanista): os meios tecnológicos necessários para o aperfeiçoamento devem ser desenvolvidos e quando estiverem disponíveis, os indivíduos poderão usá-los para se transformarem. Os bioconservadores, por outro lado, defendem uma franca oposição a qualquer tipo de intervenção biotecnológica que ultrapasse os objetivos terapêuticos.

Frente a tal debate, o presente artigo procura discutir alguns aspectos subjacentes ao aperfeiçoamento moral. Primeiro, apresenta uma concepção de homem que é o pano de fundo para a proposta trans-humanista. Segundo, apresenta a ideia de aperfeiçoamento do núcleo do comportamento moral baseado no altruísmo recíproco (Cf. PERSSON & SAVULESCU, 2008). E terceiro, discute alguns importantes argumentos contrários ao aperfeiçoamento.

O LUGAR DO HOMEM NA NATUREZA A tradição ocidental sempre postulou que existe uma diferença

ontológica entre os seres humanos e todos os outros seres vivos. As origens dessa tradição remontam à concepção aristotélica e à herança judaico-cristã. Aristóteles estabeleceu uma rígida classificação hierárquica entre todos os seres vivos do planeta: as plantas servem aos animais, os animais e escravos servem aos homens (indivíduos do sexo masculino, nascidos em Atenas e proprietários livres), pois plantas, animais e escravos são incapazes de conceberem princípios racionais e são submetidos às leis da natureza e da propriedade. Na concepção judaico-cristã, os homens foram criados “à imagem e semelhança de Deus” e receberam a alma imortal que está reservada apenas para os seres nascidos de pais humanos. Nessa lógica, o homem é obra do Criador e somente Ele pode transformá-lo ou destruí-lo. E os animais

2 Persson e Savulescu (2008) defendem a tese segundo a qual o aperfeiçoamento moral não deve ser fruto da escolha individual, mas deve ser um imperativo imposto a todos os seres humanos. “No mínimo, os perigos da melhoria cognitiva exigem um vigoroso programa de pesquisa sobre a compreensão dos fundamentos biológicos do comportamento moral. Como Hawking expressou: nosso futuro pode depender de nos tornarmos mais sábios e menos agressivos. Se melhorias morais seguras forem desenvolvidas, há fortes razões para acreditarmos que seu uso deveria ser obrigatório, como a educação ou o flúor na água, uma vez que aqueles que deveriam tê-las são os menos prováveis em estar inclinados a usá-las. De tal modo, seguramente, o reforço moral eficaz seria obrigatório” (PERSSON & SAVULESCU, 2008, p. 174). Não nos comprometemos neste texto com a tese forte da compulsoriedade do aperfeiçoamento cognitivo ou moral. A tese de Persson & Savulescu que justifica a compulsoriedade do aperfeiçoamento, no entanto, precisa ser analisada cuidadosamente, mas isto não será feito aqui.

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foram criados para servirem aos homens. Os animais são vistos como autômatos que recebem uma

programação determinista sem a qual não são capazes de realizar qualquer ação consciente, mesmo as mais simples. Estão presos aos impulsos irracionais inatos, à selvageria, à ferocidade e à bestialidade que são as características naturais em seu mundo regido pelas relações de força e cego para os valores morais que somente a razão é capaz de prescrever.

Os seres humanos, diferentemente, não pertencem ao mundo determinado dos animais, porque são ontologicamente diferentes e, por consequência, hierarquicamente superiores. Os homens possuem a razão que os capacitam a conhecer e escolher livremente o que desejam fazer. Isso permitiu a criação de leis e normas morais para regularem as ações humanas de modo a superar as desigualdades originadas pelas relações de força.

De fato, ao tornamo-nos animais racionais temos a impressão de que deixamos de ser animais. O nosso mundo é o da cultura que criamos, o qual, graças a nós, veio acrescentar-se ao mundo natural. Neste sentido, parece-nos que a humanidade se desenvolveu em oposição à Natureza, que conquistou a esta um novo espaço que é preciso continuar a proteger contra o fluxo sempre poderoso da animalidade e da ordem natural (KIRSCH, 1993, p. 12-13. Grifo nosso).

A definição do homem em termos de razão e cultura é uma

tentativa obsessiva de separar o homem dos animais, de expulsar-nos do mundo da animalidade e oferecer, ao menos, a possibilidade da liberdade e da vida possuir algum significado transcendental. A concepção antropocêntrico-hierárquica ainda é dominante na visão de mundo contemporânea.

Mas com os desenvolvimentos recentes da teoria da seleção natural com os trabalhos de Charles Darwin e com as contribuições posteriores de George Willians, William D. Hamilton e Robert Trivers, fortes argumentos contrários à concepção tradicional foram apresentados. Os seres humanos compartilham grande parte de seus genes com os outros primatas, nada mais somos do que apenas descendentes desses primatas. Segundo Trivers (apud, DAWKINS, 1989, p. 15): “o chimpanzé e os seres humanos compartilham cerca de 99,5 por cento de sua história evolutiva [isto é, de seus genes], no entanto a maioria dos pensadores humanos considera o chipanzé uma excentricidade malformada e irrelevante, enquanto se veem a si próprios como degraus para o Todo-Poderoso. Para um evolucionista isto não pode ocorrer”. A nova concepção do homem baseada na teoria da seleção natural destronou o homem e o reduziu a um simples animal, ou melhor, “a uma máquina de sobrevivência”3.

3 “Ditando a maneira pela qual as máquinas de sobrevivência e seus sistemas nervosos são

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Sabe-se, hoje, que a seleção natural não acontece segundo uma necessidade teleológica inerente ao curso da natureza. A teoria não implica nenhum processo progressivo cuja direção é orientada para o crescimento do valor entre os seres vivos (Cf. RUSE, 1993, p. 39; e DAWKINS, 2009, p. 21). É um processo de mutações aleatórias, de sobrevivência imediata dos genes e de reprodução dos genes mais bem equipados para sobreviverem no meio em que vivem. Os filhos que herdarem esses genes têm mais probabilidades de sobreviverem e de reproduzirem-se e assim sucessivamente. A lógica desse processo não é colocada em prática através de cálculos conscientes. Os processos biológicos que explicam as razões para o comportamento social e moral que favorecem a sobrevivência atuam sem que qualquer envolvido na ação tenha consciência deles.

Nenhuma pessoa é determinada incondicionalmente pela sua genética a agir social ou moralmente de um único modo: os genes apenas predispõem uma pessoa. A seleção natural explica as predisposições, mais fortes ou mais fracas, que estão nas origens do comportamento humano. Segundo Wright (2006, p. 159), “o respeito a qualquer regra moral tem uma base inata. Apenas o conteúdo específico dos códigos morais não é inato”4.

Os genes são os elementos fundamentais que originam o comportamento social e moral que está inscritos no nível mais elementar de alguns seres vivos. O altruísmo, o senso de justiça, a compaixão, a culpa, a simpatia, a antipatia, a confiança, a desconfiança e todos os sentimentos morais que fazem os seres humanos sentirem-se especiais possuem, muito provavelmente, uma base genética inata5. Segundo Persson & Savulescu (2008,

construídos, os genes exercem o poder final sobre o comportamento. Mas as decisões a cada instante sobre o que fazer em seguida são assumidas pelo sistema nervoso. Os genes são os fazedores primários dos planos de ação, os cérebros são os executantes. Mas à medida que os cérebros tornam-se mais altamente evoluídos assumimos cada vez mais as decisões reais sobre os planos de ação, usando, ao fazê-lo, truques tais como a aprendizagem e a simulação. A conclusão lógica desta tendência, ainda não atingida em qualquer espécie, seria os genes darem à máquina de sobrevivência uma única instrução global sobre o programa de ação: o que achar melhor para nos manter vivos” (DAWKINS, 1989, p. 83). 4 Não se pode justificar, de um ponto de vista moral, os comportamentos através de suas explicações biológicas. Negar uma teleologia à teoria da seleção natural é negar a possibilidade de justificar concepções morais particulares como parte inerente de um progresso evolutivo. As explicações biológicas não devem ser interpretadas como incompatíveis com os motivos e justificações elaborados conscientemente para validar as normas morais em cada sociedade. Explicações biológicas e justificações racionais aplicam-se em níveis diferentes (Cf. SINGER, 2006a, p. 196). 5 Uma base genética inata significa que o conjunto total das possibilidades humanas é herdado por seleção natural e não que determinado tipo de característica se desenvolverá em todos os ambientes. O que existe são probabilidades mensuráveis de que uma característica específica se desenvolva em um ambiente específico, quando o indivíduo

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p. 168), “nós compartilhamos esse núcleo [moral] com os animais não-humanos a partir dos quais nós evoluímos. Assim, nossas disposições morais são baseadas em nossa biologia”. Os sentimentos morais são adaptações favorecidas no processo de seleção natural pelas vantagens para a sobrevivência que criam. São os responsáveis por regularem as ações morais.

Com os avanços das biociências e das novas tecnologias, muitos cientistas e filósofos acreditam que será possível para o homem identificar e modificar a sua constituição estrutural biológica e dessa forma melhorar suas capacidades cognitivas e, até mesmo, seu comportamento moral. Abre-se, ao homem, a possibilidade de alterar o curso da natureza de luta pela sobrevivência que foi desencadeada pela seleção natural. O homem de objeto da seleção natural está se transformando em seu criador. Os sonhos de transformar, dominar e aperfeiçoar dos seres humanos para libertarem-se e transcenderem as suas limitações estão tornando-se cientificamente mais tangíveis.

A biotecnologia está criando um campo de intervenção inédito e abrangente. É, também, um meio de ampliar o poder dos seres humanos sobre o seu habitat, sobre os outros seres humanos e sobre a vida de cada indivíduo de modo a obter melhores consequências efetivamente, sejam quais forem seus objetivos. Entretanto, importantes questões morais emergem, não para avaliar o que podemos fazer, lugar privilegiado do poder das tecnociências, mas o que devemos fazer enquanto pessoas que vivemos em comunidade e em um mundo que possui recursos finitos. Duas questões subjacentes à concepção de aperfeiçoamento precisam ser discutidas: qual a concepção de comportamento moral? E qual a base biológica do comportamento moral?

O NÚCLEO DO COMPORTAMENTO MORAL Existe uma tensão entre o comportamento egoísta e o

comportamento moral. Egoisticamente, o homem busca realizar seus interesses próprios, que são interesses prudencialmente bons quando o fim é melhorar o bem-estar e a qualidade de vida dele. Mas realizar os interesses e buscar os fins particulares pode prejudicar ou impedir que outros indivíduos também venham a alcançar seus próprios fins prudencialmente bons. O egoísta, assim, é aquele que age para promover as consequências que sejam prudencialmente boas para si mesmo, mesmo que as consequências para os outros sejam prejudiciais. Atos com base no interesse próprio, para serem moralmente defensáveis, devem ser compatíveis com princípios morais amplos, não se pode apenas justificá-los pelos seus benefícios para o agente da

possuir determinado gene ou invés do seu alelo.

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ação. O interesse próprio deve ser limitado, moralmente, pelo prejuízo que possa vir a causar nos interesses dos outros. De modo que os fins prudencialmente bons de cada indivíduo devem harmonizar com os fins dos outros para se realizarem co-satisfatoriamente. A moral, então, deve promover o que é bom para todos de um ponto de vista imparcial: “bom para todos em geral, ou moralmente bom” (PERSSON & SAVULESCU, 2008, p. 162).

O núcleo do comportamento moral consiste no altruísmo e no senso de justiça (PERSSON & SAVULESCU, 2008). O altruísmo6 é o comportamento de um indivíduo no qual ele sofre desvantagens em custos imediatos para a sua sobrevivência e “adequação adaptativa” para beneficiar, favorecer os interesses dos outros. Leva ao sacrifício do interesse próprio com o objetivo de obter maiores benefícios para os filhos, outros parentes e, em certa medida, para grupos maiores. O senso de justiça permite avaliar cada situação de cooperação e reciprocidade ocorrida no cotidiano em relação ao gasto do outro indivíduo. E a base mais elementar a partir da qual o altruísmo e o senso de justiça emergem é a disposição biológica para o comportamento chamado de olho-por-olho (tit-for-tat). Mas como é explicada a origem e o desenvolvimento do núcleo do comportamento moral?

O comportamento altruísta foi a forma que evoluímos. Provavelmente existe um gene ou conjunto de genes7 responsáveis por esse comportamento que foram favorecidos no processo de seleção natural, porque o altruísmo é uma estratégia altamente eficiente de uso do meio ambiente, incluído os outros membros da própria espécie. Os estudos sobre as espécies sociais demonstram as vantagens do comportamento altruístico para aumentar as chances de sobrevivência, de reprodução e de adequação global (Cf. KIRSCH,1993, p. 17).

A concepção do altruísmo recíproco como estratégia estável de sobrevivência e do ótimo desenvolvimento dessa estratégia em populações passou a ser compreendida com a aplicação da matemática e da teoria dos jogos para entender o comportamento em espécies sociais. Um programa de pesquisa foi proposto para investigar como, em tese, aconteceria esse desenvolvimento da estratégia altruísta em uma população. Esse programa de pesquisa seguiu alguns passos simples: a) o objetivo do jogo é maximizar a

6 A definição do altruísmo em termos biológicos refere-se ao comportamento e não às motivações subjacentes à ação. Segundo Dawkins (1989, p 24), “uma entidade [...] é dita altruísta se ela se comportar de maneira a aumentar o bem-estar de outra entidade semelhante, às suas próprias custas. O comportamento egoísta tem exatamente o efeito contrário. “Bem-estar” é definido como “a possibilidade de sobrevivência”, mesmo se o efeito sobre a expectativa real de vida e de morte for tão pequena que pareça desprezível”. 7 Segundo Dawkins (1989, p. 84), “um gene para o comportamento altruísta significa qualquer gene que influencie o desenvolvimento de sistemas nervosos de tal maneira que faça com que seja mais provável estes se comportarem altruisticamente”.

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proliferação genética; b) o jogo deveria simular o ambiente ancestral, parecido ao de uma sociedade de caçadores-coletores; c) encontrar a estratégia de sobrevivência e reprodução mais estável; d) identificar e calcular os sentimentos que levariam a adoção dessa estratégia. Esses sentimentos, em teoria, são determinados geneticamente; e) os genes responsáveis por esses sentimentos, estatisticamente, devem ter evoluído através das incontáveis gerações (Cf. WRIGHT, 2006, p. 166-167).

Para encontrar a estratégia de sobrevivência e reprodução ideal foi utilizado um clássico jogo sobre cooperação chamado dilema do prisioneiro. Imaginem o seguinte cenário: duas pessoas estão mantidas presas, em salas separadas, para interrogatório. É proposta uma difícil escolha para cada uma delas: cooperar ou não cooperar com o indivíduo da outra sala. Os interrogadores não dispõem de nenhuma prova para condená-los à prisão, a não ser que um deles confesse o crime que supostamente cometeram. O interrogador pressiona, isoladamente, cada um dos prisioneiros a testemunhar incriminando o outro em troca de benéficos. As opções dos prisioneiros são: a) Se A incriminar B e B não incriminar A, B será condenado a dez anos de prisão. E A é recompensado com a liberdade imediata. b) Mas, por outro lado, se B incriminar A e A não o fizer em relação a B, é A quem passará os dez anos preso e B será recompensado com a liberdade. c) Se A e B incriminarem-se mutuamente, ambos serão presos durante oito anos. d) Se nenhum dos dois incriminar o outro não haverá como acusá-los em um processo com penas maiores, mas ainda ficarão presos por um ano por crimes menores.

Para um egoísta - que avalia as alternativas com vistas nos melhores resultados para si -, a solução que traria maiores benéficos imediatos é incriminar o prisioneiro da outra sala. Se A e B se incriminarem mutuamente, A passará oito anos preso, menos do que os dez que passará se B o incriminar sem que ele faça o mesmo. E se B não incriminá-lo, A também estaria melhor, pois A sairá livre imediatamente. Isso é melhor do que A e B não se incriminarem, porque então ambos ficarão presos por um ano. Entretanto, essa é a melhor estratégia para resolver um dilema de cooperação?

O modelo do dilema do prisioneiro precisa ser melhorado em relação a duas assimetrias importantes em comparação com a realidade. O modelo representa uma situação que requer cooperação uma única vez e que o comprometimento entre os prisioneiros deve acontecer simultaneamente. Esses elementos são diferentes nas situações reais: nos grupos humanos a cooperação acontece várias vezes ao longo da vida; e a retribuição dessa cooperação acontece em intervalos de tempo não determinados. Essas assimetrias entre modelo e realidade são minimizadas quando o jogo tradicional é modificado para o dilema do prisioneiro iterado. Nesse jogo, o confronto entre os mesmos jogadores acontece em uma sequência temporal longa, sendo que na rodada seguinte é possível ao jogador “lembrar” da

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resposta do adversário e basear-se nela para decidir qual será a sua ação. Existem inúmeras estratégias que podem ser adotadas como

solução para o dilema do prisioneiro iterado. As duas estratégias mais simples são a do explorador e a do parvo. O explorador sempre se beneficia do outro e nunca coopera. O parvo, ao contrário, sempre coopera independentemente de ser prejudicado ao fazê-lo. Estratégias mais complexas tomam decisões condicionais em que a resposta do adversário influencia a decisão sobre qual curso de ação escolher. O aproveitador comporta-se sempre como um explorador até que alguém retalie, então, ele desiste. O olho-por-olho sempre começa a disputa cooperando. Se o adversário cooperar, ele continua cooperando. Se o adversário explorá-lo, ele retaliará na próxima jogada não cooperando até que o adversário coopere novamente. O retaliador-testator age como o olho-por-olho na maior parte do tempo, mas algumas vezes, aleatoriamente, adota a posição do explorador. Se o adversário não retaliar, permanece explorando-o. Se o adversário retaliar volta a ter um comportamento de cooperação. E se for explorado primeiro, retaliará na jogada seguinte. Existem outras estratégias muito complicadas como, por exemplo, cooperar durante um número de jogos e depois explorar, entre outras.

Para avaliar qual entre as várias estratégias é a melhor solução para o problema, Axelrod (1984) propôs um campeonato no qual especialistas no assunto submeteram programas que deveriam decidir, a cada confronto, se iriam cooperar ou não com o outro programa. O mundo computadorizado simulava a realidade do habitat ancestral com a capacidade de adaptação e depois de cada resposta os programas eram capazes de ajustarem seu comportamento de acordo com o comportamento do adversário na jogada anterior. Após cada programa ser confrontado duzentas vezes com o mesmo adversário e todos terem se enfrentado seria declarado vencedor o programa que passasse menos anos preso. Em um segundo campeonato, cada programa foi representado na medida do seu êxito no primeiro teste. O programa que obteve os melhores resultados nos dois campeonatos foi o desenvolvido por Anatol Rapoport e seguia duas regras muito simples: 1) na primeira jogada, coopere; 2) nas jogadas seguintes, faça o mesmo que o outro programa. Essa estratégia é conhecida como olho-por-olho (tit-for-tat).

O sucesso da estratégia em termos de sobrevivência e aumento do número de indivíduos que a adotam é explicado pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, é uma estratégia “simpática”, isto é, nunca é a primeira a não cooperar. Isso favorece outras estratégias simpáticas a prosperarem a partir da cooperação inicial. Em segundo lugar, a estratégia não se fecha em um círculo vicioso de exploração mútua no qual cada um dos jogadores sairia muito prejudicado. Em terceiro lugar, quando existem jogadores com estratégias diferentes no grupo, os que cooperam continuam a prosperar, mas os

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exploradores são punidos, o que evita os grandes prejuízos arcados por quem é explorado e também faz com que aqueles que exploram não se beneficiem. Em quarto lugar, sua simplicidade favorece o aparecimento dessa estratégia estável muito rápido em uma população a partir da qual começa a prosperar.

Os resultados obtidos por Axelrod mostram que a estratégia egoísta de privilegiar os interesses próprios em curto prazo pode levar a grandes vantagens imediatas; mas para a perspectiva de sobrevivência e de reprodução, em longo prazo, o olho-por-olho consegue obter resultados significativamente melhores. A estratégia do olho-por-olho é uma estratégia evolutiva estável, isto é, ao se tornar predominante em uma população não poderá ser invadida por outra estratégia, os indivíduos que adotarem outro comportamento serão punidos na luta pela sobrevivência8.

O altruísmo recíproco, como outras estratégias “simpáticas”, prospera rapidamente nas circunstâncias apropriadas. É preciso que exista apenas uma pequena porcentagem de indivíduos que adotem o olho-por-olho em uma população para que esse tipo de comportamento cresça e torne-se dominante em longo prazo9. Ao se tornar predominante, mesmo que

8 Segundo Dawkins (1989, p. 94-95), “uma estratégia evolutivamente estável ou EEE é definida como uma estratégia que se adotada pela maioria dos membros de uma população, não poderá ser sobrepujada por uma estratégia alternativa. Esta é uma ideia sutil e importante. Outra maneira de expressá-la é dizer que a melhor estratégia para um indivíduo depende do que a maioria da população está fazendo. Como o resto da população consiste de indivíduos, cada um tentando maximizar o seu próprio sucesso, a única estratégia que persistirá será aquela que depois de desenvolvida não possa ser aperfeiçoada por nenhum indivíduo anômalo. Após uma mudança ambiental grande poderá haver um período curto de instabilidade evolutiva, talvez até mesmo uma oscilação na população. Mas uma vez que a EEE é alcançada ela se manterá: a seleção punirá os desvios”. 9 Como surgiu o pequeno grupo de primeiros indivíduos que adotaram a estratégia olho-por-olho necessários para iniciar a “espiral virtuosa” do altruísmo? Uma hipótese aceita para explicar o sucesso dos primeiros altruístas em uma população que era dominada por exploradores é a seleção de parentesco. Segundo Dawkins (1989, p. 119), “a seleção de parentesco é responsável pelo altruísmo dentro da família; quanto mais próximo o parentesco, mais forte a seleção.” Um indivíduo determina o investimento que está disposto a fazer para favorecer a sobrevivência e reprodução de outro indivíduo em função da probabilidade de compartilhar seus genes com este indivíduo. A probabilidade é estimada em relação à proximidade de parentesco que existe entre os vários indivíduos em um grupo (para uma explicação das probabilidades na seleção de parentesco ver DAWKINS, 1989, p. 115-123, RUSE, 1983, p. 54-58). Segundo Ruse (1983, p. 54), “é de nosso interesse reprodutivo fazer com que esses indivíduos com quem compartilhamos nossos genes possam se reproduzir, pois assim estarão fazendo cópias de genes que temos.” Com a rede de proteção e cooperação que existe entre os parentes próximos favorece a sobrevivência e reprodução destes parentes, que compartilham os mesmo genes, assim, a seleção de parentesco pode ter favorecido no “fundo”, os genes responsáveis pelo altruísmo. Com o tempo, a estratégia altruísta passou a ser predominante e foi capaz de romper a proximidade gênica. Entretanto, existe uma razão evolutiva para explicar o

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inúmeros exploradores passem a existir nessa população, eles serão punidos e não conseguirão prosperar e subverter o predomínio do comportamento olho-por-olho. Para Axelrod (1984, p. 99), portanto, “o mecanismo da evolução social possui uma catraca”.

Entre as outras estratégias, o parvo não é estável, pois uma população na qual esse comportamento é dominante seria invadida por exploradores e aproveitadores. O parvo se sai bem em uma população de olho-por-olho ao cooperarem sempre. Mas se o número de parvos for muito alto, os exploradores e aproveitadores prosperaram com a vantagem de terem sempre quem explorar sem sofrerem qualquer retaliação. O aproveitador, também, não é estável, pois a população seria invadida por exploradores. O explorador, igualmente, não é estável, pois a população seria invadida por parvos e aproveitadores. Uma população no qual os exploradores predominam todos se prejudicam mutuamente e os custos de sobrevivência e reprodução se tornam muito altos.

Um modelo ideal de comportamento em sociedade que aumenta e regula a cooperação, o bem-estar e a capacidade de sobrevivência e reprodução dos indivíduos é o olho-por-olho, isto é, as ações em benefício dos outros devem ser retribuídas com gratidão e benefícios proporcionais. E para as ações prejudiciais, a resposta adequada é a retaliação proporcional.

Se todos os animais bons deixarem de cooperar mal detectarem uma ausência de cooperação do outro lado – por outras palavras, mal se aperceberem de estar perante um vigarista, - os animais maus terão menos oportunidades de explorar papalvos [parvos]. Assim, o pensamento [...] “Não quero ser o único papalvo” – é saudável. Ser papalvo é mau, não apenas para si próprio, mas para todos. Felizmente, isto não significa que precisamos de ser vigaristas para colher benefícios. O elemento que salva a situação é que, se uma proporção de animais de um grupo se comporta de uma forma Pagar na Mesma Moeda [tit-for-tat], conseguirão manter os vigaristas afastados. Essa sociedade pode já não ser o paraíso, pois o amor e a simpatia deixaram de poder ser praticados indiscriminadamente, mas ainda é muito melhor para todos do que

porquê de o altruísmo biológico ser limitado. O altruísmo não é indiscriminado, porque os riscos de ser explorado por indivíduos desconhecidos e que não possam sofrer retaliação no futuro é maior. O custo da exploração sofrida diminui as chances de sobrevivência e reprodução do explorado, o que poderia ter por consequência a não sobrevivência de genes para o altruísmo indiscriminado no “fundo” de genes. Entretanto, o altruísmo humano não se limita a concepção estreita da cooperação somente entre parentes. Cf. Singer (2011), para uma análise detalhada do altruísmo e do senso de justiça como o núcleo do comportamento moral e como a justificação da ética não pode ser reduzida às explicações biológicas do comportamento moral.

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a vida num grupo dominado por animais maus (SINGER, 2006a, p. 252).

Compreende-se, assim, o núcleo do comportamento moral.

Portanto, se o altruísmo recíproco e os sentimentos morais que permitem a regulação do “sistema altruístico”10 são o núcleo do comportamento moral, o aperfeiçoamento moral nada mais é do que melhorar e refinar esse sistema.

Supondo que as disposições do altruísmo e da justiça, cuja forma fundamental é o tit-for-tat, constituem o núcleo de nossa moralidade, o aperfeiçoamento moral consistirá no fortalecimento de nosso altruísmo tornando-nos justo ou justa, isto é, devidamente agradecido, irritado, agressivo, etc. Mais altruísmo é provável que inicie mais trocas tit-for-tat, embora altruísmo demais possa ser um obstáculo fazendo-nos dar a outra face quando o tit-for-tat requer retaliação. Muito pouca gratidão pode provocar raiva e agressão nos benfeitores, em vez de mais favores, muita raiva em resposta aos agressores pode desencadear uma escalada de violência ao invés de simplesmente a dissuasão da violência no futuro, e muito pouca raiva pode não ser suficiente para a dissuasão, o mesmo é verdade de pouco ou muito perdão. Assim, o altruísmo e as emoções tit-for-tat (tit-for-tat emotions) precisam ser devidamente sintonizados para serem maximamente úteis (PERSSON & SAVULESCU, 2008, p. 169. Grifos nossos.)

O aperfeiçoamento (enhancement) biotecnológico do comportamento

moral é, nessa perspectiva, a intervenção através de meios biotecnológicos que permite a um indivíduo melhorar quantitativa e/ou qualitativamente o seu “sistema altruístico” para melhorar as respostas adequadas às circunstâncias específicas11.

A viabilidade prática de alterar por meios biotecnológicos o núcleo 10 “Sobre o altruísmo recíproco humano, é mostrado que os detalhes do sistema psicológico que regula esse altruísmo pode ser explicada pelo modelo. Especificamente, amizade, antipatia, agressão moral, gratidão, simpatia, confiança, suspeita, confiabilidade, aspectos de culpa e algumas formas de desonestidade e hipocrisia podem ser explicados como adaptações importantes para regular o sistema altruísta (altruistic system).” (TRIVERS, 1971, p. 35) Trivers admite, entretanto, não existir ainda evidências empíricas diretas da evolução do altruísmo e das suas bases biológicas, mas considera que as evidências indiretas como a universalidade entre diferentes espécies e diferentes culturas humanas e a recorrência do altruísmo recíproco na vida cotidiana permitem supor que esse comportamento tenha sido um componente importante na seleção natural e que os sentimentos que o regulam possuem bases biológicas. 11 Assim entendido, o aperfeiçoamento moral não é aumentar a probabilidade de um indivíduo agir segundo algumas normas específicas legitimadas por uma sociedade ou concepção filosófica particular. A questão sobre o que é justificável de um ponto de vista ético precisa ser racionalmente decidida, mas não iremos discutir esse ponto aqui.

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biológico do comportamento moral dos seres humanos ainda é um sonho distante e precisa de inúmeras pesquisas para se tornar realidade. Em primeiro lugar, é preciso comprovar que o altruísmo é o resultado da seleção natural e quais as suas bases biológicas. As evidências empíricas, apesar de não serem totalmente conclusivas, mostram que as capacidades de raciocínio, de aprendizagem e do altruísmo recíproco, em formas rudimentares, já foram identificadas em alguns animais não-humanos, o que seria uma prova que esse comportamento é o resultado da seleção natural. Em segundo lugar, é preciso identificar especificamente quais são e como funcionam os mecanismos biológicos que regulam o “sistema altruístico” dos seres humanos, isto é, quais são as reações e como elas ocorrem no organismo de modo a produzirem sentimentos como a gratidão, a raiva, a simpatia, a antipatia, a confiança, a desconfiança entre outros. Existem pesquisas que já identificaram alguns dos mecanismos biológicos responsáveis pela raiva (DOUGLAS, 2008, p. 233), por exemplo, mas muitos estudos são necessários para estabelecer conclusões mais significativas. Em terceiro lugar, desenvolver os meios biotecnológicos capazes de interferirem nestes mecanismos biológicos responsáveis pelo altruísmo recíproco e modificá-los. Essas são questões que ainda precisam de muitos estudos empíricos.

As questões de ética, no entanto, em relação ao uso de meios biotecnológicos com o objetivo do aperfeiçoamento não estão restritas às possibilidades das intervenções técnicas que já existem de fato ou que podem vir a existir em curto prazo. As questões emergem dos desenvolvimentos técnicos da biotecnologia que são possíveis teoricamente, mesmo que na prática, hoje, eles sejam inviáveis. Além do mais, a ciência e a tecnologia avançam de maneira dramaticamente veloz e são capazes de superarem as previsões mais otimistas. O que não podemos é estar despreparados, do ponto de vista ético e normativo, para as possíveis aplicações e consequências da biotecnologia, mesmo que somente no plano teórico.

Não pretendo discutir, neste texto, as pesquisas empíricas e seus resultados sobre a base biológica do altruísmo. A questão que discutiremos é: se for possível tecnicamente, a modificação da constituição estrutural humana com o objetivo de melhorar as disposições de um indivíduo para o comportamento altruísta pode ser justificada do ponto de vista ético?

APERFEIÇOAMENTO MORAL Objeções em relação aos danos causados Existe uma série de argumentos contrários ao aperfeiçoamento. Um

primeiro grupo de objeção sustenta que os grandes problemas sobre o uso de meios biotecnológicos estão relacionados aos danos que podem causar nos

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usuários desses meios. Um segundo grupo de objeções aponta para os danos que o aperfeiçoamento pode causar aos outros.

As teses contrárias ao aperfeiçoamento, sem ser exaustivo, relacionadas aos danos causados ao próprio usuário são: a) Segurança: os riscos e os danos para aqueles que decidissem se submeter aos procedimentos técnicos para o aperfeiçoamento seriam muito grandes e, na maioria das vezes, irreversíveis. As perdas totais para o indivíduo não compensariam, assim, os benefícios. b) Liberdade de escolha: o aperfeiçoamento transformar-se-á rapidamente em uma necessidade em um mundo no qual as melhores posições sociais, a facilidade de acesso aos bons empregos e a excelência de desempenho estiverem condicionados pela importância e pelo impacto social daqueles que escolherem meios biotecnológicos para ajudá-los a alcançarem seus objetivos. Mesmo alguns governos poderiam criar programas de aperfeiçoamento compulsório para toda a população. Isso poderia criar tipos de coação indireta: a crença de que somente as pessoas aperfeiçoadas são capazes de realizarem adequadamente as tarefas ou que elas são as únicas a realizarem seus sonhos ou que elas possuem um comportamento moral mais adequado pressionaria indiretamente para que todos adotassem os meios biotecnológicos para tornarem-se melhores. E de coação direta: a exigência por parte de instituições públicas ou privadas para que seus funcionários fossem aperfeiçoados.

A igualdade de acesso é um argumento contrário ao aperfeiçoamento que está relacionado aos problemas sociais que podem ser originados pela prática: o acesso aos meios tecnológicos necessários para o aperfeiçoamento de um indivíduo estaria restritos a algumas pessoas privilegiadas em consequência da estrutura socioeconômica na qual vivemos. Os favorecidos, assim, tornar-se-iam ainda mais capazes e perpetuariam as desigualdades sociais (Cf. SINGER, 2002a).

Os argumentos relativos aos problemas de segurança, de liberdade de escolha e de igualdade de acesso aos meios são importantes e precisam ser considerados antes da liberação final de qualquer biotecnologia, mas elas não são objeções conclusivas a uma justificação ética do aperfeiçoamento, pois são dirigidas aos problemas de desenvolvimento das técnicas e aos problemas legais e políticos relacionados à prática. Esses problemas podem ser resolvidos através do aumento no número de pesquisas e da criação de políticas eficazes no controle da coerção e na distribuição eficaz e justa dos meios biotecnológicos.

Uma objeção consequencialista forte contra o aperfeiçoamento é a que aponta os grandes danos que podem ser provocados aos outros. Causar danos aos outros é um motivo suficiente para proibir o aperfeiçoamento.

A expansão do conhecimento científico e a melhora das capacidades cognitivas dos seres humanos podem aumentar significativamente

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o poder da ciência e da tecnologia, o que aumentaria, consequentemente, a sua capacidade de destruição. Isso se torna mais perigoso na medida em que também existirá um maior número de pessoas capazes cognitivamente de dominar esses processos e produtos e de usá-los para prejudicar um grande contingente de pessoas.

Persson & Savulescu (2010, p. 662-663), argumentam que a ciência e a tecnologia aumentam substancialmente os poderes de ação dos seres humanos, porque a expansão do conhecimento permite que um maior número de pessoas tenha acesso às armas de destruição em massa. E se cada vez mais é maior o número de pessoas que possuem acesso à tecnologia para a destruição de um número cada vez maior de seres humanos basta que poucas pessoas ou até mesmo um único indivíduo seja maléfico ou perturbado para usar essa tecnologia que poderá causar um nível de destruição e de mortes muito grande, portanto o crescimento desse tipo de conhecimento é “instrumentalmente ruim” para os seres humanos de modo geral.

O argumento que Persson & Savulescu (2008 e 2010) desenvolvem mostra uma precaução exacerbada em relação ao aperfeiçoamento cognitivo. Os autores reconhecem que o aperfeiçoamento moral ainda é um sonho muito distante e até que ele se transforme em realidade não se deve permitir o aperfeiçoamento cognitivo, mesmo que esse já esteja disponível. Os argumentos e exemplos que utilizam para corroborar a tese de que catástrofes são eminentes com o progresso tecnocientífico parecem, se levados às suas últimas consequências, sugerir que os avanços no conhecimento alcançados através dos meios tradicionais (como a educação, por exemplo) deveriam, também, ser proibidos ou, pelo menos, avançarem lentamente, pois já colocam em risco toda a humanidade. Assim, o aperfeiçoamento através de meios biotecnológicos somente aumentaria, em certa medida, as probabilidades de que a extinção possa vir a ocorrer.

Entretanto, o próprio desenvolvimento dos meios necessários para o aperfeiçoamento biotecnológico do comportamento moral depende do avanço da ciência e da tecnologia. O aperfeiçoamento cognitivo, também, seria capaz de acelerar a descoberta dos meios para erradicar doenças que causam milhões de mortes e prevenir e evitar grandes danos a terceiros. Para Harris (2010), não se deve proibir o aperfeiçoamento cognitivo, mas incentivá-lo, afinal esse pode ser a única esperança real de salvar vidas.

Mas é claro que a melhoria cognitiva é bem calculada, também, para acelerar os tipos de avanços que podem, fazem e vão salvar vidas. Teríamos que estar muito certos da probabilidade dos seus efeitos negativos para ser justificado ignorar os positivos. Minha própria leitura do saldo aqui é bastante diferente. Ciência, inovação e produção de conhecimento, em especial a educação, acredito que são a nossa principal esperança de encontrar soluções para as

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prováveis fontes mais ameaçadores de destruição em massa e são, além disso, a nossa única forma comprovada de aperfeiçoamento moral até a data (e têm-se revelado muito eficazes). [...] Nossa agenda é rejeitar a ideia de colocar a melhoria cognitiva em espera até que o aperfeiçoamento moral esteja disponível para contê-la; pelo contrário, devemos abraçar formas confiáveis de melhoria cognitiva na expectativa e esperança razoável de que elas são nossa melhor perspectiva de autodefesa, incluindo qualquer elemento de autodefesa que possa, eventualmente, resultar em aperfeiçoamento moral. Na verdade, pode-se esperar razoavelmente que a melhoria cognitiva reduza a idiotice, mesmo da variedade comum ou vilã! (HARRIS, 2010, p. 110)

A proibição do aperfeiçoamento cognitivo parece contraproducente

para os seres humanos que, historicamente, dependem dos avanços tecnocientíficos para aumentar o bem-estar e melhorar a qualidade de vida da população. O problema é que o próprio processo científico de descoberta de meios benéficos é o mesmo que origina os meios potencialmente fatais para a espécie. E não possuímos uma equação capaz de resolver definitivamente o equilíbrio entre as consequências boas e ruins dos avanços tecnológicos. No contexto de incertezas sobre a tecnologia e seus efeitos, é importante que qualquer avanço tecnocientífico seja normatizado pelos meios jurídicos e políticos de que dispõe as sociedades contemporâneas para minimizar possíveis danos. No caso da biotecnologia é de suma seriedade a criação de uma nova e rigorosa regulamentação política, institucional e técnica em relação às pesquisas e aos produtos da biotecnologia conjunto com a criação de novas instituições preparadas técnica e juridicamente para investigar e punir o descumprimento desses regulamentos (Cf. FUKUYAMA , 2003, p. 190).

A objeção contra os danos aos outros, entretanto, não parece possuir força contra um dos tipos de aperfeiçoamento: o moral. Mesmo uma concepção mínima do comportamento moral deve considerar que as pessoas que agem moralmente são as que causam menos danos aos outros (Cf. DOUGLAS, 2008; PERSSON & SAVULESCU, 2008). E as pessoas que agem moralmente são preferíveis em uma sociedade às pessoas que se comportam de forma moralmente incorreta (SERENA, 2010, p. 47). O aperfeiçoamento moral deve aumentar as probabilidades do comportamento altruísta e da cooperação entre os indivíduos. E, por outro lado, não pode provocar prejuízos ou a destruição dos outros. Assim, poderá ser a solução para evitar os perigos do uso da tecnologia que provavelmente será desenvolvida como consequência do aperfeiçoamento cognitivo.

As objeções consequencialistas, assim parecem, não são suficientes para justificarem a proibição definitiva do aperfeiçoamento moral. Ao se eliminar as possibilidades de ocorrerem consequências ruins, seja através de controle das técnicas, das políticas de proteção e acesso, seja através do melhoramento

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moral, as proibições também são eliminadas. Objeção à manipulação da “essência” humana Uma das objeções mais recorrentes contra o aperfeiçoamento não

está centrada nos danos provocados aos outros, mas é uma objeção contra todos os tipos de modificação biotecnológica da constituição humana para aperfeiçoá-la. Argumenta-se que existe uma “essência humana” que é, por princípio, indisponível à manipulação por meio da biotecnologia. A “essência” é a condição necessária da existência da espécie, da sociedade e o fundamento último da moralidade. A dignidade, a igualdade e os direitos humanos estão condicionados à posse dessa “essência” e à pertença do indivíduo à espécie Homo Sapiens. A manipulação biotecnológica é ruim, porque alteraria essa “essência”.

As intervenções biotecnológicas na “essência humana” cujos objetivos forem além da terapia e da “lógica da cura” devem, portanto, ser proibidas na esfera jurídica e ética, porque a mudança pode aniquilar a dignidade e a igualdade entre os seres humanos a ponto de impedir as representações do direito e da moral, que são as estruturas do modo de vida específico da humanidade.

Subjacente a esta ideia de igualdade de direitos está a crença de que nós todos possuímos uma essência humana [human essence] que ofusca as diferenças manifestas de cor de pele, beleza e até mesmo inteligência. Essa essência [essence] e a visão de que os indivíduos têm valor inerente está no cerne do liberalismo político. Mas a modificação dessa essência é a essência do projeto trans-humanista (FUKUYAMA, 2004).

Esse argumento é sustentado por quatro pressupostos: 1) que existe uma “essência” única que é compartilhada por todos os membros da espécie Homo Sapiens; 2) que somente os indivíduos que possuem a “essência” possuem dignidade e direitos iguais: são membros da comunidade moral; 3) a “essência” é indisponível à manipulação (biotecnológica) pelo próprio homem; 4) o aperfeiçoamento pretende transformar essa “essência”12. 12 Em outro texto, Fukuyama desenvolve suas preocupações em relação às biotecnologias: “Trata-se antes de um medo de que, no final das contas, ela nos faça de algum modo perder nossa humanidade – isto é, alguma qualidade essencial que sempre sustentou nosso senso do que somos e de para onde estamos indo, apesar de todas as mudanças evidentes que ocorreram na condição humana no curso da história” (2003, p. 111) e prossegue “o que está em jogo em última análise com a biotecnologia não é apenas um cálculo utilitário de custo-benefício relativo a futuras tecnologias médica, mas a própria fundamentação do senso moral humano, que tem sido uma constante desde quando houve seres humanos” (2003, p. 112). Mas a preocupação de fundo de Fukuyama tem um viés político bastante

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A tese essencialista parece comprometer os seus defensores com um conservadorismo reacionário ao defenderem que os seres humanos se afirmam somente na “dependência social” e “vulnerabilidade física” e que não devemos modificar radicalmente essas duas condições, mesmo se for possível, porque seria uma desumanização dos seres humanos. Leva, também, a um reducionismo quando identifica a dignidade da pessoa à posse de características biologicas que determinam a espécie.

Defensores do aperfeiçoamento, como Nick Bostrom, criticam duramente os pressupostos da tese essencialista defendida por alguns bioconservadores.

Para Bostrom (2004), a existência de uma “essência humana” única que cada indivíduo da espécie possui é questionada a partir das evidencias que demonstram que o “fundo” genético compartilhado pelo Homo Sapiens está em constante fluxo e não pode ser considerado imutável. Os estudos de etologia, também, vêm acumulando evidências de como a história evolutiva e os comportamentos sociais mais básicos são compartilhados entre os seres humanos e alguns grandes primatas.

A única forma plausível de fundamentar o status moral dos seres humanos na ideia de “essência” seria definir “essência” de maneira abrangente como “possuir a capacidade de agência moral”. Porém, se “essência” for a capacidade de agência moral, o aperfeiçoamento não a eliminaria, mas, ao contrário, o tipo de aperfeiçoamento proposto por Persson & Savulescu (2008), isto é, refinar o “sistema altruístico” para melhorar o comportamento adequado em cada circunstância, pretende ajustar devidamente a capacidade de agência moral.

Para Bostrom (2005), também, não devemos aceitar que a condição natural seja um critério geral do bem. A vulnerabilidade física e a dependência social não devem ser consideradas como condição necessária da existência humana que não podem ser modificadas radicalmente. As deficiências físicas e cognitivas, a fome, as doenças, o racismo, a violência, o envelhecimento, o sofrimento desnecessário etc. são condições nas quais milhões de indivíduos vivem, mas que devem ser recusadas como boas. Os “horrores da natureza” foram sabiamente recusados ao longo da história pelos seres humanos que buscaram meios para superarem os limites impostos pela natureza e

conservador: a biotecnologia pode mudar a sociedade liberal ideal, de modelo americano, de forma tão radical que ela sucumbiria: “Esses desenvolvimentos serão enormemente controversos porque porão em xeque noções afetuosamente cultivadas de igualdade humana e da faculdade de escolha moral do homem; eles darão às sociedades novas técnicas para o controle do comportamento de seus cidadãos; mudarão nossa compreensão da personalidade e da identidade humanas; derrubarão hierarquias sociais existentes e afetarão o ritmo do progresso intelectual, material e político; e afetarão a natureza da política global” (2003, p. 94. Os grifos são nossos).

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melhorarem as condições nas quais viviam. Métodos tradicionais de aperfeiçoamento como a educação, a dieta e a ginástica são amplamente aceitos e promovidos com essa finalidade.

O problema parece ser, então, que o alcance e as formas de transformação promovida pela biotecnologia seriam tão amplos que levariam à degradação da espécie, a uma desumanização do humano. A biotecnologia criaria indivíduos com comportamento condicionado, debilitados cognitivamente, sem liberdade e autonomia, características dignificantes dos seres humanos. Esse cenário pessimista é ordinariamente construído a partir da referência a um romance de ficção distópico, Admirável Mundo Novo, e não possui suporte nos resultados, de fato, alcançados pela tecnologia. E um cenário degradante como esse não é uma necessidade ontologica inerente ao desenvolvimento tecnocientífico. Os personagens do romance de Huxley não são exemplos de indivíduos aperfeiçoados, mas do uso totalitário da tecnologia e da engenharia social para prejudicar deliberadamente as capacidades intelectuais e a liberdade dos indivíduos com o objetivo de se construir uma “comunidade” com “estabilidade” na sua estrutura econômica e social. É um retrato de estado totalitário que usa a tecnologia para controlar seus cidadãos. O mundo de Huxley, porém, é a antítese do que propõem os defensores do aperfeiçoamento.

Em contraste com os bioconservadores, os defensores do aperfeiçoamento, não veem a dignidade dos indivíduos que tiverem suas capacidades cognitivas ou comportamento moral alterados pela biotecnologia como uma ameaça à dignidade dos seres humanos não alterados, mas como compatíveis.

A dignidade e a igualdade não devem ser condicionadas à posse de uma “essência” compartilhada pelos indivíduos de uma espécie, seja ela qual for ou pela posse de uma determinada característica biológica inata e imutável. A diversidade, de fato, entre os seres humanos é tão grande e está relacionada a tantas características que a dignidade e a igualdade não podem ser condicionadas a posse de uma característica biologica deteminada. Parece não existir qualquer característica moralmente relevante que todos os seres humanos possuam igualmente (Cf. SINGER, 2006b, p. 28). Escolher assim, uma característica biológica qualquer parece arbitrário e exclui da comunidade moral quem não a possuir. Na antiguidade, a igualdade era baseada no sexo; na modernidade, na cor da pele. Para Bostrom (2004):

Apenas os mais insensíveis negariam a questão do bem-estar de alguns animais não-humanos, pelo menos, em algum grau. Se um visitante do espaço sideral chegasse à nossa porta e ele tivesse consciência e agência moral como nós seres humanos, certamente não negaríamos a sua condição moral ou seu valor intrínseco só porque ele não teria uma indefinida “essência humana”. Da mesma

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forma, se algumas pessoas modificassem a sua própria biologia de uma forma qualquer que alteraria o que Fukuyama julga ser a sua “essência”, será que realmente queremos privá-los de sua posição moral e dos seus direitos legais?

O que as pessoas são não depende exclusivamente de sua configuração genética, mas também do contexto tecnológico e social no qual vivem. Nesse sentido, a condição humana é dinâmica, aperfeiçoável e passível de ser modelada pelo próprio homem.

A condição na qual vivem os seres humanos hoje é radicalmente diferente daquela no qual viviam os seus ancestrais coletores-caçadores. Lemos, escrevemos, sabemos matemática avançada, compramos em supermercados e fest-foods, vivemos mais, a densidade populacional é imensamente maior, a tecnologia é usada no cotidiano etc. Assim, aos olhos dos nossos antepassados provavelmente já seríamos pós-humanos. Mas isso não nos tornou menos dignos ou desumanizados, porque a dignidade “consiste no que somos e no que temos potência para nos tornar; não no nosso pedigree ou na nossa origem causal” (BOSTROM, 2005, p. 213).

Devemos, portanto, não limitar, mas expandir os limites da comunidade de indivíduos ao qual é conferido status moral para, no futuro, incluir os seres que forem modificados biotecnologicamente, como já aconteceu no passado com a inclusão das mulheres e negros. Os pós-humanos, então, não serão menos dignos e excluídos das representações do direito porque não pertencem mais à espécie Homo Sapiens ou porque não compartilham a mesma “essência” dos seres humanos.

A discussão sobre a ideia de uma “essência” humana indisponível à manipulação pelo próprio homem como é desenvolvida pelos bioconservadores obscurece o debate das importantes questões sobre a moralidade do aperfeiçoamento. Os bioconservadores não apresentam provas convincentes para explicarem a existência de tal “essência” e para o pressuposto de que modificar a “essência” (se, de fato, ela existir) é intrinsecamente ruim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Discuti, nesse texto, algumas das questões que são suscitadas pelo

desenvolvimento da biotecnologia e de sua possível aplicação, no futuro, para a transformação da constituição estrutural dos seres humanos para aperfeiçoa-la em relação às capacidades cognitivas e ao comportamento moral.

Argumentei que o altruísmo recíproco e os sentimentos que regulam o sistema altruístico possuem elementos biológicos determinantes que são decorrentes da seleção natural. Assim, ao conhecer as bases físicas, químicas e genéticas desses elementos biológicos seria possível modificá-los

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para alterar o comportamento de um indivíduo. Os meios biotecnológicos necessários para a interferência nesses elementos são uma realidade iminente, gostemos ou não, mesmo que estejam em estágios iniciais de desenvolvimento e, ainda, dependam de extensivas pesquisas teóricas e aplicadas.

O rápido desenvolvimento da biotecnologia, por sua vez, parece criar um receio de que o tecnologicamente possível transforme-se em normativamente permitido sem passar prelo crivo da reflexão ética, política e jurídica que é constitutiva das sociedades pluralistas liberais. Certamente não podemos resignar-nos, sem refletir e avaliar, a aceitar os caminhos pelos quais a ciência pode levar: não são todas as consequências do progresso tecnocientífico que são desejáveis ou aceitáveis. A ética não pode ser condicionada a aceitar os fatos consumados das ciências e das tecnologias como justificados moralmente apenas porque são possíveis na prática. Deve-se, antes, promover uma avaliação cuidadosa enquanto membros da comunidade moral sobre as tecnociências e suas consequências para os seres humanos e para o mundo de recursos limitados no qual vivemos.

A reflexão no âmbito filosófico, político e jurídico é uma necessidade constante, mas os argumentos que discutimos contrários ao aperfeiçoamento biotecnológico, do ponto de vista ético, não parecem desferir um golpe definitivo contra o aperfeiçoamento. É temerário, portanto, que as pesquisas e o desenvolvimento das tecnologias necessárias ao aperfeiçoamento sejam proibidos ou, até mesmo, paralisados temporariamente. Mas é imprescindível, conjunto com o desenvolvimento tecnocientífico, a criação de meios legais e institucionais novos que sejam capazes de atender as demandas e especificidades das novas relações surgidas com a biotecnológica.

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MORAL ENHANCEMENT: O APRIMORAMENTO MORAL DA HUMANIDADE

Cinara Nahra1

O que é moral enhancement? Moral enhancement nada mais é do que o

aprimoramento moral de cada um de nós, e da humanidade como um todo e a educação é o meio mais eficaz de promovê-lo. Assim definido moral enhancement é absolutamente consensual. Os problemas surgem quando nos aprofundamos e perguntamos “o que conta como enhancement moral?”, “o que acontece se o aprimoramento moral vier de outras fontes que não a educação?”. O que eu argumento aqui é que o moral enhancement (aprimoramento moral da humanidade) está relacionado a três coisas: a) aos princípios que nós usamos para guiar nossos julgamentos e nossas ações b) ao nosso conjunto de motivações e c) as ações em si mesmo. Assim o que conta como moral enhancement é o aprimoramento dos princípios que nós usamos para julgar e agir, o enhancementt da nossa capacidade de aderir a eles, ou seja, de segui-los, e como consequência de a. e b. o aprimoramento das ações que cada um de nós, e por consequência todos nós, praticamos.

Neste artigo vou abordar rapidamente a questão do enhancement dos princípios e vou então me concentrar nas questões a) do enhancement do nosso conjunto de motivações, b) na discussão da permissibilidade ou não do enhancement biotecnológico, c) na questão da seleção genética para a moralidade e d) na questão sobre se o enhancement moral deve ou não ser a condição necessária para outros tipos de enhancement, especialmente o que nós chamamos de enhancement cognitivo.

Em relação a questão do enhancement dos princípios pergunto por que é necessário aprimorar os princípios morais que usamos? Basicamente porque a imoralidade em todo o mundo é muito grande. Como sabemos a corrupção em todos os níveis é um dos grandes problemas mundiais, especialmente, mas não somente em países subdesenvolvidos. No Brasil, que é considerado um dos países em desenvolvimento, a corrupção custa ao menos 1.38% do PIB do país. A FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) organizou um relatório, baseado no ano de 2008 mostrando que o custo da corrupção ficou entre 41,5 e 69,1 milhões de reais. No início do milênio terrorismo e crime em todas as suas formas são um problema gravíssimo. Pessoas inocentes estão sendo mortas ao redor do mundo em 1 Professora do Departamento de Filosofia da UFRN. Doutora em Filosofa (PhD) pela University of Essex, Inglaterra. Bolsista de Produtividade do CNPq – Nível 2. Link para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3185309694904313 e-mail para contato: [email protected]

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função do crime, pelas razões das mais banais. Nas guerras pessoas inocentes estão sendo bombardeadas e mortas, as vezes mesmo massacradas, e as mulheres em alguns países da África, como o Congo, estão sendo estupradas em massa. A homossexualidade é ainda legalmente punida em 76 nações, e em cinco delas gays e lésbicas são punidos com a pena de morte. Considerando que há por volta de 200 países em todo o mundo, espantosamente um terço dos países estão ainda punindo as pessoas por causa de suas orientações sexuais, sugerindo que, de algum modo, a homossexualidade é ainda vista como moralmente condenável pra um grande número de pessoas.

As inconsistências e a hipocrisia envolvidas em temas relacionados à moral ao redor do mundo são imensas. O assassinato de inocentes é condenado, mas muitos o aceitam nas guerras, sob o argumento do duplo efeito (que sustenta que na realidade não queremos a morte dos inocentes mas estas são inevitáveis dado os nossos objetivos maiores de combater o terrorismo ou qualquer mal). Ao mesmo tempo, muitos que aceitam a morte de inocentes nas guerras, condenam, por exemplo a eutanásia. Muitos dos que condenam a eutanásia, entretanto, não pensam que deveriam doar seus órgãos quando morrerem, mesmo sabendo que pessoas inocentes certamente morrerão se não receberem órgãos para transplante. A Igreja Católica condena o homossexualismo consentido e mesmo o uso de preservativos, mas tem falhado barbaramente em reconhecer e lidar com o abuso de crianças que acontece dentro dos seus muros. Alguns fortemente se opõem a pesquisa com embriões, mesmo sabendo que estas pesquisas poderiam ser indispensáveis para descobrir a cura para muitas das doenças incuráveis que são causa de desabilidades e sofrimento para milhões de adultos ao redor do mundo, mas ao mesmo tempo estas pessoas que se opõem a pesquisa com embriões recusam-se a gastar um centavo que seja para ajudar crianças que morrem de fome e estão em situação de extrema pobreza em países subdesenvolvidos. Muitos se opõem ao enhancement, em geral, ao uso da biotecnologia para melhorar as nossas habilidades cognitivas ou corporais, mas aceitam este uso no sentido de restaurar o funcionamento “natural” do corpo. Muitos pensam que nós não somente temos o direito, mas também o dever de conservar nossas vidas, mesmo quando estamos em situação de extremo sofrimento físico, com nenhuma possibilidade de cura, mas ao mesmo tempo são contra a extensão infinita das nossas vidas, a chamada imortalidade do corpo como usamos hoje na literatura.

Tudo isto aponta para um mundo aonde a moralidade é substituída pela hipocrisia e a razão pelo preconceito. Ao analisar detalhadamente todos os julgamentos morais mencionados acima veremos que muitos deles estão fundados em algumas crenças muito questionáveis sobre vida e sexo. Por trás de todas estas condenações morais, da eutanásia voluntária à homossexualidade adulta consentida, da pesquisa em células-tronco ao

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enhancement, parece existir uma crença em um tipo de sabedoria na natureza que determinaria o que é o certo e o que é errado e a humanidade não ousaria desafiar. Assim, se quisermos evitar estes resultados, certos que muito dos julgamentos morais em voga são hipócritas, preconceituosos, ferem a autonomia e causam um grande dano ao progresso da ciência e ao bem–estar das pessoas, temos de seguir adiante e pensar sobre o enhancement dos princípios morais que usamos para fazer julgamentos morais.

Para aprimorar os princípios que usamos para julgar e agir poderíamos nos beneficiar de um diálogo entre Kant e Mill, utilizando os três mais importantes princípios éticos que foram estabelecidos na história da ética, a saber, o imperativo categórico kantiano e o princípio da utilidade e o princípio da liberdade de John Suart Mill, na construção de uma teoria moral deontológica-utilitarista (que não aprofundarei aqui) mas que levaria a uma prática efetivamente mais moral e à adoção de preceitos tais como o respeito pelos outros e sua liberdade, não causando dano aos outros, e o respeito às diferenças religiosas, sociais, sexuais, de gênero e raça. A adoção deste princípio, ou conjunto de princípios, pode contribuir para que as pessoas façam julgamentos morais mais apropriados e ajam de um modo mais moral.

. ENHANCEMENT DO NOSSO CONJUNTO DE

MOTIVAÇÕES O enhancement de princípios, entretanto, não é suficiente para a

promoção do enhancement moral. É necessário aprimorar também, além dos princípios que usamos para julgar, o nosso conjunto de motivações. O enhancement de princípios por si só não implica necessariamente que nós iremos agir de um modo mais moral, porque o fato de que sejamos capazes de reconhecer algo como certo ou errado não significa que nós agiremos de acordo com estes julgamentos, já que muitos outros fatores podem influenciar nossa vontade. Embora não tenhamos aqui dados suficientes para confirmar esta afirmação, parece que a maioria das pessoas diria que, quando encontramos uma carteira com dinheiro e sem a identificação do dono perdida em uma rua deserta, o correto seria devolver a carteira para o seu legítimo dono. Se fôssemos, entretanto, verificar quantas pessoas entre aquelas que acreditam que isto é a coisa certa a fazer na realidade fazem isto quando elas estão efetivamente nesta situação na vida real, nós provavelmente descobriríamos que os números cairiam dramaticamente.

Akrasia, a fraqueza da vontade, deve então ser reconhecida e entendida, se quisermos promover o enhancement moral da sociedade, já que akrasia é realmente uma das principais razões pelas quais nós não agimos moralmente. Se nós reconhecemos o que é a coisa certa a fazer, mas não fazemos, isto significa que há muitos outros fatores operando em nossa

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vontade que puxariam na direção oposta, como vetores de força na física, e o resultado da nossa ação será o vetor resultante nesta batalha que se opera em nosso cérebro. O que conta como “competing vetores” (vetores em briga) são nossos desejos, nossos interesses pessoais, nosso conjunto de crenças, nossos afetos e sentimentos, e mesmo nossos preconceitos. Se todas estas forças motivacionais não estivessem operando em nós o mero reconhecimento dos princípios morais seria suficiente para determinar nossas ações, mas desde que todo este conjunto de motivações está operando no nosso cérebro e o que acontece no nosso cérebro é, no final das contas, o produto de uma complexa rede de impulsos elétricos, sinapses e processos químicos, o conjunto de nossas motivações é parte do processo de decidir e agir moralmente que poderá, provavelmente, ser sujeito ao enhancement biotecnológico.

Douglas2 foi o primeiro a chamar atenção para a possibilidade do moral enhancement biotecnológico (ou aprimoramento moral por meio da biotecnologia). Segundo Douglas há algumas emoções, que ele chama de emoções contra-morais, cuja diminuição contaria como sendo aprimoramento moral, independentemente das teorias morais ou psicológicas que aceitamos. Estas emoções ou interferem com as chamadas “boas” motivações ou são intrinsecamente motivações "más" e ele identifica dois potenciais candidatos para este papel: a) uma forte aversão a certos grupos raciais e b) o impulso para a violência. Para Douglas a diminuição de tais emoções provavelmente levaria as pessoas a terem melhores motivações futuras.

Se nós aplicarmos a sugestão de Douglas ao modelo da “batalha de motivações" que ocorre em nosso cérebro o resultado seria que a forte aversão a certos grupos raciais é causada, parcialmente, por emoções contra-morais que agem como vetores na direção oposta das motivações morais. Entretanto, como disse antes, a correta aplicação dos princípios morais deontológicos-utilitaristas nos levaria a julgar que devemos respeitar as diferenças de gênero, raça e sexo, e assim a discriminação racial seria totalmente imoral, e pessoas que praticam discriminação racial estariam agindo imoralmente. Se reconhecemos isto mas falhamos em agir de acordo com este julgamento em uma situação particular a presença desta contra-emoção poderia explicar em parte a falha. Esta contra-emoção seria tão forte que neste caso teria sobrepujado as motivações morais e vencido a batalha. Se assim for a supressão desta contra-emoção (aversão aos grupos raciais) contaria como moral enhancement, como sugere Douglas, já que seria um vetor a menos agindo na direção oposta à moralidade e assim as pessoas que não possuem esta contra-emoção muito provavelmente agiriam melhor. Parece razoável, também, dizer que a redução do impulso à violência deveria contar como enhancement, ao menos para aqueles que perdem o controle rápida e

2 Douglas, Thomas. Moral Enhancement. Journal of Applied Philosophy, Vol. 25, No. 3, 2008.

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frequentemente e agem violentamente mesmo antes de pensar sobre as consequências de suas ações.

Douglas chama a atenção para o fato que os trabalhos em genética comportamental e neurociência tem levado a um recente, mas crescente, entendimento das bases biológicas tanto da aversão a certos grupos raciais quanto do impulso para a agressão violenta. Segundo ele há evidências advindas de estudos com gêmeos de uma contribuição genética para a agressão, e em relação a aversão racial uma série de recentes estudos usando ressonância magnética sugerem que a amídala (parte do cérebro implicada na regulação das emoções) tem um papel importante a cumprir. Se é este o caso e a aversão racial esta conectada ao modo como a amídala funciona, assim como se a agressão tem de fato um componente genético, é possível especular que no futuro, se viermos a descobrir exatamente que genes atuam na agressão e como o mecanismo da aversão racial funciona no cérebro, seria possível suprimir ou reduzir estes impulsos através de meios biotecnológicos.

É aqui que a questão do aprimoramento moral pode se tornar controversa. Todos nós sabemos que aprimoramentos morais são obtidos através da educação, e ninguém se opõem a educação. Se alguém se torna menos preconceituoso ou menos violento depois de um longo processo de aprendizagem, isto seria motivo de orgulho e todos nós aplaudiríamos a conquista. Mas e se este aprimoramento vem não da educação, mas de fontes biomédicas? A fonte do aprimoramento moral seria capaz de mudar tão radicalmente a natureza da conquista, que algo que é sem duvida nenhuma um aprimoramento moral não seria mais considerado como tal porque a melhoria foi obtida através de uma intervenção biotecnológica?

Vamos então supor que nós desenvolvemos uma pílula que reduz significantemente a possibilidade de que as pessoas tenham ataques de violência, ou que efetiva e permanentemente afete o cérebro das pessoas de modo que elas não mais reajam de modo negativo a diferenças raciais. Seria moralmente aceitável que as pessoas aprimorem suas capacidades morais deste modo? Responderei a esta questão formulando a seguinte experiência de pensamento: imagine que nos é dado a chance de voltar no tempo e impedir que Hitler cometa todas as atrocidades por ele cometidas durante a segunda guerra mundial. Nossa máquina do tempo, entretanto, somente permitiria que tivéssemos contato com ele por 24 horas, e após este período deveríamos voltar ao nosso tempo. Durante estas 24 horas poderíamos obviamente exprimir nossos melhores argumentos tentando convencer Hitler que não existe algo como uma raça ariana, que as vidas de judeus, negros, ciganos ou gays são tão valiosas quanto as vidas de pessoas brancas alemãs e que colocar pessoas de outras raças em câmaras de gás é simplesmente imoral ou, alternativamente, poderíamos colocar em seu copo de água uma pílula recém-desenvolvida que trouxemos do futuro e que faz as pessoas substancialmente

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melhorarem sua tolerância a diferenças de raça, género e sexo. Vamos supor agora que nós demos o melhor de nós tentando convencer Hitler, mas o tempo esta passando e ele não parece, de modo algum, disposto a aceitar nossos argumentos. Se quisermos então evitar o Holocausto e todas as crueldades que foram praticadas na segunda guerra mundial o único meio seria discretamente colocar uma pílula em seu copo de água, aprimorando as concepções morais de Hitler e suas motivações e voltar ao nosso tempo sabendo que, ao fazer isto, Aushwitz nunca iria acontecer na Historia. Isto seria moralmente aceitável?

Parece que o moral enhancement através da biotecnologia seria neste caso não apenas moralmente aceitável, mas moralmente obrigatório, e se nós não usarmos a pílula estaremos nos colocando na condenável situação de sermos co-responsáveis pelos crimes de Hitler, já que tendo a oportunidade de evitá-los nós não o fizemos. Se podemos, assim, mostrar que há pelo menos um caso no qual o enhancement é não só permitido, mas obrigatório, provaríamos assim, confirmando Douglas, que é errada a versão forte da tese bioconservadora que sustenta que não é moralmente permissível que nos engajemos em qualquer tipo de enhancement através de meios biotecnológicos. Se o aprimoramento moral via biotecnologia não é errado em si mesmo, e pode ser algumas vezes obrigatório, podemos então aprofundar a discussão sobre os benefícios que o moral enhancement poderia trazer para a maioria das pessoas na vida real. Kant estabelece um modelo muito profícuo para descrever a moralidade. Neste modelo há duas forças motivacionais operando sobre nossa vontade: a razão pura (através do respeito pela lei moral) e o interesse próprio. A razão pura no seu uso prático fornece aos seres humanos o imperativo categórico, e se nós agimos motivados pelo imperativo categórico nós só praticaremos atos que podem ser universalizados, mesmo que estes atos sejam contrários ao nosso interesse próprio imediato.

Segundo Kant3 todos nós reconhecemos e aceitamos o imperativo categórico, e a razão pela qual nós nem sempre respeitamos suas prescrições é que o interesse próprio tem grande influência na nossa vontade, interferindo em nossas decisões. Segundo Kant “se nos olharmos para nós próprios em qualquer transgressão do dever descobriríamos que não queremos efetivamente que nossa máxima se torne uma lei universal, sendo isto impossível para nós, mas que o oposto desta máxima deveria permanecer como lei universal; nós apenas tomamos a liberdade de abrir uma exceção para nós (só desta vez) em favor de nossa inclinação”.

Se Kant está certo, e parece que em relação a este ponto ele está,

3 Kant, Immanuel. Groundwork of the Metaphysics of Morals (GM 4:424 ). Cambridge University Press, 2000. p 33.

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inclinação, interesse próprio e egoísmo estão no centro da temática da imoralidade e da injustiça, e se formos capazes de diminuir a influência das inclinações e do interesse próprio em algumas decisões nós agiríamos mais moralmente (ou ao menos, menos imoralmente). Nós sabemos e reconhecemos o que é a coisa certa a fazer. Entretanto, como humanos que somos, estamos sempre tentando abrir exceções na regra a nosso favor. São então a inclinação e o interesse próprio que, em geral, impedem que venhamos a agir de acordo com nossos julgamentos sobre o que é certo ou errado, justo ou injusto.

Curiosamente estudos recentes em psicologia moral e neurociência parecem corroborar e lançar luzes neste modelo kantiano. Knoch4 e outros realizaram um estudo com pessoas participantes do ultimatum game5 onde eles submetem algumas pessoas a ofertas injustas e mostram que a ruptura do córtex dorsolateral prefontal (DLPFC) direito, mas não o esquerdo, através de estimulo magnético transcranial em baixa frequência substancialmente reduz a rejeição das ofertas injustas intencionais dos seus parceiros. No centro deste experimento está a ideia de que o DLPFC cumpre um papel essencial no enfraquecimento ou superação dos impulsos auto interessados e capacita então as pessoas a implementarem suas metas justas. Esta descoberta também mostra que o rompimento do DLPFC direito somente afeta comportamentos relacionados a justiça, mas não afeta os julgamentos, já que embora aceitando as ofertas injustas, as pessoas ainda julgam elas como sendo injustas.

Isto abre uma porta importante para os estudos do enhancement moral. Se o DLPFC direito cumpre um papel importante superando impulsos auto interessados, isto poderia sugerir que no futuro pode ser possível estimular a atividade do DLPFC direito (ou seja, fazer o contrário do que foi feito no experimento) a fim de que nos comportemos de um modo menos interesseiro. Considerando, então, que o modelo kantiano da vontade estabelece que uma das principais razões pelas quais as pessoas agem moralmente é que o interesse próprio nos faz não fazermos o que sabemos que é a coisa certa a fazer, então a possibilidade de estimular um comportamento menos interesseiro, de modo a que sejamos capazes de agir mais coerentemente com nossos julgamentos morais, seria uma enorme realização em termos de moralidade. Se este tipo de tecnologia pudesse ser

4 Knoch, Daria; Pascual-Leone, Alvaro; Meyer, Kaspar; Treyer, Valery; Fehr, Ernst “Diminishing Reciprocal Fairness by Disrupting The Right Prefrontal Cortex” Science v. 314 (3 Nov 2006) : 829- 832) 5 O ultimatum game é um jogo no qual participam duas pessoas, uma que faz e outra que recebe ofertas. Ao ofertante é disponibilizada certa quantia em dinheiro para que ele ofereça ao outro jogador. O ofertante pode ofertar o valor que ele quiser, mas se o jogador que recebe a oferta não aceitar a quantia nenhum dos dois jogadores (o ofertante e o que recebe a oferta) irá receber qualquer valor.

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disponibilizado para as pessoas um dia, estaríamos construindo um mundo melhor com as pessoas aderindo a tais práticas? A resposta é certamente sim. A fraqueza da vontade (akrasia) aonde as pessoas reconhecem o que elas deveriam fazer mas não fazem, tem sido por séculos um dos principais problemas em moralidade. O que provavelmente faz as pessoas superarem impulsos egoístas é um processo longo de aprendizado e educação moral. Mas se o enhancement moral se tornar possível através do desenvolvimento de novas tecnologias, porque deveríamos rejeitar seu uso, considerando que ele não iria substituir o processo educacional mas, ao contrário, seria mais um instrumento a ser usado neste processo? Se almejar um mundo mais moral é um objetivo moral, deveríamos poder usar todos os meios razoáveis e não imorais para alcançar este objetivo.

A SELEÇÃO PARA A MORALIDADE É MORALMENTE

PERMISSÍVEL OU MORALMENTE OBRIGATÓRIA? Ate agora discutimos e estabelecemos que não há nada moralmente

errado com o enhancement moral, mesmo que venha de fontes biotecnológicas. Mas o que dizer de seleção genética para a moralidade? Se tais tecnologias se tornarem um dia possíveis seria moralmente permissível utilizá-las? Faust6 propõem que se nós sabemos que o teórico e hipotético haplótipo moral (MK+) é capaz de predispor indivíduos a serem mais morais, seria não apenas moralmente permissível, mas também moralmente obrigatório selecioná-lo. Segundo Faust os avanços em PGD (diagnostico genético pré-implantação) e PGH (pré-implantação genética de haplótipos) estão crescendo rapidamente e pode ser apenas uma questão de tempo até que venhamos a descobrir os mecanismos genéticos relevantes que influenciam (mas não determinam) nosso comportamento. Para Faust é concebível que nós venhamos a descobrir haplótipos que indiquem uma maior possibilidade de uma criança escolher a resposta certa em um dilema moral, ou de crescer com uma tendência maior para a empatia.

No modelo proposto por Faust haplótipos funcionam de um modo que nós temos liberdade para escolher nosso curso de ação, mas nossas escolhas serão também influenciadas pela nossa constituição genética, como nosso QI. A ideia é que crianças que venham a ter o haplótipo MK+ teriam maior probabilidade de ser mais virtuosas. O resultado seria que um maior numero de MK+ pessoas no mundo resultaria em um maior número de decisões morais, isto é, um maior nível de moralidade em média. Considerando então que as pessoas que são selecionadas para o MK+ 6 Faust, Halley S. “Should we select for genetic moral enhancement? A thought experiment using the Moral Kinder (MK+) haplotype”. Theory Med Bioeth v.29 (2008):397–416 Published online: 9 January 2009 Springer Science+Business Media B.V. 2009

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haplótipo conservam o seu livre-arbítrio e são responsáveis em última instância por todas as suas decisões (como todos nós somos) e considerando que com a seleção para MK + em gerações sucessivas nós poderíamos ter um aumento substancial no nível de paz na terra e redução no volume de sofrimento no mundo causado pela ação humana, o que é altamente desejável, nós estaríamos, então, não apenas moralmente autorizados a selecionar para a moralidade, mas a seleção deveria ser moralmente obrigatória.

Ha portanto duas reinvindicações na proposta de Faust. A reinvindicação fraca, de que a seleção para a moralidade é moralmente permissível, e a reinvindicação forte, de que a seleção para a moralidade é obrigatória. Se nós aplicamos a sugestão de J.S.Mill de que temos de aplicar as regras morais que proíbem os seres humanos de causar danos uns aos outros, chegaremos a conclusão que o que deveria ser evitado em termos de seleção de embriões é selecionar um traço que causará um claro e previsível dano e /ou dor ao indivíduo selecionado. Por exemplo, não deveria ser permitido a ninguém selecionar geneticamente para que nasça um bebê com espinha bífida, uma condição que é uma das mais dolorosas no mundo, assim como não deveria ser moralmente permitido selecionar para diabetes, HIV, falha renal ou qualquer outra doença, crónica ou não, que necessariamente irá causar nas pessoas sofrimento físico e mental além de dor constante e necessidade de constante tratamento médico para sobreviver. Seria, pois, moralmente obrigatório não selecionar para estes traços, o que de algum modo corresponde ao que as pessoas já fazem, já que seria muito surpreendente encontrar pais que estariam realmente interessados em selecionar para uma doença que traria dor e dano para as crianças7.

Assim, a seleção de embriões, uma vez disponível, seria moralmente permissível desde que fosse garantido que aqueles que fossem selecionados não seriam de modo algum prejudicados ou sofreriam por causa do traço selecionado, e sendo este o caso, seria errado interferir com a liberdade de escolha dos pais em escolherem os traços genéticos para suas crianças. Desde que o enhancement moral como proposto (como seleção de haplótipo) não fere esta regra, ao contrário, traz previsíveis benefícios para o indivíduo e a sociedade, a seleção de haplótipo para a moralidade seria moralmente permissível.

Parece, entretanto, que todas as razões levantadas para argumentar que a seleção para a moralidade é moralmente permissível (a reinvindicação fraca), são agora válidas para mostras que esta NÃO deve ser moralmente obrigatória (a reinvindicação forte). Dizer que x é moralmente obrigatório significa que é um dever fazer x, e que não fazer x seria errado. Dizer então 7 O famoso caso de um casal homossexual feminino que decidiu selecionar para a surdez não parece ser um contra-exemplo para esta regra, já que, como elas argumentaram a partir de sua própria experiência, a surdez não necessariamente causa dor e sofrimento

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que é moralmente obrigatório selecionar para a moralidade é equivalente a dizer que é errado não selecionar para a moralidade. Se entretanto nós tomamos a sério o que Mill sugere, que temos de considerar como danosa a interferência indevida na liberdade dos outros, ao estabelecer que os pais devem selecionar para moralidade, e que eles estariam errados se não o fizessem, nós estaríamos indevidamente interferindo na liberdade de escolha dos pais (porque é sempre possível que eles não queiram selecionar embriões) e estaríamos estendendo a esfera dos deveres para muito além do que é desejável.

A crença (errônea ou não) de que selecionando para a moralidade nós estaríamos interferindo indevidamente na natureza ou acabando com o mérito que há em alcançar algo através do nosso esforço pessoal, não conta como sendo parte de um argumento válido para estabelecer que a seleção para a moralidade não deveria ser permitida, mas conta como uma razão legítima para que os pais que compartilham desta crença decidam não selecionar para a moralidade ou para qualquer traço, e não há nada de moralmente errado neste procedimento. No campo da moralidade é errado dizer que as pessoas não deveriam fazer coisas que elas estão moralmente autorizados a fazer, mas é também errado dizer que as pessoas devem fazer coisas que elas não tem de fazer, se não quiserem. Em ambos os casos estaríamos julgando erroneamente do ponto de vista moral, paternalisticamente impondo aos outros nossas posições sobre o que é moralmente desejável. Parece, então, que selecionar para a moralidade, embora moralmente permissível, não deveria nunca ser considerado moralmente obrigatório.

MORAL ENHANCEMENT SERIA UMA CONDIÇÃO

NECESSÁRIA PARA OUTROS TIPOS DE ENHANCEMENT? Tendo estabelecido que a seleção para a moralidade é moralmente

admissível, mas não moralmente obrigatória, podemos agora discutir se o moral enhancement é ou não a condição necessária para outros tipos de enhancement, especialmente o enhancement cognitivo (aumentos das nossas capacidades mentais, incluindo memória, foco, atenção e todo tipo de inteligência). Person and Savulescu8 argumentam que há um motivo para sermos contra a desejabilidade do enhancement cognitivo e do consequente avanço da velocidade do conhecimento humano se este não for acompanhado de um extenso programa de enhancement moral da humanidade, e este motivo é que o enhancement cognitivo, através de drogas, implante e intervenções biológicas (incluindo genética) poderia acelerar desenfreadamente o avanço da 8 Persson, Ingrid and Savulescu, Julian. “The Perils of Cognitive Enhancement and the Urgent Imperative to Enhance the Moral Character of Humanity”. Journal of Applied Philosophy, v. 25, n. 3 (2008): 162-177

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ciência, e as aplicações decorrentes desta, e assim aumentar o risco do desenvolvimento ou mau uso de armas de destruição em massa. Para eliminar este risco, dizem eles, o enhancement cognitivo deveria ser acompanhado pelo enhancement moral extensivo a todos nós, sendo que tal aprimoramento moral poderia reduzir a maldade no mundo. Para eles9 os meios genéticos e biotecnológicos de enhancement poderiam ter um papel crucial na melhoria do nosso caráter moral que poderia complementar os meios tradicionais de moral enhancement.

Savulescu e Person também argumentam que mesmo que todos nós sejamos altamente morais há boas razões para pensar que o enhancement cognitivo, e consequente o rápido avanço do conhecimento, que se estende a todos nós, pode ser na média pior do que a ausência total de enhancement cognitivo, se houver uma minoria que seja moralmente corrupta, e que mesmo que a utilidade esperada do enhancement cognitivo seja maior do que a esperada desutilidade, podem haver razões importantes para que não procuremos ou empreguemos o enhancement cognitivo, razões que dizem respeito, em última instância, a própria sobrevivência da humanidade. Eles concluem que, na melhor das hipóteses, os perigos do enhancement cognitivo fazem com que seja necessário um vigoroso programa de pesquisa a fim de que venhamos a entender as bases biológicas do comportamento moral.

Aqui nós enfrentamos o problema do "dual-use"10 (duplo uso), uma questão central quando discutimos enhancement. Os autores sugerem que o enhancement cognitivo pode ser potencialmente utilizado para propósitos nefastos, de um modo que poderia até mesmo ameaçar nossa sobrevivência na terra, e argumentam então que é necessário investir no entendimento das bases biológicas da moralidade a fim de acelerar o moral enhancement. Fosse esta a única reivindicação não haveria nenhuma objeção a ser feita. A 9 Ibid., p.168 10 Ver Michael J. Selgelid ‘Ethics Engagement of the Dual-Use Dilemma: Progress and Potential’ in Brian Rappert (ed) Education and Ethics in the Life sciences: Strengthening the Prohibition of Biological Weapons (Australia: The Australian National University e-press, 2010) p.23-34. Segundo Selgelid “Durante a última década o problema do duplo-uso (dual-use) na pesquisa, ciência e tecnologia, tem sido um dos temas mais debatidos no discurso sobre armas biotecnológicas e ameaça bioterrorista e um tópico particularmente controverso na ciência política. A expressão ‘dual use’ foi historicamente usada para se referir a tecnologias, equipamentos e facilidades que poderiam ser usadas para propósitos civis e militares. (…) No discurso contemporâneo a expressão “dual use” é usualmente usada em referência a pesquisa, ciência e tecnologia que pode ser usada tanto para bons quanto para maus propósitos. Enquanto quase tudo pode ter funções múltiplas o debate corrente tem sido primeiramente relativo aos maus propósitos envolvendo armas, e mais comumente, armas de destruição em massa em particular (isto é, aonde as consequências do uso maléfico seriam mais severas). Uma preocupação específica é a possibilidade que recentes desenvolvimentos nas ciências da vida possam levar ao desenvolvimento de uma nova geração especialmente perigosa de armas biológicas.

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necessidade de aprimoramento moral da humanidade é urgente, e é fundamental então que sejam feitas mais e mais pesquisas e que se invista mais e mais não só no entendimento das bases biológicas e neurocientíficas do comportamento moral, mas no estudo e pesquisa da ética e da moralidade e no ensino da ética. Entretanto, se o que eles reivindicam, como parece ser o caso, é que o moral enhancement deveria ser a condição necessária para o enhancement cognitivo e que não deveríamos ter enhancement cognitivo, a não ser que tenhamos o aprimoramento moral, visualizo um problema sério no argumento. Na realidade existe uma potencialidade para o mau uso de qualquer tecnologia, e isto não é um motivo suficiente para que deixemos de usar a tecnologia e muito menos para que abandonemos as pesquisas na área. Aviões, por exemplo, foram usados durante todo o século XX para transportar pessoas em todo o mundo, facilitando enormemente nossas vidas, mas no começo do século XXI foram utilizados como armas em abomináveis ataques contra as torres gêmeas em New York. Agora, que estamos conscientes do potencial para abuso e mau-uso que há com aviões, ainda assim esta não é uma razão suficiente para que paremos de construir aviões, e isto é válido mesmo para tecnologias que podem potencialmente destruir toda a vida na terra. Como nós sabemos os estudos em física nuclear podem levar a produção de bombas atômicas e armas nucleares, mas podem também, no lado do bem, ser usados na produção de imagens de ressonância magnética, uma técnica que é extremamente importante na medicina e pode salvar muitas vidas, e também em radiocarbono11, uma tecnologia usada, por exemplo, para estimar a idade dos fósseis orgânicos encontrados em sítios arqueológicos. A razão pela qual nós não abandonamos a pesquisa em física nuclear, apesar do uso potencialmente destrutivo e ameaçador das armas nucleares, que podem destruir toda a vida na terra, é que os potenciais benefícios que esta pesquisa pode nos trazer são muito alto. Se este é o caso com a física nuclear, porque seria diferente com o enhancement cognitivo, considerando especialmente que este, se pode ser considerado uma ameaça em alguns aspectos, constitui uma ameaça muito menor que a fusão nuclear, por exemplo?

Os possíveis benefícios do enhancement cognitivo, incluindo farmacológicos, são massivos. No momento eles envolvem melhoria na memória, foco e manipulação de informações12, mas as melhorias no futuro são altamente promissoras e poderíamos chegar a um ponto de uma melhoria substancial na nossa capacidade de reter dados e processá-los, nos tornando, em certo sentido, muito mais "inteligentes" do que somos hoje. Com todos estes possíveis benefícios, mesmo se nós tivermos algumas preocupações em 11 Fonte: Wikipedia 12 Greely, Henri; Sahakian, Barbara; Harris, John; Kessler, Ronald; Gazzaniga, Michael; Campbell, Philip; Farah, Martha’s “Towards a responsible use of the cognitive-enhancing drugs by the healthy “ Nature vol. 456 (11 December 2008):.702-705

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relação ao potencial mau uso do enhancement cognitivo, o que temos a fazer é regular o uso da tecnologia ao invés de parar de empregá-la. O enhancement moral, em todas suas formas possíveis, não deveria ser a condição necessária do enhancement cognitivo ou de qualquer forma de enhancement; deveria ser algo que devemos perseguir simultaneamente com outros tipos de enhancement, ou talvez até mais do que outros tipos de enhancement, mas o que nós certamente não devemos fazer é esperar até que estejamos “moralmente aprimorados" para que só então nos aprimoremos cognitivamente.

CONCLUSÕES A fim de aprimorar a moralidade é necessário, antes de tudo,

desafiar e modificar os princípios que utilizamos para julgar moralmente e agir. Discuti e apresentei aqui argumentos a fim de corroborar a proposta de Douglas de que o aprimoramento moral por meios biotecnológicos deve ser moralmente permissível. Argumentei que se nós aprimorarmos os princípios que utilizamos para fazer julgamentos morais e também o nosso conjunto de motivações isso resultaria em um maior número de ações morais no mundo (ou ao menos em um menor número de ações imorais) e isto certamente contaria como sendo um verdadeiro aprimoramento moral da humanidade. Discuti então a questão da seleção genética para a moralidade, concluindo que se isto vier a ser possível, deveria ser moralmente admissível, mas nunca obrigatório. Finalmente discuti se o aprimoramento moral da humanidade deveria ser a condição necessária para ouros tipos de enhancement, especialmente o enhancement cognitivo, concluindo que apesar da enorme importância e desejabilidade do aprimoramento moral da humanidade, para cuja realização devemos empreender todos os nossos esforços, este não deveria ser considerado uma pré-condição para o enhancement cognitivo, devendo a pesquisa e os esforços para a concretização de ambos, aprimoramento cognitivo e aprimoramento e moral, serem empreendidos concomitantemente, para o bem de todos e a felicidade geral das nações.

AGRADECIMENTOS Agradeço às audiências do Senior Seminar Series of The Center for

Social Ethics and Policy (CSEP) at Manchester University/UK, do II Colóquio de Ética e Ética Aplicada: Evolução e Transhumanismo em Santa Maria/RS e do IV Colóquio Internacional de Metafísica em Natal/RN pelas valiosas observações e discussões realizadas nas conferências em que proferi sobre este tema.

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REFERÈNCIAS

DOUGLAS, T. Moral Enhancement. Journal of Applied Philosophy, Vol. 25, No. 3, 2008. pp. 228-245. FAUST, Halley S. Should we select for genetic moral enhancement? A thought experiment using the Moral Kinder (MK+) haplotype. Theory Med Bioeth v.29 (2008). pp. 397–416. Published online: 9 January 2009. Springer Science+Business Media B.V. 2009. GREELY, Henri; SAHAKIAN, Barbara; HARRIS, John; KESSLER, Ronald; GAZZANIGA, Michael; CAMPBELL, Philip; FARAH, Martha’s. Towards a responsible use of the cognitive-enhancing drugs by the healthy. Nature, vol. 456 (11 December 2008). pp.702-705. KANT, Immanuel. Groundwork of the Metaphysics of Morals. Cambridge University Press, 2000. KNOCH, Daria; PASCUAL-LEONE, Alvaro; MEYER, Kaspar; Treyer, VALERY; FEHR, Ernst. Diminishing Reciprocal Fairness by Disrupting The Right Prefrontal Cortex. Science, v. 314 (3 Nov 2006). pp. 829- 832. PERSSON, Ingrid and SAVULESCU, Julian. The Perils of Cognitive Enhancement and the Urgent Imperative to Enhance the Moral Character of Humanity. Journal of Applied Philosophy, v. 25, n. 3 (2008). Pp. 162-177 SELGELID, Michael J. Ethics Engagement of the Dual-Use Dilemma: Progress and Potential. in: RAPPERT, Brian (ed) Education and Ethics in the Life sciences: Strengthening the Prohibition of Biological Weapons. Australia: The Australian National University e-press, 2010. p.23-34.

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RAWLS E O ENHANCEMENT

Fortunato Monge de Oliveira Neto*

Rawls faleceu em 2002 quando ainda não haviam estudos sobre o

aprimoramento moral mas já havia o debate sobre o enhancement, onde entre os bioconservadores e os pós-humanistas ele se manifestou várias vezes a favor dos pós-humanistas. O aprimoramento moral tem sua primeira citação com o artigo de Thomas Douglas em 2007 e desde então a questão se tornou extremamente fértil. Soma-se a isso a grande efervescência das pesquisas em neurociência e as descobertas que apesar de não oferecerem resultados imediatos tem grandes perspectivas. O pensamento de Rawls ora é utilizado para a defesa do aprimoramento genético, ora é demonstrado como insuficiente para esse próprio aprimoramento e para outros, como o aprimoramento cognitivo. E aqui mais uma vez o que se confirma é que ele continua sendo uma referência para se pensar as questões éticas relacionadas à justiça e a relação indivíduo – sociedade. O presente artigo tem como objetivo apresentar uma bibliografia secundária e analisar vários artigos que tratam do enhancement percebendo as diferentes contribuições que o pensamento de Rawls pode dar.

O primeiro texto é Genetic enhancement of a child’s memory – a search for a private and public morality de William Soderberg. O texto tem uma linguagem simples e apresenta o véu de ignorância de Rawls como um critério para julgar a justiça do aprimoramento genético da memória dos filhos realizada pelos pais. O texto está dividido em três partes. Na primeira ele apresenta o liberalismo moral e dentro dele o libertarismo e o utilitarismo. E demonstra que o libertarismo levaria a uma tirania da minoria uma vez que a posição de respeito aos interesses individuais levaria a indivíduos profundamente individualistas não se importando com a condição do outro, permitindo o sacrifício de indivíduos, ou seja, a penalização dos que precisam da ajuda do outro para exercer seus direitos básicos e, além disso, a posição de não intervenção do Estado na sociedade levaria a um agravamento das diferenças sociais e assim a condicionamento das minorias. O utilitarismo parece cometer um erro contrário, favorece o princípio da maioria e isso acarretaria no erro tão criticado por Rawls: o sacrifício da minoria em função dos interesses de uma maioria.

O véu de ignorância de Rawls que, na interpretação de Ronald Gree (1986), se compara a um jogo de cartas, onde as cartas estão abaixadas, seria * Professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutorando no Programa Interinstitucional de Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN. Link para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7307691547383207 contato: [email protected]

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uma alternativa para resolver a questão do aprimoramento genético da memória dos filhos. O véu de ignorância seria tomar as decisões com as cartas abaixadas, onde não se conhece as suas capacidades, classe social e talentos. É importante lembrar que o véu de ignorância é um recurso de Rawls presente totalmente apenas na posição original, sendo retirado à medida que se instauram as instituições responsáveis pelo emprego dos princípios da justiça como equidade. Para Soderberg as cartas ora levantadas ora abaixadas equivaleriam às outras formas de moralidade, como o comunitarismo estrito e o moderado que poderiam levar respectivamente à tirania da ortodoxia e à tirania do perfeccionismo. O texto não discute o que entende por tirania, mas entendo que seja um exercício do poder que não é legítimo, por não ser moralmente justo.

Na segunda e terceira partes o autor discute o comunitarismo estrito e moderado, a diferença básica colocada é que o estrito pareceria tomar as decisões com as cartas abaixadas sempre, ou seja, pareceria defender o ideal da imparcialidade, sem levar em consideração as diferenças entre as pessoas, daí que pode ocorrer a tirania da ortodoxia, onde a lei não deve abrir exceções ou não deve analisar a situação. E, nesse exemplo, cita a religião, a ciência e as reformas sociais. Fica claro então que não é simplesmente o fato de estar com as cartas abaixadas, ou seja, não é simplesmente o véu de ignorância, mas também os princípios da justiça que advém como o da igualdade de liberdades, de oportunidade e o princípio da diferença que garantem uma sociedade justa e um aprimoramento genético justo da memória.

O comunitarismo moderado (que se aproxima bastante do perfeccionismo) se caracterizaria por tomar algumas decisões com as cartas levantadas, quando se tratar do bem comum, e outras com as cartas abaixadas, quando se referir aos indivíduos, isso porém, de acordo com o autor, não evitaria a tirania do perfeccionismo. E isso porque haveria um modelo de bondade e perfeição ao qual as pessoas precisariam adotar. Desse modo alguns casos de aprimoramento genético da memória de seus filhos seria permitido aos pais, no sentido de atingir um certo modelo, porém isso pode acarretar uma tirania do perfeccionismo, uma vez que eliminaria a diversidade de concepções em busca de um ideal de perfeição para todos. Um ponto interessante é que ele também trata da desigualdade que não vê como problema, mas apenas como contribuições diferentes para o benefício comum, que tem como imagem um barco, onde todas as pessoas participam do mesmo destino e dos mesmos benefícios na humanidade, ou seja, as desigualdades seriam para o benefício de todos e não apenas de um. Aqui ele diz que também Rawls concordaria com essa visão do barco, o que se pode objetar porém é que a desigualdade incomode a Rawls de modo diferente do que ocorre com o comunitarismo moderado, tanto que ele pauta a

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administração da justiça nos dois princípios, sendo que o segundo trata especificamente da desigualdade.

Conclui o texto dizendo que em alguns casos, como de problemas de saúde se poderia tomar as decisões com as cartas levantadas, ou seja, conhecendo a pessoa e as suas dificuldades, o que lembra a aplicação dos princípios de Rawls e em alguns casos o aprimoramento da memória deve ser decidido na situação do véu de ignorância, ou seja, sem saber o que essa criança será no futuro, mas apenas com o objetivo de superar suas fragilidades de forma que ela possa ser o que quiser ser. Um exemplo controverso é que ele admitiria que os pais realizem o aprimoramento da memória de seus filhos para se tornarem um jogador de futebol americano ou músico, desde que isso não ameaça o bem comum mas contribui para o desenvolvimento da benevolência e do auto-interesse, virtudes para qualquer profissão, desde que não haja posterior coerção dos pais para os filhos exercerem essas profissões. O caso é controverso porque ele admite a aplicação do aprimoramento com as cartas abaixadas, seria para todas as pessoas como parte da sua educação. Rawls não objetaria a isso, uma vez que defende o desenvolvimento da sociedade porém acrescentaria a ideia da igualização de oportunidades, ou seja, o aprimoramento deveria ser garantido para todos, mesmo aqueles em que os pais não tivessem condições por si de realizarem esses aprimoramentos de modo que garante a primeira parte do segundo princípio: a igualdade de oportunidades.

O segundo texto analisado é o de Eva Orlebeke Caldera Cognitive enhancement and theories of justice. Este visa apresentar as relações do aprimoramento cognitivo com as teorias da justiça disponíveis: contratualismo social (Rawls), Libertarismo (Nozick) e comunitarismo (Sandel), e mostrar que elas não estão preparadas e precisam ser repensadas devido a realidade deste aprimoramento e talvez necessite de uma nova. Primeiro trata do aprimoramento cognitivo com Rawls. Mostra que o aprimoramento cognitivo mudaria a realidade do conceito de loteria natural, não estando mais sujeito aos acasos da natureza ou à graça de Deus, mas agora podendo ter uma intervenção direta e consciente do homem. Porém a autora parece considerar que isso geraria um problema grave ao princípio da diferença, ou seja, se a loteria natural não existisse ainda seria possível chegar ao princípio da diferença e ao compromisso com os menos favorecidos? A primeira resposta a essa pergunta parece ser que não haveria menos favorecidos, pelo menos pela loteria natural, e assim os talentos das pessoas seriam igualados segundo Rawls. E a essa resposta coloca o problema da igualdade, levantada por Kurt Voneegut (1968) que pensa que uma sociedade fundada sobre esses princípios no ano de 2081 seria altamente autoritária, restringindo e contendo todas as diferenças, para mostrar que a teoria de Rawls é altamente dependente do

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pressuposto da loteria natural, ou seja, da negação do indivíduo escolher suas características.

Uma segunda resposta a essa questão indica uma crítica ao aprimoramento genético, pois este implicaria em uma mudança da originalidade da pessoa. Essa critica porém não se sustentaria uma vez que o conceito de pessoa de Rawls, não é um conceito forte, mas um conceito fraco de pessoa (capaz de ter um senso de justiça e um conceito de bem) e além disso seria no mínimo estranho pensar que uma pessoa destituída de talentos abriria mão desse aprimoramento para ser dependente do benefício de outros. Em relação ao pensamento de Nozick ressalta que a sua principal valorização é pela liberdade e tem como pressuposto o mérito das boas atitudes e o talento. De forma que com o aprimoramento cognitivo não haveria mérito e nem se respeitaria a individualidade do indivíduo, e isso porque com uma intervenção, e com pouco ou nenhum esforço, o indivíduo seria capaz de fazer algo que outro demorou muito tempo para desenvolver a habilidade, tendo assim pela intervenção na essência do indivíduo um problema em relação a recompensa das suas ações. A autora fica ainda por esclarecer o que seria essa essência da natureza humana, mostra-se assim um conceito forte de pessoa em Nozick o que seria realmente complicado para lidar com o aprimoramento cognitivo.

Quando fala da tendência comunitarista afirma que o aprimoramento cognitivo poderia minar a noção de comunidade e mesmo de democracia, uma vez que estando nas mãos do indivíduo se aperfeiçoar ele passaria a ser pressionado pelo mercado e discriminaria aqueles que não o fizessem, podendo mesmo questionar se estes poderiam participar da vida pública da cidade, como por exemplo, o exercício do voto. Acrescenta também que Sandel como Rawls defende a loteria natural, diferente de Nozick que se baseia no mérito, porém mostra que o conceito de loteria natural seria enfraquecido e assim com ele a preocupação com os menos favorecidos, já que todos seriam iguais. Isso porém não seria um argumento forte, uma vez que seria preferível ao indivíduo ser independente a ser dependente dos outros.

Por fim conclui o texto mostrando que é a favor do aprimoramento cognitivo porém que precisa de alguns desenvolvimentos, mostra também que acredita que a justiça como equidade de Rawls, apesar das dificuldades colocadas, pode ser utilizada para definir quais as pessoas que seriam aperfeiçoadas moralmente, sendo apenas as menos favorecidas, acontecendo assim uma igualização no âmbito mesmo dos talentos.

O terceiro texto analisado é de David DeGrazia Enhancement Technologies and human identity (2005), este apresenta um conceito de identidade que se aproximaria ou seria compatível com o conceito de pessoa de Rawls. O texto pretende mostrar como o enhancement tecnológico não alteraria a

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identidade do sujeito e para isso distingue dois tipos de identidade: numérica e narrativa. Nessa discussão ele vai mostrar que não há características invioláveis no homem e por isso não há um problema de se alterar a identidade da pessoa com o enhancement biotecnológico. Porém o autor ainda é muito receoso pela forma como tem se dado o enhancement, considerando que muitas vezes ele não é pautado pelo autorrespeito, daí a inserção que se pode fazer do critério de justiça de Rawls.

O autor define o aprimoramento tecnológico quando se usa a tecnologia não para tratar doenças, e assim esclarece a diferença entre o que seria o aprimoramento e a terapia. Passa então a tratar da questão da identidade e a primeira coisa é esclarecer os possíveis erros na compreensão da identidade humana ou pessoal. Primeiro erro: não reconhecer que existem dois sentidos diferentes de identidade humana: identidade numérica e narrativa. O segundo erro é superestimar a pesquisa psicológica da identidade numérica e subestimar a pesquisa biológica da identidade narrativa. Nesse erro tem caído a tradição analítica que tem enfocado muito a identidade numérica, qual seja, a relação que um ente tem consigo mesmo ao passar do tempo e continua sendo a mesma entidade, ou seja, apesar das mudanças, mesmo se grandes permanecemos um e o mesmo. Essa é a interpretação que tem sido em geral utilizada pelos filósofos, alguns como Locke, Perry, Parfit, Unger, Baker, McMahan, apesar de diferirem em quais características as pessoas humanas teriam como invioláveis. E a identidade narrativa ou biológica, valoriza o homem como organismo vivo, para esse ponto de vista desde que o óvulo é fecundado passa a haver um organismo integrado, de forma que não pressupõe nenhuma existência psicológica, como faz a identidade numérica, Olson, 1997. Nesse sentido, mesmo uma pessoa em coma permanente ou estado vegetativo permanente, continua sendo uma pessoa.

O autor vai apresentar uma lista de 7 características invioláveis, testando se são ou não invioláveis: estilo psicológico interno, personalidade, inteligência geral, incluindo memória, a necessidade de dormir uma certa quantidade de tempo, o envelhecimento normal, o gênero, a espécie; as quais se violados a pessoa perderia sua identidade numérica. A primeira e a segunda características estão muito próximas, e ele mostra que as duas não são características invioláveis. A primeira, o estilo psicológico interno, porque ele seria objeto de mudança da psicoterapia, o segundo, a personalidade, porque a mudança muitas vezes é desejada, ele cita o exemplo de uma pessoa muito tímida, cínica ou sarcástica, em que desejamos que ela mude sua personalidade e nem por isso deixaria de ser ela mesma. Em relação a inteligência ele mostra que nós constantemente procuramos desenvolver a inteligência e não consideramos que perderemos nossa identidade por isso, portanto não seria inviolável. Pode se objetar ao argumento afirmando que esse desenvolvimento não muda nossas capacidades, mas apenas as realiza, por isso não

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significariam realmente um aprimoramento, que já seria o caso na mudança do genoma. Ele objeta a isso que mesmo com a alteração feita pelo genoma ainda se necessitaria da interação com o meio para desenvolver determinada capacidade, ou seja, a mudança não garantiria nenhum efeito conclusivo, pois necessita também de um ambiente estimulante. A segunda resposta à objeção, é que o genoma muda espontaneamente no decorrer do tempo. Assim conclui que o desenvolvimento da inteligência não se constituiria em uma característica inviolável.

Em relação a necessidade da quantidade de tempo de sono ele afirma que há diferenças de necessidade que podem ocorrer de acordo com os exercícios que a pessoa pratica, de forma que não pode se constituir em uma característica inviolável. Em relação ao envelhecimento normal o autor se mostra mais reticente em abrir mão dele como uma característica inviolável, porém admite que uma mudança normal acontece com o desenvolvimento social, onde as pessoas vivem mais. De forma que essa parece ser a nossa característica mais humana, porém não inviolável. Outra mudança diz respeito ao gênero. Aqui ele retoma a opinião do presidente do conselho de bioética, Leon R. Kass, de que cada célula do corpo é determinada por ser homem e mulher. Se essa opinião for verdadeira, não é o que pensa o autor, o gênero é uma característica inviolável. E argumenta que a pessoa pode mudar o sexo sem deixar de ser ela mesma, porque ela guarda em si as memórias do outro sexo, assim continua sendo a mesma pessoa.

A última candidata a característica inviolável é o ser Homo sapiens. A preocupação surge com as pesquisas de clonagem e alterações genéticas, seria uma nova espécie? Se for, ela seria escravizada ou dominaria a humanidade? Supõe então que diante dessas características a alteração genética e a clonagem deveriam ser crimes contra a humanidade. Então objeta que mesmo que com essas alterações o homem deixe de ser Homo sapiens não está claro que deixaria de ser humano, ou seja, não mudaria as características essenciais. Em segundo, afirma que a identidade humana não é identificada em seu aspecto animal, como Homo sapiens. E em terceiro lugar, afirma que gametas de uma espécie só geram a mesma espécie e não poderiam gerar outra. Apresentados esses argumentos analisa a objeção de que os seres gerados através de alteração genética poderiam ter acrescidos um cromossomo que os tornasse férteis, e assim difundisse a nova espécie. E ele objeta dizendo que o novo ser continuaria sendo humano, e não de outra espécie, podendo se for adulto lembrar de sua vida antes da mudança, o que garantiria a identidade numérica. De forma que a ideia de ser Homo sapiens como característica inviolável é negada. Assim conclui que a objeção da mudança na identidade humana pela realização do enhancement tecnológico não é muito clara, o que significa que não seria suficiente. E como não há características invioláveis no homem estas não constituem uma objeção ao enhancement, a maior preocupação que Grazia

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coloca é com relação à segurança e a distribuição desse enhancement, problemas para os quais a justiça como equidade de Rawls pode resolver. Isso porque a justiça como equidade propondo um véu de ignorância não permitiria que o enhancement agravasse as diferenças entre as pessoas, mas serviria como um amenizador de diferenças impeditivas para a realização de um plano racional de vida. E os dois princípios de justiça pensados para uma sociedade democrática garantiria uma sociedade estável pautada no autorrespeito e na tolerância pelas diferenças.

O quarto texto Genes and social justice: a rawlsian reply to Moore de Colin Farrelly apresenta uma resposta a posição de Adam Moore sobre a manipulação genética através de vários conceitos de Rawls. Inicialmente a questão gira em torno da defesa de Moore da alteração genética disponível, primeiramente, apenas aos ricos pois houve muito investimento da parte das empresas farmacêuticas, a resposta a essa questão levará ao desenvolvimento de uma justiça social para a distribuição de talentos através dos genes. Em relação a posição de Moore Rawls defenderia que a manipulação seja acessível aos menos favorecidos, para a realização do que ele chamou de ‘plano racional de vida’, e classificaria como injusta a proposta de Moore. E afirma que o ‘genetic enhancement’ alteraria a realidade da distribuição de justiça social e isso porque incluiria entre os bens os genes. Dessa forma os bens primários que são divididos em sociais e naturais, seriam ambos passíveis de igualização e não somente como ocorre na teoria clássica, os bens sociais, como: direitos e liberdades, poder e oportunidade, renda, riqueza e autorrespeito. Com a possibilidade do genetic enhancement os bens naturais: saúde e vigor, inteligência e imaginação também poderiam ser distribuídos. Isso gera a necessidade de um novo princípio, baseado no princípio da diferença de Rawls, o ‘GDP – genetic difference principle’ o qual diz respeito à alteração genética para o benefício dos menos favorecidos.

Diz também que o benefício dos menos favorecidos não visa gerar uma sociedade de iguais, pois a alteração só ocorreria dentro do âmbito dos bens primários naturais. E afirma que Moore não concordaria com essa posição pois não defende o direito de propriedade para a manipulação genética. E conclui dizendo que o genetic enhancement leva a um repensar da justiça social, ao qual muito contribui a justiça social de Rawls, particularmente o seu segundo princípio no que diz respeito à igualdade de oportunidades. E que serve como orientação para pensar uma nova ética, seja usando seus conceitos como bens primários sociais regidos pelo primeiro princípio, seja o repensar do segundo princípio no que diz respeito aos benefícios dos menos favorecidos, isso porque Rawls ao elaborar esse conceito pensa nos bens primários sociais, como classe social, talentos naturais e boa ou má sorte na vida, se através do aprimoramento genético podemos resolver as deficiências no que diz respeito aos talentos naturais o princípio da diferença precisa ser

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repensado, e não só ele mas também o conceito dos menos favorecidos, que também inclui o conceito dos talentos naturais.

O quinto texto Germ-Line Genetic Enhancement and Rawlsian Primary Goods de Fritz Allhoff defende o aprimoramento genético de germ-line para alguns casos de acordo com a teoria de Rawls do aumento de bens primários. O texto inicia distinguindo as células germ-line das células somáticas, sendo as primeiras as células que carregam a carga genética do indivíduo e assim são capazes de formar um novo indivíduo, seriam os gametas. As células somáticas são as da pele e do músculo, por exemplo, que não carregam informações genéticas. Feita essa distinção distingue entre terapia e aprimoramento, sendo a terapia genética as alterações negativas e o aprimoramento as alterações positivas. As alterações negativas, se entendem como o tratamento de doenças ou distúrbios, enquanto a alteração positiva seria o desenvolvimento de habilidades. Podem-se combinar os quatro elementos: terapia, aprimoramento, células somáticas e germ-line, formando quatro combinações diferentes, sendo que a mais aceita é a da terapia genética de células somáticas e a mais problemática é o aprimoramento genético de células germ-line. E explica que a última é a mais problemática porque envolve as próximas gerações.

Depois dessa breve introdução passa a analisar particularmente o caso problemático e começa apresentando as objeções a ela. O primeiro argumento colocado é da injustiça causada pela disponibilidade a alguns poucos ricos e não à vasta população. Já vimos, porém, no texto de Farrelly Genes and social justice: a rawlsian reply to Moore, como administrar essa dificuldade seguindo o benefício dos menos favorecidos. O autor acrescenta o argumento seguinte, nossa sociedade teria tempo de se ajustar à justiça até o aprimoramento genético ser viável. O segundo argumento seria de Erik Parens e consistiria no fato de que eliminar nossas fragilidades poderia deturpar nossa experiência de humano. Esse argumento pode ser rebatido pelo texto de Eva Orlebeke Caldera Cognitive enhancement and theories of justice que demonstra que nós não temos essa característica como própria da natureza humana. Mas o autor também rebate o argumento afirmando que as pessoas não concordariam que as fragilidades humanas sejam positivas, ou seja, se pudessem eliminá-las com certeza o fariam.

E então apresenta o segundo argumento de Parens que diz que faríamos distinção no valor do atleta que alcançasse feitos sem e aqueles com o aprimoramento, criando assim uma discriminação. O autor rebate a argumentação comparando os atletas atuais com os atletas da Grécia antiga, dizendo que os critérios de excelência e realização mudaram, porque são dinâmicos e nem por isso se pode dizer que os primeiros tenham menos méritos que os segundos. Ainda na relação com o atleta afirma que há alguns que são geneticamente superiores de forma natural e por isso muitas vezes se

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considera os que aprimoraram de forma não natural como imorais. Porém o autor mostra que a maior parte de nossos aprimoramentos são não naturais, ou seja, para sermos os melhores não basta ter uma carga genética avantajada mas é necessário ter os melhores professores e muito tempo de treino.

Diz que os opositores não aceitariam a inclusão da educação como não natural e imoral, portanto desenvolve outra argumentação, que seria questionar essa proteção do ‘natural’ como se o ‘natural fosse bom’, o que se sabe que nem sempre é verdade. Assim admite que em alguns casos seja válido, quando o natural não for bom, alterar positivamente o genoma humano. E por fim passa a tratar dos argumentos positivos para realizar o aprimoramento. O primeiro deles é que ele aumentaria a felicidade, ou seja, conseguiríamos fazer o bem com menos esforço e em menos tempo. (O que se aproxima muito do argumento utilitarista). Porém apresenta outro argumento, agora kantiano, que seria a segunda formulação do imperativo categórico, tratar as pessoas sempre como fins e nunca somente como meios. E esse argumento rebateria a objeção em relação a influência do aprimoramento das células germ-line sobre as gerações futuras. E acrescenta utilizando a teoria de Rawls sobre os bens primários, ou seja, aqueles que todos concordariam como sendo bons, ele pensa que esse aprimoramento seria válido para os bens primários, uma vez que as gerações futuras concordariam que ele seria um bem. De forma que esse argumento é chamado bicondicional: deve satisfazer a condição de bens primários e ser um consenso dos seres racionais. Alguns exemplos de aprimoramento de bens primários seriam, saúde, força, velocidade e visão. Porém não haveria um determinismo genético pois o indivíduo teria a potencialidade para ser desenvolvida segundo sua vontade e a interferência do meio. De forma que conclui que o aprimoramento genético é permissível se e somente se aumentar a quantidade de bens primários. E podemos acrescentar segundo o pensamento de Rawls, se aumentasse a quantidade de bens primários para todos, uma vez que é a primeira condição de uma sociedade justa.

Enfim, se mostra que a teoria de Rawls, em seus vários elementos (véu de ignorância, plano racional de vida, princípios de justiça, loteria natural, bens primários), é orientadora para vários filósofos que vem pensando os diversos tipos de enhancement. Mas o que considero mais importante em Rawls é o seu pensamento como um todo que ocupa uma posição de intermediação entre diferentes teorias éticas: como o utilitarismo, o kantismo e o intuicionismo. Na sua obra Uma teoria da justiça ele descreve o utilitarismo. Com este, a justiça como equidade tem em semelhante a análise das consequências de uma ação e, como diferente e principal crítica, a desvalorização da minoria frente a um benefício da maioria. Em relação ao intuicionismo, os dois princípios da justiça como equidade são, de certo modo intuitivos, mas, diferente deste que pressupõe uma multiplicidade de

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princípios e não pressupõe um método de resolver esses conflitos, Rawls pensa em uma ordem lexical onde o primeiro princípio é mais importante que o segundo, ou seja, o princípio da desigualdade só ocorre se for satisfeito o princípio da igualdade equitativa de liberdades. No pensamento de Kant é onde Rawls encontra mais semelhanças, comparando o Imperativo Categórico com os dois princípios da justiça, acrescentando, porém, a ideia da posição original que permite que a justiça seja aplicada não propriamente ao indivíduo mas, principalmente, à estrutura básica da sociedade. Em Liberalismo político ele continua tratando da relação da sua teoria com as duas anteriores e enfoca mais uma diferença que seria considerá-las como teorias abrangentes diferente da sua teoria, que por não pretender julgar as outras como verdadeiras ou falsas, mas apenas oferecer os dois princípios de justiça, e orientar como resolver os diferentes conflitos gerados pelo embate entre as diversas teorias abrangentes, não seria uma teoria abrangente, mas sim política.

A necessidade de um pensamento ético de tal calibre aparece no artigo de Thomas Douglas quando este procura definir qual a natureza do moral enhancement. Ele percebe a dificuldade em se apoiar nas doutrinas éticas conhecidas uma vez que elas não conseguem alcançar um consenso sobre as justificativas das ações. Apesar de resolver a questão dentro de seu texto, sugerindo casos em que as ações pudessem ser justificadas, ele não propõe um pensamento ético estruturado que dê conta desses problemas. Rawls, ao contrário, apresenta um pensamento estruturado e com seus diversos conceitos: como das teorias abrangentes, véu de ignorância, os princípios da justiça, conceito de personalidade moral, consenso sobreposto, etc; pode oferecer soluções para os muitos problemas éticos colocados pelo enhancement. Desta forma a teoria de Rawls aparece como uma possível ética do enhancement, ou seja, orientadora da aplicação e ocorrência dos diversos tipos de enhancement. Essa possibilidade o insere, sobremaneira, na reflexão ética do século XXI.

REFERÊNCIAS

ALLHOFF, Fritz. Germ-Line genetic enhancement and rawlsian primary goods. Journal of evolution and technology. Vol. 18 issue 1 – September 2008, pp. 10-26. CALDERA, Eva Orlebeke. Cognitive enhancement and theories of justice: contemplanting the malleability of Nature and self. Journal of evolution and technology. Volume 1, issue 1, may 2008, pp. 116-123. DeGRAZIA, David. Enhancement technologies and human identity. Journal of medicine and philosophy. Vol. 30, pp. 261-283. 2005.

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FARRELLY, Colin. Genes and social justice: a rawlsian reply to moore. Bioethics. Vol. 16, number 1, 2002. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Nova tradução, baseada na edição americana revista pelo autor, Jussara Simões. Revisão técnica e da tradução Álvaro de Vita. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção justiça e direito). SODERBERG, William. Genetic enhancement of child’s memory. Consultado em 20 de outubro de 2011: http://www.faculty.umb.edu/gary_zabel/Courses/Moral%20Issues%20in%20Medicine/Reproduction/Genetic%20Enhancement.html

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MORAL ENHANCEMENT: PRINCÍPIOS DE UMA QUESTÃO, UMA QUESTÃO DE

PRINCÍPIOS

Lindoaldo Vieira Campos Junior*

1. INTRODUÇÃO

A compreensão dos fundamentos do comportamento humano não

é uma busca recente: remonta aos primórdios da história e tem sido realizada por destacados pensadores e estudiosos das mais diversas esferas do conhecimento.

Nas últimas décadas, porém, este tema tem alcançado uma dimensão que ultrapassa os âmbitos das áreas do conhecimento que tradicionalmente o têm como objeto de pesquisa (a exemplo da psicologia e da sociologia), provocando o envolvimento de perspectivas como a da Filosofia, à vista, sobretudo, do surgimento de consideráveis avanços tecno-científicos e da consequente e premente necessidade da adoção de uma postura crítico-reflexiva no que respeita às diversas e profundas implicações éticas suscitadas.

Neste contexto, ganham evidência a bioética e a neuroética. A bioética respeita ao “estudo sistemático, de caráter multidisciplinar, da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais”1.

A neuroética, por sua vez, refere-se às “discussões sobre as implicações éticas, legais, educacionais e sociais das neurociências, assim como aos aspectos associados à natureza da pesquisa em si”2.

Nesta senda, alguns dos tópicos mais relevantes consistem no que se convencionou denominar de moral enhancement (aprimoramento moral) e cognitive enhancement (aprimoramento cognitivo), que consistem, em apertada síntese, no projeto de melhoramento da capacidade humana de apreensão de conhecimentos e de determinação (e atuação) a partir de normas de conduta gerais.

Como consequência, impõe-se a necessidade de problematização de alguns de seus aspectos, relacionados, no presente texto, aos elementos

* Mestrando no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRN. Link para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7439272088934257 contato: [email protected] 1Paulo A. de Carvalho Fortes, Reflexões sobre a bioética e o consentimento esclarecido, p. 129. 2 Mirella Paiva et al, Neuroética: a disciplina do Século XXI, p. 1. Segundo estes autores, “como

uma disciplina formal, a Neuroética foi estabelecida em uma conferência intitulada 'Neuroethics: Mapping the Field', em maio de 2002 – São Francisco/EUA”.

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fundamentais que devem nortear sua aplicação, ou seja, ao enhancement de princípios.

2. MORAL ENHANCEMENT: UMA APROXIMAÇÃO Conforme já se adiantou, o moral enhancement consiste no projeto de

melhoramento (ou aprimoramento) moral dos sujeitos sociais, ou seja, no aperfeiçoamento de sua capacidade de autodeterminação e de atuação a partir de regras gerais de conduta através de intervenções clínicas em seu organismo (sobretudo no cérebro)3.

Cuida-se, portanto, da utilização de técnicas biomédicas para a modificação da estrutura psicológica dos seres humanos com o propósito de atenuar (ou extinguir) o “déficit moral” de indivíduos propensos à prática de atos lesivos ao corpo social, a exemplo daqueles que possuem “uma forte aversão a determinados grupos raciais” e “o impulso a agressões violentas”4.

O moral enhancement é pensado, portanto, não apenas como medida adequada mas imprescindível, mesmo, para o corpo social; e não apenas para a sua estabilidade mas para a sua própria sobrevivência, tendo em mira a necessária coexistência pacífica entre homens e povos.

3. UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS O moral enhancement pressupõe que os comportamentos humanos

possuem uma sólida e identificável base biológica5 e que, desta forma, é possível identificar, analisar e modificar clinicamente os processos neurais associados a processos cognitivos e afetivos complexos, como a personalidade e o julgamento moral, remetendo, em suma, ao questionamento dos níveis de racionalidade existentes nos processos de tomadas de decisão, o que, à evidência, suscita calorosos debates acerca de temas fundamentais da filosofia

3 Como método tradicional, o aprimoramento moral é realizado, sobretudo, através da

escolarização, ou seja, do desenvolvimento do papel das instituições educacionais (em sentido lato), de forma que a expressão moral enhancement é reservada para identificar o melhoramento através de intervenções clínicas (cirúrgicas ou por meio do uso de drogas).

4 A expressão e os exemplos são de Thomas Douglas, in Moral Enhancement, p. 230. 5 A tônica dos exemplos assinalados por Thomas Douglas (vide nota anterior) recai, bem

se vê, na violência (que é, em suma, o principal caractere da “forte aversão a determinados grupos sociais” – grifou-se). A importância desta observação está em que é possível pensar que um dos pressupostos da defesa que este pesquisador faz do moral enhancement biomédico (inclusive por meios coercitivos) consiste em pressupor que nos comportamentos violentos seja teoricamente possível (e quiçá mais fácil) identificar os componentes bioquímicos (ou seja, as possíveis bases biológicas e não apenas antropológicas) que estariam na base de determinadas ações humanas.

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e da ética, a exemplo da liberdade, do livre-arbítrio e da responsabilidade6. Deste modo, embora imbuídas dos mais relevantes e dignos

intentos e preocupações, certo é que o moral enhancement deve ser objeto de amplas e profundas reflexões, sobretudo no que diz respeito aos princípios morais que se pretende devam nortear a sua realização, questionamento que, a toda evidência, não pode prescindir de considerações sobre os aspectos histórico-sociais dos sujeitos cuja moralidade se pretende aprimorar.

Ademais, isto se faz tão mais necessário quando se tem em mira que, malgrado a existência de diversos e profundos favorecimentos – inclusive morais – advindos do uso das novéis tecnologias7, a problematização do moral enhancement a partir dos princípios que devem reger sua efetivação coaduna-se perfeitamente com os princípios basilares da bioética, que podem ser assim sintetizados:

1. princípio de não-maleficência (primum non nocere), que diz respeito à

não-causação de dano; 2. princípio da beneficência, que, para além da não-maleficência

(omissiva), exige a prática de ações que visem o bem estar das pessoas;

3. princípio de respeito à autonomia, que se refere ao poder (direito) que o ser humano tem de decidir sobre si mesmo e

4. princípio da justiça, que se relaciona à distribuição coerente e adequada de deveres e benefícios sociais8.

Deste modo, se é inquestionável que, como elemento da bioética, o

moral enhancement encontra-se substancialmente entrelaçado a estes princípios, 6 Como o assinalam Mirella Paiva e Fernando Paiva,

muito embora a neurociência esteja identificando as bases neurais associadas aos processos cognitivos, afetivos e ao comportamento humano por meio dos recursos de neuroimagem, é essencial que a sociedade e a comunidade científica não minimizem as influências sociais e culturais às quais o ser humano está submetido. (Neuroética: a disciplina do Século XXI, p. 2)

7 Lincoln Frias elenca alguns destes favorecimentos: o sequenciamento do genoma humano incentivou a publicidade dos resultados, os transplantes e a transfusão sanguínea incentivam a solidariedade, a moratória da bomba de hidrogênio, a criação bancos de dados para serviços de bem-estar social, isso sem falar no aumento da comunicação, interação, desenvolvimento da imaginação, potencialização da empatia e da simpatia, da compaixão e da sensibilidade moral maximizados não só pela criação dos computadores da world wide web, mas também dos filmes, documentários, do telefone e da televisão etc. (Tecnologia e moralidade: Rousseau e Jonas, p. 2)

8 Este é o chamado Principialismo de Beauchamp e Childress, a que se referem Tom L. Beauchamp e James F. Childress, in Principles of Biomedical Ethics (4 ed. New York: Oxford University Press, 1994), apud Jussara de Azambuja Lochkipper, Princípios da bioética, p. 1.

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tem-se que é plenamente possível e teoricamente justificável assinalar a implicação entre ambos através de formulações como as seguintes:

1. o princípio de não-maleficência e o 2) princípio de beneficência – apontam

para a impossibilidade de se prever, neste momento, as consequências (benéficas ou prejudiciais) – inclusive neurológicas – advindas da sujeição de indivíduos ao moral enhancement (sobretudo por meios biotecnológicos)9;

2. o princípio de respeito à autonomia – indica a necessidade de um amplo debate sobre a questão da liberdade, sobretudo porque o moral enhancement biomédico é defendido por alguns como medida obrigatória10;

3. o princípio da justiça – assinala a necessidade de se levar em consideração a circunstância de que o moral enhancement possa dar ensejo à criação de castas ou, de qualquer modo, de intoleráveis diferenciações entre indivíduos com base em elementos biológicos11.

9 Acerca deste ponto, vale assinalar a preocupação de cientistas com pesquisas médicas que

envolvem animais, temendo “que experimentos envolvendo transplante de células acabem criando anomalias, como macacos com a capacidade de pensar e falar como os humanos”. Segundo uma reportagem veiculada recente na internet,

o campo mais polêmico é o de animais com características 'singularmente humanas', os experimentos que o relatório chama de 'tipo Frankenstein, com animais humanizados'. Segundo o relatório, 'criar características como a linguagem ou a aparência humana nos amimais, como forma facial ou a textura da pele, levanta questões éticas muito fortes'. (Cientistas temem que pesquisas médicas criem macacos falantes. Disponível em http://noticias.uol.com.br/bbc/2011/07/25/cientistas-temem-que-pesquisas-edicas-criem-macacos-falantes.jhtm)

10 Cfr. Thomas Douglas, Moral Enhancement, p. 229 e ss. Uma dramatização bastante aterrorizante de uma forma de desrespeito ao princípio do respeito à autonomia é oferecida na obra Admirável mundo novo, de Adous Huxley (1931), fábula futurista de uma sociedade completamente organizada sob um sistema de castas em que a vontade livre fora abolida por meio de um condicionamento científico e metódico e em que a servidão se tornou aceitável mediante a administração de doses regulares de felicidade quimicamente transmitida por uma droga chamada Soma e onde as ortodoxias e ideologias eram propagandeadas em cursos noturnos ministrados durante o sono. A respeito desta e de outras utopias (p. ex., Nova Atlântida, de F. Bacon, e 1984, de George Orwell), veja-se Marcelo Pelizzoli, Da utopia tecnocêntrica à utopia ecológica.

11 Este é, aliás, um dos principais tópicos da eugenia, ou seja, da manipulação da estrutura genética do ser humano com o propósito de obter o “melhoramento” da espécie. Embora este seja um tema transversal ao presente texto, ele pode ilustrar uma das

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Ora, se se tem em mira que, de acordo com estudiosos, drogas com potencial inibidor de impulsos já são comercializadas, resta imprescindível e premente atentar para a necessidade do estabelecimento de tais parâmetros de conduta.

Como relata Mônica Teixeira,

Os especialistas dão notícia também da mais nova droga com potencial “aperfeiçoador” – modafinil, já comercializada sob o nome Provigil nos EUA e na Grã-Bretanha. A indicação da bula, aprovada pelo FDA, é para o tratamento da narcolepsia. Mas já se observa um crescente uso para outras indicações. Um estudo já realizado sobre o uso da droga por jovens saudáveis mostra que seus efeitos, “ao menos em parte, resultam em uma melhoria na habilidade de inibir respostas impulsivas”.12

Por tais razões, uma das formas de contribuir de modo mais

aplicações do princípio da justiça da bioética, de forma que registramos as sérias advertências que Rifkin faz à eugenia, ao assinalar:

A segregação dos indivíduos com base no perfil genético representa uma passagem fundamental no exercício do poder. Em uma sociedade onde o indivíduo pode vir determinado pelo genótipo, o poder das instituições torna-se absoluto. Ao mesmo tempo, a crescente polarização da sociedade entre indivíduos e grupos geneticamente «superiores» e geneticamente «inferiores» poderia criar uma nova e potente dinâmica social. As famílias que podem permitir-se programar características genéticas «superiores» em seus filhos no momento da concepção podem assegurar às suas progênies uma grande vantagem biológica, e então mesmo uma vantagem econômica e social. (Il secolo biotech. Il commercio genetico e l’ínizio di una nuova era – Milano: Baldini & Castoldi, 2000: 215-216 – apud Lilian Fonseca, Hans Jonas e a responsabilidade do homem frente ao desafio biotecnológico, p. 62)

12 Mônica Teixeira, Notícia preliminar sobre uma tendência contemporânea: o “aperfeiçoamento cognitivo”, do ponto de vista da pesquisa em neurociências, p. 499. A esse respeito, é de se registrar que estudos recentes têm questionado a proposição segundo a qual as doenças mentais são provocadas por desequilíbrios químicos. Para Márcia Angell,

quando se descobriu que as drogas psicoativas afetam os níveis de neurotransmissores, surgiu a teoria de que a causa da doença mental é uma anormalidade na concentração cerebral desses elementos químicos, a qual é combatida pelo medicamento apropriado ... (A epidemia de doença mental, p. 45)

Segundo essa pesquisadora, essa proposição consiste em “uma grande pirueta lógica” que atende aos interesses de empresas que vendem drogas psicoativas, que “passaram a determinar o que constitui uma doença mental e como os distúrbios devem ser diagnosticados e tratados”.

Desse modo – conclui a pesquisadora –, em vez de desenvolver um medicamento para tratar uma anormalidade, uma anormalidade foi postulada para se adequar a um medicamento. (Id ibid)

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construtivo para esse debate consiste em refletir acerca dos princípios morais que se pretende sejam implementados em razão do aprimoramento moral dos indivíduos. E se esta é uma tarefa que incumbe também – e sobremodo – à filosofia (cujo papel, nesses tempos, “tornou-se também o de vigiar os abusos de poder da racionalidade política”13), é possível que, na esteira do pensamento de Kant, possamos apontar para a necessidade de se dar “um passo atrás” a fim de “buscar e fixar o princípio supremo da moralidade”14 que deve orientar a perspectiva do moral enhancement, ou seja, de enfrentar o tortuoso cominho para o delineamento do enhancement de princípios15.

4. KANT E O UTILITARISMO: UM DIÁLOGO TÃO

POSSÍVEL QUANTO NECESSÁRIO A bioética, é sabido, aponta para a responsabilidade para com as

questões do cotidiano e das relações humanas em todas as dimensões, não se limitando a grandes temas (como o projeto genoma humano, o aborto, a eutanásia ou os transgênicos), incluindo, também, os campos da experimentação com animais e com seres humanos

Por essa simples mas poderosa razão, é necessária uma nova proposição ética, referida à pessoa humana considerada em sua dignidade, que nada mais significa que o respeito à sua integridade física e mental.

Neste contexto, com o propósito de delinear, em termos gerais, os princípios a partir dos quais o moral enhancement pode ser realizado, é possível (quiçá necessário) estabelecer um diálogo entre Kant e Stuart Mill, polarizando e aproximando, portanto, a moral kantiana e o utilitarismo, expressos, respectivamente, através do Imperativo Categórico e do Princípio da Utilidade.

Vejamos: como é sabido, o Imperativo Categórico é expresso por Kant nos seguintes moldes:

13 Michel Foucault, Dits et Écrits (v. IV. Paris: Gallimard, 2001, p. 1043), apud Rogério Luis

da Rocha Seixas, A condição estratégica do exercício do poder em Michel Foucault, p. 73. 14 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 106. É evidente, não se

pretende (não se poderia pretender) lançar as bases de um sistema moral, mas, apenas, de assinalar a importância de se refletir sobre os fundamentos que, de qualquer modo, devem presidir a aplicação de qualquer medida que diga respeito a tão importantes questões da ética.

15 Tomo a expressão de empréstimo a Cinara Nahra, in Moral enhancement: o aprimoramento moral da humanidade, p.58, que assinala, ainda, que “o enhancement de princípios [...] não é suficiente para a promoção do enhancement moral”, sendo “necessário aprimorar também [...] o nosso conjunto de motivações”. Malgrado a importância e o acerto destas assertivas, por razões de ordem didática este texto limita-se à pesquisa dos fundamentos para a própria realização do aprimoramento.

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Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.16

Por sua vez, no utilitarismo de Bentham, o Princípio da Utilidade (ou Grande Princípio da Felicidade) pode ser expresso nos seguintes termos:

A maior felicidade para o maior número (de pessoas) é o fundamento da moral e da legislação.17

Mill, por seu turno, perfaz profundas mudanças no princípio

utilitarista do Cálculo Felicífico, pois se, para Bentham, a felicidade consistia em fugir da dor e se aproximar do prazer, Stuart Mill sobreleva o aspecto qualitativo em detrimento do aspecto quantitativo. Dessa forma, não é só importante o quanto uma pessoa é feliz, o quanto ela está afastada das dores e próxima dos prazeres, mas, e principalmente, como essa felicidade está construída” 18 (o que, de todo modo, envolve princípios um tanto fluidos mas que nem por isso (ou talvez mesmo por causa disso) tornam atual a discussão sobre o utilitarismo).

Desse modo, se se tem em mira que, para Kant, todo sentimento prático decorre exclusivamente da razão e o sentimento patológico advém das afecções sensíveis, nesse sentido (e apenas nesse sentido), penso que é possível concordar com Richard Hare, quando sustenta uma vinculação entre o sistema kantiano e o utilitarismo, quando assinala:

Mesmo a parte aparentemente não utilitarista da doutrina da virtude de Kant, e de seu sistema inteiro, fica apenas a um passo do utilitarismo. Isso acontece porque mesmo a virtude da perfeição, aparentemente não utilitarista, requer que aspirantes a ela se aperfeiçoem no amor prático.19

Assim, sem que se pretenda adentrar na fértil mas calorosa

discussão sobre a possibilidade de identificação de uma ética utilitarista em Kant, o que se está a propor, aqui, é, tão-somente, uma indicação para a harmonização entre estes princípios, com vista à configuração de um cânone moral que possa oferecer um fundamento aceitável para a realização do moral enhancement.

16 Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 129. 17 Bentham, Princípios da moral e da legislação, apud Ari R. Tanki Brito, Introdução à obra Sobre

a liberdade, de John Stuart Mill, p. 11. 18 Idi ibid., p. 14. 19 Ética: problemas e propostas, p. 214.

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5. HANS JONAS E O PRINCÍPIO DE RESPONSABILIDADE: UMA PROPOSTA

Cumpre assinalar, desde logo, que os próprios princípios da bioética

a que nos reportamos linhas atrás encontram-se fundamentados em teorias éticas deontológicas e consequencialistas, ou seja, nas éticas kantiana e utilitarista.

É o que indica Jussara Lochkipper, quando, a respeito do princípio de respeito à autonomia, entende que

está eticamente fundamentado na dignidade da pessoa humana. Beauchamp e Childress buscam subsídio em Immanuel Kant e em John Stuart Mill para justificar o respeito à autodeterminação. I. Kant, em sua ética deontológica, explicita que a dignidade das pessoas provém da condição de serem moralmente autônomas e que, por isso, merecem respeito. Diz, ainda, que é um dever moral tratar as pessoas como um fim em si mesmas e nunca apenas como um meio. Apesar de pertencer a uma corrente filosófica diferente do deontologismo kantiano, J. S. Mill, um dos expoentes do utilitarismo anglo-saxão do séc. XIX, posiciona-se de maneira semelhante quando escreve que deve ser permitido aos cidadãos se desenvolverem de acordo com suas convicções pessoais, desde que não interfiram com a mesma expressão de liberdade dos outros.20

Nessa senda, e sem que se perca de vista que o objetivo primordial

de qualquer princípio ético deve ser, de qualquer modo, a coexistência pacífica entre as pessoas e os povos, torna-se perfeitamente plausível conceber a conjugação do imperativo categórico kantiano e do princípio do consequencialismo milliano através da fórmula do Princípio de Responsabilidade formulado por Hans Jonas:

Age de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida sobre a Terra.21

No Princípio de Responsabilidade, bem se percebe, a tônica recai

na expressão “vida autêntica”, circunstância que tem gerado algumas críticas a esta formulação, no sentido de que esta referência sugeriria uma 20 Princípios da bioética, p. 4. 21 Hans Jonas, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica,

p. 32. Outras formulações deste princípio podem ser assim expressas: Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade de uma autêntica vida sobre a Terra. Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer.

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indeterminação teórica que o tornaria volúvel e, por fim, inservível, uma vez que dependente das considerações pessoais de seus aplicadores.

Ocorre, todavia, que se deve ter em mira que o Princípio de Responsabilidade consiste em um elemento principiológico, que, por isso mesmo, é perfeitamente cambiável em razão dos fatores sócio-históricos das sociedades, mas que, não obstante, é amplamente reconhecido pelos estudiosos da ética contemporânea, inclusive quando se trata de questões relacionadas à bioética; nestes casos, fala-se da dignidade humana como uma espécie de sacralização transcendente:

No dualismo primordial que opõe na bioética as éticas inspiradas pela transcendência religiosa [...] e as bioéticas totalmente secularizadas, mesmo assim se respeita a “dignidade humana” como uma sacralização transcendente do próprio ser humano [...]22

Dito de outra forma: o índice de indeterminação da expressão “vida

autêntica” não é maior ou menor de que aquele que se aplica a uma “moral aprimorada” e, portanto, não é mais ou menos indicativo de sua propriedade de configuração como fundamento para a realização do moral enhancement.

Programáticos, ambos os conceitos não podem admitir qualquer engessamento em relação a uma conceituação prévia e, por isso mesmo, tendem a evoluir em razão do contexto em que aplicados23. É o que, a respeito da própria bioética, diz Hubert Lepargneur:

A bioética será sempre uma construção discutida e retocável; se a ciência de toda época é tributária dos instrumentos do saber da época, a bioética, por sua vez, sem nunca ser única e universal, é tributária da ciência e das culturas da época. Cada sociedade tem a bioética que merece ou lhe convém.24

Desta feita, para que não nos tornemos (e não tornemos aos

outros) meros sistemas programados de conduta, é necessário aprofundar o debate e trazer para o centro da discussão os aspectos relacionados à determinação de princípios fundamentais para a adequada realização de qualquer espécie de modificação no ser humano.

Sem que se resvale para qualquer tipo de naturalismo rousseauniano, uma tal atitude tem ao menos a preocupação de não causar

22 Hubert Lepargneur, Promoção da humanidade futura: enhancement, p. 313. 23 A esse respeito, Jussara Lochkipper acentua que, embora o Principialismo da bioética

tenha gerado críticas – sobretudo quanto a seu caráter relativo –, certo é que, na bioética contemporânea, apresenta um conjunto de postulados básicos que não podem ser ignorados (Princípios da bioética, p. 3).

24 Hubert Lepargneur, Promoção da humanidade futura: enhancement, p. 311.

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dano às pessoas (primum non nocere) e de não subtrair algo de sua dignidade. 6. INCONCLUSÃO A antropotecnologia é um fato: em todo o mundo, pesquisadores

concentram-se em elaborar métodos e manipular elementos físico-químicos capazes de provocar modificações profundas na estrutura psíquica das pessoas.

Daí porque se torna cada vez mais imprescindível e urgente a inserção da filosofia no debate que deve ser formado, sobretudo, a respeito das implicações éticas que acompanham tais procedimentos.

Uma forma de que isso seja feito consiste, precisamente, na discussão sobre os princípios que devem reger não apenas as condutas dos pesquisadores, mas, também, a realização do aprimoramento a que se dedicam.

Daí porque, embora não se defenda a “teoria do bom selvagem” de Rousseau nem, tampouco, se desconsidere os benefícios advindos das novéis tecnológicas, uma formulação de um princípio ético poderia levar em conta um diálogo entre a ética kantiana e a ética utilitarista, através do Princípio de Responsabilidade, tal como proposto por Hans Jonas, segundo o qual não se deve implementar tecnologias cujos efeitos e/ou riscos não se controla e/ou não se conhece, princípio prudencial tão evidente que aparece até em ditados populares (como, aliás, estariam as proposições morais, segundo Thomas Douglas).

Cuida-se, portanto, de uma atenuação da questão apresentada por Savulescu trazida por Hans Jonas, pois para este o progresso ético não acompanhou o progresso intelectual, e dentro deste o conhecimento do homem não acompanhou o conhecimento da natureza.

A questão, pois, não se resume ao “conhecimento pelo conhecimento”, mas diz respeito, antes, à aplicação que se lhe oferece. A questão, como se percebe, é bastante problemática, mas certamente teremos avançado muito se pudermos contribuir para que ela seja posta em termos adequados.

7. REFERÊNCIAS

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MORAL ENHANCEMENT – UMA DISCUSSÃO DE SEUS PRESSUPOSTOS

Maria Fernanda Cardoso Santos1

1. O DEBATE ACERCA DO MORAL ENHANCEMENT Podemos afirmar que há uma percepção generalizada de que o

mundo passa por uma profunda crise moral. As duas Grandes Guerras, o advento do socialismo e seu declínio e a crise ambiental são amiúde evocados como eventos que, desde o século passado, atestam a urgência de que se faça uma revisão dos valores que guiam a humanidade como um todo. Em resposta a essa crise de valores vem-se buscando conforto e diretrizes morais na religião, na política, na medicina, na psicologia e na filosofia. Entre a grande diversidade de ferramentas de que se lança mão para sanar essa mazela moral estão aquelas que advêm dos estudos no campo das neurociências. Neste campo, os pesquisadores buscam compreender o nosso funcionamento cerebral, considerando que há uma intrínseca relação entre este e os nossos comportamentos. O conhecimento produzido nas neurociências tem possibilitado a aplicação das descobertas acerca dos nossos mecanismos neurológicos em vários campos da nossa vida cotidiana, tanto com fins terapêuticos quanto com fins de aprimoramento, objeto de discussão do presente trabalho e de uma polêmica que será também aqui apresentada.

Quanto à aplicação desse conhecimento para fins terapêuticos, não há tanta controvérsia. Poucos se atreveriam a condenar a busca de sanar enfermidades como o Mal de Alzheimer e mazelas afins. Há, sim, a discussão moral acerca dos meios empregados na pesquisa e no desenvolvimento de tais terapêuticas – experimentos com animais, por exemplo – mas não em relação às terapêuticas em si. A celeuma se faz quando o assunto não é restituir a saúde por meios artificiais, mas incrementar organismos saudáveis através daqueles mesmos meios criados com fins terapêuticos ou já com o objetivo de incremento. Atualmente estão sendo estudadas maneiras de “turbinar” as potencialidades humanas e entre elas está o uso de medicamentos e substâncias químicas para o que se denomina enhancement – palavra do inglês que podemos traduzir por “aprimoramento”. Embora estejam sendo empreendidas pesquisas sobre o aprimoramento em vários níveis – físico, cognitivo e moral –, no presente trabalho se enfocará apenas a problemática que envolve as discussões sobre este último: o aprimoramento moral ou moral 1 Professora na Faculdade Câmara Cascudo, Natal-RN. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6537070083017531Contato:[email protected]

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enhancement . O tema é polêmico por tocar justamente na crise contemporânea de valores, em especial dos valores da sociedade ocidental, que na nossa realidade globalizada atinge escala mundial.

E o que é o moral enhancement? Nahra, professora e pesquisadora do Departamento de Filosofia da UFRN, o define assim: “Moral enhancement nada mais é do que o aprimoramento moral de cada um de nós, e da humanidade como um todo.” (NAHRA, 2012, p. 56). Do ponto de vista das biociências, com pressupostos que consideram o ser humano segundo uma perspectiva evolucionista, na qual a predeterminação genética desempenha um papel fundamental e a ideia de evolução da espécie é a premissa básica, a pertinência de procurar recursos vários para atingir o objetivo do enhancement é consensual. Também parece que se pode afirmar que o mesmo se dá em relação ao senso comum: no geral, a maioria das pessoas quer e apoia a ideia de que melhoremos moralmente, e esse apoio se reforça pela percepção já mencionada de que estamos vivendo, desde o século passado, uma profunda crise moral.

Se parece haver consenso em torno à ideia de que não só é permissível, mas também desejável moralmente que nos aprimoremos, como indivíduos e como humanidade, a questão que se coloca é acerca de como se daria o moral enhancement. Há aqueles que defendem que deveríamos nos preocupar em melhorar o alcance e a qualidade dos meios tradicionais de aprimoramento – a educação e a política – e há os que acreditam que o uso de meios artificiais que o acelerem e o facilitem seria uma maneira de fazer frente com maior eficiência à urgência dos problemas que a humanidade vem enfrentando. Neste cenário, há uma discussão que envolve as seguintes posições:

- Os bioconservadores2 condenam a ideia de enhancement por meios artificiais porque, segundo eles, como consequência de sua aplicação teríamos uma modificação tão extrema de nossa natureza de espécie que já não mais nos reconheceríamos como humanos. Por não sabermos o que uma transformação deste porte acarretaria, seria mais prudente nos atermos aos meios tradicionais, preservando com isso a nossa identidade como espécie. A manipulação genética com estes fins de melhoramento também é por eles condenada, uma vez que se estaria violando a dignidade e a liberdade humana, impondo a estes indivíduos modificados o desejo alheio, seja dos pais, seja da sociedade. Além disso, outro argumento do qual os bioconservadores lançam mão é o de que correríamos o risco de criar castas e estratos no seio de nossa mesma espécie, gerando uma diferenciação que se intensificaria de maneira tal que chegaríamos ao ponto de nos dividirmos entre humanos e transhumanos. 2 No livro de Bostrom, In defense of Post-human dignity, vários nomes são citados: Fukuyama, Leon Kass, George Annas, Wesley Smith, Jeremy Rifkin e Bill McKibben. Habermas e Sandel também se encaixam nessa posição. (Informação citada no artigo de DIAS, 2010)

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- Do outro lado do debate, estão os que assumem uma postura pro-enhancement ou a favor de uma bioliberation, esses que também podem ser chamados de trans-humanists3 (DIAS, 2010, p. 31). Os adeptos dessa posição defendem que é permissível e desejável moralmente que se modifique os indivíduos para que nos aprimoremos como espécie humana. Entre os que defendem essa posição há uma série de subposições que se encontram em debate: a) Há os que defendem, como Harris (2010), que o enhancement cognitivo

seria suficiente para o nosso aprimoramento moral, ou seja, para essa perspectiva a deficiência moral é decorrente da cognitiva. Tornando-nos mais “inteligentes” a maior parte dos problemas decorrentes de uma falta de discernimento moral seria sanada. Para melhorarmos cognitivamente seria permissível e desejável moralmente que lançássemos mão dos recursos descobertos pelas ciências do cérebro (medicações, modificações genéticas ou o que mais estivesse ao nosso alcance);

b) Há também aqueles que afirmam, como Perrson & Savulescu (2008), que o enhancement moral deve ser condição para o cognitivo, já que incremento da inteligência sem o desenvolvimento moral poderia ter consequências desastrosas para a humanidade. Para estes, o enhancement moral não só é permissível como obrigatório, de maneira que propõem que o emprego de meios para tal (no caso, principalmente substâncias químicas capazes de alterar nossa pré-disposição comportamental com o fim de reduzir ou eliminar a aversão racial e a tendência a reações violentas desmedidas) seja obrigatório para todos os indivíduos humanos;

c) E, por último, há aqueles, como Douglas (2008), que defendem, concordando com Perrson & Savulescu, que é permissível e desejável moralmente o moral enhancement, mas não o postulam como obrigatório.

O presente trabalho pretende oferecer outra perspectiva para esta discussão. Em lugar de defender uma ou outra posição – a favor ou contra o enhancement – a proposta aqui é a de tomarmos distância para fazer a crítica dos próprios pressupostos que embasam ambas posições. São eles:

1) a ideia de que haveria uma essência humana a priori, algo que genética ou transcendentalmente nos definiria como humanos segundo alguns parâmetros definidos e identificáveis;

2) a ideia de que seria possível constatar uma linearidade na história humana que aponta para uma evolução.

Esta reflexão crítica será feita a partir dos fundamentos da perspectiva aberta pelos estudos de Michel Foucault e Friedrich Nietzsche.

3 Entre eles John Harris, Thomas Douglas e Ingmar Perrson e Julian Savulescu.

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2.1 CRÍTICA À NOÇÃO DE NATUREZA HUMANA Seguindo a perspectiva de Foucault e de Nietzsche, começaremos a

nossa discussão pela crítica à ideia de que haveria uma natureza humana, uma essência comum a todos os humanos, que serviria de parâmetro para a comparação entre cada um de nós e para a atribuição de valores positivos ou negativos a nossas atitudes morais. Foucault faz essa crítica à ideia de uma natureza humana, sobretudo em seu livro de 1966, As Palavras e as Coisas (1992), no qual aborda o surgimento das ciências humanas e procura mostrar que o próprio conceito de humano a que este campo de estudos se refere é construído por inúmeras interrelações de poder e saber. Neste livro, o autor chega mesmo a anunciar a “morte do homem”, referindo-se justamente ao fato de que esta mesma noção de sujeito moderno, assim como “apareceu”, forjada em um longo e gradual processo, pode um dia desvanecer-se, “como, na orla do mar, um rosto de areia” (FOUCAULT, 1992, p. 536).

De fato, Foucault procurou demonstrar, em várias de suas obras, o quanto nossa própria constituição como sujeitos se faz a partir de modos de assujeitamento diversos. Segundo ele, nesse processo atuam, entre outros modos de assujeitamento, aqueles em que somos classificados a partir de categorias várias, que exercem um papel cada vez mais determinante em nossas vidas. Assim, ele diz que entre as várias categorias com as quais nos identificamos, nos jogos em que se entrelaçam saberes e poderes, são classificados “o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os ‘bons meninos’” (FOUCAULT, 1995, p. 208) sempre em relação a um ideal construído de humano “melhor”, “normal”, “bom”, “adaptado”. Lidamos com essas categorias como se fossem algo transcendental, a priori, imutável, e demonstrar o quanto essas categorias são construídas é fundamental para que, com a crítica acerca dessas construções, possamos exercer a nossa liberdade, ainda que essa seja também sempre relativa, uma vez que a nossa própria constituição é atravessada por determinações várias. Uma vez que, segundo a perspectiva de Foucault, essas categorias não são apenas da alçada das verdades científicas, pois decorrem de uma série de valorações morais, a crítica à ideia de natureza humana é também uma crítica à ideia de valores morais absolutos.

Em relação a esse tema dos valores podemos nos remeter aos estudos empreendidos por Nietzsche em sua Genealogia da Moral (1988), na qual ele procura estabelecer a origem dos valores morais ocidentais, concluindo que a maneira como estes surgiram e se consolidaram como princípios para reger nossos comportamentos não é tão nobre e ideal como poderia parecer e que “falta, consciência, dever, têm seu centro de emergência no direito de obrigação; e em seus começos como tudo o que é grande sobre a terra, foi banhado em sangue” (NIETZSCHE, 1988, p. 67). Os princípios

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morais, segundo Nietzsche, são forjados em múltiplas disputas, tendo origem muito mais impura do que suporíamos e sendo construídos no campo das relações concretas entre os humanos, em sua luta pela sobrevivência. Seguindo, pois, as suas ideias e considerando que os valores morais são construídos, não podemos falar em “valores absolutos”: não há, na visão que expomos aqui, o Bem, o Mal ou a Verdade em si mesmos, pois estes, por serem constituídos historicamente, são relativos.

Se relacionamos estas duas críticas – a de Foucault à noção de natureza humana e a de Nietzsche acerca de nossos valores morais – podemos concluir que definir o que seria “melhorar” moralmente como humanidade é uma tarefa muito mais complexa do que talvez pareça. Como saber o que é o “melhor” para a humanidade de forma absoluta se os valores – aquilo que permite referenciar algo como melhor ou pior – e a ideia de humanidade são relativos, construídos por uma série de interrelações entre saberes e poderes que se dão em diversos campos de nossa vida concreta?

2.2 CRÍTICA À ATRIBUIÇÃO DE LINEARIDADE À

HISTÓRIA Se não há valores absolutos e se nossas subjetividades são

construídas, não temos como identificar de forma inconteste se estamos melhorando moralmente e nem como atribuir uma linearidade à história, já que careceríamos de referências absolutas para delinear uma teleologia para os acontecimentos. É por isso que Nietzsche propõe, em lugar de uma abordagem que considera a história um crescente vencimento de etapas rumo a uma meta universal, a abordagem genealógica, que procura investigar o passado sem um “olhar de fim de mundo”, evitando concebê-lo como se cada passo daquilo que generalizamos como a humanidade fosse uma etapa para chegar aonde estamos4. A genealogia proposta por Nietzsche procura, como diz Foucault, “manter o que se passou na dispersão que lhe é própria” (FOUCAULT, 1992, p. 21). Essa perspectiva genealógica de Nietzsche é adotada também por Foucault e implica em uma postura de reserva cética que não atribui aos fatos um encadeamento necessário, deixando em aberto as interpretações que se possa fazer das relações entre eles. Assim, tomando a história como uma sucessão de interpretações, na perspectiva genealógica se assume a relatividade da maneira como a valoramos e avaliamos a sua evolução. Ou seja, segundo essas visões, se queremos manter certo rigor cético, não devemos atribuir a nenhuma dessas interpretações um valor absoluto e é por isso que Foucault propõe que deixemos os fatos passados em sua própria dispersão. Uma vez que é fruto de um trabalho interpretativo, a

4 Cf. Nietzsche, 1998 e 2005

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atribuição de linearidade à história seria um passo demasiado apressado, que deveríamos evitar sob a pena de estarmos sendo pouco rigorosos em relação ao que se nos apresenta.

Além da recusa à noção de natureza humana e de linearidade da história, estas perspectivas também colocam em discussão os conceitos de normalidade e patologia. Falar em aprimoramento é eleger certas noções de normalidade mas, como podemos ver também em “O Normal e o Patológico” (2002), de Canguilhem, as ideias de normalidade e patologia são construções – “invenções”, para usar um termo caro a Nietzsche – e não questioná-las, não submetê-las à crítica, pode significar assumir uma sutil sujeição no sentido de nos “normalizar” e nos adaptar a condições que consideramos dadas, existentes por si mesmas. E foi justamente assumindo essa perspectiva de criticar e situar essas categorias normalizantes como construções, que Foucault expôs, no curso Em Defesa da Sociedade (2000), sua desconfiança de que haveria uma profunda cumplicidade entre o desenvolvimento das ciências que se ocupam de vida (biologia, etologia e psicologia experimental) e os adventos do fascismo e do nazismo.

Segundo Foucault, as ciências que buscaram o “melhoramento” da espécie, a eugenia, e que, a partir de pressupostos biológicos, classificaram os indivíduos de acordo com sua compleição genética para buscar promover a melhoria da espécie, formularam os mesmos argumentos que estiveram na base do terror do fascismo e do nazismo. Isso teria se dado de uma maneira tal que teria culminado na naturalização do racismo e do preconceito: haveria aqueles que, “de nascença”, seriam melhores ou piores e os piores deveriam ser melhorados ou eliminados. As consequências concretas da aplicação destas ideias na primeira metade do século XX sabemos que foram trágicas e deploráveis... Por efeitos como esses é que defendemos aqui a necessidade de parcimônia ao tocar nesse assunto do “melhoramento”.

Aliás, sobre o tema Nietzsche também tece algumas reflexões em “O Crepúsculo dos Ídolos”, reflexões que vão na mesma linha que as de Foucault. Diz ele: “Sempre se quis ‘melhorar’ os homens: sobretudo a isso chamava-se moral. Mas sob a mesma palavra se escondem as tendências mais diversas. Tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma determinada espécie de homem foram chamados de ‘melhora’.” (NIETZSCHE, 2008, p. 49-50). Quando critica os objetivos de amansamento e de cultivo de espécies humanas, Nietzsche chama a atenção para o caráter nada arbitrário desses melhoramentos, ressaltando o quanto estão sempre atravessados de “tendências mais diversas”. Ou seja, quem quer que esteja postulando o que é o “melhor” terá sua visão de mundo própria, construída em uma realidade determinada, além de seus objetivos próprios. Seguindo a essas perspectivas críticas, podemos concluir, em relação à discussão sobre o

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moral enhancement, que começar a pensar em como efetuá-lo sem discutir a própria ideia de aprimoramento, de melhoramento, é, no mínimo, precipitado.

3. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE AS IDEIAS DOS

DEFENSORES DO MORAL ENHANCEMENT, DESDE A PERSPECTIVA CRÍTICA DE NIETZSCHE E FOUCAULT

Baseando-nos na discussão acima, que é possibilitada pela

perspectiva crítica de Nietzsche e Foucault, também podemos pensar de outra forma a questão do combate à aversão racial e ao impulso agressivo, ambos problemas considerados urgentes por Perrson & Savulescu (2008) e que, segundo eles, deveriam ser alvo de procedimentos artificiais em prol de um aprimoramento moral que os eliminasse ou atenuasse. Se pensarmos, seguindo a Foucault, que há uma ligação bastante forte entre alguns dos pressupostos que embasam as “ciências da vida” e a naturalização do preconceito, parece necessário retroceder para examinar os pressupostos e objetivos do enhancement para evitar que se promovam meios de exclusão e dominação através dos mesmos conhecimentos que pretendem combatê-los.

Além disso, há que se estar atento para o fato de que esse tipo de abordagem individualizante, que coloca como responsável pelas mazelas morais do mundo o sujeito e suas deficiências de ordem neurológica ou genética, pode terminar por falsear a múltipla origem e determinação da maneira como agimos. Por trás de um comportamento agressivo descontrolado pode estar uma fundamentada (mas talvez mal encaminhada) revolta contra sistemas injustos que usam do discurso de anormalidade para exigir do indivíduo que ele se adapte e não transforme seu entorno. Como saber a diferença entre uma revolta “bem intencionada” e outra que não o é? Parece haver certo perigo em considerar que as concepções de justiça e altruísmo, baseadas no evolucionismo e em que se fundamentam as neurociências, sejam verdade inconteste. É fundamental estabelecer a constante crítica em relação a estas concepções, devido ao risco que essa naturalização de nossas subjetividades oferece.

Há outro caminho que a linha cética aqui apresentada propõe e que parte da ideia de que, sendo construídos e sem determinação prévia, podemos também transformar nossas condições em diferentes direções. Ao rejeitar a classificação e a normalização, abre-se espaço para que novas subjetividades possam coexistir e se respeitar em suas diferenças. Esse caminho não se baseia na esperança de uma liberação, da conquista de uma utopia que promete a paz e a harmonia na humanidade. É um caminho que encara os riscos como parte de nossa aventura humana e que considera que esse trabalho de “melhorar-se” é da alçada da adesão, da escolha de cada indivíduo, algo que tem validade na medida em que se configura como uma atitude de comprometimento da

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pessoa consigo mesma, em sua busca de conhecer e cuidar de si mesma. Nesse caso, não falamos de uma moral universalizante, que se pretenderia válida para todos, mas de éticas particulares, baseadas na adesão e na singularidade.

Deste modo, ao não considerar a possibilidade de conceber uma moral universal per se ensejamos à construção de uma ética que substitua a ideia de universalidade pela de solidariedade5, na qual os princípios sejam construídos na confrontação de diversas perspectivas. Esta seria a aplicação do princípio do respeito ao outro, à sua singularidade. Para isso, teríamos, segundo essa perspectiva, que repensar formas de abrir espaço para o diálogo, com todas as implicações que isso tem – confronto, diferenças e possibilidade de mudança. Apostar nessa possibilidade seria abrir mão de uma utopia liberadora, sem dúvida. O mais provável é que não cheguemos, por essa via, a um determinado estado em que finalmente se conquista a paz universal. Podemos, isso sim, conquistar pequenas liberdades, cotidianas, que se dão em uma agonística6, em um processo de luta, de combate perpétuo, no qual os caminhos vão se fazendo e em que os lugares a que se chega não são passíveis de uma previsão.

Cabe ressaltar que essa proposta de uma construção solidária (e agonística, ao mesmo tempo) de um debate moral não significa que deveríamos abrir mão de conquistas jurídicas importantes para cair em um relativismo generalizado. O que se propõe nessa linha é que não tomemos como argumento para nossas conquistas legais uma naturalização de nossa moral – seja ela baseada em princípios transcendentais ou biológicos – mas que deixemos sempre o caráter construído delas em relevo, com isso abrindo espaço para a transformação. Seria, portanto, uma postura positivista no sentido jurídico.

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS A perspectiva apresentada é criticável, sem dúvida. Pois é fato que a

situação mundial nos gera uma aflita necessidade de resolução de nossos males. Porém, a história é imprevisível. Há que estar atento para não pegar um “longo caminho curto”, para não nos apressarmos nas soluções por conta da urgência dos problemas. Necessário se faz, portanto, somar vozes ao debate sobre o enhancement, antes de mais nada. Necessário também oferecer outras perspectivas, desde outros pressupostos, para nos exorcizarmos do “perigo da história única”, como diz a escritora nigeriana Chimamanda Adichie7: uma 5 Cf. FORNET BETANCOURT, 2003 6 Cf. SOUSA FILHO, 2008 7 Sua concepção de “história única” exposta em um vídeo do Ted, disponível na internet em

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história que toma como universal o que é particular e com isso restringe caminhos e impossibilita transformações que só no futuro iremos lamentar como riquezas desperdiçadas. Sem pressa para postular um caminho determinado e absoluto para nossa felicidade, talvez possamos encontrar soluções inusitadas e criativas para uma humanidade que se definirá cada vez mais por sua diversidade e amplitude de formas possíveis.

5. REFERÊNCIAS

CANGUILHEM, George, 2002. O Normal e o Patológico, Forense Jurídica, Rio de Janeiro. DIAS, Maria Clara e VILAÇA, Murilo, junho de 2010. Metamorfoses do Humano. Ethic@, Florianópolis, pp. 29-42, http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/et91art3%20Maria%20Clara.pdf (em 28/11/11). DOUGLAS, Thomas, 2008. Moral Enhancement. Journal of Applied Philosophy, No. 3, Blackwell Publisshing Ltd., Oxford/UK e Melden/USA. FORNET BETANCOURT, Raúl, 2003. Interculturalidad y filosofía en América Latina, Revista Concordia, Aachen.

FOUCAULT, Michel, 1979. La Arqueología del Saber, Siglo Veintiuno, México ______, 1992. As Palavras e as Coisas, Martins Fontes, São Paulo ______, 1995. Dois ensaios sobre o sujeito e o poder, pp. 231-249, In: Michel Foucault, Uma Trajetória Filosófica: para além do Estruturalismo e da Hermenêutica, Forense Universitária, Rio de Janeiro. ______, 2000. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976), Martins Fontes, São Paulo. HARRIS, John, 2010. Moral Enhancement and Freedom. Bioethisc, Blackwell Publisshing Ltd., Oxford/UK e Melden/USA. NAHRA, Cinara, 2012. Moral enhancement: o aprimoramento moral da humanidade. In: NAHRA, C.; OLIVEIRA, A. C. (orgs.). Aperfeiçoamento Moral

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(Moral Enhancement). Natal: Programa de Pós-graduação em Filosofia – UFRN.

NIETZSCHE, Friedrich, 1988, Genealogia da Moral, Editora Brasiliense, São Paulo. ______, 2005, Escritos sobre História, Loyola, São Paulo. ______, 2008, Crepúsculo dos Ídolos, Companhia das Letras, São Paulo. PERRSON, Ingmar & SAVUSLESCU, Julian, 2008. The perils of Cognitive Enhancement and the Urgent Imperative to Enhance the Moral Character of Humanity. Journal of Applied Philosophy, No. 3, Blackwell Publisshing Ltd., Oxford/UK e Melden/USA. SOUSA FILHO, Alípio, 2008. Foucault: o cuidado de si e a liberdade ou a liberdade é uma agonística. In: Cartografias de Foucault, Autêntica, Belo Horizonte.

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ENSAIO SOBRE O APRIMORAMENTO MORAL

Rafael Lucas de Lima*

Meu objetivo neste ensaio é analisar e discorrer brevemente acerca do conceito de aprimoramento moral (moral enhancement), que, sob essa designação, pertence ao contexto da contemporaneidade. No entanto, podemos afirmar que o núcleo desse conceito, aquilo ao qual ele remete, é bem mais antigo e pode ser encontrado em diferentes expressões do pensamento filosófico, da Grécia à China e à Índia, constituindo mesmo a esfera de preocupação de toda uma parte da filosofia, a saber, da ética. Esse núcleo nada mais é que o desenvolvimento moral de cada um e de todos os indivíduos, de maneira que suas ações sejam orientadas para aquilo que é considerado bom e desviadas do que se considera mal. Por isso, sob o conceito de aprimoramento moral subjaz uma preocupação com o ethos, entendido quer no sentido de hábitos ou modos de ser (εθος), quer no sentido de caráter (ηθος). Desse modo, o aprimoramento moral visa engendrar bons hábitos e modos de viver, assim como um bom caráter.

No entanto, entre os pensadores contemporâneos que estão na vanguarda desse campo de estudo, não há consenso no que tange aos meios que poderiam ser ou não utilizados para promover esse aprimoramento, bem como no que ele consistiria propriamente. De uma lado, o que se convencionou chamar de pós-humanistas, que defendem a possibilidade de utilizarmos qualquer meio moralmente bom que esteja ao nosso alcance para melhorarmos nossas capacidades cognitivas e morais; do outro, os bioconservadores, que não aceitam a utilização de qualquer meio para o aprimoramento daquelas capacidades, quer por acreditarem que com isso estaríamos alterando a “natureza humana”, quer por considerarem os processos tradicionais de aprimoramento – tais como a educação, a socialização, a orientação e supervisão dos pais sobre a formação dos filhos, etc. – como sendo os melhores. Com efeito, passo agora a analisar as perspectivas de alguns desses pensadores.

No artigo Moral Enhancement,1 Thomas Douglas considera o aprimoramento moral em termos de aprimoramento de motivações. Para ele, “a person morally enhances herself if she alters herself in a way that may

* Professor substituto do Departamento de Filosofia da UFRN. Doutorando em Filosofia Prática no Programa Interinstitucional de Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN. Mestre em Filosofia pela UFRN. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2433212907531497 e-mail para contato: [email protected] 1 DOUGLAS, Thomas. Moral Enhancement. In: Journal of Applied Philosophy, vol. 25, n. 3, 2008, pp. 228-245.

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reasonably be expected to result in her having morally better future motives, taken in sum, than she would otherwise have had”.2

Segundo essa perspectiva, o aprimoramento moral é uma alteração psicológica num indivíduo, que o leva a ter, ao fim e ao cabo, um conjunto de motivos moralmente bons para orientar suas ações. Embora Douglas não se considere um pós-humanista, podemos considerar que ele defende a tese pós-humanista segundo a qual é moralmente permissível suscitar nos indivíduos esse conjunto de motivos moralmente bons por meios não tradicionais, mais especificamente, a partir do uso de tecnologias biomédicas (drogas, cirurgias, implantes e próteses etc.), as quais, segundo ele, já são bastante utilizadas em diversas áreas – tais como nos esportes, na música, nas universidades ou nas forças armadas, âmbitos onde, por exemplo, drogas são utilizadas para melhorar a performance dos indivíduos naquilo que eles têm que fazer. Isso não quer dizer, todavia, que os meios tradicionais de aprimoramento deveriam, para Douglas, ser deixados de lado.

Ingmar Persson e Julian Savulescu, no artigo The Perils of Cognitive Enhancement and the Urgent Imperative to Enhance the Moral Character of Humanity,3 assumem uma posição muito semelhante à de Douglas, na medida em que não somente são favoráveis ao uso de meios biotecnológicos para promover o aprimoramento moral dos indivíduos e da humanidade, como também o vêem sob o prisma de uma alteração psicológica. Desse modo, ao passo que o primeiro considera o surgimento de melhores motivos como expressão do aprimoramento, os últimos consideram que nossas disposições – isto é, nossas propensões para fazer ou deixar de fazer alguma coisa – é que devem ser melhoradas. Mas, ao mesmo tempo, a proposta de Persson e Savulescu também se distancia da de Douglas na medida em que eles propõem a compulsoriedade da utilização de meios biotecnológicos (se disponíveis) para submeter às técnicas de aprimoramento os evil individuals e immoral people.4 Acerca dessa submissão, veja-se o seguinte trecho do artigo supracitado: “Biomedical and genetic means may be much more effective in terms of both how thoroughly and quickly they could improve everyone in need of improvement”.5

Para Persson e Savulescu, há indivíduos que são wholly morally depraved or corrupt6 e que, por isso mesmo, não estão dispostos a se tornarem pessoas moralmente melhores. O principal argumento erigido pelos autores para sustentar a tese da compulsoriedade do aprimoramento moral segue no 2 Idem, ibidem, p. 229. 3 PERSSON, Ingmar; SAVULESCU, Julian. The Perils of Cognitive Enhancement and the Urgent Imperative to Enhance the Moral Character of Humanity. In: Journal of Applied Philosophy, vol. 25, n. 3, 2008, pp. 162-177. 4 Cf. ibidem, pp. 162-163. 5 Cf. ibidem, p. 168, grifos meus. 6Loco citado.

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sentido de que essas pessoas moralmente depravadas e corruptas são ameaças reais a toda a humanidade. Dada a grande difusão do conhecimento científico-tecnológico, bem como dos produtos que dele derivam, o acesso a armas de destruição em massa, por exemplo, não é tão restrito quanto desejam as principais potências ocidentais (pense-se na atual ofensiva desses Estados contra o Irã, Estados esses que não desejam, para si mesmos, refrear seu desenvolvimento bélico), o que pode possibilitar àquelas pessoas o acesso e o uso de tais armas.

Com essa proposta, no entanto, os autores desconsideram a esfera do livre arbítrio, que permanece preservada em Douglas,7 e abrem espaço para muitos perigos, que podem ser expressos nestes e noutros termos: quem decidirá quem deve ser aprimorado?; quais disposições devem ser melhoradas para aprimorar moralmente alguém?; quais valores nortearão os julgamentos acerca do que é ou não moral?; em quais casos seria necessário aprimorar alguém?; e se esse alguém não quisesse ser submetido a técnica alguma de aprimoramento? Com efeito, percebe-se claramente que muitos e variados são os problemas que adviriam da efetividade prática de uma perspectiva como essa. Ademais, os autores parecem preocupados com as consequências da utilização dos frutos do desenvolvimento científico-tecnológico por parte de terroristas e de pessoas más, mas não consideram que essa mesma utilização seja igualmente perigosa, no que tange ao aprimoramento moral compulsório.

Em patente oposição às duas perspectivas anteriores encontra-se John Harris. A oposição consiste, primeiramente, no que se segue: se Douglas, Persson e Savulescu apostam alto na utilização de meios biotecnológicos para promover o aprimoramento moral, Harris aposta nos meios tradicionais, tais como a educação e a produção de conhecimentos, posição que podemos ver neste trecho de Moral Enhancement and Freedom:

Science, innovation and knowledge production, particularly education, are I believe our chief hope of finding solutions to the most threatening sources of probable mass destruction and are moreover our only proven form of moral enhancement to date (and have proved very effective).8

Em segundo lugar, Harris rompe com a perspectiva psicologista de

enhancement, que o identifica quer com a presença de melhores motivações para as ações (Douglas), quer com melhores disposições (Persson e Savulescu). Para Harris, essa perspectiva coloca em xeque a liberdade humana, uma vez

7 A quinta assunção do cenário no qual seria, para Douglas, moralmente permissível que alguém aprimorasse a si mesmo valendo-se de meios biotecnológicos, resguarda a livre iniciativa do agente. Cf. DOUGLAS, 2008, p. 234. 8 HARRIS, John. Moral Enhancement and Freedom. In: Bioethics, 2010, p. 9.

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que prioriza o papel dos meios biotecnológicos na consecução do agir moral, deixando de lado a autonomia dos seres humanos como fundamento último desse agir. O aprimoramento moral dos indivíduos e da humanidade deve, para Harris, preservar a esfera da liberdade, do livre arbítrio, ou, parafraseando Harris, deve nos deixar livres para cair.

Um terceiro ponto distancia ainda a perspectiva de Harris da de Persson e Savulescu, a saber – esses autores sugerem que a marcha do desenvolvimento científico e tecnológico, bem como do aprimoramento cognitivo (entendido como melhoria das nossas capacidades de obter conhecimento através do pensamento, da experiência e dos sentidos), seja retardada, porque, segundo eles, esse desenvolvimento e esse aprimoramento se dão muito mais rapidamente que o aprimoramento moral dos indivíduos e da humanidade, de modo que, se não for contido, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia colocará à disposição de pessoas cada vez menos aprimoradas moralmente toda sorte de tecnologias, máquinas, aparelhos etc. que poderão ser utilizados para causar danos aos seres humanos. Enquanto Persson e Savulescu pensam desse modo, Harris sugere precisamente o contrário – que seja pesquisado e incentivado o uso de técnicas de aprimoramento cognitivo, uma vez que isso constituiria um meio indireto para a promoção do aprimoramento moral e, quiçá, para enfraquecer a akrasia.

O quarto e último artigo ao qual farei menção é o Moral enhancement: o aprimoramento moral da humanidade, de Cinara Nahra. Nesse artigo, a filósofa brasileira apresenta como que uma síntese das perspectivas anteriores, tocando em pontos nos quais os pensadores acima mencionados não se permitiram demorar, a exemplo do problema da akrasia – que, para Nahra, é um dos principais motivos para o agir imoral –, da definição do que seja moral enhancement, bem como da referência explícita aos princípios que orientariam nossos julgamentos e nossas ações. Além disso, Nahra propõe uma perspectiva de aprimoramento moral fundamentada numa teoria moral deontológico-utilitarista, na qual estariam presentes elementos da ética normativa kantiana e do utilitarismo de J. S. Mill.

Segundo Nahra, “o moral enhancement (aprimoramento moral da humanidade) está relacionado a três coisas: a) aos princípios que nós usamos para guiar nossos julgamentos e nossas ações; b) ao nosso conjunto de motivações e c) às ações em si mesmas”.9 Para Nahra, os princípios que orientam os nossos julgamentos e ações estão susceptíveis a também serem aprimorados. Isso quer dizer que se hoje nos valemos de um princípio – por exemplo, o da dignidade da pessoa humana – o mesmo pode ser aprimorado, 9 NAHRA, Cinara. Moral enhancement: o aprimoramento moral da humanidade. In: NAHRA, C.; OLIVEIRA, A. C. (orgs.). Aperfeiçoamento Moral (Moral Enhancement). Natal: Programa de Pós-graduação em Filosofia – UFRN, 2012. p. 56.

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de maneira que passe a acolher outros setores da vida humana que ainda não se encontrariam compreendidos no conceito que hoje temos de dignidade: dignidade do ser humano no trabalho, no exercício da vida política, nas relações comerciais etc. Os princípios que serviriam para balizar nossas ações deveriam ser universais, isto é, deveriam ser válidos para a maior parte dos povos e dos indivíduos.

No que tange à referência a um conjunto de motivações, Nahra se aproxima da perspectiva de Douglas. Motivações devem ser entendidas como sendo os móbiles de nossas ações. Nesse sentido, se tivermos melhores motivações para agir e, ao mesmo tempo, também nos valermos de princípios moralmente e universalmente válidos, então, como consequência, decorrerá que as nossas ações, em si mesmas, serão moralmente boas.

Nahra se mantém próxima do que pensam Douglas, Persson e Savulescu ao defender o uso de meios biotecnológicos para promover o aprimoramento moral dos indivíduos e da humanidade, e concorda com Harris, ao reconhecer o papel dos meios tradicionais na promoção desse aprimoramento.

Após essa breve exposição acerca das principais posições sobre o que seja moral enhancement, convém agora tecer algumas considerações sobre as mesmas.

Parece-me que todos os artigos mencionados ao longo deste ensaio manifestam uma mesma preocupação: a que diz respeito à necessidade, cada vez mais premente, de promovermos nosso próprio aprimoramento moral e o da humanidade, como meio para tentarmos conter a destruição do planeta, de outros seres humanos e mesmo a proliferação de diversos outros males decorrentes, direta ou indiretamente, da imoralidade das ações humanas, em todos os âmbitos possíveis. O aprimoramento moral desponta, assim, como a solução mais plausível para os problemas com os quais nos deparamos neste começo de século XXI.

Outra tese comum a todos os autores citados é a insistência na moralidade e necessidade do uso de meios biotecnológicos para alcançar um nível aceitável de aprimoramento moral dos seres humanos. Estou plenamente de acordo no que tange à utilização desses meios para esse fim nobre, desde que seja preservada a liberdade de escolha de cada indivíduo no que diz respeito ao uso ou não, na sua própria pessoa, de qualquer técnica que vise à promoção do enhancement moral. Mesmo em casos extremos, como nos de assassinos, estupradores ou terroristas, sou categoricamente contrário ao uso compulsório dessas técnicas, precisamente pelo fato de que, com isso, estaríamos concedendo ao Estado ainda mais poder sobre uma área da existência humana na qual ele deve ter a menor capacidade de interferência possível, qual seja: o desenvolvimento da nossa individualidade. Além disso, consistiria em pequenez de espírito e em mera relutância reacionária não

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aceitar a transformação da realidade e permanecer com a ideia de que apenas os meios tradicionais são os mais dignos de atingir o fim do qual aqui tanto falei. É necessário, pois, que permaneçamos abertos e atentos a todas as atividades, relações e processos sociais dos quais possam resultar oportunidades e métodos para promovermos nosso próprio aprimoramento moral e o da humanidade, sem deixar, com isso, de reconhecer a educação e o progresso do conhecimento como os principais meios que, através dos séculos, nos trouxeram até aqui.

REFERÊNCIAS

DOUGLAS, T. Moral Enhancement. Journal of Applied Philosophy, Vol. 25, No. 3, 2008. pp. 228-245. Disponível em: http://oxford.academia.edu/TomDouglas/Papers/79362/Moral_Enhancement HARRIS, J. Moral Enhancement and Freedom. Bioethics. Volume 25, Number 2, February 2011. p. 102-111. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-8519.2010.01854.x/pdf NAHRA, Cinara. Moral enhancement: o aprimoramento moral da humanidade. In: NAHRA, C.; OLIVEIRA, A. C. (orgs.). Aperfeiçoamento Moral (Moral Enhancement). Natal: Programa de Pós-graduação em Filosofia – UFRN, 2012.

PERSSON, I. & SAVULESCU, J. The Perils of Cognitive Enhancement and the Urgent Imperative to Enhance the Moral Character of Humanity. Journal of Applied Philosophy, vol. 25, n. 3, 2008. Disponível em:http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-930.2008.00410.x/pdf

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REFLEXÕES SOBRE O APRIMORAMENTO MORAL: HUMANOS PODEM SER PERFEITOS?

Sônia Soares*

RAZÕES PARA UM APRIMORAMENTO POR MEIO DE TECNOLOGIAS BIOMÉDICAS: A RESPEITO DA POSIÇÃO DE DOUGLAS

A possibilidade do uso de tecnologias biomédicas – incluindo a

engenharia genética – para o aprimoramento (enhancement) humano tem suscitado, nas últimas duas décadas, um debate constituído de múltiplos posicionamentos envolvendo, de um lado, os que defendem o fim das barreiras para a obtenção dos resultados advindos das novas tecnologias, tendo em vista as perspectivas de uma vida melhor para todos, e de outro, os que advogam a necessidade de limites para o uso de tais tecnologias, em virtude das ameaças que representam.

No artigo Moral Enhancement, Thomas Douglas (2008) chama de ‘aprimoramentos biomédicos’ aquelas tecnologias biomédicas que podem ser usadas para alterar características de pessoas saudáveis, que se distinguem das tecnologias usualmente empregadas como terapia para manter ou restaurar a saúde. A questão que o autor coloca é se o uso de tais biotecnologias de aprimoramento seria moralmente permitido, em um cenário em que as práticas de aprimoramento fossem tecnicamente viáveis, para as todas as pessoas em um futuro próximo (os próximos cem anos) 1.

Neste artigo, vou me deter na proposição de Douglas – e suas inconsistências – acerca de uma das possibilidades de uso de meios biotecnológicos para o aprimoramento moral, que consiste no controle das emoções que levam ao impulso para a agressão violenta. Considerando que a questão se coloca no campo da filosofia prática, questiono se é possível ignorar a distinção entre aprimoramento e terapia, e incluo, na discussão que o autor faz acerca da permissibilidade moral deste tipo de aprimoramento, os seguintes problemas: o não comprometimento com uma moral, qualquer que seja; o não esclarecimento do que sejam motivos melhores para agir; e a não garantia de que motivos melhores levem à ação moral. Apresento minha interpretação sobre as objeções kantianas delineadas por Douglas, e o que * Professora-Assistente do Departamento de Nutrição da UFRN. Doutoranda no Programa Interinstitucional de Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN. Link para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5052938745600316 e-mail para contato: [email protected]

1 Douglas, T. Moral Enhancement. Journal of Applied Philosophy, Vol. 25, nº 3, p. 228-245, 2008.

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Kant poderia dizer sobre a questão. Concluo com algumas indagações a respeito da relação ciência-técnica-ética e o papel da filosofia no contexto de busca da perfeição pós-humanista.

O APRIMORAMENTO MORAL Para defender o uso de tecnologias biomédicas tendo em vista o

aprimoramento humano, Thomas Douglas se concentra em um tipo específico: o aprimoramento moral, entendido por ele como a obtenção, para si, de motivos (moralmente) melhores. Apesar de esclarecer o que são ‘motivos’, já que sua ênfase será neles – estados ou processos psicológicos mentais ou neurais que levam uma pessoa a agir, na ausência de motivos contrários –, o autor prefere omitir das suas considerações o aspecto ‘moral’2.

Aprofundarei posteriormente a problemática de tratar de um ‘aprimoramento moral’ sem referências a uma moral, qualquer que seja, pois no caso do aprimoramento cognitivo, por exemplo, que produz melhorias na memória e na inteligência, é bem claro do que se trata. Deste modo, para defender sua tese, seria necessário que Douglas pudesse estabelecer o que são então os ‘motivos (moralmente) melhores’ e de que forma estes estariam relacionados à moralidade. Afinal, como avaliar a ocorrência ou não deste tipo de aprimoramento? Testes de memória e de inteligência são amplamente conhecidos, mas, no caso do aprimoramento defendido por Thomas Douglas, como ‘testar’ um indivíduo moralmente aprimorado?

Em linhas gerais, o que o autor propõe é um aprimoramento obtido a partir do seguinte cenário:

1. Por meio de uma intervenção biomédica, espera-se que o indivíduo passe a ter um conjunto de motivos melhores no futuro – o que não ocorreria sem a intervenção;

2. Sem a intervenção, espera-se que o indivíduo teria pelo menos alguns motivos ruins;

3. A intervenção biomédica age atenuando algumas emoções; 4. Não haveria efeitos diferentes do esperado: a intervenção apenas

provocaria a alteração psicológica necessária para produzir motivos melhores, e seus únicos efeitos seriam as consequências destas mudanças psicológicas;

5. A intervenção é uma livre escolha do indivíduo, que é feita pelas ‘melhores razões possíveis’.

Para defender-se das objeções, Douglas limita este aprimoramento ao campo das emoções que ele chama de ‘contra-morais’, e considera apenas

2 Douglas, que pretende permanecer ‘neutro’ na questão sobre o que seria a ‘bondade moral de um motivo’, na verdade, parece estar orientado pela visão da moral consequencialista, conforme tento mostrar mais adiante.

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duas delas: uma forte aversão a certos grupos raciais e o impulso para a violenta agressão.

Pode parecer difícil, à primeira vista, ser contrário a este aprimoramento por meios biotecnológicos, o qual, ao causar mudanças psicológicas em um indivíduo, provoca nele alterações destas emoções, resultando em menor aversão a certos grupos raciais e menor impulso à agressão violenta. É de se esperar, portanto, que isso leve o indivíduo a ter motivos melhores para agir, o que caracterizaria um ‘aprimoramento moral’. Na verdade, Douglas apenas quer se comprometer com a seguinte alegação: há algumas emoções, cuja redução, sob certas circunstâncias, constituiria um aprimoramento moral.

Neste caso, é inegável o papel das emoções no uso de meios biotecnológicos para o aprimoramento moral, e por isso, vou me deter agora neste aspecto.

O PAPEL DAS EMOÇÕES NO COMPORTAMENTO

ÉTICO A partir do exemplo dado por Douglas, tem-se a impressão que ele

estaria comprometido com uma ética baseada nas emoções, de tal modo que o aprimoramento moral seria decorrência de um ‘controle emocional’, controle esse, segundo a primeira assertiva estabelecida no seu argumento, que só poderia ser obtido por meios biotecnológicos. Assim sendo, as técnicas biomédicas utilizadas, a administração de drogas que pudessem restabelecer a atividade da monoamina oxidase (MAO)3, por exemplo, seriam moralmente permitidas, tendo em vista seu efeito sobre o comportamento agressivo.

Considerando este exemplo, à luz dos estudos da neurociência que buscam estabelecer relações entre o comportamento humano e o funcionamento de áreas do cérebro determinado por conformações genéticas, então poderíamos pensar que os indivíduos cujo aprimoramento seria não apenas moralmente permitido, mas até desejado, constituem um grupo humano caracterizado por sua ‘má conduta’, sendo esta conduta atribuída ao 3 Esta enzima tem o papel de degradar neurotransmissores da família das catecolaminas (dopamina, serotonina, adrenalina), de modo que, em indivíduos que apresentam alterações no gene que produz a enzima, diminuindo sua atividade, verificam-se déficits cognitivos e mudanças comportamentais relacionadas a respostas agressivas. Os estudos a respeito da relação entre genética e comportamento acabaram se popularizando com forte apelo na mídia, com o uso dos termos ‘gene guerreiro’ (warrior gene) http://www.pnas.org/content/106/7/2118.abstract ou ‘gene assassino’ (murder gene) http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,1004083-1,00.html. Claro que os resultados de estudos desta natureza devem ser cuidadosamente interpretados, para evitar iniciativas de preconceito e discriminação que o conhecimento prévio do código genético do indivíduo poderia permitir.

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seu código genético (uma alteração em pedaços de gene). Se é assim, o ‘aprimoramento’ não poderia ser senão uma ‘terapia’.

A distinção comumente aceita entre terapia ou tratamento e aprimoramento admite que o que motiva o aprimoramento é o desejo, ao passo que a terapia seria motivada por genuínas necessidades médicas, definidas em termos de doenças, desvios de funcionamento ou segundo a ideologia médica dominante4.

Vamos supor que estamos diante de um indivíduo que apresente tal comportamento agressivo, pode ser um dos membros daquela família holandesa estudada por Brunner5. O que levaria este indivíduo a, como propõe Thomas Douglas, ‘livremente’, escolher o uso daquelas drogas para reduzir seu impulso à violência, talvez restabelecendo a atividade da MAO, que teria como consequências lhe dar ‘motivos melhores’ para agir, considerando que, no seu caso, o comportamento moralmente condenável é provocado por uma má formação genética? Como alguém, assim determinado geneticamente, buscaria livremente, pelas ‘melhores razões possíveis’, controlar tal emoção? E, ao fazê-lo, como isto poderia ser considerado um aprimoramento e não uma terapia? É perfeitamente plausível pensar o aspecto moral do indivíduo como sendo parte do seu ‘estado de saúde’, pois, uma conduta que socialmente é considerada moralmente incorreta pode levá-lo a uma situação de contínuo stress e sentimentos de aflição em função do julgamento alheio quanto ao seu comportamento.

Para refutar as objeções sobre violação à liberdade, que apontam para a possibilidade deste aprimoramento biomédico afetar o eu ‘autônomo’, na medida em que altera as características (psicológicas) internas do indivíduo, Douglas esclarece que tais alterações atingem mecanismos cerebrais geradores de emoções que fazem parte do ‘bruto’ eu, reduzindo sua influência, de modo que até permitiria ao ‘autêntico’ eu se manifestar mais livremente. Neste caso, o enhancement aumentaria a liberdade para ter e agir segundo bons motivos.

Até aqui, então, identifico dois problemas. Primeiro, não vejo como não se comprometer com uma teoria moral, se se quer propor realmente um ‘aprimoramento moral’, pois, qual o critério utilizado para julgar que ocorreu 4 DeGrazia, D. Enhancement technologies and human identity. Journal of Medicine and Philosophy, Vol. 30, nº 3, p. 261-283, 2005. 5 Por seguidas gerações, alguns homens da família pesquisada cometeram vários crimes, ao contrário de outros homens da mesma família. Foi constatado que aqueles que tiveram comportamento agressivo, associado a pequeno retardo mental, apresentavam total ausência de atividade de MAO, devido a uma mutação no cromossomo X que codifica a enzima. Cf. Brunner, H.G. et al. X-Linked Borderline Mental Retardation with Prominent Behavioral Disturbance: Phenotype, Genetic Localization, and Evidence for Disturbed Monoamine Metabolism. American Journal of Human Genetics, Vol. 52, nº 6, p. 1032-1039, 1993. Disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8503438. Acesso em 02 fev. 2012.

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o aprimoramento, quando tudo que resulta do aprimoramento são ‘motivos melhores’ para agir? Se o próprio autor, como visto, que não acha necessário se comprometer com nenhuma teoria moral, prefere não usar o termo ‘moral’ para o proposto aprimoramento – que ele defende possa ser permitido ‘moralmente’ – nem para as razões que levem a isto, então por que diríamos que se trata de ‘aprimoramento moral’ e não de uma terapia?

É preciso, pois, estabelecer o campo específico desta moral que pode ser individualmente aprimorada por meios biotecnológicos, sendo que no caso da correção de um impulso para a violência, não me parece tratar-se de aprimoramento moral, mas de uma terapia para corrigir um defeito genético relacionado à produção de um neurotransmissor. Numa perspectiva kantiana, por exemplo, poderíamos considerar que a expressão de um ‘bruto’ eu, que é dominado pelas emoções, revela um indivíduo adoecido, já que, segundo Kant, somente patologicamente o homem poderia ser dominado pelo arbitrium brutum6.

Retomando a posição de Douglas, devemos apenas aceitar que o indivíduo terá razões (morais) para buscar livremente motivos (morais) melhores com o uso da biotecnologia. Ter motivos melhores como consequência do uso das tecnologias biomédicas, é o que leva Douglas a sugerir que as razões para isso seriam morais. Neste caso, não se pode negar o viés consequencialista da sua argumentação. Deve ser moralmente permitido ao indivíduo aprimorar-se, por meio das biotecnologias, porque ao fazê-lo, ele terá motivos melhores para agir. Interessante observar que as teorias consequencialistas tendem a ignorar as emoções. No entanto, Douglas parte de uma ação que visa exatamente o controle das emoções, defendendo que tal ação seja moralmente permitida em função dos seus resultados.

O segundo problema relacionado ao primeiro (julgamento moral do comportamento) é que em nada o aprimoramento por meios biotecnológicos na forma como está proposto assegura um comportamento (moral) melhor, já que as técnicas que reduziriam aquelas emoções resultam apenas em ‘motivos melhores’, mas não em condutas efetivamente melhores. São, na verdade, uma possibilidade. Com isso, é possível afirmar que, mesmo valendo-se do princípio consequencialista, o resultado do ‘aprimoramento biomédico’ defendido por Thomas Douglas – ter motivos melhores – não é garantia de melhores consequências para a maioria das pessoas, até porque os motivos do indivíduo aprimorado podem permanecer desconhecidos, apesar de serem ‘melhores’, conforme promete a biotecnologia.

Penso que esta situação revela como é problemático aceitar a relação entre reduzir as emoções e ter melhores motivos. Atenuar emoções

6 Esta distinção Kant já havia feito em suas lições de ética. Cf. Lezioni di ética. Trad. Augusto Guerra. Bari: Laterza, 1991. Referida como LE, a partir de agora.

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não necessariamente melhoraria os motivos de alguém se a atenuação é ela mesma uma ação motivada. Para Douglas, o indivíduo que busca o aprimoramento tem as melhores razões possíveis, mas ele não esclarece que razões seriam essas, a não ser quando refere que ter boas consequências é o que faz bom o motivo.

Numa perspectiva teleológica kantiana isso parece bem mais claro, pois buscar a moralidade constitui já um dever da espécie, uma vez que se trata da realização final do homem. Entretanto, vamos admitir que o aprimoramento moral por meios biotecnológicos seja moralmente aceitável se tais meios, como diz Thomas Douglas, forem considerados como ‘complementares’ e não substitutivos das formas não biotecnológicas, como a Educação. Na verdade, o autor até propõe uma inter-relação entre os meios de aprimoramento, de tal modo que haveria uma sinergia: quanto mais o indivíduo se tornasse aprimorado pela educação, mais tenderia a buscar o aprimoramento por outras vias.

Porém, se observarmos a assertiva 1, somente a biotecnologia seria capaz de produzir motivos melhores, no caso específico do controle das emoções. Assim, não seria o caso de uma ‘escolha’ entre dois meios de aprimoramento, mas de ser permitido moralmente ou não, fazer tal uso. Nesse caso, o autor parece aceitar que pela educação não seria possível controlar as emoções. Isto é condizente com seu pensamento sobre a relação das emoções do bruto eu com a vontade. É como se o papel da educação na promoção e aprimoramento do comportamento moral fosse atuar sobre a vontade livre, cabendo à biotecnologia intervir sobre as emoções que afetam o livre-arbítrio.

Os defensores do enhancement parecem traduzir a crença, ainda comum tanto entre filósofos como entre cientistas, de que a ciência e a técnica sempre estarão a serviço de um aprimoramento humano, promovendo uma vida mais saudável e feliz para todos. Não é isso que parece ter ocorrido, uma vez que nunca tivemos tanto conhecimento e, ao mesmo tempo, nunca nos sentimos tão inseguros com o que a ciência e a técnica produzem no nosso cotidiano. A crença inabalável na ciência e no progresso, típica da modernização industrial, deu lugar à confrontação das ciências com seus próprios produtos, geradores de problemas, levando à necessidade de enfrentamento das ameaças de riscos globais derivados do avanço da ciência e das novas tecnologias, que não são diretamente percebidos.

Na sociedade de risco global7, é cada vez mais difícil reconhecer uma vida ‘natural’ e estabelecer uma fronteira nítida entre o natural e não natural, de modo que não me parece fácil aceitar a aparente simplificação

7 BECK, U. La società del rischio: verso una seconda modernità. e geram um estado de insegurança. Edizione italiana a cura di Walter Privitera. Roma: Carocci, 2008.

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resultante da redução da condição humana à mera matéria-prima da biologia genética ou molecular.

Podemos estar, então, diante de mais um mito: o da perfeição humana produzida pela ciência. Nesse caso, cabe perguntar se os cientistas são já ‘aprimorados’, quer dizer, eles produzem as drogas e outras tecnologias em função de ‘motivos melhores’ ou ‘pelas melhores razões possíveis’? Não creio que se possa responder afirmativamente a isso, aliás, o próprio Douglas reconhece a necessidade de ponderar os usos das tecnologias, para evitar que sejam utilizadas de modo indesejável.

Esta preocupação é muito pertinente, pois, o que se vive hoje, é uma situação em que parece não haver limites definidos entre o que é ‘dado’, como natureza, e o que pode ser ‘oferecido’ pela ciência e pela técnica, de forma orientada para um objetivo ou, como diz Habermas (2010, p. 32, grifo do autor): “entre a natureza que somos e a disposição orgânica que nos damos”. Assim:

não se trata de uma atitude de crítica cultural aos avanços louváveis do conhecimento científico, mas apenas de saber se a implementação dessas conquistas afeta a nossa autocompreensão como seres que agem de forma responsável e, em caso afirmativo, de que modo isso se dá.8

Quero finalizar esta seção dizendo que, se por um lado, os

transhumanistas criticam os bioconservadores por não usufruírem do inexorável progresso da ciência e da técnica que possibilita o avanço ou aprimoramento humano em direção à imortalidade e felicidade eternas, por outro lado, penso que é ingênuo e até perigoso ter essa visão. Afinal, podemos dizer que esgotamos todos os nossos esforços na educação? No caso de uma escolha no uso de recursos públicos, é ético optar por investir mais nas tecnologias biomédicas, tendo em vista um suposto efeito ‘imediato’? E se a distinção entre terapia-aprimoramento é importante apenas para os bioconservadores, como dizem Bostrom e Roacher (2008), então os transhumanistas precisariam deixar de lado seu critério utilitarista, pois, sem essa distinção, como fazer a correta escolha moral no caso de se estar diante das duas situações? Não seria mais ético escolher tratar os doentes do que aprimorar os sãos?

Curioso notar que, pela assertiva 5 do argumento de Douglas, o indivíduo livremente busca a intervenção biotecnológica ‘pelas melhores razões possíveis’. Como o autor não esclarece que razões seriam estas, vamos supor que a decisão pudesse ser considerada moral, em um sentido kantiano, como

8 Habermas, J. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 18.

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um dever. Para isto, a melhor razão possível seria dada pela razão prática pura tendo em vista o destino e finalidade da humanidade. Neste caso, todos deveriam buscar o aprimoramento, inclusive por meios biotecnológicos, mas não é essa a posição de Douglas, já que ele não apenas deixa ao indivíduo a livre escolha de buscar (ou não) o aprimoramento, como não vê necessidade de uma teoria moral que o sustente.

Dito isto, passo a considerar as objeções kantianas que poderiam ser feitas à proposta de Douglas, qual seja, permitir o uso de meios biotecnológicos para reduzir as emoções cuja consequência seria a obtenção de um conjunto de motivos melhores no futuro.

AS OBJEÇÕES KANTIANAS Ao expor o que seria uma forte objeção kantiana, a de que somente

processos racionais estariam envolvidos no exercício da vontade, e apenas estes poderiam ser motivos ruins ou bons, Douglas defende que cultivar certos sentimentos ou atenuar certas emoções pode constituir um aprimoramento moral, uma vez que, embora fora dos limites da vontade, as emoções interferem no exercício da vontade por sua ação nos processos de raciocínio9. Entretanto, em nota10 ele explica que, para salvar seu argumento, considera que o raciocínio em si mesmo não envolveria as emoções.

John Harris (2011) critica fortemente esta posição de Douglas, seja por retirar o moral do enhancement, seja por excluir o raciocínio do processo de aprimoramento. A posição de Harris define-se claramente quando ele diz que é exatamente na ausência dos sentimentos que se torna necessária tanto a filosofia moral como o raciocínio moral, por isso, a racionalidade deve estar no centro do moral enhancement11.

E aqui percebo mais um problema. Como já visto, Thomas Douglas considera o comportamento agressivo como um tipo de comportamento causado por emoções pertencentes a uma parte do (bruto) ‘eu’ do indivíduo. O que se espera com o aprimoramento é que estas emoções 9 A esse respeito ver os estudos do neurocientista Joshua Greene (2001) utilizando imagens de ressonância magnética para examinar padrões de atividade cerebral de indivíduos em 2 tipos de decisões envolvendo julgamento moral. Cf. An fMRI Investigation of Emotional Engagement in Moral Judgment. Disponível em http://www.wjh.harvard.edu/~jgreene/GreeneWJH/Greene-et-al-Science-9-01.pdf Acesso em 05 fev. 2012. 10 Ver nota 14 do texto de Douglas aqui discutido. 11 Ao comentar a posição de Douglas sobre a necessidade de inclusão do ‘moral’ dentro do moral enhancement, Harris defende que é a racionalidade que deve estar no centro. Cf. ‘Ethics is for bad guys!’ Putting the ‘moral’ into moral enhancement. Bioethics 1467-8519, 2011. Disponível em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-8519.2011.01946.x/abstract Acesso em 12 fev. 2012.

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seriam reduzidas, de modo que a outra parte do eu estaria mais livre para agir baseada em bons motivos. Neste caso, a liberdade de que fala Douglas parece ser aquela que sofre influência das emoções, portanto, não a liberdade necessária à ação verdadeiramente moral, por dever, como pensava Kant12. Será por isso que, ao tentar responder objeções kantianas, ele prefere falar em ações ‘corretas’ e não ‘moralmente corretas’? E se, então, esses aprimoramentos biomédicos, na verdade, não contribuírem para o aumento da moralidade no mundo, de que se trata, afinal?

Insisto novamente em uma questão importante: por que falar em aperfeiçoamento moral, considerando que não temos uma noção precisa do que seja uma ação moral? Para Douglas, a simples redução das emoções que levam o indivíduo, por impulso, a comportamentos agressivos, pode ser considerada um ‘aprimoramento moral’, sem que para isto tenha tido interferência da vontade como autonomia, já que a causa do comportamento anterior independia da vontade.

Já quanto às objeções kantianas apontadas por Douglas, no que se refere ao papel das emoções, penso que ele é muito rigoroso quando diz que a versão mais forte implicaria considerar que cultivar certas emoções não poderia de nenhum modo aperfeiçoar moralmente os motivos de alguém. A consequência disso, apresentada por Douglas, é que, segundo esta objeção kantiana, nem o treinamento de alguém para suprimir emoções como a aversão racial, nem evitar circunstâncias sabidamente provocadoras destas emoções poderiam afetar a bondade dos motivos de alguém.

Não creio que fosse essa a objeção kantiana. O conhecimento e o papel das emoções foram abordados por Kant, sobretudo nas últimas obras. Se na Antropologia, por exemplo, ele reconhece o papel das ciências e das artes no processo de se cultivar, civilizar e moralizar13, na sua dietética14, ele investiga o poder do ânimo sobre sentimentos morbosos, sendo que na doutrina da virtude15 ele afirma que o estado apropriado de saúde para um ser humano é aquele em que ele se acha no controle de si mesmo.

Assim, que o controle das emoções teria um papel sobre o estado físico do corpo era do conhecimento de Kant, como se observa a partir do debate entre as teorias médicas da sua época. Igualmente, pode-se verificar que isto está relacionado com as disposições morais, pois o corpo é um instrumento da vontade que precisa ser ‘disciplinado’. E é para essa disciplina do corpo que Kant faz uso da noção de ânimo, tanto que, se considerarmos sua dietética, vamos encontrar sugestões de controle das emoções, a partir da 12 Kant, I. Fundamentação da Metafisica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70. 13 Kant, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006, § 325. 14 Kant, I. O Conflito das faculdades. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 116. 15 Kant, I. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003, p. 228.

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agitação do ânimo, provocada pela atividade própria do filosofar. Nesse sentido, o aprimoramento kantiano poderia aceitar o controle das emoções, desde que isso se desse por meio da filosofia, mas não é certo que Kant seria contra a biotecnologia.

Se por meios biotecnológicos for possível, por exemplo, disciplinar o corpo, considerando, que é com o corpo que o homem se constitui pessoa, então não vejo porque impedir este aprimoramento, pois, para Kant, o corpo é a condição absoluta da vida, condição através da qual é possível usar da nossa liberdade16. Como bem aponta Borges (2005), Kant teria adotado um modelo fisiológico de controle das emoções, e no caso de não ser possível controlar os afetos por meio da mente, restaria a intervenção química, fisiológica ou corporal17.

Entretanto, isto não seria um imperativo categórico, e sim hipotético, de modo que não poderíamos chamar este aprimoramento de um aprimoramento moral, mas também Douglas não se compromete tanto com isso, já que prefere falar em motivos corretos e não moralmente corretos. E no caso de ser útil para corrigir ou amenizar os efeitos de um defeito genético, por exemplo, reduzindo as emoções responsáveis pelo comportamento violento, o aprimoramento biotecnológico poderia ser aceito por Kant como um tipo de ação que é boa em vista de uma intenção possível, qual seja, a obtenção de melhores motivos para agir. Possível, mas não real, pelo que já foi exposto18.

Assim, julgo pertinente colocar a questão sob outro ponto de vista, que envolve a prudência na relação entre ciência, técnica e ética. Seria moralmente permitido desenvolver meios biotecnológicos para um suposto aprimoramento moral? Se considerarmos o que já dizia Roger Wolcott Sperry (1977), ganhador do Nobel de Medicina em 1981, sobre o potencial da ciência para moldar valores éticos19, e os avanços atuais da neurociência, então é

16 Kant, I. LE, p. 169-170. 17 Interessante observar o papel de fármaco atribuído por Kant à filosofia, remontando ao exemplo do estóico Posidônio. Cf. Anúncio do término próximo de um tratado para a paz perpétua em filosofia. Trad. Valério Rodhen. Florianópolis: UFSC, Vol. 5, n. 2, 2006. Disponível em www.periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/download/.../15943. Acesso em 02 jan 2012. 18 John Harris, op. cit. duvida que o aprimoramento moral que envolve intervenções sobre as emoções seja ou viável ou desejável. 19 “The future of science will be very different depending on whether or not science is recognized in the public mind to have competence in the realm of values. Reciprocally, the future of society also will be very different depending on whether its value perspectives are shaped from science and the world view of science or by alternative forces that now prevail”. Sperry, RW. Bridging Science and Values: a unifying view of mind and brain. American Psychologist. April, 1977, p. 237-244.

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razoável pensar a ordem moral como uma ordem neuronal, portanto, passível de manipulação, isto é, de instrumentalização?

Para Sperry (1977), à medida que os processos cerebrais começam a

ser compreendidos objetivamente, todos os fenômenos mentais, incluindo a geração de valores, podem ser considerados como agentes causais para as decisões humanas, fazendo da ciência o meio mais efetivo e confiável para o cérebro humano na determinação de critérios para o valor moral.

Mas, e se a ciência for realmente algo sério demais para ser deixado só nas mãos dos cientistas (MORIN, 2000), qual seria o papel da filosofia? Como pensar filosoficamente esta questão sem a influência do poder econômico que hoje domina a pesquisa científica? Ou os filósofos, assim como os cientistas, devem buscar um aprimoramento por meios biotecnológicos em busca de uma perfeição humana, para só então, estabelecerem o que seria o padrão dos pós-humanos?

CONCLUSÃO A busca pelo aprimoramento, seja ele técnico, científico ou moral,

representa um aspecto característico da natureza humana, que pode traduzir aquela ‘intenção oculta’ da natureza em nos colocar rumo ao nosso destino. As questões problemáticas aqui colocadas referem-se a um tipo específico de aprimoramento, obtido por meios biotecnológicos, que atuaria no controle das emoções, resultando em motivos melhores para o agir humano.

O primeiro problema desta abordagem é conferir estatuto ‘moral’ a um aprimoramento sem fundamentação de qualquer moral que estabeleça quais motivos são moralmente melhores ou que ações resultantes de tais motivos seriam realmente moralmente corretas. Além disso, a lacuna entre o motivo e a ação propriamente moral permanece em aberto, já que a biotecnologia não causaria o comportamento, e sim os motivos.

Tudo isto leva a crer que é necessário, pelo menos no exemplo aqui apresentado, que se refere ao impulso para a violência, estabelecer a distinção entre o físico – a ser tratado pela biotecnologia no sentido de atuar sobre neurotransmissores – e o moral, um campo ainda filosófico, mas atualmente amplamente investigado pela ciência.

A relação entre o físico e o moral tratada por médicos e filósofos não é nenhuma novidade. O que é novo são os métodos para possibilitar um avanço na moral, a partir de intervenções sobre o físico, as quais, com aquele avanço, também seriam aprimoradas.

Entretanto, não só os métodos ditos tradicionais não tem se mostrado determinantes do comportamento moral, como também a possibilidade apresentada por Douglas não assegura nenhum comportamento

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que possa ser julgado moral, uma vez que as biotecnologias apenas controlam biologicamente as emoções. O que parece é que, mais uma vez, na história do conhecimento, buscamos estabelecer uma nova ordem determinante, a do biologismo hi-tech, que agora tenta superar a metafísica dogmática.

REFERÊNCIAS

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