NARRANDO A HISTÓRIA, FICCIONANDO A VIDA: Texaco · 2016-11-10 · Aos colegas da turma, pelas...

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1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS/ CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MARGARETE NASCIMENTO DOS SANTOS NARRANDO A HISTÓRIA, FICCIONANDO A VIDA: uma leitura do romance Texaco, de Patrick Chamoiseau SALVADOR 2011

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS/ CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

MARGARETE NASCIMENTO DOS SANTOS

NARRANDO A HISTÓRIA, FICCIONANDO A VIDA:

uma leitura do romance Texaco, de Patrick Chamoiseau

SALVADOR 2011

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MARGARETE NASCIMENTO DOS SANTOS

NARRANDO A HISTÓRIA, FICCIONANDO A VIDA:

uma leitura do romance Texaco, de Patrick Chamoiseau

Dissertação apresentada à Universidade do Estado da Bahia – UNEB, como requisito para obtenção do título de Mestre, junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudo de Linguagens, área de concentração em Linguagens: práticas e contextos. Linha de pesquisa: Leitura, Literatura e Identidades.

Orientadora: Profª. Drª. Edil Silva Costa.

SALVADOR 2011

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho de dissertação, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNEB - SISB

Santos, Margarete Nascimento Narrando a história, ficcionando a vida: uma leitura do romance Texaco, de Patrick Chamoiseau /

Margarete Nascimento dos Santos. _ Salvador [s.n.], 2011. 118 f. Orientador: Edil Silva Costa Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas.

Campus - I Inclui referências e anexos 1. Literatura e história. 2. Literatura Martinica - História e crítica. 3. Escritores martinicanos - Crítica

e interpretação. 4.Oralidade na literatura. 5. Martinica - Aspectos culturais. 6. Chamoiseau, Patrick, 1953-

Crítica e interpretação. I. Costa, Edil Silva. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de

Ciências Humanas- Campus I. CDD: 801.95

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MARGARETE NASCIMENTO DOS SANTOS

NARRANDO A HISTÓRIA, FICCIONANDO A VIDA:

uma leitura do romance Texaco, de Patrick Chamoiseau

Dissertação aprovada como requisito para obtenção do título de Mestre, junto à Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudo de Linguagens, área de concentração em Linguagens: práticas e contextos. Linha de pesquisa: Leitura, Literatura e Identidades. BANCA EXAMINADORA: ________________________________ Profª. Drª Edil Silva Costa - Orientadora Universidade do Estado da Bahia ________________________________ Profª Drª Eurídice Figueiredo Universidade Federal Fluminense ________________________________ Prof. Dr. Paulo Santos Silva Universidade do Estado da Bahia

Salvador, 20 de Junho de 2011.

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Aos meus amados pais: Mario e Norma. Para sempre vivos em minhas memórias.

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AGRADECIMENTOS

Porque dEle e por Ele, e para Ele são todas as coisas; a Ele toda a glória. Se

não fosse Deus, que dia após dia me restitui as forças e me mostra que o amanhã

será uma nova oportunidade para recomeçar, com certeza eu não teria chegado até

aqui. Por isso a Ele o meu agradecimento maior, por ter me ajudado a ter fé e

acreditar que mesmo o impossível é possível.

Aos meus amados pais Marivaldo e Maria José que hoje não estão aqui, para

compartilhar da minha alegria e verem onde eu consegui chegar, mas que são a

razão da minha luta.

À minha irmã, Mariane, minha amiga e companheira de todas as horas, que

me ensina a ser corajosa e que todos os dias me mostra a possibilidade de ser

sensível e forte ao mesmo tempo.

Agradeço a André, o irmão que Deus me deu porque viu que entre a

sensibilidade de uma irmã e a coragem da outra havia a necessidade de um ponto

de equilíbrio. Dé, você é o nosso equilíbrio!

À Doralice Alcoforado (in memoriam), a primeira a acreditar em meu projeto e

a responsável pela indicação do caminho a seguir.

À Edil Silva Costa, minha orientadora, pela confiança. Obrigada não só por ter

acreditado, mas por ter confiado e comprado uma ideia que não foi a original. Seus

questionamentos e reflexões foram essências para o meu amadurecimento.

Ao professor Paulo Santos Silva, pela oportunidade, foi em uma das aulas de

Literatura e História que percebi que o caminho a ser trilhado era outro.

À professora Eurídice Figueiredo pela disponibilidade e contribuições que

muito ajudaram no meu percurso.

Ao Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens e a todos os

professores, co-orientadores desse trabalho que ora se apresenta.

À Camila e Danilo pela paciência e disposição no que diz respeito às

questões administrativas.

Aos colegas da turma, pelas discussões e contribuições, pelas conversas nos

corredores e na cantina, pelas trocas de mensagens, telefonemas, pelo

encorajamento e apoio.

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Um agradecimento especial à amiga Maria Ivone, companheira de pesquisa e

eventos, que muito contribuiu com suas leituras, reflexões e sugestões.

Muitas pessoas contribuíram de forma singular para o resultado final desse

trabalho, algumas de forma direta e outras indiretamente, portanto, não posso deixar

de citar esses que foram imprescindíveis para o meu sucesso.

Aos meus colegas da UNEB, Campus II, em especial à Ednara Rita e Angela

Damasceno que terminavam a caminhada quando eu ainda iniciava a minha.

Às amigas do mundo popular que ganhei ainda nos tempos de Dora: Jonalva

e Andréa, e Van que chegou recentemente. Meninas, vocês são a minha inspiração.

Sem o apoio de vocês com certeza teria sido mais difícil.

Às minhas queridíssimas “linguarudas”: Angela, Eugênia, Meia e Soraya.

Garotas, vocês são muito especiais para mim!

Aos meus amigos sempre presentes Ivone e George, pelo apoio e incentivo.

Às minhas amigas tão distantes, mas não menos presentes: Mônica e Sueli,

cada telefonema e e-mail sempre foram bem-vindos, principalmente nos momentos

de angústia.

À minha família alagoinhense que sempre me acolhe, em especial Meure e

Jeanne que às vezes acreditam mais do que eu no meu potencial.

A aqueles que acompanharam os meus momentos de ansiedade e me

ouviram pacientemente sem nunca reclamar: Anderson, Júlio, Fani e Kelly.

A todos os meus alunos que entenderam, suportaram e ajudaram esta

professora que loucamente encarou um Mestrado sem abrir mão do trabalho.

Por fim, mas não menos importante, um agradecimento todo especial a

Wellington Conceição, minha inspiração intelectual, o primeiro a acreditar em

Texaco quando ainda não passava de um sonho longínquo: Merci, chéri!

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Então Idoménée dizia: Mas o que é a memória? É a cola, é o espírito, é a seiva, e fica.

Sem memórias, nada de Cidade, nada de Bairros, nada de casa-grande. Quantas memórias? Perguntava ela.

Todas as memórias, respondia ele. Mesmo as que transportam o vento e os silêncios da noite. É preciso falar, contar, contar as histórias e viver as lendas.

É por isso.

(CHAMOISEAU, 1993, p.161)

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RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo analisar aspectos teóricos relativos ao conceito de romance histórico e de narrativa mítica, bem como as relações existentes entre memória e narrativas orais, tomando como objeto de estudo o romance Texaco (1992), do escritor martinicano Patrick Chamoiseau. Ganhadora do Goncourt, maior prêmio francês de literatura, essa obra narra a história da formação de Texaco, um bairro periférico de Fort-de-France, capital da Martinica, através do relato de Marie-Sophie, matriarca da comunidade e protagonista do romance. Texaco arrisca percorrer o caminho de formação da identidade martinicana, uma vez que a população desta comunidade é símbolo de resistência e guarda a memória coletiva do grupo. Pretende-se realizar uma reflexão acerca dos conceitos de romance histórico, mito, ficção; assim como busca-se destacar as relações entre o oral e o escrito, para compreender a proposta da oralitura, firmada pelos escritores martinicanos que fazem uso do crioulo como forma de afirmação identitária. Desse modo, também foram estudadas questões sobre identidade, cultura e memória, uma vez que Chamoiseau apresenta fatos e situações vividas e imaginadas que constituem o legado histórico-cultural do martinicano, e que através dessa(s) história(s) é possível conhecer o imaginário coletivo das Antilhas. Para a realização deste trabalho foi utilizada a pesquisa bibliográfica e documental sobre o autor, a obra, a localidade narrada e a Martinica. O aporte teórico é traçado no decorrer dos capítulos, de acordo com a temática discutida em cada um deles. A leitura do romance e a discussão das questões propostas fundamentam-se nos seguintes autores: Walter Benjamin, Robert Sholes, Doralice Alcoforado, Paul Zumptor, Zilá Bernd, Roger Chartier, Peter Burke, Paul Ricoeur, Eurídice Figueiredo, Édouard Glissant, Frantz Fanon, Stuart Hall, Canclini, Homi Bhabha e Jesús Martín-Barbero. A análise da obra e dos documentos relativos a ela tornou possível a percepção de como acontecem as relações de força na Martinica e a luta dos descendentes de escravos para se afirmarem na sociedade e ver reconhecida a importante herança histórico-cultural do seu povo que foi perpetuada por seus ancestrais. PALAVRAS-CHAVE: Texaco. Narrativa. Memória. Oralitura. Crioulidade.

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RÉSUMÉ

Cette recherche analyse à travers le roman Texaco (1992), de l’écrivain martiniquais Patrick Chamoiseau, les aspects théoriques concernant la notion de roman historique et du récit mythique, ainsi que la relation entre la mémoire et les récits oraux. Cette oeuvre, lauréat du prix Goncourt (1992), le plus grand concours littéraire français, retrace l'histoire de la formation de Texaco, quartier périphérique de Fort-de-France, capitale de la Martinique, à travers la narration de Marie-Sophie, la matriarche de la communauté et la protagoniste du roman. Texaco essaie de refaire le chemin de la formation de l'identité martiniquaise par le biais de cette communauté qui est un symbole de résistance et de conservation de la mémoire collective du groupe. On a aussi l'intention de mener une analyse des notions de roman historique, de mythe et de fiction ; et simultanément avec la mise en évidence des liens entre l'oral et l’écrit, afin de comprendre la proposition d’oraliture des auteurs martiniquais qui font usage du créole comme moyen d’affirmation identitaire. Ainsi également étaient étudiés les questions sur l'identité, la culture et la mémoire, une fois que Chamoiseau présente des faits et des situations vécues et imaginées qui constituent l'héritage historique et culturel de la Martinique. C’est à travers ces histoires que l’on rencontre l’imaginaire collectif des Antilles. Des recherches bibliographiques et documentaires sur l'auteur, son oeuvre, le lieu, et la Martinique ont été menées pour cette recherche. La support théorique est présentée entre les chapitres, selon le thème abordé dans chaqu’un d’entre eux. La lecture du roman et la discussion des questions proposées sont basées sur les auteurs suivants: Walter Benjamin, Robert Scholes, Doralice Alcoforado, Paul Zumptor, Zila Bernd, Roger Chartier, Peter Burke, Paul Ricoeur, Euridice Figueiredo, Edouard Glissant, Frantz Fanon, Stuart Hall, Canclini, Homi Bhabha et Jesús Martín-Barbero. L'analyse de l’ œuvre et des documents sur elle a rendu possible d’appercevoir la façon dont les relations de pouvoir en Martinique s’établissent et la lutte menée par les descendants d'esclaves pour s'affirmer dans la société locale et à sentir la reconnaissance l’important patrimoine historique et culturel de son peuple préservé par leurs ancêtres.

MOTS-CLÉS: Texaco. Récit. Mémoire. Oraliture. Créolité.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12

2 ENTRE O ORAL E O ESCRITO: A CRIAÇÃO DE UMA ORALITURA ............... 20

2.1 “Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiáticos, nós nos proclamamos

Crioulos”: os escritores da Crioulidade e a defesa de uma literatura local ..... 27

2.1.1 Aimé Césaire, o poeta da Negritude .............................................................. 30

2.1.2 Édouard Glissant, o mentor da Crioulização .................................................. 33

2.2 “Nossa história é uma trança de histórias”: A Crioulidade e a formação da

identidade cultural na Martinica ............................................................................ 37

2.3 “Reaprendendo a ver positivamente tudo o que palpita em torno de nós”:

Chamoiseau, um precursor da Crioulidade ......................................................... 42

3 A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA EM TEXACO .............................................. 47

3.1 Desenrolando o novelo da narrativa (Texaco) ............................................... 51

3.2 Narrando um conto eu ganho um ponto (Marie-Sophie) .............................. 67

3.3 Ouvindo um conto eu entro em confronto (Cristo) ....................................... 77

4 TEXACO: ENTRE O ROMANCE HISTÓRICO E A NARRATIVA MÍTICA .......... 85

4.1 Tecendo as linhas da ficção na malha da história ........................................ 87

4.2 Contando o real através do simbólico, um jogo mitológico ........................ 95

4.3 Memórias que contam a história e forjam os mitos .................................... 101

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 107

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 110

ANEXOS ................................................................................................................ 118

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1 INTRODUÇÃO

Em 1992, Patrick Chamoiseau, escritor francês nascido na Martinica, publicou

Texaco, sua principal obra e ganhadora do Goncourt, maior prêmio literário da

França. Com esse romance Chamoiseau ganhou destaque internacional e teve a

oportunidade de divulgar sua produção literária sobre o que ele defende e mais

gosta de escrever: a Martinica.

Localizada na América Central, no Mar do Caribe, e fazendo parte do

Arquipélago das Pequenas Antilhas, a Martinica foi colônia de exploração francesa

de 1635, quando aconteceu a ocupação francesa, até 1946, quando se torna Estado

da União Francesa, através da lei de 19 de Março.

Conhecida como DOM (Départements d’outre mer) ou departamentos de

ultramar, juntamente com outros três departamentos (Guadalupe, Guiana Francesa

e Reunião), a Martinica faz parte de uma coletividade territorial integrada à

República Francesa e que possui o mesmo status que os departamentos

metropolitanos (França continental).

Texaco1, considerada pela crítica a obra prima do seu autor, é um romance

que se destaca ao contar a história da construção e formação de um popular bairro

periférico da cidade de Fort-de-France, capital da Martinica. Essa localidade

conhecida como Texaco, segundo o autor, é de fundamental importância para a

construção da identidade martinicana, uma vez que ela se torna símbolo de

resistência e guarda a memória coletiva de uma comunidade descendente de ex-

escravos.

Na obra, observa-se o tecer de uma história que atravessa três gerações e

partilha com o leitor uma narrativa marcada por acontecimentos históricos que

ocorrem ao longo de 150 anos. Trata-se de uma apresentação cronológica de fatos

que narram a saga desse território: desde a chegada dos primeiros escravos, os

sofrimentos por eles suportados, a alegria da libertação, as dificuldades advindas da

tão sonhada liberdade, a elevação ao status de departamento, a primeira visita

Oficial do Presidente da República, o nascer do grande poeta-político Aimé Césaire,

1 Por se tratar de uma obra homônima do local que serve de inspiração para a narrativa, neste trabalho, para fazer a distinção entre romance e bairro, optou-se por usar Texaco em itálico ao referir-se ao livro e Texaco em fonte padrão para fazer menção à comunidade.

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MAPA DO MAR DAS ANTILHAS

MAPA DA MARTINICA

MAPA DA MARTINICA

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chegando até o final do século XX e os seus conflitos contemporâneos ligados à

formação da identidade nacional, ao se entender enquanto martinicano .

Texaco conta tudo, narra tudo, fala tudo, ou quase tudo. É perceptível o

desejo do autor de trazer e apresentar o maior número possível de informações

sobre a comunidade e a sua relação histórica com a Martinica. Os detalhes e

minúcias sobre os locais e os personagens envolvem o leitor de tal forma que este

aguarda com expectativa pelos desdobramentos da história.

Em Texaco os fatos históricos se misturam ao ficcional para contar a história

da comunidade. O bairro Texaco, que emerge povoado pelas pessoas que o

construíram, mas que não se sabe se de fato existiram, desperta no leitor a

curiosidade. Na maior parte do tempo resta difícil dizer com exatidão o que

realmente ocorreu nas ruas daquele lugar e o que é fruto da imaginação de

Chamoiseau. Mas para que saber? Porque desvendar o doce mistério que povoa

cada página do livro?

Ao leitor resta a dúvida, a incerteza que mistura a realidade e a ficção em um

só ambiente. Nesse jogo entre o histórico e o ficcional o que menos importa é saber

a “origem”, o leitor está de tal forma envolvido com o texto que já não questiona as

informações que ali são apresentadas: “ouvir” a história é mais importante do que a

busca por respostas às “verdades” históricas.

Pouco importa a ele, o leitor, se Marie-Sophie existiu ou se é mais um mito

local cultivado no imaginário coletivo da Martinica com o intuito de representar a sua

população. O que prevalece é a personalidade e a força que esta mulher emana em

cada linha da narrativa e o papel por ela desempenhado enquanto matriarca e

detentora da história da comunidade.

Da mesma forma acontece com cada um dos personagens criados e/ ou

representados na narrativa de Texaco. Ex-escravos, senhores, pescadores, amas,

aristocratas, políticos e o povo em geral, ganham forma e vida através do tecer de

Patrick Chamoiseau.

Nesse sentido a análise dessa obra permitirá perceber os vários elementos

que a constituem: a história, a memória e a ficção; noções que no romance surgem

atreladas sob o viés da narrativa. Em Texaco a função desempenhada pela

narrativa é fundamental, pois é através do relato da personagem central, Marie-

Sophie, ao forasteiro Cristo, que o leitor passa a conhecer a história da construção

do bairro.

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O livro se estrutura a partir dessa narrativa nuclear de Marie-Sophie, mas

outras sub-narrativas vão se imbricando à da matriarca. Outras vozes e outros

narradores que ajudam a construir a história de Texaco, como ver-se-á no decorrer

da análise da obra.

Apesar da importância da obra e de seu autor para a afirmação da literatura

da Martinica, Texaco permanece ainda à margem do cânone. O reconhecimento de

Chamoiseau através do prêmio Gancourt foi apenas um primeiro passo na tentativa

de mudar essa realidade. Apesar de jornalistas e escritores afirmarem que a

atribuição do prêmio foi apenas uma tentativa de acalmar a crítica literária que há

muito tempo vinha cobrando o reconhecimento das produções literárias fora da

França continental, é notório o valor positivo deste, uma vez que os olhares se

voltaram para a Martinica no período posterior ao Gancourt. Não só isso, mas é

evidente o destaque que os escritores dos departamentos ultramarinos passaram a

ter entre os leitores que até então, na sua grande maioria, os desconheciam.

Até mesmo a Martinica percebeu a importância dos seus escritores, que eram

essencialmente preteridos à uma literatura distante da realidade das Ilhas, que

surgia vindo importada da França, uma literatura que não conhecia e não falava do

povo martinicano nem das nuances e particularidades da região. Nesse sentido,

Chamoiseau e outros escritores martinicanos como Édouard Glissant e Raphaël

Confiant, são pioneiros, pois, pela primeira vez apresentam uma nova vertente à

literatura de língua francesa produzida nas ex-colônias.

Texaco não se apresenta apenas como um romance que tenta retratar a

história do povo martinicano através dos seus mitos. Muito mais do que isso é uma

obra cheia de contrastes, onde dar voz aos personagens é dar vazão à

representação do imaginário coletivo. No romance, a tradição popular, através da

oralidade, está todo tempo em evidência e a relação entre o oral e o escrito, que é

marca constante de Chamoiseau e dos escritores da crioulidade, se faz fortemente

presente.

Questões sobre identidade, cultura e oralidade surgem e serão analisadas no

decorrer deste trabalho. Devido à riqueza de temas encontrados se faz necessário

um recorte em relação às temáticas a serem discutidas. Dessa forma, esta

dissertação pretende analisar o romance sob a perspectiva de sua composição, ou

seja, o caráter da obra; analisando também a construção da narrativa e o papel da

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memória no que diz respeito à formação da identidade cultural martinicana e a luta

pela sobrevivência da comunidade.

No primeiro capítulo será apresentado o conceito de oralitura2 e as questões

que tratam da relação entre oralidade e escrita; os escritores da crioulidade e os

ideais por eles defendidos; também serão apresentadas questões relativas à

identidade na contemporaneidade e como os antilhanos se inserem nessa

discussão.

É se apropriando do conceito de oralitura e justificando a criação de uma

literatura local que represente o modo de ser do martinicano, que Chamoiseau e os

escritores da crioulidade avançam em direção a uma nova vertente literária, que não

se preocupa apenas com o estético ou com uma produção literária direcionada para

dado segmento da sociedade. Eles se assumem martinicanos e, como tal, falam do

povo e para o povo, sem distinção de classe ou raça. Para alcançar sua meta esses

escritores dão também voz ao povo e estão sempre prontos a propagar a produção

popular e a sua tradição cultural.

Também serão analisados neste momento conceitos referentes à formação

da identidade cultural na Martinica, pensando nesse indivíduo fragmentado frente ao

mundo diverso com o qual ele lida diariamente. Um indivíduo multicultural exposto a

um grande número de influências culturais que historicamente contribuem para a

sua formação pessoal e a identificação com o local ao qual pertence.

Para o aporte teórico deste primeiro capítulo foram estudados os autores:

Eurídice Figueiredo, Édouard Glissant, Ernest Pépin, Raphaël Confiant, Jean

Barnabé, Frantz Fanon, Stuart Hall, Nestor Canclini, Homi Bhabha e Maximilien

Laroche, que fundamentam a discussão acerca da oralidade, da relação entre o oral

e o escrito, dos estudos culturais, do processo de crioulidade e a sua relação na

formação da identidade antilhana.

No segundo capítulo apresenta-se a discussão sobre a construção da

narrativa em Texaco, como ela é constituída e alargada, como pouco a pouco o

autor estabelece o ritmo da narração e a constrói.

2 Termo cunhado pelo haitiano Ernst Mirville e usado pela primeira vez em 1971; surge como um

neologismo que destina um espaço específico para a literatura oral, sem se confundir com ela (LAROCHE, 2009).

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Nesse momento será apresentado o enredo do romance, seus personagens e

suas trajetórias, com o intuito de levantar questões referentes ao fato historicamente

registrado e à ficção, em um jogo que permeia toda a narrativa.

Será também analisado o papel desempenhado pela narradora, Marie-Sophie

Laborieux, de quais elementos narrativos ela faz uso ao contar sua história e o

impacto da narrativa sobre o seu ouvinte, Cristo, que atentamente escuta cada

momento partilhado e estabelece um pacto mudo com a contadora.

Pretendeu-se desenrolar o novelo dessa narrativa na medida em que se

colocam em evidência as diversas vozes ali relacionadas: o escritor, Patrick

Chamoiseau, que figura no texto como o marcador de palavras; a narradora, Marie-

Sophie; e o ouvinte, Cristo. Todos eles são ouvintes e também narradores, ao lado

de outros que narram a história de Texaco sob seus pontos de vista.

É também neste momento que se dará a discussão sobre a ideia de narrativa

oral e o seu papel como instrumento na compreensão e manutenção da memória

coletiva em uma comunidade.

Quais os elementos que compõem essa narrativa? Não apenas o textual, mas

também o não-textual. Questões relativas aos personagens, seus perfis; ao espaço

e o tempo; às vozes narrativas; e às escolhas do autor ao construir o seu conto. E

por que não pensar no impacto que a história contada realiza sobre o ouvinte, num

processo de formação do imaginário através da memória.

Entende-se que narrar não é uma ação desprovida de intencionalidade, quem

conta tem como objetivo seduzir quem ouve. O ouvinte, por sua vez, não é

participante inocente da atuação, ele reflete, questiona, se apropria e recria a

história ouvida, acrescentando nela elementos de si e do seu contexto.

É por esta razão que este capítulo também terá como tema a ser tratado a

oralidade e a memória coletiva. Discutindo-se como essas narrativas possuem

valores que são referência para a comunidade e como isso reflete na postura e no

comportamento desses participantes. Texaco, através da sua narrativa, nos

apresenta como é importante o papel do narrador, o contador de histórias, aquele

que guarda a memória coletiva de um local.

Autores como Walter Benjamin, Yves Reuter, Robert Sholes, Jerusa Pires

Ferreira, Doralice Alcoforado, Paul Zumthor e Zilá Bernd serão referências para

melhor compreensão do papel da narrativa e sua configuração na oralidade.

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Por fim, o terceiro capítulo tem como objetivo trazer uma discussão acerca do

romance histórico e da narrativa mítica, tendo em vista a identificação e a análise

desses conceitos em relação a Texaco. Para tal, será apresentado o conceito de

romance e o que caracteriza uma determinada obra como romance histórico ao

mesmo tempo em que será apresentado o conceito de narrativa e o que caracteriza

uma narrativa como mítica.

Nesse capítulo também será analisada a simbologia da narrativa, dando-se

atenção especial ao mito e a função por ele desempenhada na construção do

imaginário coletivo. Em especial a análise do que caracteriza um mito e como este

se faz presente em Texaco.

O mito, a história e a ficção apresentam-se numa relação intrínseca que

instiga o leitor a uma observação atenta do texto e à análise do mesmo,

estabelecendo-se uma ligação de intimidade entre autor e leitor, narrador e ouvinte.

A apresentação de tais conceitos é essencial para a análise a que esse

capítulo se propõe, uma vez que a obra em questão, nesse trabalho, é

compreendida como fronteiriça entre o real e o ficcional, pois narra a história e a

ficcionaliza. E ainda que Chamoiseau não tenha pretensão em escrever um relato

histórico da Martinica fica nítida a sua intenção de aguçar a curiosidade do seu

público quanto à veracidade das informações por ele apresentadas.

Ao falar sobre a história da Martinica o autor também levanta questões

relativas à memória e aos seus usos, principalmente na narrativa oral. A

subjetividade atrelada ao conceito de lembrança de um fato vivenciado ou ouvido é

evidente; sem deixar de mencionar o papel que o esquecimento desempenha no

momento em que seleciona (in)voluntariamente os eventos a serem preservados

pela memória. Portanto, essa discussão encontrará espaço junto a esse capítulo que

trata das relações da história e da ficção.

Para ajudar na busca das respostas às questões relativas ao caráter histórico

e ficcional de Texaco, e a sua afinidade com a memória, foram tomados como

referenciais teóricos autores como Roger Chartier, Peter Burke, Paul Ricoeur, Eric

Hobsbawm e Paul Veyne, de vez que discutem as relações entre história, memória e

ficção no romance. Estão inseridos também, nesse contexto, teóricos como Mircea

Eliade e Jean-Claude Carrière que falam sobre o mito, a realidade e sua presença

na contemporaneidade.

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São essas, portanto, as reflexões realizadas no decorrer desse estudo de

cunho dissertativo com o objetivo de ampliar a leitura sobre os temas aqui expostos

e encontrar repostas para algumas inquietações, principalmente no que diz respeito

à produção literária na Martinica.

O que ora se apresenta não se constitui em um estudo concluído, mas

apenas em elementos de um processo em construção que permite delinear as

primeiras considerações a respeito da literatura martinicana, em especial à obra do

escritor Patrick Chamoiseau.

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2 ENTRE O ORAL E O ESCRITO: A CRIAÇÃO DE UMA ORALITURA

As questões ligadas ao oral e o escrito são objeto de estudo de inúmeros

pesquisadores que segundo seus corpora delimitam e definem as abordagens a

serem desenvolvidas em relação à temática da fala e do seu registro escrito,

podendo estas serem de cunho linguístico, histórico, antropológico, sociológico ou

mesmo psicológico. Nesse estudo dissertativo discorrer acerca dessa relação está

diretamente associado à questão do uso da língua em seu contexto cultural e

literário.

A relação estabelecida entre a oralidade e a escrita constitui uma demanda no

âmbito dos estudos Antilhanos uma vez que esta região é marcada pela dicotomia

oral e escrita, principalmente no que diz respeito ao uso da língua.

Na Martinica, espaço de análise deste trabalho, a língua oficial é o francês, no

entanto, a língua usada por parte da população é o crioulo. É essa relação

estabelecida entre as duas línguas que motivará a reflexão sobre a necessidade, por

parte de alguns escritores, da criação de uma oralitura.

O termo crioulo, que refere-se a língua falada pelos antilhanos no cotidiano,

no decorrer dos últimos séculos passou por processo de ressignificação até chegar

ao conceito como é concebido hoje. Segundo Vianna (2010), o vocábulo surgiu da

palavra criollo em espanhol e circulou nas Américas durante o período colonial. Ela

explica ainda a origem latina da expressão:

Egresso do latim creare com o sentido de educar, o termo identificava os que nasciam e eram educados nas Américas sem ser originários delas como os ameríndios, passando, entretanto, a indicar, por extensão, homens de todas as raças, animais, plantas que se transportaram para o continente americano a partir de 1492 (VIANNA, 2010, p. 103).

O termo inicialmente designava a novidade, um mundo novo e se dizia das

pessoas nascidas no Novo Mundo. Durante o processo de colonização passou a

fazer menção às novas línguas surgidas do convívio entre senhores e escravos, a

língua intermediária usada no dia-a-dia da lavoura e da casa grande.

No caso específico do crioulo da Martinica, chama a atenção o fato dessa

língua não ser apenas o resultado do contato da língua francesa com as línguas

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africanas, como acontece em algumas ex-colônias (a exemplo do crioulo falado em

Cabo Verde que é uma língua de base lexical portuguesa, oriunda do contato dos

Portugueses com os escravos que foram levados para a ilha no período da

colonização), mas também das várias contribuições que recebeu de outros idiomas,

a exemplo do espanhol, do inglês, do holandês e das várias línguas faladas na Índia.

Figueiredo (1998) lembra que o crioulo de língua francesa tem uma origem bem

particular:

No início da colonização, no século XVII, cria-se uma sociedade de habitação, em que os negros, menos numerosos do que os brancos e trabalham diretamente com eles, aprendem o francês diretamente do falante nativo. No século XVIII, com o florescimento da cana-de-açúcar, os colonos passam a trazer grandes levas de negros, que tiveram de aprender o francês não mais diretamente com os brancos, mas com os escravos já instalados. No cenário imaginado, este seria o momento do surgimento do crioulo (FIGUEIREDO, 1998, p. 19).

Este contato, não mais de primeiro grau, entre escravos recém-chegados e os

antigos, que já viviam nas fazendas e que haviam aprendido o francês diretamente

com o colonizador, é que produz o ambiente propício para o surgimento do crioulo

de língua francesa e o seu legado para as gerações futuras.

O uso do crioulo nas Antilhas suscitou, nas últimas décadas, grandes

discussões entre escritores, políticos, teóricos e população, sobretudo no que diz

respeito à sua aceitação e normatização. Definir o espaço e a significação deste

idioma na cultura antilhana gera polêmica entre a população e alimenta a chama das

questões ditas identitárias.

O escritor e psiquiatra martinicano Frantz Fanon, em seu célebre livro, Pele

Negra, Máscaras Brancas, escrito no início da década de 50, dedica o primeiro

capítulo da obra à discussão sobre o negro e a linguagem, e já no primeiro parágrafo

ele declara que falar é existir absolutamente para o outro. Portanto, a ideia de língua

não pode ser discutida e nem analisada em um contexto isolado, pois envolve não

apenas o indivíduo que dela faz uso, mas também o outro com o qual se comunica e

as relações que com ele são estabelecidas.

Fanon (2008) amplia a discussão sobre a língua e afirma ainda que o negro

possui duas dimensões, duas relações entre as quais o seu comportamento muda

22

completamente, uma relação com o próprio negro, o seu semelhante, e uma outra

com o branco. Partindo desse princípio, percebe-se que a língua está diretamente

associada às questões sociais e culturais.

As duas dimensões citadas por Fanon se concretizam principalmente no

campo da linguagem a partir do momento em que o homem negro faz uso de

códigos diferenciados para estabelecer contato com o outro, variando a linguagem

de acordo com a cor da pele do seu receptor. A língua que ele fará uso para se

comunicar com um homem branco será diferente da utilizada para se comunicar

entre os seus, o homem negro.

Para Fanon, falar é, sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de uma

civilização. E essa afirmativa é facilmente detectável na observação atenta do

processo de inserção dos ex-escravos antilhanos na sociedade. À medida que

pretendiam participar da comunidade branca, colocavam a cultura negra à parte,

assumindo a cultura do outro, em um processo de ceder para ganhar.

A aceitabilidade do outro chega à medida que se fala como outro, veste-se

como o outro, comporta-se como o outro. Assim, adotando a língua francesa, o

negro antilhano se torna cada vez mais branco. “Quanto mais assimilar os valores

culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele

rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será.” (FANON, 2008, p. 34)

Nessa relação dos franceses com os negros nas Antilhas ficam nítidos dois

momentos distintos: o primeiro em que a língua francesa se impõe num processo de

assimilação, quando ela surge como degrau para ascensão dentro da sociedade; e o

segundo momento quando acontece o processo de rejeição dessa língua imposta

pelos colonos, a tomada de consciência e a luta pela afirmação de uma língua

própria. Neste trabalho realizar-se-á uma breve reflexão sobre ambos os períodos.

Os escravos das Antilhas, oriundos da África, também conhecidos como bois

d’ébène3, devido a sua qualidade e status enquanto mercadorias, ao chegar ao seu

novo habitat, além dos problemas associados à escravidão, ao deslocamento e ao

trabalho forçado se deparam ainda com outro problema, o da língua. E o que

aparentemente poderia ser definido como uma questão de adaptação, com o passar

dos anos se mostrou uma questão de imposição e repetição de práticas ditatoriais

3 Madeira do Ébano.

23

vivenciadas durante todo o período colonial e que insistia em perdurar mesmo após

o processo de libertação.

O ano de 1848 marca o fim da escravidão nas Antilhas, através de um

decreto da II República e graças à ação de Victor Schoelcher4. Mas assim como

acontece em outras localidades essa aclamada “liberdade” não é um processo fácil

para os ex-escravos. Passados os momentos de euforia e comemoração, os negros

percebem que há muito a ser feito. Junto à liberdade vinham os problemas ligados à

falta de trabalho, moradia e dinheiro, pontos essenciais para a sobrevivência.

A língua francesa que sempre foi a língua estrangeira, a língua do colono

branco, se impõe de forma arbitrária. A aquisição desta língua no período pós-

abolição surge como forma de se sentir livre, como um cidadão que faz realmente

parte da comunidade onde mora, além de ampliar as possibilidades de emprego e

consequente auto sustento. Falar francês se torna o modo mais viável de encontrar

um espaço dentro da nova sociedade que se formava.

[...] o negro tentará falar francês porque o crioulo, apesar de ser sua língua materna, língua das canções de ninar e dos contos ouvidos à noite, nas festas e nos velórios, é considerado como um patois, um dialeto que se ama e se despreza ao mesmo tempo (FIGUEIREDO, 1998, p. 20).

O crioulo, que até então era a língua falada entre os escravos, começa a

perder a importância que sempre teve, pois as pessoas sentem cada vez mais

necessidade de falar francês para se sentirem como os franceses, e mesmo

tentarem a inserção entre os colonos; é essa sucessão de mudanças que conduz

segundo o imaginário negro à aceitabilidade do homem branco.

No processo pós-abolição as escolas também cumprem o seu papel

democrático e abrem suas portas aos filhos dos ex-escravos, mas nesta instituição o

crioulo não é aceito como forma de comunicação e a língua francesa mais uma vez

se impõe sem considerar o uso do crioulo nas famílias de origem negra.

4 Francês, oriundo de uma família burguesa de negociantes, é enviado por seu pai às Américas como representante comercial da fábrica familiar, para reconhecimento do mercado e possíveis acordos de exportação. Nesta viagem descobre a realidade escravocrata das Américas e na volta à Paris resolve escrever contra a escravidão. Ele se torna um ativista dos direitos dos negros e ao se tornar subsecretário do Estado francês continua lutando por esta causa. Schoelcher é um dos responsáveis pelo decreto de abolição definitiva de 1848, que interdita a escravidão em todos os territórios franceses.

24

Para sobreviver, para conseguir uma colocação digna na sociedade, é preciso

falar francês. O francês transforma-se, dessa maneira, numa distinção social, o

crioulo, a língua que se falava, até então, e que através dos seus cantos narrava as

feridas interiores de cada um dos antilhanos de origem escrava, com o tempo, é

posto à parte.

Esta constante fricção existente entre o crioulo e o francês estabelece a

Martinica como um típico caso de região que vive em diglossia, que Ferguson define

como:

a coexistência de duas línguas com estatutos diferenciados, cujas funções são complementares: uma língua ocidental, de prestígio, transmitida pela escola e usada nas situações públicas e formais, e uma língua adquirida informalmente, oral, desprovida de prestígio e de uso restrito à família. (FERGUSON apud FIGUEIREDO, 1998, p. 20).

Um só lugar marcado por duas línguas. A legítima e a adotiva. Um paradoxo

onde a língua que sempre foi entendida como legítima (o crioulo) passa a ser a

discriminada e a adotiva (o francês) que foi imposta passa a ser a legitimada.

É principalmente na escola que o antilhano aprende a desprezar o crioulo. O

francês é a língua ensinada nessa instituição e como tal apresenta-se sob a forma

de imposição. Muitas crianças, de acordo com a sua realidade social, desde o seu

nascimento até o momento de ingresso no ensino primário, têm contato quase que

exclusivo com o crioulo que é a língua falada em casa e usada nas relações entre

vizinhos e outras crianças. Mas quando é chegado o momento da escolarização, as

famílias, no desejo de um futuro melhor para os seus filhos, proíbem o uso do crioulo

em casa reforçando assim o papel que a escola desempenha.

A guerra conduzida pelos franceses contra o crioulo imprimiu um forte sentimento de culpabilidade linguística na psique dos Antilhanos, sentimento que conduziu alguns ao caminho do suicídio linguístico: não mais querer falar esta língua ancestral e proibir às crianças de utilizá-la (CONFIANT, [200-], p. 04, tradução do autor).

Esse conflito em torno da língua se faz presente não apenas no dia-a-dia do

Antilhano, nas suas relações na família, na escola, no trabalho; ele é representado

25

também através das produções e manifestações artísticas. A literatura é um bom

exemplo desse aspecto, através dos vários gêneros textuais, poetas e prosadores

trazem para suas obras os dilemas decorrentes da diglossia.

Contrários ao que muitos acreditam sobre o crioulo, os poetas das Antilhas o

chamam de “arrulho divino”. São eles que, a partir da década de 30, começam um

movimento de reivindicação do espaço do uso do crioulo na sociedade. Eles citam a

língua em seus escritos e incitam outros a fazerem uso dela.

Apesar das primeiras iniciativas, nos anos 30, é apenas a partir da década de

80 que esse movimento ganha força com os escritores da crioulidade que põem em

evidência o crioulo enquanto língua falada e escrita e o papel que desempenha

como meio para a construção e afirmação de uma identidade martinicana.

Eles valorizam a tradição oral através do crioulo e fazem da sua bandeira a

oralitura, que seria o termo mais completo para definir uma literatura que evidencia a

oralidade e a produção cultural do negro.

Segundo Kilpelänaho e Melasuo (2006), para os escritores da Martinica a

passagem da oralidade para a oralitura é a passagem da memória a curto termo à

memória interindividual a longo termo.

É esta relação entre o oral e o escrito, a saída da condição de literatura oral

para a escrita, e vice-versa, que se torna tema de discussão entre os defensores da

crioulidade. Sendo inicialmente uma organização oral, sem registro escrito, o crioulo

é uma língua jovem, tem em média 300 anos. No entanto, é através dele, como em

qualquer sociedade que domina a escrita, que se veiculam valores tradicionais,

conhecimentos técnicos e religiosos e se assume a função de estabelecer a troca de

valores entre o passado e o presente.

L’oraliture créole naît dans le système des plantations, tout à la fois dans et contre l’esclavage, dans une dynamique questionnante qui accepte et refuse. Elle semble être l’esthétique (dépassant ainsi l’oralité, simple parole ordinaire) du choc de nos consciences encore éparses et d’un monde habitationnaire où il fallait survivre (résister-exister pour les uns, dominer pour les autres). Cette oraliture va s’affronter aux “valeurs” du système colonial (fardeau de la civilisation, légitimation de l’extinction du Caraïbe, de la condition du Nègre esclave, pensée de l’un...), et diffuser souterrainement de multiplex contre-valeurs, une contre-culture. L’interation de cette contre-culture et de la culture coloniale dominante donnera naissance aux zones

26

vives de la culture créole dont notre oraliture alors, en un mouvement-miroir, recelera témoignages (CHAMOISEAU et CONFIANT, 1999, p. 73 e 74)5.

A oralitura na Martinica tem um aspecto noturno, pois representa ainda os

tempos coloniais em que os escravos trabalhavam na lavoura durante o dia e à noite

reuniam-se para contar histórias. Assim como a literatura, a oralitura também possui

gêneros possíveis de detectar dentro da sua tradição oral, que podem caracterizar-

se como mitos, epopéias, contos, canções, provérbios, ditados e advinhas.

É válido ainda ressaltar que o uso do termo oralitura não é unanimidade entre

os escritores do Caribe. Pesquisadores como o haitiano Georges Castera (2001)

fazem fortes ressalvas a essa nomenclatura e a forma como é usada entre os

autores que vivem em ambientes de diglossia, situação semelhante à da Martinica e

do Haiti.

Para Castera (2001), cunhar o termo oralitura é apenas uma forma de

esconder questões maiores que existem na relação entre o oral e o escrito e que o

termo não dá conta de discutir.

Oraliture est um mot-valise proposé par l’écrivain Ernst Mirville, pour remplacer le syntagme « littérature oral ». Beaucoup d’auteurs se sont accaparés du vocable, mais je ne vois pas en quoi il acquiert, par enchantement, un statut de concept. Pour ma part, la dichotomie littérature contre oralité que ce terme essaie de gommer, reste entière : la blessure est sous le sparadrap. Vouloir tout faire remonter aux formes orales est une folklorisation abusive comme cela a souvent cours dans le domaine littéraire et artistique haïtien (CASTERA, 2001, p. 08)6.

5 A oralitura crioula nasce no sistema das plantações, simultaneamente na e contra a escravidão, em uma dinâmica de questionamento que aceita e rejeita. Ela parece ser a estética (ultrapassando assim a oralidade, simples fala ordinária) do choque de nossas consciências ainda escassas e de um mundo habitacional onde era preciso sobreviver (resistir-existir para alguns, dominar para outros). Esta oralitura vai enfrentar os "valores" do sistema colonial (fardo da civilização, legitimação da extinção do Caraiba, a condição do escravo negro, pensamento de um ...), e difundir sorrateiramente múltiplos contra-valores, uma contra-cultura. A interação dessa contra-cultura e da cultura colonial dominante dará origem às zonas vivas da cultura crioula cuja nossa oralitura então, em um movimento-reflexo, esconde testemunhos (Tradução nossa). 6 Oralitura é uma aglutinação proposta pelo escritor Ernst Mirville para substituir o sintagma “literatura oral”. Muitos autores adotaram o termo, mas eu não vejo em que ele adquire, por encantamento, um status de conceito. Da minha parte a dicotomia literatura versus oralidade, que este vocábulo tenta apagar, continua viva: a ferida está sob o esparadrapo. Querer que tudo se volte para as formas orais é uma folclorização excessiva bem freqüente no atual domínio literário e artístico haitiano (Tradução nossa).

27

Apesar de opiniões diversas sobre a nomenclatura, o que se observa é que

os escritores em situação de diglossia se unem no que diz respeito à importância de

escrever em crioulo, de fazer o registro escrito desta língua como forma de

valorização de uma linguagem própria.

Diferentemente do que afirma Castera (2001), os escritores da crioulidade

não desejam esconder a ferida que se encontra por baixo do esparadrapo, eles

tentam fazer da oralitura um mecanismo, um jogo onde é possível brincar com as

normas e os padrões de forma a trazer para o registro escrito o que até então nunca

havia sido representado.

Sabe-se que a resistência ao crioulo perdura até os dias atuais, os nativos da

Martinica, em sua maioria, ainda acreditam que esta língua deve restringir-se às

relações familiares, não cabendo o seu uso em situações formais ou espaços

públicos. Observa-se assim que esta oposição ao crioulo não ocorre apenas no

plano linguístico, mas também, no plano social e político.

O que os escritores da crioulidade pretendem ao pregar a criação de uma

oralitura não é apenas usar o crioulo (cuja escrita ainda passa pelo processo de

convencionalização) como língua de escrita, mas sim instigar o leitor na descoberta

e decodificação de uma nova forma de fazer literatura, de escrever a história e suas

variações, executar o papel de criador de novos termos e grafias, fazendo uso de

uma liberdade que, enfim, lhe é outorgada.

2.1 “Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiáticos, nós nos proclamamos

Crioulos”: Os escritores da Crioulidade e a defesa de uma literatura local

Na Martinica, é bastante representativo o movimento de reprodução da

memória coletiva por meio da literatura oral. É através da tradição oral com as

anedotas, as lendas, os ditados, as cantorias e os contos narrados à noite que o

imaginário coletivo das pessoas se constrói e se fortalece. A cultura crioula

martinicana é, em sua essência, baseada na oralidade, por isso a negação da língua

crioula resultaria no esquecimento dessa cultura e no apagamento das suas

tradições.

28

Pensando no fortalecimento e na autoafirmação dessa cultura um grupo de

escritores e intelectuais martinicanos iniciaram na década de 80 um movimento em

prol da valorização das manifestações culturais oriundas da tradição oral crioula. A

essa articulação deram o nome de Crioulidade.

Ni Européens, ni Africains, ni Asiatiques, nous nous proclamons Créoles. Cela sera pour nous une attitude intérieure, mieux : une vigilance, ou mieux encore, une sorte d’enveloppe mentale au mitan de laquelle se bâtira notre monde en pleine conscience du monde (BERNABÉ, 1993, p.13).7

São com essas palavras que Patrick Chamoiseau, juntamente com os

escritores Jean Bernabé e Raphaël Confiant, iniciam o seu manifesto Éloge de La

Créolité, proferido pela primeira vez em 22 de Maio de 1988, no Festival Caraïbe de

la Seine-Saint-Denis, e posteriormente sendo publicado em livro no ano de 1989.

Nesta obra que conquistou adeptos em todo o mundo e que se tornou o

marco oficial do movimento da crioulidade, os autores não estão preocupados em

formular uma nova teoria acerca das questões identitárias. Como eles afirmam no

manifesto, a principal ideia é de apresentar um testemunho vivo da experiência

cotidiana do povo antilhano.

Para esses escritores, a literatura antilhana ainda não existe, ela está no

estado de pré-literatura, situação em que se encontra devido à falta de audiência

entre os seus. A pouca circulação do que escrevem resulta na não interação do

leitor e escritor. Para eles é o grito da crioulidade que mudará essa realidade.

Ao se autoproclamarem crioulos, esses escritores caribenhos convidam os

seus compatriotas a lançarem um novo olhar sobre a sua cultura e a aprenderem a

vê-la através de novas perspectivas, deixando de lado o filtro dos valores ocidentais

aos quais sempre foram submetidos.

Não são europeus, nem africanos e nem asiáticos, os antilhanos fazem parte

de um novo grupo, uma nova geração que é o resultado da convivência entre esses

povos e de suas trocas culturais.

7 Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiático, nós nos proclamamos Crioulos. Isto será para nós uma atitude interior, melhor: uma vigilância, ou melhor ainda, uma espécie de disfarce mental no meio do qual se construirá nosso mundo com plena consciência do mundo (Tradução nossa).

29

CAPA DO LIVRO ÉLOGE DE LA CRÉOLITÉ (versão bilíngue francês/ inglês, 1993)

OS ESCRITORES DA CRIOULIDADE

Jean BERNABÉ Patrick CHAMOISEAU

Raphaël CONFIANT

30

Segundo eles afirmam no Éloge de La Créolité, “Nous avons vu le monde à

travers le filtre des valeurs occidentales, et notre fondement s’est trouvé «exotisé »

par la vision française que nous avons dû adopter”8 (BERNABÉ, 1993, p.14).

Foram esses valores culturais ocidentais que durante muito tempo impediram

uma compreensão mais clara da realidade multicultural das Antilhas. O europeu

impôs a sua cultura e a sua reprodução arbitrariamente, não observando as outras

expressões culturais e massacrando abertamente toda manifestação que não

proviesse do centro europeu.

Às outras formas de demonstração cultural não coube espaço e nem

oportunidades, a imposição do filtro francês para enxergar o mundo gera como

consequência a gradativa extinção do popular. A expressão artística e cultural,

oriundas do povo, não são valorizadas. O povo em busca da aceitabilidade deixa de

lado a sua tradição e adentra o mundo da cultura européia.

No entanto, para melhor compreender os ideais anunciados pela crioulidade

na contemporaneidade e o embate que é promovido por essa ideologia é preciso

remontar a algumas décadas e citar alguns dos precursores desse movimento, pois,

os mesmos desempenharam papeis estratégicos para a compreensão desses

escritores sobre o ser negro e os incitaram à produção de uma nova literatura de

cunho social e também político.

2.1.1 Aimé Césaire, o poeta da Negritude

O escritor, poeta e político Aimé Césaire é o grande precursor dos

movimentos a favor da causa negra no Caribe, ele é considerado o pai desses que

durante muitas décadas foram excluídos por causa da sua cor de pele. Com a luta

pelo movimento da Negritude na década de 1930, Césaire, juntamente com o

também escritor senegalês Léopold Sédar Senghor, assumiu o papel de encaminhar

a sociedade crioula a um processo de compreensão dela mesma, partindo da ideia

de África e assumindo a dimensão africana pertencente à cultura local, considerando

os seus aspectos e os seus traços presentes no cotidiano.

8 Nós vimos o mundo através do filtro dos valores ocidentais e nosso fundamento se tornou “exótico” pela visão francesa que nós tivemos que adotar (Tradução nossa).

31

Césaire se identificava com a cultura africana e tinha a África como sua terra

mãe estabelecendo com ela uma relação de proximidade. Ele declarava a todos a

sua afinidade e o sentimento de pertencimento ao continente africano. Segundo ele,

as raízes culturais do antilhano não podem ser desassociadas da sua terra mater.

Na década de 1930, época em que Césaire era um estudante em Paris, o

lugar do negro era bem demarcado: à margem da sociedade, poucos eram aqueles

que conseguiam ultrapassar as barreiras impostas pelo jugo, ainda presente, do

período colonial e se inserir no contexto social do branco.

É Césaire, ao cunhar o termo Negritude, que transforma o termo “negro”, até

então visto como pejorativo e utilizado para depreciar os descendentes de escravos,

dando uma nova dimensão à palavra. Ele inicia um movimento que abala as

estruturas sociais da época e fala da Negritude com “N” maiúsculo, segundo ele um

substantivo próprio que representa todos os negros excluídos da sociedade branca.

Segundo Bernd (1988), Césaire rejeitava a ideia de uma sociedade pautada no

modelo cultural do branco ocidental:

Césaire pleiteava, pois, uma via de autenticidade por oposição ao clima de inautenticidade reinante entre os negros da América convencidos de que o único modelo cultural válido era o modelo branco ocidental. A Negritude césairiana pregava uma rejeição absoluta a essa concepção e suscitava a emergência de uma personalidade antilhana (BERND, 1988, p. 34).

O poeta-político é fruto de uma família negra que conseguiu driblar a

estratificação social ao ponto de ter forte representação no Departamento francês.

Seu avô foi o primeiro professor negro da Martinica e seu pai era funcionário público.

Nessas condições, Césaire foi alfabetizado bem cedo, ingressou na escola e

posteriormente ganhou uma bolsa e foi seguir seus estudos em Paris.

A chegada à Metrópole marca significativamente a sua formação política, é lá

que conhece Senghor, amizade que mantém durante toda a vida. Descobre a mãe

África, sua cultura e suas tradições através de contatos que estabelece com outros

estudantes africanos. A estadia de Césaire na França é fundamental para o seu

amadurecimento intelectual e político, pois, é neste período que ele formula suas

primeiras teorias acerca do movimento literário que posteriormente ele chamará de

Negritude.

32

Datam também deste período as suas primeiras publicações, a fundação,

juntamente com outros estudantes do jornal L’étudiant Noir; e a produção da sua

obra mais importante e conhecida: Cahier d’un retour au pays natal (1939), onde

expõe o teor da sua poesia combativa e fortemente influenciada pelo movimento

surrealista, que descobriu em Paris.

No fragmento abaixo é possível identificar o conteúdo politizado da poesia de

Césaire em Cahier d’un retour au pays, escrito quando tinha apenas 25 anos. Na

obra ele delineia as primeiras concepções da Negritude, mas esta só viria a ter

repercussão depois da II Guerra Mundial. O tom anticolonialista, que acusa o

racismo e a ideologia colonial imposta durante alguns séculos na Martinica, é forte e

impacta o leitor que ao mesmo tempo identifica a denúncia e se sente compelido a

sair à luta.

Et nous sommes debout maintenant, mon pays et moi, les cheveux dans le vent, ma main petite maintenant dans son poing énorme et la force n'est pas en nous, mais au-dessus de nous, dans une voix qui vrille la nuit et l'audience comme la pénétrance d'une guêpe apocalyptique. Et la voix prononce que l'Europe nous a pendant des siècles gavés de mensonges et gonflés de pestilences, car il n'est point vrai que l'oeuvre de l'homme est que nous n'avons rien à faire au monde que nous parasitons le monde qu'il suffit que nous nous mettions au pas du monde mais l'oeuvre de l'homme vient seulement de commencer et il reste à l'homme à conquérir toute interdiction immobilisée aux coins de sa ferveur et aucune race ne possède le monopole de la beauté, de l'intelligence, de la force et il est place pour tous au rendez-vous de la conquête et nous savons maintenant que le soleil tourne autour de notre terre éclairant la parcelle qu'à fixée notre volonté seule et que toute étoile chute de ciel en terre à notre commandement sans limite (CÉSAIRE, 2001).

É por isso que os escritores da crioulidade se consideram filhos de Césaire,

pois foi ele quem abriu passagem para novas formas de pensar o ser negro, foi o

pioneiro nas discussões sobre as questões raciais e revolucionou a forma de se

pensar enquanto homem não branco, não europeu.

33

2.1.2 Édouard Glissant, o mentor da Crioulização

Poeta, escritor e ensaísta martinicano, Édouard Glissant, por mais de 5

décadas, contribuiu com suas produções para a reflexão do homem Antilhano.

Nascido em 1928 e falecido em Fevereiro de 2011, Glissant é o mentor de

considerações essenciais para a compreensão das questões identitárias no Caribe.

Ele apresenta ao mundo suas ideias forjadas através de conceitos como

Antilhanidade, Tout-Monde e Crioulização.

Os autores do Éloge de la Créolité citam a obra de Glissant como base de

inspiração para o que eles chamarão de Crioulidade. Esse fato será em decorrência

da teoria traçada alguns anos antes da publicação do Éloge, quando Glissant

publica Le discours antillais, em 1981, ensaio que se torna um marco para a

construção do pensamento caribenho, e onde o autor apresenta o seu conceito de

antilhanidade

Segundo Glissant (1990) a crioulização é um movimento aberto e não linear

que não se refere apenas ao Caribe, mas a todos os povos e culturas, pois se

caracteriza como um processo constante de intercâmbios que estabelece uma

relação de trocas linguísticas, políticas, sociais e culturais entre os povos.

O objetivo maior da crioulização não é estabelecer uma identidade fixa,

contrário a esta ideia esse movimento pretende quebrar todo conceito de unidade e

instigar o trânsito de opiniões que fundam a concepção do “nós”, ou seja, do coletivo

social. A imagem de identidades múltiplas fundamenta a obra de Glissant, elas estão

abertas ao mundo e constituem o sistema de troca cultural numa relação dialógica.

Tanto Aimé Césaire quanto Édouard Glissant contribuíram de maneira

significativa para a construção do conceito de Crioulidade. No entanto, é necessário

fazer algumas ressalvas. Apesar de reconhecerem Césaire como mentor, no Éloge

fica evidente que os novos escritores antilhanos se recusam a fechar-se na ideia de

Negritude e ampliam os conceitos que dizem respeito à sua identidade. Eles não se

fecham na ideia de África como acreditava Césaire, eles se veem além dessa

imagem, se identificam como resultado do caldeirão das misturas de raças e

reivindicam sua identidade crioula, isto é, que ela seja reconhecida à parte dos

Africanos.

34

Dans de societés multiraciales telles que les nôtres, il apparaît urgent que l’on sorte des habituelles distinctions raciologiques et que l’on reprenne l’habitude de désigner l’homme de nos pays sous le seul vocable qui lui convienne, quelle que soit sa complexion : Créole. (BERNABÉ, 1993, p. 29).9

Portanto, surge a necessidade de, segundo os novos escritores, deixar todos

os conceitos e teorias até então difundidos e aprender a explorar e a conhecer a si

mesmo, é o que eles chamam de visão interior e reveladora que conduz a uma nova

aprendizagem. “Réapprendre à visualiser nos profondeurs. Réapprendre à regarder

positivement ce qui palpite autour de nous.”10(ibidem, p.13).

Reaprender. São essas ideias proclamadas em Éloge de la Créolité que leva

o afrodescendente antilhano a refletir sobre a sua identidade e o papel desta na

produção da cultura local e o motiva a assumir seu espaço na sociedade, enquanto

indivíduo ativo e (re)produtor cultural.

Glissant, inspirador dos escritores do Éloge, reconhece a dinâmica do

trabalho realizado por seus colegas e aponta as distinções entre a Crioulização e a

Crioulidade. A primeira se define como um processo contínuo de relações enquanto

que a segunda busca definir uma nova identidade crioula para compreender o

contexto em que ela está sendo firmada.

Segundo Ernest Pépin (2010), poeta e romancista antilhano, a crioulidade é a

tomada de consciência da diversidade do mundo caribenho. É igualmente a vontade

de repensar a noção de identidade e é uma etapa da consciência de si mesmo que

leva a assumir o seu país.

Nesse grupo de escritores das Antilhas, a escrita militante surge da

preocupação com a manutenção e o registro das tradições culturais de seu povo.

Bernabé, Chamoiseau e Confiant queriam principalmente colocar em evidência a

diversidade da identidade crioula e as suas manifestações culturais, forjando para

isso um novo estilo de produção literária.

9 Nas sociedades multirraciais tais como as nossas, parece urgente que se saia das habituais distinções raciologiques (raciológicas), e que se retome o hábito de designar o homem de nossos países sob a única palavra que lhe convém, qualquer que seja a sua natureza: Crioulo (Tradução nossa). 10 Reaprender a visualizar nossas profundezas. Reaprender a ver positivamente tudo que palpita em torno de nós (Tradução nossa).

35

São eles que no fim da década de 80 apresentam o conceito de Crioulidade, e

declaram que este “[...] é o cimento da nossa cultura e que ela deve reger os

fundamentos da nossa antilhinidade”11 (BERNABÉ, 1993, p. 26.Tradução nossa).

Em outras palavras, eles afirmam que é apenas através da aceitação do seu estado

crioulo que os negros e seus descendentes encontrarão espaço dentro da sociedade

e da tradição literária.

Os autores discutem ainda a necessidade de reavaliar os valores culturais

que lhes foram impostos pelo colonizador e de valorizar os costumes que lhes são

naturais e presentes através da tradição popular. E nessa busca eles defendem

firmemente a procura das raízes locais na oralidade.

No entanto, eles percebem que, além da oralidade é necessária a escrita,

pois a mesma pode ser uma via de conservação da tradição oral. Contrários à ideia

de que a escritura pode ameaçar a prática da oralidade, eles acreditam, assim como

Laroche (2009), que oralidade e literatura, longe de se excluírem, se complementam.

Assim, nasce um movimento que, além de destacar as tradições, através das

lembranças e da memória coletiva, pretende estabelecer um espaço para a

produção de uma literatura local fundamentada na tradição oral.

Pensando na escritura como uma via de conservação da oralidade e não

como ameaça, os escritores das Antilhas percebem a importância do registro oral

mediante o risco do apagamento das tradições. Desse modo, a oralitura atende aos

anseios dos jovens intelectuais no que diz respeito à produção de uma literatura

própria, pois como afirma Laroche:

[...]il faut distiguer l’oraliture de la littérature mais observer aussi dans l’un et l’autre cas une évulution parallèle qui n’exclut nullemment l’uitlisations des mêmes procedes techniques (...) en fait oralité et littérature, loin de s’exclure, se combinent (LAROCHE, 2009, p. 20).12

Esta combinação do oral e do escrito torna-se um desafio para os escritores.

Chamoiseau, em Texaco, realiza esta provocação ou mesmo subversão e, apesar

11 « [...] est le ciment de notre culture et qu’elle doit régir les fondations de notre antillanité. » (BERNABÉ, 1993, p. 26). 12[...] é preciso distinguir a oralitura da literatura, mas observar também em um e no outro caso uma evolução paralela que não exclui absolutamente a utilização dos mesmos procedimentos técnicos [...] com efeito oralidade e literatura longe de se excluírem, se combinam (Tradução nossa).

36

das dificuldades de escrever, de registrar a língua oral, ele insiste na conquista

desse mundo. No livro, observa-se uma linguagem fronteiriça entre o oral e o escrito,

o registro de expressões em crioulo seguidas das traduções em francês, a escrita de

termos em crioulo e os neologismos são presentes no decorrer da narrativa.

Chamoiseau denuncia os conflitos existentes entre o crioulo e o francês em

suas obras. O próprio escritor se depara com o dilema entre o desejo de escrever

em crioulo, e ter o alcance das suas ideias limitado pelo pouco conhecimento do

registro escrito que há da língua, e a necessidade de escrever em francês para

garantir a circulação da sua obra. Diante desse impasse ganha a segunda opção, a

escrita em língua francesa.

A própria Marie-Sophie Laborieux, protagonista de Texaco, declara essa

relação com o francês. Apesar de falar o crioulo ela adquire do seu pai, Esternome,

o respeito e a admiração pela língua do colono. Como ela mesma afirma:

Dele peguei esse gosto pela língua francesa, esse cuidado em falá-la do jeito imperial que cultivei em meus tempos solitários. Por enquanto, negra cabra da lama, eu julgava aquela maravilha: um negro retinto transfigurado em mulato, transcendido até o branco pelo inacreditável poder da bela língua da França. (CHAMOISEAU, 1993, p. 175).

Há uma preocupação latente em relação à língua, os personagens se

questionam sobre qual delas utilizar, mas fica evidente a predileção pela língua

francesa, principalmente no que diz respeito às situações formais. O escrever é em

francês, o crioulo permanece marginal no processo de colonização. Quanto melhor

se faz uso do francês mais distante o indivíduo fica da sua realidade crioula.

Quando Chamoiseau e os escritores da Crioulidade trazem para a escrita a

marca da oralidade, sobretudo a estrutura do crioulo falado, eles tentam mudar a

ideologia dominante e se rebelam contra o sistema discriminatório que categoriza as

pessoas segundo a espécie de linguagem da qual faz uso.

Escrever a história é um desafio para os antilhanos, principalmente por ser

uma história que conduz a muitas outras histórias. Defender uma literatura local, que

fale das tradições usando a língua marginalizada, se constitui um desafio a ser

vencido cotidianamente.

37

Ainda há muita resistência e preconceito quanto à escrita do crioulo, os

próprios falantes veem com desconfiança o registro escrito deste, que, segundo

muitos não passa de um patois.13 Não conseguem perceber na beleza e na

sonoridade desta língua ancestral a riqueza cultural que ela ajuda a manter na

tradição martinicana.

2.2 “Nossa história é uma trança de histórias”: A Crioulidade e a formação da

identidade cultural na Martinica

Por certo período imperou a crença de que tudo o que provinha do popular

era menosprezado e não valorizado, posto à margem da cultura ocidental imposta

pelos colonizadores. A pesquisadora Zilá Bernd (1999), em seu artigo intitulado

“Inscrição do oral e do popular na Tradição Literária Brasileira”, apresenta uma

reflexão sobre a produção oral e popular e suas relações com a tradição literária.

Para tanto, ela parte de conceitos de teóricos como Scarpetta, que faz uso de

termos como impuro e impureza, e da noção de híbrido.

Normalmente as formas consideradas impuras eram afastadas do cânone

literário pelos críticos, que, preocupados com o estético e o formal faziam com que

as produções independentes e de menor circulação não encontrassem o seu espaço

na Academia. No Brasil, é apenas a partir dos anos 1920, com o modernismo, que

essa realidade começa a mudar. O diferente, a tradição oral e popular que até então

era desprezada, dá os seus primeiros passos em direção à conquista de um espaço

dentro da produção literária. Começa então uma abertura para essas formas que,

por um período da história da literatura, foram menosprezadas.

O surgimento do conceito de híbrido, termo tomado por empréstimo da

biologia, contribui para a reflexão da produção popular dentro da tradição literária,

uma vez que amplia o espaço de expressão do não canônico. O que a princípio tem

de vocábulo associado à ideia de negativo, o hibridismo traz consigo a origem

etimológica de algo anômalo, irregular e anormal, mas, entretanto, com o tempo

13 Em português: patoá. Refere-se às línguas nativas ou locais, pode também se referir aos dialetos.

38

adquire novas concepções e possibilidades, pois, amplia-se, tornando-se um aliado

para a compreensão da literatura pós-colonial.

Esse preconceito em relação ao diferente durante muito tempo comprometeu

a produção literária de expressão popular. No entanto, hoje já é possível identificar

uma nova percepção em relação às misturas culturais que em decorrência de

movimentos como a crioulização passa a ser incentivado, pois já se observam essas

combinações como algo positivo. A convivência de várias expressões culturais

permite uma infinidade de produções, ampliando conceitos iniciais e valorizando as

contribuições culturais de povos distintos, incentivando assim as trocas e as

mutações na produção literária.

Vale ressaltar que, como afirma Burke (2003), o hibridismo não ocorre apenas

na língua ou na literatura, mas processo amplo que é, torna-se facilmente

identificável também em diversas áreas como a música, a religião, a culinária, entre

outros.

Esse processo de hibridização acontece nitidamente na Martinica. As

produções populares são exemplos de expressões híbridas que representam o

ajuntamento de culturas distintas. Um conto da tradição oral pode, em um só

momento, trazer marcas da cultura africana, europeia, asiática ou caraíba. Dado o

seu cunho híbrido, essas obras foram historicamente estigmatizadas e

marginalizadas, ou seja, como o padrão literário era o que vinha da França

continental, referência do culto e do erudito, o que não provinha da terra mãe não

era considerado relevante.

Este cenário começa a mudar quando se iniciam as manifestações por parte

de grupos de resistência que se colocam em prol da liberdade de expressão e da

produção de uma literatura própria, aberta a todas as influências e contribuições

culturais das mais diversas. Essa resistência é sustentada essencialmente por

escritores e pesquisadores da área das ciências humanas e da linguística.

Bernd (1999) cita esses escritores antilhanos e sua luta pela divulgação da

produção literária popular local, lembrando ainda o fato de este ser um campo

minado. Nesse sentido, mais uma vez o escritor martinicano Patrick Chamoiseau é

um bom exemplo, pois mostra em suas obras a possibilidade de convivência entre

os elementos populares e o acadêmico. Em sua luta pela preservação do crioulo, faz

em suas obras o movimento nomeado de detour, que consiste em trazer para a

escrita marcas do crioulo na tentativa de busca e afirmação da identidade local. Ele

39

defende em suas produções as formas tidas como impuras e, além de fazer uso

delas, utiliza o seu trabalho como veículo para tornar visível e afirmar essa produção

cultural popular.

Negar a língua crioula, como aconteceu durante muitas décadas, é negar a

riqueza cultural possível através da diglossia, a convivência entre essas duas

línguas. O crioulo guarda a possibilidade da construção do imaginário que, segundo

os martinicanos, na língua francesa é limitado. Para o antilhano não é possível

escrever, registrar em outra língua a produção crioula, nenhuma outra língua oferece

as possibilidades e a abertura que o crioulo disponibiliza.

Segundo os antilhanos, o crioulo tem a sua estrutura bem particular, possui a

melodia que encanta e as expressões intraduzíveis que ao serem traduzidas para o

francês perdem a carga semântica que possuem, fragmentando a força significativa

que tem no original. Este não é fato novo, pois como se sabe toda produção literária

ao ser traduzida corre o risco de ter perdida a sua essência.

Bernabé, Chamoiseau et Confiant (1993) afirmam no Éloge que “a nossa

história é uma trança de histórias”. Resta visível a percepção de que a possibilidade

dessa trança só se faz através da língua. O crioulo já não é a língua africana, nem a

língua do colonizador, muito mais do que isso, a língua para eles é símbolo da

construção da identidade, ela é a representação e a expressão dos diversos

discursos que circulam e moldam esse ser crioulo.

Os escritores antilhanos na contemporaneidade não buscam respostas,

contrário a isso eles afirmam terem consciência da complexidade da identidade e do

discurso que os constroem. O que eles buscam, de fato, são alternativas,

possibilidades de reflexão sobre esse ser crioulo num território pós-colonial, onde

nenhuma contribuição do outro é negada, mas sim transformada num caldeirão

cultural que se encontra em constante ebulição.

Nesse sentido, o conceito de crioulidade se aproxima das teorias propostas

pelos estudos culturais que propõem uma análise crítica da sociedade partindo da

ideia de cultura. Para os teóricos dos estudos culturais a resistência se caracteriza

como ponto chave para o embate que se trava contra a cultura dominante. A

resistência, segundo Mattelart e Neveu (2006, p. 74) “questiona a especificidade do

poder cultural que as classes operárias podem exercer” e “sugere mais um espaço

de debate que um conceito impenetrável”.

40

O debate só se torna possível em decorrência da percepção do diferente.

Quando as minorias se percebem diferentes, mas não menos importantes, elas

partem para a luta de demarcação de território. O diferente não é o estranho ou o

proibido, mas a marca que induz ao desejo de conhecer o outro e descobrir as suas

particularidades. É a partir do conhecimento do outro, para estabelecer uma relação

com o outro, que a sociedade contemporânea se constitui.

A partir do momento em que percebem a sua diversidade, os martinicanos

admitem a impossibilidade de existirem enquanto ser único e fixo. Assim

compartilham o que Hall (1999) diz ao afirmar que o sujeito assume diferentes

identidades em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor

de um “eu” coerente.

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 1999, p. 13).

O possuir um documento que outorga a nacionalidade francesa não é

suficiente para estabelecer esta segurança identitária. Contrário ao que muitos que

estão longe da sua realidade pensam, o martinicano convive cotidianamente com os

impasses e conflitos decorrentes do viver em uma ex-colônia com título de

departamento europeu, mas com todos os problemas de pré-conceito e

discriminação vividos pelos países colonizados.

Eles são oficialmente franceses, mas sua cultura não é exclusivamente

europeia. Eles são africanos, são índios, são asiáticos, são americanos, são

caribenhos, são antilhanos e martinicanos. As múltiplas identidades desconcertantes

e cambiantes a que Hall faz menção são visíveis e palpáveis na Martinica.

Os escritores da Martinica não querem negar essa diversidade cultural que

faz parte da identidade local, da ideia de pertencimento, antes, o que eles defendem

é a possibilidade de convivência dessas múltiplas culturas/identidades sem a

necessidade de negação de nenhuma delas.

41

Appelle-la simplement littérature créole. Cela témoigne que, née ici, aux Amériques, elle a connu la créolisation qui, dans le creuset des îles ouvertes, a mélangé tout le Divers monde. Aborde-la en français et en créole: deux langues mais une même trajectoire. Et puis descends au coeur des hommes, touche la chaleur des chairs, le palpitant d’une vie, le plaisir dans chaque texte. Ici pour la literature, l’aventure est nouvelle. (CHAMOISEAU et CONFIANT, 1999, p. 14)14

Que ela seja chamada simplesmente de literatura crioula é o desejo desses

escritores. Não uma literatura incompreensível, mas que testemunha os

cruzamentos entre culturas e línguas guardando os seus traços, mas não os

mantendo estáticos, pois estes, móveis que são, estão em constantes choques que

ocasionam a multiplicidade de produções.

No entanto, o ensejo teórico desses escritores ainda está muito longe da

realidade prática das pessoas. O homem nascido na Martinica adota a identidade

europeia como sendo a sua, ainda que teoricamente. Este homem se veste como

um antilhano, ele come e fala como tal; ele usa o crioulo em suas relações

domésticas, mas nega veementemente as suas origens africanas e o seu local

colonizado, ele é francês.

Voilá le décor phénoménal d’une des faces de la créolisation: tous ces peuples précipités dans le creuset de l’archipel caraïbe, frappés des histoires de leur origine, frappés des attentats esclavagistes et coloniaux, frappés par cette amorce de relativisation généralisée des cultures. Aucune synthèse ne s’effectua mais une sorte d’incertain métissage, toujours conflictuel, toujours chaotique, porteur de densités anthropologiques aux fronteires vaporeuses, baignant dans un espace créole quasiment amniotique. Dans la culture créole chaque Moi contient une part ouverte des autres, et au bordage de chaque Moi se maintient frissonnante la part d’opacité irréductible des Autres (CHAMOISEAU et CONFIANT, 1999, p. 64)15.

14 Chame-a simplesmente de literatura crioula. Isso testemunha que, nascida aqui, nas Américas, ela conheceu a crioulização que, no caldeirão das ilhas abertas, misturou todo o mundo Diverso. Aborde-a em francês e em crioulo: duas línguas, mas uma mesma trajetória. E depois desça ao coração dos homens, toque o calor das carnes, o pulsar de uma vida, o prazer em cada texto. Aqui para a literatura, a aventura é nova (Tradução nossa). 15Eis a imagem fenomenal de uma das faces da crioulização: todos estes povos lançados no caldeirão do arquipélago caraíba, expostos a histórias sobre as suas origens, expostos a atentados escravagistas e coloniais, expostos por esta isca de relativização generalizada das culturas. Nenhuma síntese se efetua, uma espécie de mestiçagem incerta, sempre conflitual, sempre caótica, portadora de densidades antropológicas às fronteiras aéreas, banhando em um espaço crioulo quase amniótico. Na cultura crioula cada Eu contem uma parte aberta dos Outros, e a ondulação de cada Eu mantem em frisson a parte opaca irredutível dos Outros (Tradução nossa).

42

Sabe-se que, socialmente falando, admitir-se francês é o caminho mais viável

para sanar as inquietações às quais os martinicanos são submetidos

cotidianamente. Porém, essa é uma admissão essencialmente teórica, pois, na sua

prática esse homem entende-se martinicano. Esse conflito e, por vezes,

contradições presentes no discurso da população evidencia não apenas questões de

ordem cultural, mas também política.

Chamoiseau e os outros escritores da crioulidade evidenciam em suas obras

esse conflito, propõem a reflexão sobre o assunto e tentam apontar soluções. Uma

delas é ter uma visão interior da tradição, do modo de ser antilhano. Mas, segundo

esses mesmos escritores, isso não será possível enquanto não houver uma prévia

aceitação de si mesmo. Nesse sentido, se perceber crioulo é o primeiro passo em

direção à compreensão da identidade cultural martinicana.

2.3 “Reaprendendo a ver positivamente tudo o que palpita em torno de nós”:

Chamoiseau, um precursor da crioulidade

Nascido em 1953, na cidade de Fort-de-France, capital da Martinica, região

das Antilhas, Chamoiseau desde cedo se mostrou ativista em relação à defesa da

produção da literatura popular local. Preocupado em assegurar e registrar as

tradições culturais de seu povo, no decorrer da sua carreira ele se voltou para as

questões ligadas à marginalização do crioulo, sua primeira língua, e as tensões

existentes entre a cultura crioula e a europeia imposta pelos franceses.

Oriundo de uma família nativa da Ilha, ele passa toda sua infância na

Martinica. Ao concluir a formação básica, parte para Paris com o intuito de dar

continuidade aos estudos. Já na capital, frequenta a universidade e conclui o curso

de Direito e a Faculdade de Economia Social. É, portanto, através dos estudos que

Chamoiseau encontra o caminho para mudar a realidade social em que nasceu e

cresceu.

Voltando à Ilha, após a conclusão da universidade, ele começa a se

interessar pela etnografia e ao mesmo tempo inicia sua atividade como escritor,

publicando trabalhos de circulação limitada por pequenas editoras da Martinica. São

artigos, textos teatrais e pequenos romances.

43

Em 1986, ele publica, por uma grande editora da França continental,

Chronique des sept misères, seu primeiro romance. O livro tem grande repercussão,

colocando assim pela primeira vez o autor em evidência.

Mas, é apenas em 1992 que Chamoiseau ganha de fato o reconhecimento da

academia. É nesse ano que ele publica o romance Texaco e, pela primeira vez, na

história do prêmio Goncourt, um escritor da região das Ilhas francesas tem seu

trabalho reconhecido.

Para falar da Martinica o escritor recorre constantemente às suas memórias

de infância. São as histórias, contos e aventuras ouvidas dos mais velhos que

compõem o seu repertório. Essa sabedoria popular serve de inspiração para os

romances por ele escritos. Não é por acaso que em seus livros sempre há a figura

do sábio guardador e contador de histórias.

Essa figura sagrada, quase mítica, do contador, torna-se fundamental para os

ideais que o autor anos mais tarde proclama. A manutenção da tradição oral e a

criação da oralitura só é possível através do papel do narrador, do contador.

Para contar o seu nascimento para a escritura e para si, e evocar a sua

infância, ele escreve uma trilogia a qual chama de Une enfance créole. Essa, por

sua vez, é apresentada através dos volumes: Antan d’enfance (1990), Chemin

d’école (1994) e À bout de l’enfance (2005).

Nessa trilogia surge um personagem-narrador que é o responsável em contar

a sua história de vida. Chamado de “négrillon”, esse contador faz uso das suas

lembranças para descrever as histórias vividas pelo pequeno Chamoiseau na cidade

de Fort-de-France.

Nesse momento, a memória se faz essencial, pois é através dela que o autor-

narrador irá contar as lembranças de uma infância já distante (no tempo e no

espaço), mas ainda presente em sua essência. E como afirma Zilberman:

Memória constitui, por definição, uma faculdade humana, encarregada de reter conhecimentos adquiridos previamente. Seu objeto é um “antes” experimentado pelo indivíduo, que o armazena em algum lugar do cérebro, recorrendo a ele quando necessário. Esse objeto pode ter valor sentimental, intelectual ou profissional, de modo que a memória pode remeter a uma lembrança ou preocupação; mas não se limita a isso, porque compete àquela faculdade o acúmulo de um determinado saber, a que se recorre quando necessário (ZILBERMAN, 2005, p. 165).

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É esse o papel da memória de Chamoiseau em Chemin d’École, quando ele

retoma essas vivências de grande valor sentimental para justificar o seu papel hoje

enquanto intelectual. É na infância e na sua primeira experiência na escola e com a

leitura que nasce o ativista. No segundo livro da sua autobiografia ele afirma

claramente essa crença.

Em seu primeiro contato com a escola, o autor descobre que a língua falada

nessa instituição é diferente da que ele conhece no seu dia-a-dia. O francês

“impeccable” ensinado pelo professor é bem distante do crioulo, a língua falada em

família. Mas é também através deste encontro que Chamoiseau descobre que o

francês é o estrangeiro, o caminho estranho, mas necessário. O francês é a língua

que abre todas as portas para os alunos, mas com o preço de negarem suas almas

crioulas.

A consequência dessas experiências de infância se apresenta através da

militância já na vida adulta. Ao escrever Texaco, o autor mistura a história e a ficção,

destacando a importância do registro da cultura popular, mas também contando e

ficcionando a sua própria história de vida.

Texaco é a certificação do que até então ele e os escritores da crioulidade

proclamavam no Éloge de la Créolité e que mais tarde é reafirmado em Lettres

créoles, escrito com Raphäel Confiant:

Maintenant, nous nous savons Créoles. Ni Français, ni Européens, ni Africains, ni Asiatiques, ni Levantins, mais un mélange mouvant, toujours mouvant, dont le point de depart est un abîme et don’t l’évolution demeure imprévisible. De par le monde, ce processus que nous vivons depuis plus de trois siècles se répand, s’accélère: peuples, langues, histoires, cultures, nations se touchent et se traversent par une infinité de réseaux que les drapeaux ignorent. La littérature voit converger ses diversités folles. Le monde se met à résonner de sa totalité dans chacun de ses lieux particuliers. Il nous faut désormais tenter de l’appréhender, loin du risque appauvrissant de l’Universalité, dans la richesse éclatée, mais harmonieuse, d’une Diversalité (CHAMOISEAU, 1999, p. 275)16.

16 Agora, nós nos sabemos Crioulos. Nem franceses, nem europeus, nem africanos, nem asiáticos, nem Levantins (pessoas oriundas das regiões do Mediterrâneo oriental), mas uma mistura em movimento, sempre em movimento, cujo ponto de partida é um abismo e cuja evolução permanece imprevisível. Em todo o mundo, este processo que nós vivemos durante mais de três séculos está se espalhando, se acelera: povos, línguas, histórias, culturas, nações se tocam e passam por uma infinidade de redes que ignoram as fronteiras. A literatura vê convergir suas loucas diversidades. O mundo se coloca à repercutir sua totalidade em cada um de seus lugares específicos. Nos é preciso, a partir de agora, tentar entender, longe do risco de empobrecimento da Universalidade, na riqueza explosiva, mas harmoniosa, de uma Diversalidade (Tradução nossa).

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Diversalité é a palavra utilizada para definir o desejo de convivência de traços

diversos das várias culturas que compõem o crioulo. Em determinado trecho de

Texaco a personagem Marie-Sophie faz um relato da época pós-abolição em que

seu pai viveu:

Meu Esternome aprendeu a designar cada pessoa de acordo com o seu grau de brancura ou o azar de sua negrura. Aprendeu a pentear a rodela da carapinha com brilhantina, na esperança de que no dia de são nunca os cabelos esvoaçassem-lhe sobre a testa. Todo mundo sonhava em embranquecer (CHAMOISEAU, 1993, p.71).

Embranquecer, o grande desejo dos negros e seus descendentes que

atravessou séculos até a contemporaneidade. O negro aprendeu a esquecer a sua

história, a sua cultura e a sua tradição, importava parecer cada vez mais branco.

Chamoiseau lança um olhar crítico a esta situação e aponta outros caminhos,

novas alternativas. A crioulidade rejeita a unidade, a universalidade, a pureza e a

transparência; ela prega a diversidade e o engajamento.

A necessidade de assimilação dos modos e costumes do europeu é notória.

Ao escrever sobre estas questões Chamoiseau conduz o seu leitor a um novo

mundo, instigando-o à reflexão, mostrando-lhe a possibilidade de viver a

contemporaneidade se aceitando e se entendendo enquanto indivíduo plural, que

respeita as várias manifestações culturais e se identifica com elas.

Romancista, poeta e ensaísta, Patrick Chamoiseau é um intelectual que

floresceu jovem, e, no ápice da sua juventude cativou a atenção de muitos.

Conquistou o respeito da crítica literária, o que coloca também em evidencia o papel

que ele vem desempenhado no meio acadêmico.

Em entrevista cedida à Rose Réjouis (2011), ele admite que escrever é

também uma forma de divertimento. Ao criar os personagens e dar-lhes vida através

das falas, Chamoiseau adentra um mundo particular. Cada palavra escolhida

representa uma visão, uma escolha de ideias e de representações.

A crioulização, como ele afirma na mesma entrevista, não é o desejo de

crioulizar palavras e frases, isto é, introduzir o crioulo em sua escrita (através de

palavras, ditados e expressões) é a possibilidade de expressar a sua visão de

mundo.

46

Et je disais ça surtout pour certains écrivains qui viennent et qui à notre suite essaient de faire un texte créole se préoccupant uniquement de créoliser des mots et des phrases, alors que la créolisation véritable est d'exprimer une vision du monde qui est la mienne, qui est celle que nous avons ici pour décrire un personnage, pour décrire une situation. Je me demande toujours comment ma mère aurait raconté ça, comment mon père aurait vu ça, comment nous ici nous aurions vu ça. Pourquoi? Parce que insidieusement notre esprit est complètement dominé par les valeurs françaises, c'est-à-dire que spontanément lorsque j'écris, je suis français. Pour être Créole, pour être plus proche de ma vérité, je dois faire un effort de vigilance sur moi-même (CHAMOISEAU, entrevista à Rose Réjouis, 1996) 17.

Um esforço de vigilância. Atitude necessária para os desafios que escrever

em crioulo apresenta. Não apenas por ser uma língua em formação enquanto

registro escrito, mas também pela possibilidade de se perder o que a língua tem de

melhor em sua forma oral: o encantamento.

Encantamento é o que Chamoiseau vem conseguido fazer nas últimas

décadas. Sem perder a originalidade e mantendo a essência do crioulo, ele

desenvolve essa expressividade fronteiriça que avança sempre instigando os seus

leitores.

Em Texaco, é possível observar na prática o resultado desse processo criador

de Chamoiseau. Na obra são apresentados vários elementos que representam o seu

desejo em mostrar a crioulização em sua forma mais natural: nas relações cotidianas

que se estabelecem entre as pessoas. É o que se abordará no próximo capítulo.

17 E eu dizia isso principalmente para certos escritores que vinham e que em seguida tentavam fazer um texto em crioulo se preocupando unicamente em crioulizar as palavras e as frases, enquanto que a crioulização verdadeira é exprimir uma visão do mundo que é a minha, que é esta que nós temos aqui para descrever um personagem, para descrever uma situação. Eu me pergunto sempre como minha mãe teria contado isso, como meu pai teria visto isto, como nós aqui nós teríamos visto isto. Por que? Porque nosso espírito é completamente dominado pelos valores franceses, isso quer dizer que espontaneamente quando eu escrevo, eu sou francês. Para ser Crioulo, para estar mais perto da minha verdade, eu devo fazer um esforço de vigilância sobre mim mesmo (Tradução nossa).

47

3 A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA EM TEXACO

A habilidade de contar, de narrar fatos e casos é inerente ao homem e faz

parte da sua afirmação enquanto ser, e é através dela que o sujeito adquire

consciência de si e do mundo ao seu redor. A cada narrativa contada o indivíduo

compõe-se e forma-se em um tecer de histórias compartilhadas, vividas e

imaginadas, que estabelecem um referencial de lugar e pertencimento a um grupo.

No passado, no período em que a escrita ainda não havia sido desenvolvida,

era a arte de narrar através da voz o instrumento para socialização de vivências no

grupo. As narrativas estão presentes no cotidiano do ser humano desde que se tem

notícia de sua existência, pois o homem já era contador de histórias antes mesmo

de ser escritor ou leitor.

Essa mesma realidade é válida nos dias atuais, pois o homem em seus

primeiros momentos de vida, primeiro domina a linguagem oral e apenas

posteriormente, quando é alfabetizado, adentra no mundo da escrita. Portanto, as

histórias orais fazem parte da essência humana e elas revelam essa natureza

didática, lúdica, imaginativa que todos possuem. Quem não se lembra de uma

história, uma lenda, uma anedota ouvida durante a infância e que se encontra, ainda

hoje, viva em suas recordações?

Várias são as histórias ouvidas, imaginadas, sonhadas, que povoam a

memória das pessoas e que por força do tempo ou das circunstâncias são

recontadas, revividas ou simplesmente guardadas em um espaço qualquer do

subconsciente, apenas aguardando uma oportunidade para serem relembradas,

retomadas, re-apropriadas e recontadas.

Contar não é apenas uma arte, é também uma ciência. A ciência de se fazer

ouvir e de povoar o imaginário dos ouvintes. É também um meio de dividir crenças,

hábitos e sonhos; de deixar um pouco de si no outro e de reviver no outro o que

estava apagado. Como afirma Benjamin:

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las, assim se

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teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênio, em torno das mais antigas formas de trabalho manual (BENJAMIN, 1993, p. 205).

Quando as histórias não são mais contadas elas se perdem, são apagadas da

memória de um povo, portanto recontar é também reviver. Em uma mistura de ficção

e realidade o narrador dá forma às suas histórias e nelas imprime a sua filosofia.

Não existe pureza e nem preocupação com tal natureza. É o contato que se

estabelece entre narrador e ouvinte o que mais importa. Fazer-se verossímil e

credível é o objetivo de quem narra. A conquista da credibilidade do ouvinte é o que

realmente importa.

A narrativa está de tal forma incorporada ao cotidiano do homem que assume

função insubstituível em várias ocasiões. São histórias que aliviam as dores na alma

de quem sofre por alguém, elas também trazem alegrias aos doentes e fazem o

tempo passar para quem acha a espera algo infindável.

Não é ao acaso que as narrativas se fazem presentes nos velórios, nos

corredores dos hospitais, nas longas horas de viagem, no trabalho na lavoura ou no

lar. Uma história é sempre bem vinda, pois ela transmite a incrível magia do desligar-

se do tempo presente e esquecer-se dos problemas e dores reais podendo

transportar-se para um mundo distante e imaginado.

Nesse sentido o narrador é portador de uma sensibilidade quase mágica que

o dota de uma habilidade capaz de apreender a essência de quem o ouve e de

transmitir, a este, conselhos e histórias advindas da sua experiência de vida, pois

como afirma Benjamim (1993, p. 201) “o narrador retira da experiência o que ele

conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas

narradas à experiência dos seus ouvintes”.

Ainda discorrendo sobre o lugar do narrador, Benjamim fala sobre a natureza

da narrativa evocada por este, que segundo ele seria “a natureza da verdadeira

narrativa”. Ele diz que:

Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se “dar conselhos” parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis (BENJAMIN, 1993, p. 205).

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Benjamim, ao falar da natureza da narrativa, faz ainda um alerta sobre as

barreiras que se colocam diante dela hoje. O narrador tem que lidar com o perfil

contemporâneo das pessoas que, na maioria das vezes, acreditam que a

transmissão de conhecimentos via histórias é uma prática pertencente ao passado.

Por isso, para alcançar o seu objetivo de transportar o ouvinte e conquistar a sua

atenção, o contador de histórias deve fazer uso dos mais variados recursos.

Há uma preocupação com a entonação da voz, com a expressão corporal,

com a escolha adequada do local onde será narrada a história e o conhecimento do

público. Esses elementos farão a singularidade de cada demonstração por parte do

narrador.

A marca constante do contador é sua intenção de prender a atenção dos ouvintes, a ponto de contagiá-los a uma participação apreciativa, durante a própria enunciação. O narrador utiliza inflexões de voz, modulações melódicas, expressões fisionômicas e gestuais, buscando manter desperto o interesse dos ouvintes, realçando os pontos altos das narrativas, sempre num diálogo sintonizado com o auditório (GUIMARÃES, 2001, p. 86).

Para o contador de histórias, o ritual que acompanha a narrativa é

extremamente importante. É preciso criar um ambiente promissor para que a sua

mensagem toque o ouvinte de tal forma que o encante. Cada conto tem a sua

dinâmica que lhe é própria, são histórias que só podem ser narradas à noite, outras

que são específicas para velórios, outras para divertimento; de acordo com a

situação em questão se encontrará um rito próprio a ser executado.

O medievalista e também filólogo e poeta, Paul Zumthor, no decorrer da sua

obra apresenta o conceito de performance, onde afirma que esta não está apenas

associada ao conteúdo a ser transmitido, ou a quem o transmite, mas

essencialmente à forma como acontece a recepção do que está sendo ouvido.

Sendo assim para Zumthor “a performance é então um momento da recepção:

momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido” (2000, p. 58).

Em seu livro Introdução à poesia oral, Zumthor destina espaço privilegiado

para a análise dos vários aspectos que compõem a performance. Ele discorre sobre

a oralidade poética e destaca o papel da voz e do corpo, e como este conjunto

interfere diretamente nas relações a serem estabelecidas entre o intérprete e o

ouvinte/ receptor.

50

A função do contador é de, através dos inúmeros recursos corporais

disponíveis (seja através da voz, da expressão facial ou do corpo), obter a atenção

do seu ouvinte, a sua efetiva participação na performance e o impacto da narrativa

sobre este, seja de forma direta ou indireta, pois, como diz Zumthor “a oralidade não

se reduz à ação da voz. Expansão do corpo, embora não esgote. A oralidade implica

tudo o que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto mudo, um olhar.” (1997, p.

203).

Voltando a tomar como referência a obra em questão neste trabalho, percebe-

se nitidamente como esta relação apresentada por Zumthor se faz presente em

Texaco, não se limitando apenas à voz da narradora, mas contemplando a

performance que estabelece uma simbiose entre intérprete e ouvinte em torno da

história que é narrada.

O ato performático faz parte das tradições locais e se faz presente através

das narrativas. Marie-Sophie, em Texaco, representa o griot africano que, com sua

voz e a sua encenação, constrói o cenário propício para os embates constituídos a

partir de questões como a língua e/ ou a própria noção do ser crioulo.

Esse capítulo pretende refletir sobre a importância das narrativas orais e

como elas se constituem uma ferramenta no processo de afirmação das tradições,

da mesma forma que transporta e transmite valores e convém de referência para

uma comunidade, além de refletir na postura e no comportamento dos sujeitos que

dela fazem parte.

Alberti lembra que “esse talvez seja o grande fascínio exercido pela tradição

oral: o fato de se tratar de um patrimônio coletivo comum, que, no entanto, não

existe sem a ação permanente daqueles que o repetem e, portanto, o transformam.”

(2005, p. 18).

A análise da narrativa em Texaco fornece uma diversidade de elementos que

possibilita o estudo do romance sob alguns prismas. Uma leitura faz perceber as

nuances do enredo e a preocupação com os detalhes que o autor evidencia. Na

obra, é possível encontrar traços que conduzem às questões não apenas culturais,

mas também antropológicas, linguísticas, filosóficas e psicológicas.

A forma como a narrativa é apresentada cativa o leitor, pois constitui um

testemunho vivo, o desejo de mostrar fatos e situações que fazem parte da história

de Texaco ao mesmo tempo em que conta o mito-fundador desta. Além disso, o

51

autor traz marcas da oralidade para o texto escrito em um explícito desejo de

alimentar a tradição oral tão presente na Martinica.

A obra Texaco é uma porta de acesso para a descoberta de um mundo

muitas vezes negado pelos martinicanos e praticamente desconhecido para aqueles

que nunca tiveram contato com a região. Ao mesmo tempo em que se caracteriza

como uma obra ousada, uma vez que tenta traçar um perfil histórico de um país que

ainda não se constituiu como tal.

Texaco não é apenas a narrativa de construção de Texaco, o bairro. O

romance é a representação da própria história marginalizada da Martinica. Pois não

é possível desassociar a tradição das questões sociais e políticas. Como diz Alberti

“há ‘pedaços’ de tradição oral nas narrativas históricas e há uma dimensão política

(e, portanto, histórica) nas práticas de tradição oral” (2005, p.25).

Partindo dessas questões de cunho sociopolítico que estão arraigadas à

tradição, se fará, a seguir, uma análise da obra enfocando os personagens e suas

relações. Observa-se também a construção da narrativa e do aparecimento de

situações chaves que ajudam a compreender a realidade crioula na Martinica.

3.1 Desenrolando o novelo da narrativa (Texaco)

Texaco, a partir de um recorte, retrata a história da Martinica nos últimos 150

anos. Sua narrativa começa no século XIX, por volta de 1823, e chega ao século XX,

até os anos 80, uma década antes da publicação do livro, em 1992.

Num enfoque que faz referências à Bíblia, o autor capitula o romance em três

partes: Anunciação, O Sermão de Marie-Sophie Laborieux (que por sua vez se

subdivide em Tábua Primeira e Tábua Segunda) e Ressurreição.

O autor faz ainda uso do termo “tempos” para registrar as marcas

cronológicas da história da Martinica. Esses “tempos” surgem como sub-capítulos da

segunda parte do romance. São quatro os tempos definidos por ele: Tempos de

Palha; Tempos de Madeira de Caixote; Tempos de Fibrocimento e Tempos de

Concreto (que se falará mais atentamente a seguir).

Segue abaixo esquema que apresenta a estrutura do romance:

52

Os “tempos”, que serão aqui chamados de períodos, fazem referência à

cronologia do romance. Isso se deve ao fato da obra estar dividida em três espaços-

tempos. No primeiro período de tempo, que será intitulado de atual, narra-se toda a

história do romance, desde a chegada de Cristo à comunidade, o encontro com

Marie-Sophie e a escuta de sua narrativa e, por fim, quando ele (o forasteiro, o

urbanista) muda o destino do bairro. O segundo período de tempo, imbricado com o

primeiro, transcorre entre Marie-Sophie e Cristo, com esta a lhe contar a história dos

seus antepassados; e o terceiro que se caracteriza como sendo o próprio

acontecimento histórico que está sendo narrado pela matriarca.

A forma como esses espaços-tempos se apresentam dá uma noção de como

é construída a teia narrativa do romance. Uma mesma história é contada, mas várias

vozes se fazem presentes. A do próprio Patrick Chamoiseau que se identifica como

o autor e aquele que está registrando a história: o “marcador de palavras” como ele

é chamado na obra. Ouve-se também a voz predominante de Maria-Sophie, a

narradora que relata os acontecimentos vividos por ela mesma e por seus

ascendentes. E também as várias vozes das personagens que surgem no decorrer

da narrativa.

A história não está sendo contada diretamente para o “marcador de palavras”,

mas a este é narrado, pela própria Marie-Sophie, os acontecimentos em torno do

Cristo e de como o grande conto da construção de Texaco foi exposto a este. Os

artifícios que o autor faz uso algumas vezes confundem o leitor, mas uma leitura

atenta permite identificar os recursos que a narrativa apresenta por meio dessa

estratégia de mudança do espaço-tempo.

53

ALGUMAS CAPAS DO ROMANCE TEXACO

Primeira Edição (1992)/ Gallimard

Segunda Edição (1994)/ Gallimard

Edição Brasileira (1993)/ CIA das Letras

Edição Americana (1998)/ Vintage Books

54

Na primeira parte do romance, intitulada “Anunciação”, é descrita a chegada

do urbanista da Prefeitura que segundo a narradora, seria o responsável pela

demolição de Texaco. Este homem recebe a alcunha de Cristo e a sua primeira

aparição na comunidade causa grande alvoroço entre os moradores.

Nesse primeiro momento o escritor dá voz às várias personagens que vão,

cada um segundo o seu ponto de vista, narrar o impacto e a impressão resultante do

primeiro encontro com o estrangeiro destruidor. Destaca-se o fato do romance ser

narrado em primeira pessoa, dando um caráter memorialista à obra. No entanto

pode-se ressaltar as outras pessoas que falam além do personagem narrador.

Esses outros envolvidos têm o direito à voz e à tomada de posicionamento, uma vez

que narram a história segundo suas experiências dos fatos vivenciados, a exemplo

do capítulo acima citado.

Um pescador, um letrado, uma bisbilhoteira, uma mãe solteira, personagens

corriqueiros de uma comunidade que levam a vida com normalidade até o momento

em que entram em contato com Cristo. Essas pessoas são personagens oculares

que contribuem com suas próprias narrativas e conduzem a uma reflexão sobre a

possibilidade de várias vertentes de uma mesma história. O fato narrado é passível

de mudanças e adquire adaptações e novas versões à medida que é recontado.

Esses moradores de Texaco ainda não sabiam o que estava para acontecer,

tinham expectativas, estavam receosos quanto ao futuro da comunidade, mas não

podiam supor no que resultaria a chegada do urbanista. Temerosos do futuro eles

reagem na tentativa de preservar o seu patrimônio, não consideram o outro lado

representado pelo forasteiro e agem na impulsividade, agredindo-o.

A segunda parte da obra, que recebe como título O Sermão de Marie-Sophie

Laborieux, é uma referência nítida a uma passagem bíblica. Esta ocorrência

evidencia-se através do uso do substantivo “sermão”, termo de uso religioso que faz

menção ao discurso que é proferido com o intuito de exortar a moral e a virtude. Fica

então perceptível a relação entre o sermão de Marie-Sophie e o Sermão do Monte,

proferido por Jesus aos seus seguidores, momento no qual ele ensinou sobre os

princípios do evangelho.

O sermão ora proferido por Marie-Sophie não possui a essência virtuosa, mas

não deixa de ser um discurso disciplinar. Como o escritor cita, este é um sermão

“não na montanha, mas à frente de um rum envelhecido”. Não proferido por Cristo,

mas destinado à um Cristo.

55

Por ocasião deste encontro será apresentada a história de Texaco, da

ascendência da fundadora até o momento em que ocorre a narrativa, no tempo

“presente”. À Marie-Sophie é destinada a incumbência de narrar ao forasteiro as

origens daquele povo.

O segundo espaço-tempo (anteriormente citado) é também o histórico. Surge

no decorrer da segunda parte do romance. Quando Marie-Sophie inicia a sua

narrativa para contar a fundação e o desenvolvimento de Texaco, ela remonta ao

passado do período colonial. A contadora traça uma narrativa temporal que passa

por dois séculos de histórias.

No romance, esse segundo espaço-tempo está subdividido em dois

momentos que são chamados de Tábua Primeira e Tábua Segunda. As tábuas por

sua vez estão desmembradas em “tempos” e seus títulos fazem alusão aos

casebres onde os habitantes pobres da ilha moravam em cada época e à matéria-

prima com a qual eles eram construídos. Na medida em que o tempo passa, a

cidade se forma e junto a ela as moradias se transformam, sugerindo os avanços

econômicos e tecnológicos que chegam à cidade e aos morros.

A Tábua Primeira descreve os Tempos de Palha, que vai de 1823 (data

provável) até 1902. A primeira tábua recebe este nome porque narra o período em

que as casas eram cobertas por palhas de cana-de-açúcar. A narrativa gira em torno

de Esternome, pai de Marie-Sophie, o homem que deu início a esse mito fundador e

que nasceu nessa época. A descrição se passa essencialmente na cidade de Saint-

Pierre, antiga capital da Martinica.

É interessante como a narradora vê a necessidade de remontar a um

passado longínquo para explicar a situação atual de Texaco. Ela não se preocupa

apenas em contar como o bairro foi fundado e a história dos primeiros moradores,

para ela é necessário buscar a “origem” de tudo, e ela a encontra em suas raízes

ancestrais representada pela história do seu pai.

Esternome, filhos de escravos e criado ao lado de sua mãe na Casa Grande,

ganha a alforria ao matar um negro fugido e salvar a vida do seu Senhor. Essa

atitude evidencia a ligação que o jovem escravo nutria em relação ao local onde

morava, ou seja, para ele, zelar pela vida do seu senhor era mais importante do que

a vida de um escravo da lavoura. Ele se sentia diferente e não se identificava por

completo com aqueles que faziam parte deste outro mundo do canavial. A postura

56

do pai de Marie-Sophie é condenável, pois fere a imagem de luta e resistência

adotada pelos escravos da época, inclusive a do seu próprio pai.

O romance destaca a habilidade dos negros desse período que

desenvolveram estratégias de sobrevivência e de resistência à escravidão. O pai de

Esternome era envenenador, e fazia desse seu conhecimento sobre as ervas uma

forma de combate contra os senhores: envenena animais e até mesmo homens. Ao

se apaixonar por uma negra lavadeira que servia na Casa Grande comete uma

grande displicência, pois a mesma engravida. Afinal, era do conhecimento de todos

que não deveria haver filhos da escravidão.

Ao pactuarem para não procriarem os escravos colocavam em prática uma

forma de resistência. Se negavam a trazer ao mundo outras gerações que iriam

sofrer tanto quanto eles e que não conheceriam o sabor da liberdade. O pai de

Esternome tenta, assim, o aborto, mas, não tem êxito e a gestação é levada adiante.

Pela primeira vez a mulher recebe tratamento diferenciado dos seus donos, pois a

gravidez de uma escrava era uma dádiva para os senhores.

Também é o pai de Esternome que apresenta à sua amada uma África

desconhecida por ela e a grande maioria dos escravos já nascidos no cativeiro, uma

terra encantada que percorria os labirintos da sua memória:

Sobretudo, revelou-lhe o prazer de sua memória ao relembrar uma terra impossível que ele murmurava África. Se lhe passou seu horror do mar, ensinou-lhe seu imenso encantamento pelo menor arrepio que percorria a natureza (CHAMOISEAU, 1993, p. 45).

Esternome, por sua vez, foi o primeiro negro a nascer na fazenda em 10

anos. Cresce na Casa Grande como o moleque da casa que exerce várias funções,

com direito a um acesso que os outros escravos não possuíam, fazendo com que

ele se sentisse superior a todos eles, como é afirmado em uma passagem “Tornou-

se arrogante com os negros da cana, tal como tinha obrigação de ser o mais

insignificante criado” (CHAMOISEAU, 1993, p. 49).

Esse tipo de postura mostra, por parte de Esternome, o desejo de afirmação e

a necessidade de se sentir superior, ainda que fosse, em relação aos outros, igual a

eles. A vida na Casa Grande oferece certos confortos que não há na lavoura e cria a

57

sensação de uma falsa liberdade. Toda humilhação sofrida entre os brancos é

mínima frente ao trabalho braçal no canavial.

Alguns anos depois do seu nascimento, o seu pai morre na masmorra,

acusado de praticar envenenamento. A masmorra, artifício criado pelos brancos

para amedrontar os escravos rebeldes, nem sempre alcançava o seu objetivo, pois

para os escravos era muito mais digno, bravo e corajoso morrer lutando a se render

ao poder do homem branco. É apenas na morte do seu pai que Esternome toma

conhecimento da existência dele, mas sem grandes alegrias ou pesares, apenas um

escravo envenenador que morria na masmorra.

Quando obtém a alforria, Esternome se sente feliz, mas não ousa sair

realmente da fazenda, na verdade não sabe muito bem o que fazer com a tão

almejada liberdade, até que um dia resolve abandonar a fazenda e sair em busca de

uma nova vida, cheia de sonhos e a esperança de restituição da dignidade perdida.

Nesse momento ele, como muitos ex-escravos da época, percebe que a

liberdade deve ser degustada. Deixar a fazenda é prova do desejo de galgar novos

espaços, descobrir novas experiências, deixar pulsar livremente os desejos

adormecidos. A condição do ex-escravo é daquele que anseia reaprender o mundo.

Ele parte em direção à cidade de Saint-Pierre, então capital da Martinica. É na

Cidade que ele vive suas primeiras aventuras e inicia a descoberta de uma vida

diferente de tudo o que imaginava. Esternome se vê diante das dificuldades

impostas pela escravidão, o pré-conceito e a discriminação. Em um misto de

surpresa e choque ele, aos poucos, se inicia nesse novo mundo.

Descobre que a liberdade não é verdadeira, percebe que estar livre do seu

Senhor não significava ser livre para viver a sua vida de maneira digna e igual aos

brancos. Descobre o maltrato e a classificação das pessoas segundo a cor da pele.

Ser negro é ser indigno de respeito.

O tempo e as experiências foram os mestres deste ex-escravo, ele aprende a

circular na cidade, a encontrar trabalho e as melhores oportunidades. Ele descobre o

amor e as dores que dele provém. Esternome vê a cidade ser erguida. Ajuda mesmo

a erguê-la, mas, vive toda sua vida à margem dela, refugiando-se nos morros, sendo

subjugado e explorado, como todos os outros ex-escravos.

Uma relação de amor e ódio se estabelece entre ele e a cidade. A cidade dos

sonhos é também o lugar dos seus maiores pesadelos. Relação contraditória que é

expressa em um fragmento do romance: “O que não os impedia, e no mais profundo

58

de seus seres, de odiar aquela pele branca e os ademanes mulatos, aquela língua,

aquela Cidade e todo o resto fascinante” (CHAMOISEAU, 1993, p. 71).

Essa contradição descrita em vários momentos é a imagem do entre-lugar

que o martinicano vivencia ainda hoje. As inquietações que atormentavam

Esternome é realidade presente entre o povo que vive dividido entre o mundo do

branco e a sua condição negra, duas realidades que se completam e se distanciam.

A saga de Esternome em Saint-Pierre chega ao fim quando o lugar, em 1902,

é completamente destruído após a erupção do vulcão da Montagne Pelée. Esse

desastre natural mudou completamente a vida de milhares de pessoas. Por ocasião

da catástrofe, em torno de 28.000 pessoas morreram. As que sobreviveram

mudaram-se para outras regiões da Martinica, em especial para a cidade de Fort-de-

France que se torna a capital da ilha (à época uma Colônia). Esternome é um dos

muitos sobreviventes que migram para a nova capital em busca de um recomeço.

Na Tábua Segunda, o enredo se desloca para a cidade de Fort-de-France, e

tem como personagem central a filha de Esternome, a própria Marie-Sophie, a

informante. Nessa parte do romance encontram-se os “Tempos de Madeira de

Caixote”, “Tempos de Fibrocimento” e “Tempos de Concreto”.

Nos Tempos de Madeira de Caixote é retratado o período em que os

casebres eram construídos com restos de caixotes. É também nessa época que

nasce a protagonista da história e fundadora de Texaco.

A destruição da Cidade de Saint-Pierre pela erupção do vulcão marca o início

dessa fase. Os moradores da cidade fogem do perigo e se deslocam para Fort-de-

France que os recebem como “se recebe uma vaga” (CHAMOISEAU, 1993, p. 147).

A chegada à nova cidade marca um recomeço, a oportunidade de construir

uma nova vida, ainda que longe do sonho tão almejado.

Desembarcando em Fort-de-France, meu Esternome não estava com boa aparência. Um estado de preto miserável corrido dos morros. Mas quem o viu? Nenhum guarda controlou suas certidões, pois eram milhares do mesmo jeito, que foram parar num descampado que protegia o Forte (CHAMOISEAU, 1993, p. 148).

Era preciso recomeçar e foi o que esses novos moradores da cidade fizeram:

recomeçaram. Dotados dessa eterna capacidade do homem de dar continuidade ao

59

seu percurso não importando os empecilhos que se sobrepõem no caminho, eles

superaram suas dores e buscaram novo sentido para a vida que continuava.

Os negros recém-chegados na cidade nos primeiros tempos dependeram da

ajuda comunitária e governamental, que os enxergavam como bichos, pobres

miseráveis e necessitados:

Encontraram-se na espécie de campo construído no cerrado: centenas de casebres, para-sois de palha, tendas militares, abrigos de quatro pés. Ali eram reunidos os sobreviventes das cinzas (CHAMOISEAU, 1993, p. 148).

Os famélicos gastavam aquele instante xingando todo mundo, tanto mais que suas barrigas jamais estavam cheias e que, passado o tempo de uma ligeira piedade, Fort-de-france desconfiava que eles fossem uns vagabundos (CHAMOISEAU, 1993, p.149).

O espírito de sobrevivência que nutria aquelas pessoas com o passar dos

anos as impeliram a sair à luta, a buscar por melhorias e qualidade de vida.

Homens, mulheres e crianças saem em busca do novo e é assim que chegam aos

morros de Fort-de-France. Inicialmente de forma tímida, com o tempo surgem

atitudes mais arrojadas que impõem o domínio do espaço.

O morro é um território propício para os descendentes de escravos. Terra livre

e ociosa, longe das autoridades e ao mesmo tempo próximo às oportunidades da

cidade, as encostas das montanhas são rapidamente apropriadas.

Os negros se instalam nesses espaços periféricos e constituem comunidades

com espaço e funções bem definidas. Os homens eram os responsáveis pela

construção dos barracos e as mulheres pela manutenção do lar, pela busca do

alimento para a família.

Construir o próprio barraco era, como nos morros, a única tarefa dos homens. As mulheres tinham de enfrentar o resto da vida, entre outras coisas, essa obrigação de encontrar comida para um bando de moleques, sem ter uma roça (CHAMOISEAU, 1993, p. 157).

Nesse sentido, observa-se a estrutura patriarcal das novas comunidades. O

homem se responsabiliza pela parte braçal da construção que exige força, única

função que lhe é atribuída; às mulheres todo o resto: a descida à cidade, a luta pelo

alimento para a família, a educação dos filhos e o cuidado do próprio barraco.

60

Esses novos moradores mantinham vivo o desejo latente de conquistar a

Cidade, esta nunca era preterida, ao contrário, era o desejo de conquista que

impulsionava a todos a lutar por uma vida melhor.

Havia um vaivém incessante entre o Bairro dos Miseráveis e o centro da Cidade. A Cidade era o oceano aberto. O Bairro era o havre. Havre das patuscadas, havre das esperanças caracolando como papagaio de papel, havre das desgraças, havre das memórias trazidas de longe. Voltava-se para lá com o intuito de curar as feridas, encontrar as forças de um impulso para conquistar a Cidade (CHAMOISEAU, 1993, p. 156).

No caso específico de Esternome, ele afirma, no decorrer de toda a narrativa,

que só se deslocou para a cidade, pois recebeu um comando especial por parte do

seu Mentô, ordem esta que o persegue durante toda a sua vida, dando sentido a sua

existência e ao seu instinto de sobrevivência. O Mentô havia supostamente

instruído-lhe para a conquista da Cidade, o que em determinado momento ele

declara: “foi o Mentô quem me enviou para lá, sem ele eu jamais teria saído da

fazenda” (CHAMOISEAU, 1993, p. 158).

Ao Mentô é atribuída a responsabilidade pelos acontecimentos da sua vida.

Se saiu da sua parentela, não foi por ele próprio, mas pelo Mentô. Esse discurso de

Esternome evidencia a fragilidade de suas concepções e o fracasso de sua tentativa

de vida melhor na cidade.

Nesse período em que se torna morador da cidade de Fort-de-France nasce

Marie-Sophie, filha da velhice de Esternome e de Idoménée, uma ex-escrava cega

que se torna o derradeiro amor deste homem.

É também nesse período que ocorre a Segunda Guerra Mundial, episódio

histórico citado no romance como muitos outros. Desse momento a impressão

registrada é o fato de que, os crioulos, através da defesa da nação, encontram no

exército a possibilidade de se tornarem franceses.

Tempos depois, com a chegada das placas de fibrocimento nos morros, os

barracos vivem um novo momento que é denominado pelo autor de Tempos de

Fibrocimento, nessa ocasião vive-se a história contemporânea da cidade que se

inicia em 1946 e vai até a década de 60.

61

Como fato histórico, o poeta e político Aimé Césaire surge no cenário local e é

eleito prefeito de Fort-de-France. Estréia-se uma nova gestão pública voltada para a

causa dos negros e pobres. Todos se identificam com o novo prefeito, a população

vê em Césaire a personificação da esperança ao mesmo tempo em que o idealiza:

“[...] mas todos (mulatos ou não) identificam-se com o novo prefeito. Saboreavam

seu domínio da língua, seu saber, seu exercício constante de elevação acima da

condição humana.” (CHAMOISEAU, 1993, p. 225).

Césaire, o homem que tinha por bandeira a Negritude e proclama igualdade

de direitos entre brancos e negros, torna-se rapidamente símbolo de inspiração para

a população pobre e desamparada da Martinica, principalmente as que viviam nos

morros. O poeta, com a sua instrução e conhecimento políticos dá início a uma nova

época. Permite ao povo a possibilidade de sonhar com um futuro melhor.

Arraigado a esse momento político, em 1946, depois de inúmeros debates e

pleitos, a Martinica é, enfim, definida como Departamento Francês, estatuto que

mantém até os dias atuais. É em torno dessa movimentação política que, por volta

de 1950, acontece a primeira instalação de Marie-Sophie no local onde será Texaco.

Ganhar o status de Departamento Francês foi um avanço político e social pra

as Antilhas. A região adquiriu direitos que até então eram limitados devido à difícil

relação que estabelecia com a França continental.

Nesse período, a protagonista leva uma vida difícil, mas sem nunca perder a

obstinação e o desejo de sobreviver. Depois da morte dos pais, ela vê-se obrigada a

trabalhar em casa de famílias, passa a ter uma vida instável de constantes

mudanças e muitas vezes sem rumo. Em dado momento, a realização de um

estupro muda o destino de Marie-Sophie, após passar pelo choque, o devaneio, a

loucura, ela encontra nos braços de Félicité Nelta o apoio necessário para voltar à

realidade.

O sofrimento que a vida impõe realiza uma transformação na vida de Marie-

Sophie, ela passa por uma metamorfose no decorrer da narrativa, passando de uma

criança, fruto de um milagre, por ter sido concebida por dois idosos, a uma mulher

forte e obstinada.

Meu passo era decidido, pois era preciso ser decidida, andar decidida, avançar decidida, de modo a enxotar a menor hesitação. (...) Eu não era má, não, mas era dura, decidida. Os homens já não prestavam atenção na

62

oferenda das minhas nádegas redondas. As mulheres, sossegadas ao me verem, juntavam-se atrás de mim. Os Majores me cumprimentavam sem nenhuma palavra, tirando o chapéu. Na verdade, eu estava em luta comigo mesma, contra meus medos, contra esse abandono de Nelta que eu via chegar (CHAMOISEAU, 1993, p. 243).

A vida no Bairro não é fácil, momentos de altos e baixos fazem partem do

cotidiano dos moradores, a alegria de ver o seu barraco erguido convive com as

dores dos desastres que os assolam, estar sujeitos às tempestades tropicais com

fortes chuvas e furacões faz parte do cotidiano daqueles trabalhadores braçais.

Paralelo aos caprichos da natureza eles convivem também com outros tipos de

desastres como um dos incêndios que acontece e destrói quase todas as casas do

morro.

No entanto são nesses momentos que se percebe o poder de reconstrução,

32 barracos destruídos e apenas 4 noites param serem reerguidos. A solidariedade

é a marca da população que luta pela sobrevivência em uma sociedade tão desigual

e injusta. É através dos mutirões que as pessoas se organizam, um sendo pelo

outro, independente das relações que estabelecem entre si. No momento do

desastre todos tornam-se uma só família, um só grupo unido em prol do coletivo.

Somente após esse desastre Marie-Sophie se vê impulsionada a recomeçar,

não no mesmo lugar, mas indo em direção ao novo, em busca do local perdido do

qual o seu pai Esternome tanto falará. É nessas circunstâncias que a narradora

entra em contato com o Mentô da Doum, o sábio que a incentiva a dominar o lugar.

O desejo de comando desabrocha e faz renascer a esperança em Marie-

Sophie. É assim que ela parte para a construção do seu barraco, o primeiro em

Texaco. A notícia se espalha rapidamente e, seguindo-a, outros moradores surgem

e se instalam no terreno que pertencia à refinaria de petróleo que atribui o nome ao

lugar.

O tempo de paz não dura muito, algum tempo depois a invasão de barracos

é descoberta pelo proprietário das terras e em seguida ocorre a primeira invasão da

polícia, que destrói todas as habitações.

Esse primeiro conflito é seguido de muitos outros. Os moradores não

desistiam, aguardavam a saída da polícia e voltavam ao processo de reconstrução

dos casebres.

63

Sentíamo-nos sozinhos no mundo, abandonados, esmagados. Só nos restava subir de novo, nos agarramos a nossas folhas-de-flandres tão preciosas, a nossas placas de fibrocimento que, quando rachavam, nos arrancavam o coração. Nada mais a fazer, senão resistir até a morte (CHAMOISEAU, 1993, p. 273).

Resistir era o que lhes restava, muitos desistiram e partiram em direção a

outros morros, outros espaços a serem desbravados, mas Marie-Sophie

permanência obstinadamente: “Mas partir... não, eu havia escolhido Texaco.”

(CHAMOISEAU, 1993, p. 274).

Por fim, no último período, é apresentado os Tempos de Concreto, fase em

que os casebres transformam-se em mansões graças à chegada do cimento.

Também é a época em que o General De Gaulle visita a Martinica pela primeira vez

no ano de 1964.

Os problemas entre os morros e a Cidade persistiam, os moradores do centro

urbano ignoravam os que viviam à margem da sociedade, os excluíam e não tinham

nenhum interesse por aquela população:

Crescíamos ao lado da Cidade, a ela ligados por mil tubos de sobrevivência. Mas a Cidade nos ignorava. Sua atividade, seus olhares, as facetas de sua vida (da manhã de cada dia até os belos neons da noite) nos ignoravam. Viéramos por causa de suas promessas, de seu destino, estávamos excluídos de suas promessas, de seu destino. Nada era dado, precisávamos tudo arrancar. [...] Circulávamos ao redor da Cidade, ali entrando para sugá-la, contornando-a para viver. Víamos a Cidade do alto, mas na verdade só a víamos submetidos à sua indiferença freqüentemente

agressiva (CHAMOISEAU, 1993, p. 281).

Apesar de serem rejeitados, eles desenvolviam formas de usufruir o que a

Cidade tinha a lhes oferecer, mesmo que não fosse um oferecimento voluntário e

solidário. A Cidade com “C” maiúsculo representa a conquista, o desejo de fazer

parte de um espaço que ainda não lhes pertencia, mas que almejavam. A cidade

com suas cores, seus cheiros, seu movimento, suas oportunidades, atraia aqueles

que se encontravam à margem, mas ainda não estava aberta a eles. O que

disponibilizava era as migalhas de uma sociedade em ebulição.

Como explica o autor em nota:

64

A língua crioula não diz la ville [a cidade], diz l’En-Ville (...) L’En-Ville designa, assim, não uma geografia urbana bem detectável, mas essencialmente um conteúdo, portanto, uma espécie de projeto. E esse

projeto, aqui, era existir (CHAMOISEAU, 1993, p. 342).

Nos morros existia a sensação de liberdade que o viver à margem da Cidade

trazia, a comunidade que crescia vivia de forma organizada, tinha suas próprias leis,

códigos e regras. Toda uma organização que facilitava a convivência harmônica

entre os moradores, mesmo em um aparente caos habitacional.

Eles se adequaram à vida afastada da Cidade, e trouxeram para ela a

sabedoria do campo, na forma de lidar com a terra e de fazê-la produzir. “E

quisemos, diante da Cidade, viver segundo o espírito dos Morros, quer dizer,

unicamente com nossos recursos, e, melhor, unicamente com nosso saber.”

(CHAMOISEAU, 1993, p. 282).

Essa sabedoria do campo aliada à realidade urbana permitia que vivessem

dos seus recursos, com o que produziam; quando o trabalho na Cidade rareava e o

dinheiro não era suficiente para cobrir as despesas, era o organizado sistema de

cultivo que garantia a alimentação das famílias.

A relação que mantinham com o espaço, a ideia de propriedade, fazia parte

do código urbano dos moradores. À chegada de cada novo morador ficavam claras

as regras de apropriação e construção do terreno:

Nada de desperdício de espaço em Texaco. O menor centímetro servia para alguma coisa. E nada de terra particular, ou de terra coletiva, não éramos proprietários do solo e ninguém podia se prevalecer de coisa nenhuma, fosse o que fosse, a não ser da soma das horas, minutos e segundos desde sua chegada (CHAMOISEAU, 1993, p. 283).

O não pertencimento, a não posse era, de certa forma, resultado do

sentimento de liberdade; o deslocar-se sem sentir as amarras que prendem ao local

fixo, chamado de “meu”. Para os moradores de Texaco e dos outros Bairros o

contato estabelecido com a terra se produzia de forma diferente, como declara

Marie-Sophie: “em nosso espírito, debaixo dos barracos a terra continuava a ser

estranhamente livre, definitivamente livre.” (CHAMOISEAU, 1993, p. 283). Não é

possível extrair a liberdade da terra, ela é soberana e apenas cede o seu espaço

65

para ser ocupado, mas sem perder o comando da situação. É a terra quem domina e

quem dá abrigo aos moradores, sempre segundo os seus caprichos.

Os moradores de Texaco lutavam incansavelmente pelo direito a um espaço

naquela terra que não os pertencia, mas que estava de braços abertos para acolhê-

los. O sofrimento, as dores e o perigo que a cidade lhes impunham faziam parte das

constantes batalhas que se habituaram a travar.

Texaco crescia livre, rebelde e orgulhosa por ser um dos bairros que resistiu

às habituais investidas da cidade contra os morros. O cristo que aparece no início do

romance como o anjo do apocalipse, o destruidor, se mostra ao término do romance

como o enviado, a salvação para aquela comunidade.

Na última parte do romance intitulado Ressurreição, encontra-se, assim, mais

uma alusão bíblica. Não fazendo menção ao renascimento de Cristo, mas se

voltando para o ponto de partida da narrativa. Oiseau de Cham, o escritor, o

marcador de palavras, volta a assumir a narrativa e compartilha com o leitor a

experiência vivida naquele local, com aquelas pessoas; ele expõe a atual situação

do bairro e descreve suas impressões, para assim apresentar o desfecho da trama.

É nesse momento que ele se identifica e justifica a sua presença na narrativa, o

ouvinte que registra as memórias da informante Marie-Sophie e as escreve como

lembrança para a posteridade.

As várias vozes que se apresentam e se entrelaçam assumem a postura de

narradores e de ouvintes, uns mais, outros menos; mas o papel de contador não é

exclusivo, não pertence à Marie-Sophie, esta apenas compartilha as histórias que

ouviu e que circulam. No entanto a sua voz exerce papel de destaque na narrativa,

pois é ela a matriarca, a guardadora da história, a fundadora de Texaco.

Essas questões relativas às vozes que se fazem ouvir conduzem a uma

reflexão sobre o uso da língua. Como discutido no capítulo anterior a diglossia

presente na Martinica é razão de conflitos pessoais e sociais. Se fazer ouvir é

essencial, a forma como obter a atenção do público torna-se um dilema. Assim

pode-se lembrar que para Bakhtin (apud BARROS, 2003), a língua não deve ser

compreendida isoladamente, mas sim dentro de um contexto que inclui fatores como

a fala, e principalmente o contexto histórico e social. Vem, portanto dessa ideia a

perspectiva de movimento, pois para ele nada é fixo, a linguagem está em constante

transformação dependendo do contexto e dos falantes ela adquire significados

66

diferentes, porque a língua é heterogênea e a fala é de natureza social, está aliada

às relações dentro de um grupo, e não de cunho individual.

Sendo assim, para Bakhtin (apud BARROS, 2003), o único objeto real e

material para entender o fenômeno da linguagem humana é o exercício da fala em

sociedade, e nisso ele difere dos linguistas que adotam a língua, o seu registro

através do símbolo, como objeto de análise para a compreensão dessa linguagem.

Para ele muito mais do que o signo linguístico o que deve ser levado em

consideração para entender esse fenômeno é o poder exercido pelo enunciado ao

colocar em relação o eu e o outro.

Entre as teorias pensadas e elaboradas por Bakhtin encontra-se a da

monofonia e da polifonia. Ele afirma que dentro de um discurso podemos encontrar

o domínio ideológico de uma única voz que exerce o papel autoritário em relação às

outras vozes, a essa situação ele dá o nome de monofonia. Por outro lado podemos

encontrar também a polifonia que seria o discurso onde não se ouve apenas uma

voz, mas várias vozes que se deixam escutar expondo seu modo de pensar e

enfrentando o poder autoritário apresentado na monofonia.

Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir (BARROS, 2003, p. 06).

Texaco constitui-se em um exemplo de como é possível encontrar nas

obras contemporâneas outras vozes que falam e se expõem, quebrando a

ideia do discurso autoritário da monofonia. Nele, a oportunidade e a voz é

dada aos habitantes da comunidade e cada um, ao seu modo, tenta

defender os seus ideais segundo as suas crenças e vivências. Laborieux é

apresentada como narradora central, mas em nenhum momento ela

monopoliza o discurso, ao contrário, ela tem como responsabilidade criar

oportunidades para que os outros moradores também se façam ouvir.

A sua função é de intermediar as relações dentro da comunidade.

Ela ouve, aprende, reflete e guarda. Essas ações atribuem a ela uma

sabedoria ancestral que a encarrega de repassar a história. O lugar que

esta mulher ocupa na comunidade será analisado a seguir.

67

3.2 Narrando um conto eu ganho um ponto (Marie-Sophie)

O narrador da saga de Texaco em vários momentos confunde o seu público.

Sendo um romance de fundo histórico são oferecidos vários indícios que farão o

leitor se convencer da historicidade dos fatos narrados. Inspirada em uma mulher

que morou em Texaco e que era considerada a fundadora do bairro ele cria Marie-

Sophie Laborieux que é a protagonista do romance e a pessoa que narra suas

memórias. Ela, mulher sábia em decorrência dos muitos anos de vida e da

experiência acumulada, é a narradora da qual Benjamim descreve:

[...] o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida (BENJAMIM, 1993, p. 221).

Nesta obra a sabedoria e a tradição popular são o tema central da narrativa.

Há a valorização da prática da oralidade e do conhecimento que é transmitido de

geração a geração. Desse modo, as tradições orais e culturais do povo são em todo

tempo colocadas em evidência.

O romance defende a crioulidade ao mencionar a convivência das diversas

culturas que formam a sociedade martinicana. A crioulidade está presente não

apenas nesta representação da diversidade cultural, como no uso da língua, nos

hábitos e costumes dos personagens crioulos de Texaco.

Marie-Sophie Laborieux é a fundadora do bairro. Segundo a apresentação

que lhe é feita no decorrer do romance, ela é a guardiã e a líder comunitária, é a

pessoa que conhece toda a história e a tradição local. Diante da ameaça de ver

invadido e demolido o local que guarda as origens do seu povo, ela se vê na

obrigação de contar; narrar ao responsável pelo mal que estar por vir, o legado que

ela guarda através das décadas de sua existência

68

Meu interesse pelo mundo resumia-se a Texaco, minha obra, nosso bairro, nosso campo de batalha e de resistência. Ali levávamos adiante uma luta pela Cidade, começada já havia mais de um século. E essa luta supunha um enfretamento no qual estariam em jogo nossa existência ou nosso fracasso definitivo (CHAMOISEAU, 1993, p. 33).

Assim, essa mulher que é filha de ex-escravos é incumbida da

responsabilidade de proteger a sua comunidade e o único meio que ela dispõe para

tal é fazer uso da voz que não pode ser calada, é o poder da narrativa, a arte de

contar. Não uma história qualquer, mas a do seu povo, aquele que é a sua razão de

viver e de manter vivas as tradições. Como afirma Guimarães “as narrativas

populares encontram-se profundamente ligadas às origens históricas-culturais e

circunstâncias sociais imediatas que envolvem as comunidades por onde circulam”

(2001, p. 89).

Para a protagonista a sua vida se resumia à vida em Texaco, à sua existência

e permanência. Para ela o bairro era o seu ancoradouro, a sua gasolina de vida,

como ela mesma descreve a sua relação com o local ao tentar explicar o porquê de

tanta luta e o desejo constante de permanecer naquela terra que outros insistiam em

dizer que não lhe pertencia.

Aquele era o local onde encontrava a sua razão de ser e de continuar sendo,

a terra de onde emanava a sua ancestralidade e que renovava as forças das quais

tinha necessidade para continuar lutando.

A representação da terra no romance é muito mais do que a do espaço físico,

ela é a reprodução do desejo (in)consciente do encontro com um mundo melhor,

onde é possível o reconhecimento pelo que se é e não pelo que se tem, pela

dignidade e não pela cor da pele, pela competência e não pelo dinheiro. É uma

relação que ultrapassa as questões econômicas e diz respeito ao social, ao histórico

e ao cultural.

É esta ligação histórico-cultural, como foi anteriormente citada, que faz da

protagonista a responsável pela sua comunidade:

É por isso que me trouxeram o Cristo, para mim, Marie-Sophie Laborieux, ancestral fundadora desse Bairro, mulher velha cuja idade prefiro silenciar, não por me preocupar com a vaidade (na minha idade!), mas por respeito a uma exatidão que minha memória já não respeita (CHAMOISEAU, 1993, p. 32).

69

Ela assume a função de matriarca que lhe foi outorgada, responsável pela

herança cultural da comunidade, para ela não importa a idade ou o tempo decorrido,

o que de fato é valorizado são as recordações, que ela mesma assume não serem

exatas, pois o próprio tempo trata de agir. O Cristo lhe é trazido porque ela como

mulher sábia que era possuía as ferramentas necessárias para travar aquela batalha

com o intruso.

Não é a imagem de mulher com toda a sua feminilidade que Marie-Sophie

possui; o lado conquistador e sedutor se perdeu ao longo dos anos e das muitas

lutas travadas pela sobrevivência. Não há mais vaidade, há a severidade dos traços

que impõem respeito e admiração.

A postura de coragem lhe rendia, além do respeito, a solidão. Como ela

mesma afirma: “Meu passo era decidido, pois era preciso ser decidida, andar

decidida, avançar decidida, de modo a enxotar a menor hesitação.” (CHAMOISEAU,

1993, p. 243).

Ao optar pela coragem e ao assumir a liderança da comunidade Marie-Sophie

também adotou o recolhimento e a discrição. Ser a líder exigia dela uma conduta

diferenciada, ser decidida era essencial, pois era esta postura que buscavam nela.

Já não era mais a mulata bonita de ancas adoráveis que atraia olhares quando

passava; hoje era a Marie-Sophie de Texaco, a mulher respeitada por todos.

Saltava aos olhos que as pessoas haviam se instalado ao meu redor: um espaço vital, maior do que em outros lugares, instituía meu lar como centro de radiação de Texaco-do-Alto (CHAMOISEAU, 1993, p. 321).

As pessoas que chegavam a Texaco tomavam como ponto de referência o

seu barraco, assim pouco a pouco o bairro foi construído e cresceu ao redor da sua

casa. Como ela mesma afirma, o seu lar era o centro de radiação, era de lá que

partia a força vital de comando.

No trecho que se segue, Laborieux é apresentada a Cristo, o homem da

prefeitura, responsável pela urbanização do bairro em que moram. Ela e os outros

moradores estão sob a sua tutela. Cristo é o homem que quer destruir o patrimônio

cultural daquela comunidade. Esse encontro é marcado pelo confronto entre o

70

moderno e o tradicional, a necessidade de novos padrões frente às tradições

passadas de geração a geração, de pai para filho.

Ao me deparar com Cristo (a idade avançada aumenta o alcance do olhar), tive a sensação de que ele era um dos cavaleiros do nosso apocalipse, o anjo destruidor da prefeitura modernista. Esta, já fazia alguns anos que travava uma guerra declarada à insalubridade de certos bairros populares. [...] Apesar de nossa prática de sobrevivência, minha impressão era que – de escapar – não tínhamos a menor chance (CHAMOISEAU, 1993, p.33).

Fica nítida a intenção de Marie-Sophie de criar um clímax no momento da

narrativa dos fatos que se seguem, ela precisa formar um ambiente agradável e ao

mesmo tempo de expectativa. Para tal ela faz uso do mundo imaginário dos seus

ouvintes. Comparar Cristo (o urbanista, que já chama atenção pela referência ao

Cristo, o Salvador) a um dos cavaleiros do apocalipse apresenta a dimensão da

situação que ela quer expor.

A prefeitura há alguns anos travava batalhas sem fim com os moradores dos

bairros periféricos que se desenvolviam de forma descontrolada nos arredores da

cidade, em especial nos morros. Os moradores de Texaco tinham conhecimento dos

outros bairros iguais ao deles que já haviam recebido o tratamento dado pelos

urbanistas. A maioria deles desapropriados e seus moradores remanejados para

outros locais.

Para Marie-Sophie a idade avançada limitava a sua visão, porém aumentava

o alcance do seu olhar uma vez que a experiência de vida permitia enxergar não

apenas o plano físico, mas também o sensorial. Assim, a líder comunitária de

Texaco se vê frente à responsabilidade de defender o seu povo de um caos futuro

que ela mesma prevê:

Então, respirei fundo: de repente, compreendi que era eu, em volta daquela mesa e de um pobre rum envelhecido, tendo como única arma a persuasão de minha palavra, que devia travar sozinha – na minha idade – a decisiva batalha pela sobrevivência de Texaco (CHAMOISEAU, 1993, p. 34).

71

Nesse trecho percebe-se que a narradora tem consciência do seu poder de

persuasão: através da palavra (única arma que ela possui), que poderá vencer a

batalha que começa a ser travada.

É o poder da oralidade, transmitido pelo seu pai, que lhe oferece a condição

necessária para travar mais uma batalha. Para ela, talvez, a mais difícil de todas até

então disputada.

Por fim, ela se prepara para assumir a grande responsabilidade que possui

nesse momento crucial em relação a Texaco:

- Rapazinho, permita que eu desfie a história... Foi provavelmente assim, Oiseau de Cham, que comecei a lhe contar a história de nosso Bairro e de nossa conquista da Cidade, a falar em nome de todos nós, defendendo nossa causa, contando minha vida... E se não foi assim, não faz mal... (CHAMOISEAU, 1993, p. 34)

E é assim que ela começa a contar as aventuras dos seus ancestrais desde a

época em que os negros ainda eram escravos vindos da África para trabalhar nas

fazendas de cana-de-açúcar dos brancos franceses. História de sua família, história

de seu povo, história da própria Martinica.

Um detalhe que chama a atenção nesse fragmento é a presença de várias

pessoas na narrativa. Marie-Sophie narra para o Marcador de Palavras (também

chamado de Oiseau de Cham18), como ela mesma iniciou a grande narrativa da sua

história de vida para o jovem Cristo.

A protagonista fala não apenas em seu nome, mas representando a

comunidade e a causa coletiva. Mas é a história de sua família que serve de fio

condutor da narrativa. A história da Martinica, a descoberta, a vinda dos escravos e

o processo pelo qual passaram até os dias atuais poderia ser contado sob vários

ângulos, por vozes diferentes. Mas nessa obra é a história de Marie-Sophie

Laborieux e dos seus ancestrais que é contada.

Duas histórias se superpõem, a de sua família e a da própria Martinica nos últimos 150 anos. Dos tempos da escravidão e dos engenhos de açúcar, passando pelas diversas revoltas, pela abolição da escravatura e o consequente êxodo rural de milhares ex-escravos despreparados e semianalfabetos, Marie-Sophie narra histórias inventadas e reais [...] (CHAMOISEAU, 1993, p. 7).

18 No romance o Marcador de Palavras também é chamado pela narradora, Marie-Sophie, de Oiseau de Cham, que é um anagrama do nome Chamoiseau.

72

A narrativa de Marie-Sophie inicia com o nascimento do seu pai Esternome,

quando ela remonta às histórias ouvidas no mais tenro tempo da sua infância. O

período colonial, com seus sofrimentos e agruras vividas pelos seus avós e seus

contemporâneos é o ponto de partida.

A narrativa muda um pouco de tom a partir do seu nascimento, quando

adquire uma nuance mais memorialista, Marie-Sohpie não narra mais uma história

ouvida, mas vivenciada por ela.

Esta criança, filha de dois velhos, ao nascer trouxe esperança ao bairro onde

viviam seus pais. A própria Marie-Sophie narra o seu nascimento:

As mulheres vieram se informar sobre as histórias desses velhos. Foi uma felicidade: aquelas criaturas de cabelos brancos esperavam uma criança!... e fui o bebê do Bairro inteiro. Antes mesmo de nascer, tive um monte de papais e mesmo número de mamães. Cuidaram de meu Esternome, mimaram minha Idoménée. Uma mulher de Basse-Pointe (Théotine Rémicia, operária da usina da Pointe-Simon, no tempo de dom joão charuto) fez-me vir ao mundo (CHAMOISEAU, 1993, p. 169).

Adotada de forma carinhosa pelos moradores do bairro a pequena Marie-

Sophie atrai os moradores que se sentem cativados pela história daqueles dois

idosos que moram sozinhos em um barraco do morro e dos quais ninguém conhece

a história nem a procedência, apenas a concepção de um bebê que estava para vir

ao mundo.

Nasce, então, uma criança que mais tarde viria a se transformar em uma

mulher forte e destemida. Uma criança amada e querida por todos. Cada um ao seu

modo e dentro das suas condições contribuiu de forma solidária nos primeiros anos

de vida da pequena Laborieux.

No decorrer da sua vida Marie-Sophie foi submetida a vários sofrimentos, de

ordem física e emocional, que fizeram dela uma mulher diferente das outras de sua

época. A perda dos pais, a submissão às humilhações de toda espécie e mesmo as

frustrações amorosas tornaram-na forte e destemida.

A instalação em Texaco foi um momento decisivo em sua vida. Sem saber

ela estava fundando um Bairro que seria mais tarde a sua razão de ser e que daria

forças para continuar lutando por seus ideais, ela se tornaria respeitada e temida por

sua coragem e audácia. Enfrentando os bekês, as autoridades e os poderosos da

cidade.

73

Na luta travada com o proprietário das terras de Texaco mostrou-se firme e

confiante, foi o momento de passagem para a credibilidade que adquiriu entre os

seus. Passou a ser a conselheira e juíza da comunidade.

Eu me tornara um pouco o centro dessa resistência ao bekê. O qual jamais desarmava. Ele mesmo me descobrira. Vinha todo dia me trazer recados de ódio. As mulheres me submetiam seus buquês de desgraças, que eu era incapaz de desatar, e que me horrorizavam. Mas bastava-me fazer cara de quem sabe, não arregalar os olhos diante das caretas de seus destinos. E o pouco que eu lhes dizia bastava para transportá-las (por mais uns instantes) até a coragem de viver. Tal atitude conferiu-me um rosto grave e olhos imóveis que afugentavam os homens (CHAMOISEAU, 1993, p. 302).

Marie-Sophie lutou sem parar pela apropriação das terras, pelo direito de

permanência naquele local que escolheu para ser seu. As várias investidas do bekê

para derrubar o seu barraco não foram suficientes para esmorecer o seu ânimo,

quando todos pensavam em desistir ela estava lá, fiel ao seu propósito, servindo de

exemplo para outros como ela.

A história de luta dessa mulher é a representação das batalhas cotidianas

travadas pelos martinicanos descendentes de escravos ou de estrangeiros que

foram para a ilha na tentativa de mudar de vida. Esses excluídos da sociedade, por

várias décadas, tentam sobreviver de forma digna em uma sociedade

preconceituosa e fechada para os que a ela não pertencem. Eles lutam pelo

reconhecimento da sociedade frente à sua existência. Buscam seus direitos.

Para Marie-Sophie a chegada da idade representa a solidão que a acomete, o

papel que desempenha em Texaco não é suficiente para suprir seus anseios. É

então que nasce o desejo de registrar a sua história.

Desde a sua adolescência Laborieux estabelece uma relação intensa com os

livros. Ao trabalhar na casa de uma família desperta o interesse pela leitura.

Aprender a ler e a escrever fez com que a sua dignidade florescesse ao adentrar no

mundo letrado.

Cada livro, para mim, liberava um perfume, uma voz, uma época, um momento, uma dor, uma presença; cada livro me irradiava com uma luz ou me oprimia com uma sombra; eu ficava como que aterrorizada ao sentir sob meus dedos aquelas fagulhas da alma unidas num mesmo rumor (CHAMOISEAU, 1993, p. 195).

74

Essa relação com os livros e com a leitura é posta em evidência em vários

trechos do romance, principalmente quando faz referência aos três livros que ela

ganhou do seu ex-patrão e que carregou, no decorrer da sua vida, como

companheiros inseparáveis.

Para Marie-Sophie escrever era tão prazeroso quanto ler e é na escrita que

ela encontra o consolo para a sua solidão, o alívio para as suas angústias, ao

mesmo tempo em que escrever era registrar a sua história, a sua existência.

Um caderno novo, ah! me transporta, a beleza das páginas, a promessa de branco, sua ameaça também, esse receio quando escrevemos a primeira palavra e esta convoca a debandada de um mundo que jamais temos a certeza de dominar (CHAMOISEAU, 1993, p. 285).

No entanto a escrita para ela não se limitava apenas a um prazer temporário,

ou a um entretenimento. Mais do que isso, escrever era reviver a sua trajetória e a

oportunidade de ver ressurgir as suas memórias.

Veio-me a ideia de escrever a ossatura dessa solidão. Escrever era reencontrar meu Esternome, reescutar os ecos de sua voz perdidos em mim mesma, reconstruir-me lentamente ao redor de uma memória, de uma desordem de palavras simultaneamente obscuras e fortes (CHAMOISEAU, 1993, p. 285).

Para Marie-Sophie escrever também era, de certa forma, morrer, transformar

suas memórias, as histórias ouvidas pelo seu pai, em palavras. Era, ao mesmo

tempo, registrar para a posteridade um legado e igualmente assinar o fim da sua

vida, do seu papel enquanto guardiã da história coletiva daquele lugar. Como ela

declara: “Eu esvaziava minha memória em cadernos imóveis, sem transpor o frêmito

da vida que se vive, e que, a cada instante, modifica o que aconteceu.”

(CHAMOISEAU, 1993, p. 286).

Apesar de todas as amarguras vivenciadas a protagonista não desiste de

continuar e não perde a sua alegria. Ela vive uma importante filosofia de vida e que

a ajuda a se manter de pé: o regozijo de viver mesmo em meio às dificuldades que a

vida lhe impõe.

75

Além disso, nos raros instantes que a vida me deu só para mim, aprendi a galopar com o coração por cima das grandes aflições, a viver a vida, como se diz, a deixar a vida passar. E quanto aos risos ou sorrisos, jamais a pele de minha boca, tenha a santa paciência, conheceu o menor cansaço (CHAMOISEAU, 1993, p. 39).

Esse fragmento do romance representa bem o sentimento de superação do

povo; os ex-escravos e seus descendentes, assim como Marie-Sophie praticavam

essa filosofia de vida, eles conseguiam retirar da desgraça uma esperança, da

tristeza um riso e da angústia o desejo de vitória.

Em sua última batalha travada com o bekê, proprietário das terras de Texaco,

Marie-Sophie pela primeira vez entende uma lição que estará sempre presente em

seus futuros ensinamentos. Após a visita e a partida do bekê ela declara: “[...]

compreendi que fora ver de perto aquela que o derrotara e lembrar-lhe que a guerra

era mais vasta e que, nesse nível, ele não estava perdendo e jamais iria perdê-la.”

(CHAMOISEAU, 1993, p. 322-323).

Sim, o bekê havia perdido a batalha pelas terras de Texaco, mas se alegrava

pela certeza da existência de uma guerra bem maior que dificilmente seria ganha

pela negra. A guerra travada diariamente nas ruas da cidade entre brancos e bekês

contra mulatos e negros, a luta pela igualdade que estava longe de ganhar.

Já em sua velhice Laborieux encontra a derradeira felicidade ao lado de Iréné,

a quem chama de “meu homem”. Ele um pescador de tubarão, temido por todos por

causa da sua profissão, se rende aos encantos de Marie-Sophie, o que contribui

para aumentar ainda mais a lenda que corre sobre ela: “Minha lenda cresceu: mais

que nunca mulher-guerreira de Texaco, eu domesticara o destruidor de monstros.”

(CHAMOISEAU, 1993, p. 334).

Ao término do romance, na última parte, o ouvinte, fala sobre as suas

impressões acerca dessa mulher:

Aquele lugar me intrigou. Tornou-se fascinante quando me apresentaram aquela que ia se tornar minha Informante; uma velha negra cabra, muito alta, muito magra, com um rosto grave, solene, e olhos imóveis. Jamais eu havia percebido tanta autoridade profunda irradiar de alguém. (CHAMOISEAU, 1993, p. 342).

76

Mesmo com a idade avançada, Marie-Sophie mantém suas características de

domínio e consegue causar no “marcador de palavras” um impacto fascinante.

E eu me perdia ali dentro, encantado por sua palavra e sua deliciosa pessoa que eu passava horas a contemplar. Uma cabra de luta e coragem, imperial, cujas rugas brilhavam de força. Eu olhava seus olhos embaçados pelas lágrimas, lampejos que se perdiam. Olhava sua pele que a velhice secava, e sua voz que vinha de tão longe, e sentia-me fraco, indigno de tudo aquilo, inapto a transmitir tais riquezas. Quando ela se fosse, levarei sua memória, como a levou Solibo Magnífico, e eu nada podia fazer, nada, nada, nada, a não ser fazê-la falar, organizar o que me contava (CHAMOISEAU, 1993, p. 344).

Oiseau de Cham se deixa ser encantado por sua informante, dela vê emanar

força e coragem, em cada ruga, em cada expressão corporal é possível

experimentar um pouco da sua história de vida. Ao ouvinte cabe apenas calar-se e

deliciar-se com as histórias narradas. Ouvidos atentos que não apenas escutavam

como também guardavam as informações obtidas para serem registradas e

partilhadas.

Na obra, através da descrição dessa personagem fica evidente a tentativa do

narrador em se mostrar fiel e verdadeiro em relação aos fatos contados, para tal ele

lança mão do argumento histórico. A cada capítulo do livro é possível encontrar

trechos de documentos oficiais da época.

Esses documentos são cartas, diários e ofícios, pesquisados em cartórios e

bibliotecas, e que “comprovam” a existência de Marie-Sophie e suas atividades

como líder comunitária e fundadora de Texaco.

Chamoiseau não constrói apenas uma narrativa que conta a saga de um povo

de forma ficcional, o seu intuito é aliar os acontecimentos históricos ao romance e

fazer dele um veículo difusor das tradições culturais. Em Texaco ele transforma a

história, aparentemente sem grandes repercussões, da construção de uma

comunidade em um conjunto de informações a serem descobertas e analisadas pelo

leitor.

Há de se questionar a figura emblemática dessa personagem principal criada

por ele, uma mulher irrepreensível, dotada de qualidades e virtudes que a enaltece.

Uma mulher incorruptível, livre de erros e de falhas? Não, uma mulher controversa

77

como tantas outras, dotada de um perfil forte, mas não distante dos deslizes tão

peculiares ao ser humano.

Chamoiseau cria uma figura mitológica, Marie-Sophie é a personagem chave,

a heroína que, com simplicidade ao contar e autoridade ao falar, consegue tecer um

grande conto maravilhoso que ponto a ponto conquista a admiração do leitor e

impacta a vida do seu ouvinte, o Cristo. E por que não afirmar que nós, os leitores,

somos todos os “cristos” impactados pela narrativa desta mulher.

3.3 Ouvindo um conto eu entro em confronto (Cristo)

Em Texaco, a narrativa maior gira em torno de Marie-Sophie e do narrador a

quem ela chama de Oiseau de Cham, mas neste grande conto surge também a

pessoa do Cristo, o jovem urbanista responsável pela demolição do bairro.

A relação que se estabelece entre Marie-Sophie e Cristo, pseudônimo que os

moradores de Texaco lhe atribuem, é a mesma que ocorre entre contador e ouvinte.

Nesse momento o foco da discussão deste trabalho se voltará para esse jovem que

se dispõe a ouvir atentamente a história que a velha Senhora tem a lhe contar.

Já observamos o papel que a narrativa desempenha na vida de Marie-Sophie

e a sua importância para a afirmação da matriarca. Mas o que acontece com Cristo

após ser submetido a essa audição?

Sabe-se que ouvir histórias toca de forma especial a percepção de quem

ouve, despertando sensações e sentimentos que normalmente se mantém

adormecidos. O ouvinte nesse processo é um membro ativo, pois através da leitura

corporal que se faz dele o intérprete guiará a apresentação da sua narrativa.

Paul Zumthor analisa detalhadamente o papel do ouvinte numa performance,

ele conclui que o mesmo é tão importante quanto o contador e que ao ouvir uma

narrativa e se apropriar dela, ele também se torna co-autor.

O ouvinte “faz parte” da performance. O papel que ele ocupa, na sua constituição, é tão importante quanto o do intérprete. A poesia é então o que é recebido, mas sua recepção é um ato único, fugaz, irreversível... e individual, porque se pode duvidar que a mesma performance seja vivida de maneira idêntica (exceto, talvez, em ritualização rigorosa ou transe coletivo) por dois ouvintes; e o recurso posterior do texto (se há texto) não a recria (ZUMTHOR, 1997, p. 241).

78

No caso de Texaco, é possível descobrir o impacto que a narrativa tem sobre

o ouvinte graças à estratégia utilizada pelo narrador, que inclui cartas do urbanista

nas quais o jovem relata suas impressões e reflexões realizadas após o encontro

com Marie-Sophie.

O próprio urbanista, em uma das suas cartas ao Marcador de Palavras, relata

a experiência vivida:

Foi ela, a Velha Senhora, que modificou meus olhos. Ela falava tanto que, por instantes, achei que era delirante. Depois, houve em sua enxurrada de palavras como que uma permanência, uma duração invencível na qual se inscrevia o caos de suas pobres histórias. Repentinamente, tive a impressão de que Texaco vinha do mais longe de nós mesmo e que eu precisava tudo aprender. E até: tudo reaprender... (CHAMOISEAU, 1993, p. 151).

O Cristo, apresentado pelas personagens, carrega muito mais traços de

ficção do que de memória. Ele é visto e apresentado pela narradora como o

“destruidor”, aquele que veio para realizar a obra apocalíptica em Texaco, o que ao

mesmo tempo sugere um paradoxo em relação ao seu nome que originalmente

significa “o Salvador”. No entanto o fragmento acima citado contradiz essa ideia

inicial sobre o urbanista.

Ao relatar as impressões do seu primeiro encontro com Marie-Sophie, Cristo

mostra-se uma pessoa de sensibilidade particular. Ele declara que aquela Senhora,

aparentemente desprovida de qualquer pretensão, além de contar a sua história,

havia conseguido mudar os seus olhos.

A narrativa proferida por Laborieux é de tal forma intensa que para o jovem

chega a ser delirante, um fluxo intenso de informações que lhe são passadas e que

lhe impactam. Pobres histórias que falavam de um passado doloroso e esquecido,

longe da realidade dele e que não fazia parte das lições aprendidas nos bancos da

escola. Triste constatação para o jovem Cristo: precisava tudo aprender, tudo

reaprender.

Ele percebe que, para entender melhor a realidade daquela comunidade,

seria preciso aprender mais sobre as suas origens e a vida a qual eram submetidos

cotidianamente. Marie-Sophie é a mestra que conduz o rapaz nesse caminho

desconhecido.

79

Ela me ensinou a reler os dois espaços de nossa vida crioula: o centro histórico, que vivia das novas exigências do consumo; os cinturões de ocupação popular, ricos em vestígios de nossas histórias. Entre esses locais, a palpitação humana que circula. No centro, destruímos a lembrança, inspirando-nos nas cidades ocidentais e à guisa de renovação. Aqui, no cinturão, eles sobrevivem da memória. No centro perdemo-nos no moderno do mundo; aqui, têm raízes muito antigas, não profundas e rígidas, mas difusas, profusas, espalhadas no tempo com a leveza que a palavra confere. Esses pólos, unidos ao sabor das forças sociais, estruturam com seus conflitos os rostos da cidade (CHAMOISEAU, 1993, p. 155).

Uma das primeiras lições apreendidas pelo urbanista diz respeito à vida da

população na cidade de Fort-de-France e a dicotomia existente entre o centro e a

periferia. De um lado, se encontra a população de consumo, aberta aos modismos

do ocidente, sempre buscando o novo e o moderno. Do outro lado, os bairros

periféricos que o urbanista chama de “cinturão” e que se encontra em torno do

centro. Nesse espaço geográfico as pessoas ainda vivem em contato com suas

memórias, suas tradições e suas raízes históricas.

Essa realidade que ora é apresentada ao urbanista é inusitada e desencadeia

uma reflexão sobre a real situação da cidade que pensava conhecer bem e que

descobre não ser o que sempre acreditou. Depois de ouvir as histórias de Laborieux

ele se depara com os paradoxos que convivem de forma não harmoniosa entre os

dois lados da capital da Martinica.

No centro antigo: uma ordem clara, regida, normalizada. Em volta: um cinturão fervilhante, indecifrável, insuportável, disfarçado pela miséria e pelo peso obscurecido da história. Se a cidade crioula só dispusesse de ordem no centro, teria morrido. Ela precisa do caos de suas franjas. É a luxuosa beleza do horror, a ordem munida de desordem. É a beleza palpitante em meio ao horror e é a ordem secreta em pleno coração da desordem. Texaco é a desordem de Fort-de-France; pense: a poesia de sua Ordem. O urbanista já não escolhe entre a ordem e a desordem, entre a beleza e a feiúra; doravante, erige-se em artista: mas qual? A Senhora me ensinaria (CHAMOISEAU, 1993, p. 166).

O centro da cidade é a representação das grandes metrópoles ocidentais, é o

ponto de encontro e de realização para todos os desejos capitalistas. É a própria

imagem da cidade moderna guiada por suas normas e regras de convivência, que

estimula a competitividade e busca a aparência perfeita. A cidade que deseja

mostrar-se bela e moderna e prefere esconder suas imperfeições presentes nos

morros.

80

Em volta da cidade, o cinturão. Cidade que, como o urbanista descobre e

descreve, se encontra “disfarçada pela miséria”; disfarçada, pois no aparente caos e

no turbilhão de pessoas, na imagem da pobreza e da desventura existe uma riqueza

incalculável fundada no modo simples daquela gente, no patrimônio cultural e

memorial que possuem. Segundo o Cristo, o centro sem a periferia não sobreviveria,

pois a desordem em Texaco é essencial para a ordem de Fort-de-France.

Diante dessas reflexões o jovem urbanista se encontra face a um dilema, qual

espaço adotar como seu. Ele não escolhe mais entre o belo e feio, mas também já

não sabe mais quem ele é. Nesse processo de não escolha, de desafio diante de

uma identidade fragmentada era a pessoa de Marie-Sophie que iria ajudá-lo.

Um dos maiores problemas enfrentados pela Martinica, como na maioria das

ex-colônias, foi a maneira como foi conduzido o processo de inserção da população

escravizada na sociedade no período pós-abolição. Os grandes centros urbanos não

se prepararam para a nova mão de obra que surgia. Vindos da região agrícola, das

fazendas onde eram explorados, esses homens e mulheres chegaram às cidades e

não foram acolhidos. Sem trabalho e sem moradia, nada mais tinham a não ser se

apropriar do que ainda restava da cidade, é nesse processo que surgem os morros,

fundados e construídos em torno da capital.

A cidade crioula não previra o afluxo da população do morro. Foi estruturada pelas necessidades militares e pelas atividades de importação-exportação, deixando às fazendas o cuidado de alojar os milhares de braços úteis à produção agrícola. Quando esses braços se aglutinaram na cidade, cidade-entreposto não produtiva, não puderam ser canalizados para empregos e nem para moradias. À desestruturação de nossas fazendas não se seguiu uma economia de manufaturas, fábricas ou indústrias. A cidade crioula não absorveu a mão-de-obra útil à sua expansão, simplesmente sofreu (resistindo) a onda de choque de uma catástrofe agrícola. Diante da cidade crioula, o urbanista crioulo deve esquecer a cidade. Quando digo ‘‘urbanismo crioulo”, invoco: mutação do espírito (CHAMOISEAU, 1993, p. 209).

A economia local não conseguiu absorver a mão de obra que ora surgia

oriunda das fazendas, sendo assim, esses novos moradores do centro precisaram

recorrer a atividades alternativas para a sua sobrevivência. Essas constatações

eram novas para o urbanista que, até então, enxergava, apenas, a situação dos

morros partindo do ponto de vista da metrópole. A descoberta desse outro lado da

cidade fez com que este jovem sofresse uma “mutação”, percebendo-se também

enquanto crioulo que era.

81

Escutando a senhora, tive de repente a impressão de que não havia nesse emaranhado, nessa poética de barracões consagrada ao desejo de viver, nenhum contra-senso maior que fizesse desse lugar, Texaco, uma aberração. Além dos transtornos insólitos dos tapumes, do concreto, do fibrocimento e das folhas-de-flandres, além das cachoeiras que despencavam pelas ladeiras, das poças de água parada, do desrespeito às regras de salubridade urbana, existia uma coerência a ser decodificada, que permitia àquelas pessoas viver tão perfeitamente, e tão harmoniosamente quanto era possível viver, nesse nível de condições (CHAMOISEAU, 1993, p. 218).

A convivência em Texaco permitiu que ele descobrisse um local

completamente diferente do que acreditava ser o morro. Não apenas um local

insalubre e indigno para habitar, mas uma comunidade organizada. O aparente caos

urbanístico era um contra senso em relação à forma de vida dos habitantes. As leis

e regras instituídas no bairro permitiam a convivência harmoniosa entre os

habitantes e entre estes e a natureza.

Essas observações, no entanto, não afirmam que Texaco era um local

idealizado, um paraíso perfeito para habitar, mas, refletem sobre a capacidade que o

homem possui de se organizar em meio ao caos e superar as dificuldades que

surgem. A pobreza não é, para os seus moradores, sinônimo de limitação ou

estagnação, ao contrário, da situação econômica em que se encontram esses

mesmos moradores retiram a força necessária para a superação.

A Senhora ensinou-me a perceber a cidade como um ecossistema, todo feito de equilíbrios e interações. Com cemitérios e berços, línguas e linguagem, mumificações e batimentos de corpos. E nada que progride ou recua, nenhum avanço linear ou alguma evolução darwiniana. Apenas o redemoinho aventuroso do que está vivo. Além das melancolias, das nostalgias inquietas ou das vanguardas voluntárias, é preciso falar dessas leis informuláveis. Então, como? (CHAMOISEAU, 1993, p. 229).

Marie-Sophie permitiu que Cristo percebesse não apenas a realidade em que

viviam, mas que ele refletisse sobre a relação estabelecida entre os moradores e o

meio ambiente. Como foi dito anteriormente, a afinidade dos habitantes com a terra

se estende além da relação de apropriação. Texaco faz parte de um ecossistema

ainda maior que é a Cidade, um depende do outro para o bom funcionamento desse

sistema. Mas como expor isso?

82

Subitamente compreendi que Texaco não era o que os ocidentais chamam de favela, mas um manguezal, um manguezal urbano. À primeira vista, o manguezal parece hostil às vidas. É difícil admitir que, em suas angústias de raízes, de sombras espumosas, de águas paradas, o manguezal possa ser um tal berço de vida para os caranguejos, os peixes, as lagostas, o ecossistema marinho. Não parece pertencer à terra nem ao mar, um pouco como Texaco não é cidade nem campo. No entanto, a cidade se fortalece bebendo no manguezal urbano de Texaco, como no de outros bairros, exatamente como o mar se povoa por essa língua vital que o une à química dos manguezais. Os manguezais precisam da carícia regular das ondas; Texaco precisa, para seu pleno desenvolvimento e sua função de renascimento, que a cidade o acaricie, quer dizer: o considere (CHAMOISEAU, 1993, p. 235).

A metáfora do manguezal, que aparentemente é apenas lama, sem vida, algo

asqueroso do qual se distanciam as pessoas, faz menção a como acontece a vida

nos morros. No entanto, o que se repudia e se nega, na verdade, é uma fonte de

vida necessária à sobrevivência do ecossistema. A cidade sem Texaco, sem os

bairros periféricos, não teria sobrevivido. Sem a mão de obra dessas pessoas e o

seu trabalho braçal, a cidade não teria se erguido e não se manteria.

O urbanista ocidental vê em Texaco um tumor na ordem urbana. Incoerente. Insalubre. Uma contestação ativa. Uma ameaça. Nega-lhe qualquer valor arquitetural ou social. O discurso político é, sobre isso, de negação. Trata-se, claramente, de um problema. Mas demolir é despachar o problema para outro lugar, ou pior: não considerá-lo. Não, precisamos expulsar o Ocidente e reaprender a ler: reaprender a inventar a cidade. O urbanista daqui deve se pensar um crioulo, antes mesmo de pensar (CHAMOISEAU, 1993, p. 240).

Se é tão necessária, como então solucionar o problema dos morros? Se não

é possível destruí-los ou negá-los, como então integrá-los? O urbanista questiona-se

sobe o seu papel e o que pode fazer para contribuir na solução do problema. Diante

do impasse que se coloca, o de destruir Texaco e de percebê-lo essencial para a

sobrevivência da cidade, Cristo percebe enfim que se faz necessário refletir sobre as

relações entre o morro e o centro. Como ele mesmo afirma “Texaco era o que a

cidade conservava da humanidade do campo. E a humanidade é o que há de mais

precioso para uma cidade. E de mais frágil.” (CHAMOISEAU, 1993, p. 251).

83

Acabar com Texaco, conforme me pediam, equivaleria a amputar a cidade de uma parte de seu futuro e, sobretudo, dessa riqueza insubstituível que continua a ser a memória. A cidade crioula, que possui tão poucos monumentos, torna-se monumento pela atenção dada a seus lugares de memória. O monumento, ali como em toda a América, não se erige monumental: irradia (CHAMOISEAU, 1993, p. 298).

Texaco é a memória perdida da cidade, triste constatação. Enquanto o centro

preocupa-se com o desenvolvimento econômico e tecnológico, busca seus modelos

no Ocidente e copia os padrões europeus, o morro guarda suas histórias, mantém a

sua memória viva. O que é uma cidade sem passado, um povo sem histórias, uma

gente sem raízes? Pergunta-se o urbanista. Como conservar o pouco que resta da

história de Fort-de-France?

Cristo percebe que, graças às memórias de Laborieux “do urbanista fez-se

um poeta, ou melhor; no urbanista, ela designou o poeta. Para sempre.”

(CHAMOISEAU, 1993, p. 302). Um poeta preocupado com o destino da Cidade e da

própria Martinica, um homem que se imbui da atividade de não mais destruir

Texaco, mas de reorganizá-lo. A sua função agora será a do arquiteto que planeja e

reinventa. Não a cidade que consome o campo, mas o campo que impacta a cidade.

Mas a cidade é uma ameaça. Quando não está consolidada por uma velha memória, cuidadosamente amplificada, sua lógica é desumana. Ali, nasce um deserto debaixo da alegria mecânica dos neons e da ditadura dos automóveis. Texaco absorvido será regido pela ordem. A ilha da Martinica será rapidamente engolida. Doravante, o urbanista crioulo precisa iniciar outras trilhas de modo a provocar na cidade uma contra-cidade. E, ao redor da cidade, reinventar o campo. Por isso, o arquiteto deve se fazer músico, escultor, pintor... – e o urbanista, poeta (CHAMOISEAU, 1993, p. 320).

Ao término da narrativa da matriarca, o jovem Cristo já não é mais o mesmo

homem. O poder do contador encantou este que literalmente se torna o Salvador da

comunidade. Ao partir, ele leva consigo a certeza de um trabalho diferente do que

planejava inicialmente. “Escutando as últimas palavras da grande senhora, tive

subitamente um arrepio: daqui a alguns anos, mais de metade da humanidade

enfrentará, em condições semelhantes, o que ela chama de Cidade.”

(CHAMOISEAU, 1993, p. 326, grifo do autor).

84

Meses depois Cristo volta a Texaco, acompanhado de máquinas e

trabalhadores, não para destruir aquele que viria a ser o patrimônio memorial de

Fort-de-France, mas para urbanizá-lo e trazer melhorias à comunidade. Texaco,

enfim, consegue ser visualizada pelo centro, não mais por seu aglomerado

desordenado, mas por sua tradição cultural.

Desse modo, percebe-se a força transformadora que a narrativa possui. O

forasteiro, ao ouvir a história que Marie-Sophie tece, não é apenas impactado como

também entra em confronto. Desse empate surge um novo homem, com nova visão

sobre si e da comunidade à sua volta. Graças à história que ouve já não se vê

apenas como um jovem urbanista à serviço da prefeitura, mas como um homem

crioulo, que vive em um mundo onde a crioulidade é latente.

Quando o ouvinte é confrontado pelo que ouve, o narrador tem a sensação de

missão cumprida. A sua função de contar é também com o intuito de mexer com a

estrutura pessoal de quem ouve. O contador quer identificar a emoção e o

entusiasmo em seu público, esse é o resultado imediato do seu trabalho.

Após a leitura que foi realizada nesse capítulo é possível constatar a

presença dos elementos históricos e ficcionais na constituição da narrativa de

Texaco. No próximo capítulo será apresentada breve apreciação acerca das

relações existentes entre o fato histórico e a ficção, que dá o caráter de romance

histórico à obra, bem como a narrativa mítica da fundação de Texaco. Marie-Sophie,

Cristo e o Marcador de Palavras, voltam à cena para essa análise.

85

4 TEXACO: ENTRE O ROMANCE HISTÓRICO E A NARRATIVA MÍTICA

Após a análise da narrativa de Texaco, de como é constituída, dos papeis

desempenhados por seus personagens e a presença das vozes narradoras, surge

um questionamento em relação ao teor desta obra. Seria Texaco um romance

histórico que narra os eventos ligados a fundação de uma comunidade ou uma

grande narrativa mítica criada para explicar o nascimento de um lugar?

Nesse momento pretende-se aliar as informações até aqui apresentadas à

outras ainda à serem levantadas, na tentativa de compreensão da composição do

enredo que conta o nascimento de Texaco.

Questionar sobre os aspectos da obra que o caracterizaria como romance

histórico ou como narrativa mítica exige breve análise dos elementos que

diferenciam esses conceitos. É preciso compreender o que historicamente se

entende por romance histórico e se este pode ser associado a Texaco, da mesma

forma que se faz necessário a identificação das características mitológicas em um

texto para que ele possa ser definido como narrativa mítica.

Para tal, será apresentado o conceito de romance e o que caracteriza uma

determinada obra como romance histórico ao mesmo tempo em que será exposto o

conceito de narrativa e o que a caracteriza como mítica, fazendo-se necessário, em

alguns momentos, retornar ao enredo do romance com seus personagens e suas

trajetórias. No intuito de levantar questões referentes ao fato historicamente

registrado e à ficção.

O contar a realidade através do simbólico também será abordado nesse

capítulo, quando se dará atenção especial ao mito e à função por ele

desempenhada na construção do imaginário coletivo. O mito, a história e a ficção

numa relação intrínseca que instiga o leitor a uma observação atenta do texto a ser

decodificado e à análise do mesmo, em uma ligação íntima que se estabelece entre

autor e leitor, narrador e ouvinte.

A apresentação de tais conceitos é essencial para a análise a que se propõe

esse capítulo, uma vez que a obra utilizada como corpus desse trabalho é

compreendida como fronteiriça entre o real e o ficcional. E, ainda que se perceba

que a narrativa não tem nenhuma pretensão em descrever um relato fiel da história

86

da Martinica, é perceptível a sua intenção de aguçar a curiosidade do público leitor

quanto à veracidade histórica das informações por ela apresentadas.

Benjamin já afirmava que “articular historicamente o passado não significa

conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal

como ela relampeja no momento de um perigo” (1993, p. 224). A narradora em

Texaco se identifica com o perfil de apropriador da história ao articular esta com a

expressão do imaginário. Ela se aproveita das lacunas deixadas pela história para

preenchê-las com o seu enredo, o que a história não explica ou não possui

informações é preenchido pela criação da narradora.

No caso de Marie-Sophie, percebe-se a apropriação de uma via poética para

dar vazão à sua narrativa. A contadora da história de Texaco descreve o modo de

vida dos moradores da Martinica, em suas diversas classes sociais, conta as agruras

da vida no morro, mas, seu tom de narrativa é leve e mostra o colorido da vida. A

sua história apresenta leveza sem, no entanto, perder o senso crítico em relação aos

acontecimentos sócio-políticos que vivencia na Cidade.

O preenchimento das lacunas da história não ocorre de forma arbitrária,

mesmo o ficcional passa pelo conhecimento prévio do narrador, este normalmente é

conhecedor dos fatos e se apossa das evidências para compor a sua estrutura

narrativa. Como citado no capítulo anterior, Chamoiseau, o autor, recorre às fontes

orais onde encontra inspiração para a sua escrita. Em “O Narrador”, Benjamim fala

sobre esse aspecto das narrativas:

a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos (BENJAMIM, 1993, p. 198).

Para o historiador, tradicionalmente falando, a “história é uma narrativa de

acontecimentos verdadeiros. Nos termos desta definição, um fato deve preencher

uma só condição para ter a dignidade da história: ter acontecido realmente”

(VEYNE,1987, p. 21). Para o romancista a história é a fonte à qual recorre para dar

suporte ao seu ato criador. O ter acontecido realmente é relativo, o seu intuito é

despertar o imaginário do leitor para provocar nele indagações acerca dos fatos

narrados.

87

No entanto, pode-se questionar o que de fato é o real. O “ter acontecido

realmente” é uma premissa para o historiador, mas como comprovar o acontecido?

Ou por que questionar o “imaginado”? Por que afirmar que a narrativa mítica não é

fundada no real, mas apenas fruto da criação?

Sabe-se que as histórias que fazem parte da tradição oral vivem em

constante processo de reelaboração; o que consideramos mito hoje pode, em

algumas décadas, ser reconhecido como factual, ou inversamente, o que

consideramos “real” vir a ser descoberto como mito. O registro escrito de um fato

“realmente acontecido” pode facilmente encontrar a sua origem na história oral,

portanto suscetível ao imaginário. Zumthor (1993) afirma que “admitir que um texto,

num momento qualquer de sua existência, tenha sido oral é tomar consciência de

um fato histórico que não se confunde com a situação de que subsiste a marca

escrita, e que jamais aparecerá (no sentido próprio da expressão) “aos nossos

olhos” (p. 35).

Em Texaco, a relação entre o real e o mitológico é apresentada de forma

harmônica. O narrador não busca o confronto e nem respostas, apenas apresenta a

sua história e os seus elementos, fala sobre como a mesma ocorreu e o impacto da

História sobre a vida dos personagens. O que a História oficial não conta ou não

lembra, cabe ao narrador trazer à memória, não de forma imparcial, mas com suas

contribuições, lembrando o que a história não registrou. A narradora traz suas

impressões e suas vivências dos fatos que viu, e também dos que ouviu dos seus

pais, ela compartilha a vida dos bastidores de uma época.

A narrativa em Texaco é tecida entre os fios da história e da ficção, na obra

apresentada através da construção mitológica do bairro ao qual faz menção. Um

mito pautado na constituição de uma heroína que resiste ao tempo e não descansa

enquanto não imortaliza o seu legado histórico.

4.1 Tecendo as linhas da ficção na malha da história

A ficção sempre esteve associada à literatura, campo de estudo que a analisa

e a compreende enquanto produção resultante do imaginário e do irreal; sendo

oposta ao não-ficcional, produção que pode ser interpretada como representação do

88

real. Em outras palavras a ficção é a invenção, a criação livre que pode se aproximar

ou se distanciar da realidade, enquanto que a não-ficção é o factual, a escrita dos

fatos e dos acontecimentos de episódios ocorridos.

Essa definição do texto ficcional, em linhas gerais, é a apresentada nos livros

didáticos, bem como a ensinada nas escolas. Desde muito cedo as pessoas

aprendem a diferenciar o real do imaginado, condição imprescindível para distinguir

o mundo em que se vive, onde os fatos acontecem, e o mundo da fantasia, onde o

sujeito possui a liberdade de conduzir as situações por ele criadas. No entanto,

como definir o texto ficcional que foge às definições convencionais e que apresenta

em sua constituição narrativa elementos históricos que fazem parte do real?

Livre que é o texto ficcional busca sua inspiração nas mais diversas fontes:

uma história contada, um acidente observado, uma briga assistida; situações do

cotidiano que podem servir de fio condutor para a criação de uma narrativa, pois a

ficção é a interpretação dada pelo escritor dos fatos por ele vivenciados ou

observados, acrescidos do imaginário. Essa realidade muda de perspectiva, quando

o autor traz para a sua produção o fato histórico oficialmente registrado.

Compor um romance com informações históricas permite várias abordagens

por parte do escritor e do leitor. O intuito de quem escreve pode ser o de quem

deseja documentar o seu texto, o de aliar a ficção à história, e/ ou de comprovar ao

seu leitor, através da legalidade histórica, a veracidade dos fatos por ele narrados.

O leitor, por sua vez, no papel de receptor, pode promover algumas

interpretações para essa escrita: o conhecimento de causa do escritor, a crença nos

fatos narrados pelo seu teor histórico, a percepção de um jogo que constrói os

significados no texto e a dúvida do que esta sendo contado.

Quando a história penetra o campo literário faz nascer novas relações entre a

literatura e a história, ou vice-versa, que se apresentam especialmente no que se

convencionou chamar romance histórico.

O romance histórico, desde outrora, suscita discussões acerca do seu teor e

da sua estrutura. Historiadores e teóricos da literatura analisam a sua estrutura e

tentam definir o que o caracteriza e como classificá-lo. É preciso pontuar que cada

um desses campos apresenta suas impressões partindo do seu foco de estudo. A

história analisará o romance histórico partindo do fato e a literatura a partir da

construção narrativa.

89

É importante saber que não será pela presença da História que o romance perderá seu estatuto de ficção, ao contrário, a imaginação se nutre do real recontextualizando os acontecimentos e atribuindo-lhe novos significados. Da mesma forma, o imaginário não constitui barreira à narrativa histórica, nem ela se anula com a intromissão daquele. Na verdade, a relação da Literatura com a História é quase um confronto de narrativa contra narrativa, porque ambas não começam nos fatos, mas na palavra escrita. A Literatura pertence à categoria do discurso relativo ao imaginado e a História à do discurso baseado no real, todavia é a escrita, presente em ambas, que dá significado aos eventos. Os acontecimentos são reais não porque aconteceram, mas porque são lembrados e representados através da narrativa. ( ALVES, 2011)

Segundo Alves (2011) muito mais do que questões relativas ao real e ao

ficcional, o que deve ser posto em foco é a presença da escrita no texto, pois, é ela

que constrói, através da constituição narrativa, o significado do que está sendo

narrado. O texto possui a função de representar e/ ou reproduzir o simbólico e

atribuir sentido aos acontecimentos que são registrados e serão interpretados pelo

leitor.

No entanto Zilberman (2005, p.120) lembra que Lukács, um teórico do

romance histórico, concebe-o como um gênero que não apenas situa o leitor num

tempo passado, mas ajuda-o a entender os acontecimentos. Partindo desse

princípio, uma das funções de trazer a história para o romance seria a de despertar

no leitor o desejo de conhecer melhor o momento histórico descrito nas páginas dos

livros. Pois como ainda afirma Zilberman (2005, p.117) “Não existe romance histórico

sem que se entranhe nas pessoas uma certa sensibilidade para a história”.

Essa sensibilidade para a história geralmente é despertada quando o leitor

identifica nos personagens do romance características que se aproximam das suas,

quando quem lê consegue se perceber no enredo e se não a si mesmo, percebe

figuras históricas antes conhecidas de outros momentos.

Pergunta-se, então, como compreender a concepção de romance histórico?

Baumgarten nos mostra um caminho possível ao dizer que o romance em si é uma

representação histórica, não importando o seu gênero, pois ele sozinho revela um

tempo histórico que é o narrado pelo autor, seja esse tempo passado, presente ou

futuro.

90

Todo romance, como produto de um ato de escrita é sempre histórico, porquanto revelador de, pelo menos, um tempo a que poderíamos chamar de tempo da escrita ou da produção do texto. Contudo, tal definição, por mais verdadeira que possa ser, não serve para o que comumente nomeamos de romance histórico no plano dos estudos literários. Nesse âmbito, romance histórico corresponde àquelas experiências que têm por objetivo explícito a intenção de promover uma apropriação de fatos históricos definidores de uma fase da História de determinada comunidade humana. (BAUMGARTEN, 2011)

Baumgarten (2011) amplia o conceito de romance histórico ao dizer quer todo

romance é histórico. Essa afirmação do autor pode ser exemplificada numa análise

aleatória de obras da literatura, pois, os romances ao descreverem hábitos e

costumes de um local e dos personagens estão registrando o histórico. A forma de

se vestir, de falar, de se comportar dão indícios sobre o comportamento das pessoas

em determinada época, não importando o período descrito.

Quase todas as indagações acerca do romance histórico estão em torno da

ideia de “verdade”, a história é a suposta “verdade” que o escritor faz uso como

elemento estilístico em seu romance. Todavia, Alves (2011) faz um importante

alerta, pois lembra que “a ‘verdade’ de um evento não existe em si, porque todas as

interpretações já são criações e as identidades são produzidas através da prática

textual, não havendo, assim, uma realidade isenta de discursos”. Sendo assim:

Apesar de os romances históricos manterem uma estreita relação com os fatos históricos, eles não têm a pretensão de serem relatos históricos tradicionais. Na ficção, o material histórico é somado a novos dados, frutos da imaginação do autor que se permite ir muito mais além da “história”. Desta forma, a literatura possui um caráter artificial, em que os elementos são combinados e selecionados de forma que o leitor saiba que aquilo que se lê não é real, mas o aceita como se fosse real, porque o efeito poético, ausente no discurso histórico, torna isso possível. No caso da história, a seleção e a combinação dos elementos privilegiados pelo historiador devem parecer necessariamente reais, promovendo uma interpretação pré-estabelecida. (ALVES, 2011)

Alves (2011) nos confirma o que é perceptível na construção narrativa de

Texaco. O romance estabelece uma estreita relação com a história a qual faz

menção, no entanto, não é pretensão do autor realizar uma narrativa histórica dos

fatos ocorridos na época descrita. O narrador cita esses acontecimentos históricos

91

para situar o ouvinte sobre o período narrado, mas não é perceptível o desejo de

transformar a narrativa em um relato histórico de uma época.

Percebe-se que trazer o momento histórico através da voz da narradora surte

dois efeitos: o da possível “veracidade” dos acontecimentos por ela ponderados e a

apresentação do contexto histórico que permite ao leitor situar o tempo da narrativa.

Nesse sentido, pode-se pensar no uso da verossimilhança por parte do autor

que, fazendo uso da história, tenta aproximar a sua narrativa do real. Marie-Sophie

não apenas narra os acontecimentos históricos, como também estabelece relações

deles com o seu cotidiano, falando dos seus sentimentos e fazendo inferências com

base nos fatos. A narradora descreve esses momentos políticos e sociais como o

cidadão comum que observa a cena. Um bom exemplo é a passagem do romance

que conta a visita do General De Gaulle à Martinica e o seu entusiasmo ao ir,

juntamente com uma multidão, recepcioná-lo.

De Gaulle em pessoa, que em nossa cabeça conquistara um lugar de negro aquilombado. Quando soube que ele viria (Césaire prolongara a Levée até Pont-Démosthène e pensava em dar seu nome a esse bulevar), pus meu vestido mais bonito, e minhas poucas jóias, e fui para a Cidade a fim de esperá-lo, a fim de vê-lo, contar-lhe nossas tragédias com oficiais de justiça e policiais que destruíam diariamente nossas construções noturnas. Ele, De Gaulle, eu sentia, tinha o poder de resolver esse problema, assim como a França de meu Esternome sempre fizera com nossas calamidades (CHAMOISEAU, 1993, p. 290- 291).

A narradora conhecia o General de ouvir falar das suas proezas realizadas

durante a guerra, o seu pai havia lhe contado o importante papel desempenhado por

De Gaulle para garantir a vitória francesa. Diante da notícia da visita dele, Maria-

Sophie se agarra à possibilidade de encontrar nesse homem uma ajuda às aflições

que ela e a comunidade vinham sofrendo por parte da polícia. Ela conta não apenas

que vestiu a sua melhor roupa, como também o cuidado que teve em arrumar o seu

barraco e preparar uma boa refeição, pois ela nutria a esperança de poder levar

aquela figura política para conhecer Texaco e poder contar-lhe suas dores.

Como é de se esperar, ela não consegue nem se aproximar do General,

muito menos entregar-lhe a carta que havia escrito-lhe. A multidão era imensa e a

segurança reforçada. Marie-Sophie não consegue mesmo ver De Gaulle. Em

decorrência do fato, a decepção é apaziguada pelo conhecimento de um homem

92

que marcaria a sua vida, uma nova alegria. Apesar de mostrar o grande

desapontamento vivenciado pela narradora, esse trecho do romance permite

visualizar o impacto da visita do general de Gaulle à Martinica em 1964, um fato

histórico que é o segundo plano da narrativa.

Assim como a visita de De Gaulle, um outro momento da narrativa que se

destaca pelo seu teor histórico é o aparecimento de Aimé Césaire no cenário político

da Martinica e a sua eleição para Prefeito do Departamento.

O poeta-político, de importância histórica nas Antilhas, por sua militância e

sua contribuição no cenário político em favor da causa negra é lembrado no

romance. Na narrativa observa-se a descrição da ascensão política de Césaire e a

forma carinhosa pela qual ele era tratado pelos martinicanos. As relações de

respeito e de intriga são descritas, além da análise, pela narradora, do impacto

político que a vida pública do poeta teve sobre o Departamento.

Foi com seu Alcibiade que aprendi a ideia de assimilação, mas foi Aimé Césaire, nosso papai Césaire, que levou o projeto até o Parlamento da França e obteve, nas barbas dos bekês, que fôssemos um departamento francês (CHAMOISEAU, 1993, p. 221). Trouxe-nos a esperança de sermos outra coisa. Ver esse negro tão eminente, tão poderoso, com tantos saberes, tantas palavras, remetia-nos uma imagem entusiasmada de nós mesmos. Doravante, tínhamos a impressão de podermos escapar daquilo e conquistar a Cidade. Quando pediu nosso voto, votamos em peso e o colocamos na prefeitura, de onde jamais, e até que eu esteja morta, e meus ossos furados, nunca ninguém jamais poderá arrancá-lo (CHAMOISEAU, 1993, p. 223).

Marie-Sophie descreve de maneira bem pessoal as impressões dos

momentos vivenciados quando pela primeira vez estabelece contato com a política.

Césaire era para a população negra daquela época a esperança de um lugar melhor

e mais justo para se viver. Ver um homem de cor que falava e se comportava melhor

que um branco era motivo de orgulho para o povo.

Mais uma vez, o autor encarna o público para expressar os sentimentos da

população. Não bastando apenas os registros históricos, em Texaco é também

narrado o factual sob uma outra ótica que não é a da história oficial. Ainda podem

restar dúvidas quanto à validade de uma narrativa que não é pautada no “real”,

pode-se ainda perguntar: quais as fontes utilizadas para analisar as impressões da

93

população na época? E mais uma vez a mesma resposta se fará presente: a

narrativa é a apropriação que flui entre as linhas do autor.

Além da apresentação dos personagens históricos de De Gaulle e Césaire,

Texaco faz uso da história para denunciar os horrores da escravidão, o sofrimento

dos escravos, as dores a que eram submetidos; mas também a sua luta e a

esperança da obtenção da liberdade e do retorno à terra natal, a África.

Em um segundo momento, no período pós-abolição, também são descritas as

dificuldades de sobrevivência dos ex-escravos. A chegada da notícia do fim da

escravidão é narrada através da descrição dos sentimentos vivenciados pelo

personagem Esternome, pai de Marie-Sophie. Ele também faz uso da sua voz para

contar as angústias dos primeiros tempos, sem emprego, sem moradia, sem

alimento, a necessidade de sair à luta e demarcar espaço na Cidade que crescia

fechada para esses novos moradores.

Alves ajuda a compreender a abordagem de Chamoiseau ao recriar o

ambiente de um acontecimento histórico passado. O uso dessa ferramenta é

possível graças às vias de produção através do romance histórico.

No caso do romance histórico, o romancista recria um mundo já criado e contado pelos historiadores. Este autor está livre para inventar e seleciona os personagens e os eventos, porém, é fato que se trata de uma narrativa que exige do autor estudo e conhecimento do fato histórico a ser reinventado para que o romance funcione como tal. Isto porque a história faz parte do mundo do romance histórico, e, portanto, os elementos dependem de um “mundo real”. Este gênero ficcional não deve ser visto como um processo ilegítimo da verdade, pois a proposta deste “gênero” não é enganar o leitor, oferecendo-lhe ficção como se fosse história, mas sim possibilitar que o leitor distinga entre os fatos históricos e a imaginação criativa do autor. Questionando o caráter objetivo dos relatos históricos, os romances históricos contemporâneos mostram como a historiografia pode forjar um passado da mesma forma que a literatura é capaz. (ALVES, 2011)

Na história, os fatos acontecem de forma inesperada, não sendo possível

prever onde e quando determinada situação ocorrerá, diferentemente, no romance o

escritor tem a liberdade de selecionar quais acontecimentos deseja revisitar, além do

direito à escolha dos personagens que usará em sua narrativa.

Chamoiseau em Texaco realiza seleção criteriosa dos momentos históricos

por ele citado, desde as primeiras páginas do romance, onde ele inclui uma sessão

94

intitulada “Marcas Cronológicas de nossas investidas para conquistar a cidade”.

Nessa parte inicial, ele descreve os principais eventos históricos que marcaram a

história da Martinica e que se encontraram representados no romance. Os fatos não

são apenas citados, como são também apresentadas as datas, os períodos e os

locais em que ocorreram.

Partindo da análise desses aspectos pode-se, portanto, considerar Texaco

um romance histórico, pois também atende às características propostas por

Jameson para esse gênero:

O romance histórico, portanto, não será a descrição dos costumes e valores de um povo em um determinado momento de sua história (como pensava Manzoni); não será a representação de eventos históricos grandiosos (como quer a visão popular); tampouco será a história das vidas de indivíduos comuns em situações de crises extremas (a visão de Sartre sobre a literatura por via de regra); e seguramente não será a história privada das grandes figuras históricas (que Tolstói discutia com veemência e contra o que argumentava com muita propriedade). Ele pode incluir todos esses aspectos, mas tão-somente sob a condição de que eles tenham sido organizados em uma oposição entre um plano público ou histórico (definido seja por costumes, eventos, crises ou líderes) e um plano existencial ou individual representado por aquela categoria narrativa que chamamos de personagens (JAMESON, 2011)

Em Texaco pode-se observar as duas características essenciais citadas por

Jameson (2011), existe o plano público e histórico apresentado através das

descrições de hábitos e costumes da época, os principais eventos históricos, as

crises como a da escravidão e posterior abolição e representantes históricos que

foram fundamentais para a formação da Martinica; paralelo a estes, em um outro

plano, existem os personagens que são os agentes da narrativa e vivem os conflitos

da história.

Sendo assim, percebe-se que o autor consegue tecer as linhas da ficção nas

malhas da história, criando uma obra que contempla a história em sua narrativa de

forma harmônica, sem gerar conflitos com os seus personagens.

95

4.2 Contando o real através do simbólico, um jogo mitológico

Após reflexão sobre a relação entre a história e a ficção em Texaco, passar-

se-á a análise de como surge a questão do mito no romance. Discutir a forma como

o imaginário é constituído na obra e relacioná-lo com o mitológico é possível, nessa

obra, graças à ideia de mito fundador que é apresentado no decorrer da narrativa.

Ao falar do bairro Texaco e buscar em sua origem histórica a justificativa para

os acontecimentos presentes, a narradora cria um mito que representará a história

da comunidade a qual pertence.

O mito, durante muitos séculos, foi entendido como uma ficção, um conto,

uma fábula, envolvendo personagens sobrenaturais e que contavam histórias que

representavam aventuras, fatos ocorridos ou explicações de um determinado grupo

cultural. Esse conceito foi constantemente questionado e revisto por pesquisadores

que hoje já aceitam a definição do mito como a “verdade” de um determinado povo

que tem funções específicas, dentre elas a de explicar certos fenômenos e práticas

arraigadas à tradição local.

A história de Texaco, para os seus moradores, é sagrada. Ela fala do tempo

em que o bairro ainda não existia e conta as façanhas de Maria-Sophie para se

instalar nas terras e fazer nascer uma nova comunidade. Mircea Eliade diz que:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser (ELIADE, 2010, p.11).

Esse mito caracteriza-se pela necessidade de, através de uma história, se

contar o nascimento de pessoas ou de um lugar com o intuito de despertar nelas o

sentimento de pertencimento. Diferentemente da história, a narrativa mítica não se

aterá ao fato ocorrido, ao acontecimento tido como verídico, ainda que, para a

comunidade a qual pertence, o mito será sempre compreendido como a “verdade

96

local”. Dessa forma, essa narrativa se preocupa muito mais com a construção do

simbólico que une as pessoas em torno de uma mesma crença.

Participar de uma sociedade exige das pessoas o conhecimento de suas

origens, explicações que justifiquem suas práticas no tempo presente, por isso a

necessidade constante de buscar respostas. Quando o real não obtém todas as

respostas, é o mito que arcará com tal responsabilidade.

O mito conservou-se, por um lado, sob a forma original dos contos, da narrativa fundadora que, por meio da narração alegórica, ensina a um povo o porquê de ele estar ali, precisamente naquela parte da Terra, como ali chegou, e como deve se conduzir. O mito – incansavelmente repetido, pois há sempre a ameaça do esquecimento – dá também ao povo que o pronuncia ou o canta uma razão e, ao mesmo tempo, um modo de viver, (CARRIÈRE, 2003, p.21)

Assim como afirma Carrière (2003), um dos papeis do mito é ensinar e

explicar às pessoas as raízes que a ligam ao passado para que entendam a sua

função no presente e possam mesmo projetar um futuro. A repetição da história

mitológica tem função imprescindível, pois adentra a memória coletiva das pessoas

e passa a fazer parte do seu cotidiano. Mesmo não tendo vivenciado as histórias

ouvidas, as pessoas que as ouvem constantemente acabam por absorvê-la, e,

normalmente, após o processo de tomada de posse das narrativas, quem as ouve

torna-se também um repetidor.

A circulação das histórias faz com que elas permaneçam sempre vivas. Pois,

como nos diz Carrière “um pouco por toda parte, os mitos tem vida longa, ao menos

alguns deles. Que o saibamos ou não, permanecem vivos, bem próximos de nós.

Participam de nossa linguagem, de nosso comportamento, de nossos sonhos”

(2003, p. 23-24). Muitas das nossas crenças cotidianas são antigos mitos que

circulam ainda hoje sem que se saiba. Essas crenças são arraigadas de tal forma às

práticas da sociedade que dificilmente se percebe que fazem parte do imaginário

coletivo que diariamente é (re)construído e (re)visitado.

Carrière nos afirma, ainda, que muitos dos mitos que circulam hoje não foram

criados intencionalmente. Uma pessoa comum pode falar algo ou dar início a uma

prática que venha a se repetir de tal forma que no futuro adquira as características

de um mito:

97

Tal inventor, por certo, não tem consciência, quando escreve, quando publica, de que está criando um novo mito. É exatamente o que caracteriza, antes de tudo, essa nova geração de mitos: não sabem que são mitos. É a sociedade imediata que os cerca e a posteridade que decidirão (CARRIÈRE, 2003, p. 28, 29)

No caso especifico de Texaco observa-se uma mulher idosa que vê diante si

a necessidade de fiar uma história que explique a sua origem e a da comunidade

onde vive. Essa Senhora, então, remonta ao tempo passado, aos seus ancestrais

com os quais busca inspiração para narrar a sua origem.

Ela conta a história de Texaco não apenas com o intuito de partilhar a vida de

outros que viveram antes dela, mas com o desejo de estabelecer laços de

pertencimento, ligações que unem as pessoas em torno de uma mesma verdade.

Pois, como nos explica Eliade (2010) o mito da origem precisa não apenas ser

conhecido, mas também recitado para proclamação e demonstração do

conhecimento de quem o narra.

O mito antigo, ao mesmo tempo que oferece um fundador e um modelo de vida, é um signo de reconhecimento; nos une a outros. É uma imagem identificadora forte, exposta ao perigo de desviar-se com frequência, como já lembramos, para o nacionalismo reivindicador e intolerante (CARRIÈRE, 2003, p. 36)

Ainda no plano da narrativa pode-se refletir sobre o papel de Marie-Sophie,

pode-se dizer que o mesmo a define na função de criadora de mitos. Ao se apropriar

da história da comunidade e a partir dela construir a sua narrativa, ela torna-se a

“criadora”, aquela que, como diz Carrière: “faz nascer personagens, situações,

temas, acontecimento antes inexistentes” (2003, p. 29).

Como já se discutiu a função da ficção na obra, portanto, pode-se entender

que ao escrever sobre a história de criação do bairro Texaco, o autor também

desempenha a função de instituidor do mito fundador. A narradora, por sua vez, a

quem ele dá voz, não apenas conta suas histórias como também as escreve em

cadernos, registros de sua memória.

98

[...] os novos mitos europeus nada têm de indiscutível. Apresentam-se como personagens que hoje chamaríamos “de ficção”, e surgem da cabeça de um autor, isto é, um inventor, um mentor. Ele faz nascer personagens, situações, temas, acontecimentos antes inexistentes. Ele é o seu “criador”, palavra que originalmente se hesita em empregar quando se trata, para um homem rivalizando com os deuses, de dar um fantasma estando, porém, no presente, banalizando a ponto de se aplicar a estilistas, a publicitários que nada mais fazem do que utilizar, à sua maneira, a realidade já dada. (CARRIÈRE, 2003, p. 28)

Pode-se, então, questionar-se a inocência da narradora ao escrever suas

memórias. Seria esse apenas um gesto sem intenção, de alguém que pretende

apenas manter vivas as suas recordações, ou seria essa uma postura intencional de

quem deseja ver reproduzido na posteridade os momentos vividos no passado? A

narradora, para os leitores de Texaco, permanece um enigma.

Uma mulher forte, como foi descrita no capítulo anterior, que esconde uma

possível fragilidade na coragem dos seus atos. Marie-Sophie é negra, filha de

escravos, mas em nenhum momento no decorrer do romance faz menção à sua

condição crioula. A sua crioulidade é sentida em suas palavras e nas linhas escritas

por ela em seu caderno, nada mais do que isso.

Apesar de ser alfabetizada e politizada, não se observa na narradora atitudes

arrojadas, nem militantes. Ela defende uma única causa: a de Texaco. Se luta, se

grita, se briga, é unicamente em defesa de uma terra, a sua terra. As outras

situações, também de cunho social, parecem que lhe passam despercebidas.

Apenas ouve-se a sua voz em prol da comunidade, nada mais do que isso.

Essa postura, aparentemente desprovida de vaidade, no decorrer das linhas

do romance, faz perceber que a própria Marie-Sophie pode ser interpretada como

uma figura mitológica. A deusa sagrada de Texaco, conhecedora de todas as

histórias e possuidora de sabedoria divina, a mulher digna dos méritos que lhe são

atribuídos. A juíza sempre pronta a proferir uma sentença, a compartilhar palavras

de sabedoria e dar conselhos. A mulher que não tem medo de lutar e de defender o

povo que autoproclama como sendo seu. A narradora, juntamente com os seus

ancestrais, é o próprio mito a ser contado.

Partindo dessas observações pode-se classificar Marie-Sophie como a

grande heroína do romance. O mito possui também esta característica de exigir em

sua estrutura o papel do herói, ser superior dotado de poder divino que

destemidamente enfrenta todas as situações adversas com o único intuito de

99

defender o seu povo e lutar pela justiça. Este herói possui todas as características

necessárias para o enfrentamento de lutas e a resolução de problemas.

Seguindo o desenvolvimento da narrativa de Texaco e acompanhando as

façanhas da narradora pode-se perceber nela esse herói mitológico. Marie-Sophie é

a injustiçada, a mulher sofrida que, por inspiração dos deuses, parte para a

fundação de um bairro, de uma nova comunidade que se abre para outros

desfavorecidos como ela. Essa mulher, no entanto, precisa travar uma luta desigual

para tomar posse da sua terra: nessa guerra ela luta bravamente defendendo os

seus protegidos e os seus interesses.

Campbell (1992, p.376) sinaliza que na sociedade moderna não é o coletivo

que deve orientar e salvar o herói, mas que deve ocorrer precisamente o contrário.

O herói é o responsável pela proteção de seus próximos. Marie-Sophie é a guardiã

de Texaco e como tal cabe a ela livrar os moradores da comunidade das

adversidades impostas pela desigualdade social em que se encontram, não porque

queira, mas porque esta função lhe foi atribuída pelo destino.

Sobre este herói moderno Campbell diz ainda que:

A essência de cada um de nós e do mundo é a mesma. Assim sendo, a separação, o afastamento já não são necessários. Aonde quer que vá e o que quer que se possa fazer, o herói sempre se acha na presença de sua própria essência – pois ele tem o olho aprimorado para ver. Não há separação. Portanto, assim como o caminho de participação social pode levar, no final, a uma percepção do Todo no indivíduo, assim também o exílio leva o herói a encontrar o Eu em tudo (CAMPBELL, 1992, p. 317)

Talvez por compreender o seu papel de heroína da comunidade, a narradora

já no ápice da maturidade ganha com a idade, busca o refúgio e o isolamento. O

exílio imposto por ela ajuda a compor uma aura em torno da sua figura, uma fuga

que, como afirma Campbell (1992), conduz ao auto-conhecimento.

Não se trata de uma fuga da sua realidade ou a necessidade de viver em um

mundo à parte. O que se percebe em Marie-Sophie é o desejo de viver momentos

de tranquilidade, onde possa enfim desfrutar de uma vida sem grandes conflitos,

sem a necessidade constante de justificar o seu pertencimento àquele lugar que

chamou de Texaco. A personagem vive, então, um momento reflexivo, buscando

100

nas memórias o melhor refúgio para o seu presente. As memórias que agora a

constituíam e a lembravam da sua luta.

Entende-se ainda que o mito carregado de valor cultural, não pode ser

transmitido aleatoriamente, a sua narrativa exige um ritual que deve ser observado

por quem o conta. Em Texaco, ao receber o Cristo, Marie-Sophie o conduz para

uma mesa, e, diante de um rum envelhecido, prepara o ambiente para iniciar a sua

história. A criação da atmosfera propícia é necessária, pois a narrativa deve envolver

o ouvinte nesse ritual que se inicia.

O mito é a parte escondida de toda história, a parte subterrânea, a zona ainda não explorada porque faltam ainda as palavras para chegar até lá. Para contar o mito, a voz do contador no meio da reunião tribal quotidiana não basta. É preciso lugares e momentos particulares, reuniões especiais. A palavra também não basta; o concurso de um conjunto de signos polivalentes, isto é, um rito, é necessário. O mito vive de palavra, mas também de silêncio; um mito faz sentir sua presença na narrativa profana, nas palavras quotidianas; é um vácuo de linguagem que aspira as palavras no seu turbilhão e dá forma à fábula (CALVINO, 1977, p. 77)

A descrição do rito que envolve o mito esclarece a compreensão que se faz

deste, principalmente no que diz respeito à sua função, não apenas de uma história

fundadora, mas também enquanto modelo para condutas esperadas em uma

comunidade. Questões já discutidas no capítulo anterior são novamente

mencionadas aqui, pois a estrutura mitológica demanda a análise das mesmas. Para

compreender a função do mito faz-se necessário muito mais do que uma tentativa

de interpretação dos fatos contados. É preciso também considerar o próprio

contador e a maneira como faz uso da palavra ou mesmo do silêncio que a envolve,

além da postura adotada e da escolha do momento apropriado para reviver a

história. Sem tais detalhes, o mito perderia parte do envolvimento junto aos seus

ouvintes.

Texaco é a representação do mito em moldes modernos, não é uma mitologia

antiga que fala de deuses e de disputas divinas, mas uma representação

contemporânea das relações sociais. Em Texaco é possível visualizar as nuances

que envolvem os mitos ainda vivos e presentes no cotidiano das pessoas, as

crenças arraigadas que são a razão de se continuar lutando.

101

O “real”, através da voz da narradora, ganha proporções de mito. Por meio

desse jogo entre o fato e a ficção é construída uma narrativa cheia de símbolos que

representam as inquietações de um povo que almeja ver em discussão os seus

anseios e o desejo de se fazer ouvir.

4.3 Memórias que contam a história e forjam os mitos

Discorrer sobre o romance histórico e sobre a narrativa mítica conduz a uma

observação das questões relativas à memória, responsável pelo arquivamento dos

acontecimentos ouvidos e vivenciados, portanto aquela que induz à narrativa. Todo

ser humano é dotado da capacidade de guardar as lembranças de acontecimentos

específicos ou gerais; acontecimentos importantes ou banais; que são classificados

segundo a sua percepção e a relação com os fatos. Sem a memória se tornaria

impossível a reprodução de histórias.

Em sociedades orais é a memória a responsável pela continuação das

histórias. Hampaté Bâ (2010) nos lembra que nessas sociedades a função da

memória é melhor desenvolvida e a relação entre o homem e a palavra é mais forte,

pois, na ausência da escrita o que estabelece o legado cultural de um povo é o que

se lembra dele.

A memória, nesse sentido, não é apenas um aspecto individual do ser

humano, mas sim coletivo. A memória coletiva é o que se tem em comum entre

pessoas de uma mesma sociedade e o que forja a identidade delas. As lembranças

partilhadas criam o sentimento de pertencimento que ligam as pessoas umas às

outras. Possuir uma mesma origem, as mesmas crenças, os mesmo hábitos fazem

com que as pessoas se sintam seguras entre os que são aparentemente iguais.

No entanto, como sinaliza Le Goff, o sentimento de pertença ocasionado pela

memória coletiva não deve ocasionar o aprisionamento das pessoas.

A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens (LE GOFF, 2003, p. 471).

102

A memória possui também a função de alimentar. Ela não registra apenas o

que aconteceu, mas também como aconteceu, guardando detalhes que contribuem

para a compreensão do fato histórico. É ela que ao rememorar esses fatos mantém

vivo o passado e aponta diretrizes para o futuro.

As primeiras lembranças que o homem conserva são as adquiridas durante a

sua infância, os primeiros momentos vividos em família são importantes para a sua

compreensão enquanto indivíduo e para que desenvolva o sentimento de núcleo

familiar. Essas recordações o acompanham por toda a vida e são recontadas e

revividas em vários momentos de sua formação. São essas memórias que

constituem os arquivos de família, os causos e anedotas que são recontados a cada

reunião familiar.

Na realidade, o trait d’union entre individual e coletivo sempre foi constituído, historicamente, pelo núcleo familiar, dentro do qual um acontecimento coletivo constituía um macrocosmo em relação à vida de cada um em particular e um microcosmo em relação à história secular, mediando entre indivíduo e tempo, entre mundo e sujeito (COLOMBO, 1992, p. 118)

Porém, essas memórias coletivas não se limitam ao seio familiar, elas

constituem também a história dos povos e nações. A história estudada na escola, a

ouvida nas ruas, a aprendida na prática, a testemunhada cotidianamente. São as

memórias que contam a história do povo e dos heróis.

Le Goff faz um alerta sobre o que seria a memória coletiva. Ele lembra que a

memória é um aparelho de poder que pode ser utilizado para manipular e dominar

as tradições. É válido lembrar que até mesmo as memórias estão sujeitas às

seleções históricas, como já mencionado, anteriormente:

Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória (LE GOFF, 2003, p. 470)

103

Com tanta responsabilidade associada à sua função, a memória não escapa

às falhas. Tida por muitos como uma capacidade não confiável, ela é livre e

independente. Ela pode ser manipulada exclusivamente por quem a guarda. É ao

detentor das lembranças que cabe a ação de guardar, selecionar e partilhar o que

recorda.

Nesse sentido, a memória está ligada ao esquecimento. Lembrar e esquecer

são antônimos que detêm o poder de alterar o curso de uma história. No que diz

respeito às práticas orais, são as lembranças e os esquecimentos que formam as

narrativas.

Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar. Ninguém pensaria em dirigir semelhante censura à imaginação, na medida em que esta tem como paradigma o irreal, o fictício, o possível e outros traços que podemos chamar de não posicionais. (RICOEUR, 2007, p. 40)

É fato que a memória não é confiável, os lapsos podem ser frequentes e a

chegada da idade também contribui para os seus deslizes. Quando não bem

desenvolvida a capacidade de armazenamento de informações se torna debilitada

ocasionando a perda progressiva de memória. Tais possibilidades põem em dúvida

a exatidão dos eventos narradas a partir da memória.

Em Texaco, o narrador cita a todo tempo o papel que a memória tem em seu

conto. Ela não apenas fala sobre o assunto, mas também se preocupa em destacá-

lo, pois sabe que a memória não é confiável e tem receio de omitir situações ou não

ser exato em alguns momentos.

Minha memória já não era tão boa para se lembrar de ontem. Em compensação, passava o tempo a vasculhar os fundos de minha vida, a remexer nos restos de recordações perdidas, cuja passagem imprevista infligia-me o olho móvel dos ratos presos numa rede (CHAMOISEAU, 1993, p. 328).

Quando a memória, por alguma razão, falha, surgem as lacunas chamadas

de esquecimento, “buracos-negros” que podem atormentar um narrador mais

preocupado em expressar de forma “exata” uma história. Jerusa Pires, no prefácio

do livro Tradição e Esquecimento, escrito por Paul Zumthor, fala sobre o assunto:

104

[...] de que o esquecimento tem a função simbólica que faz dele o momento crucial para re-encarnações e escatologias. Ele constata que a vontade de esquecimento se identifica com uma realização frágil da experiência pessoal, a fim de que renasça, no seio da linguagem, uma vida mais assegurada. Lapso, hiato, fratura – formam uma espécie de morte momentânea, ritualizada, que dariam lugar ao fluxo da vida. (ZUMTHOR, 1997, p. 7)

Segundo Zumthor (1997), tanto o esquecimento quanto a lembrança são

importantes para a memória. Através dele é possível realizar a seleção natural de

quais fatos devem ficar guardados na memória para serem recontados na

posteridade. É evidente que todo contar envolve uma seleção, ao narrar uma

história, por mais banal que seja, quem a conta escolhe as melhores palavras, as

cenas, os personagens, para que a sua narrativa alcance o objetivo desejado.

Quando se fala em melhores não é no sentido do “bom”, mas na escolha dos

acontecimentos mais apropriados para aquele que conta, pois a história a ser

contada pode ser boa ou má. Os argumentos utilizados também. O que fará a

diferença é o uso que o narrador fará desses elementos para compor o seu conto.

O esquecimento constitui, portanto, uma seleção natural que o homem

possui. Zumthor afirma que “a função do esquecimento se manifesta, nessas

tradições, a dois níveis que a ação memorial comporta, enquanto modalidade de

conservação de dados e lugar de tensões criadoras” (1997, p. 19). Quando o

narrador esquece, ele está selecionando o que deve ser mantido em sua memória

do que deve ser apagado. Nesse processo de conservação e apagamento surgem

as tensões criadoras da qual Zumthor fala.

Ao apagar o que aparentemente não convém ser guardado, o contador libera

espaço para a criação de novas memórias que ele molda segundo suas intenções.

Vale ressaltar que no caso do contador, diferentemente do historiador, a memória e

o imaginário vivem em relação íntima, muitas vezes confundindo-se. O que não

pode ser lembrado, para um contador, facilmente é criado. As lacunas das memórias

são preenchidas com novas versões para a história.

Nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando uma parte do que elas acumularam de experiência, no dia-a-dia. A seleção drena assim, duplamente, o que ela criva. Ela desconecta, corta o contato imediato que temos com nossa história no momento que a vivemos. Ela nos afasta daí um pouco, permitindo que se crie uma perspectiva (mesmo

105

míope) ao tempo em que se instaura uma espécie de repouso paradoxal. Suspende, do real empírico, o efeito hic et nunc, se não destaca daí o ego. Mas, também na multiplicidade do que seria urgente talvez registrar na memória coletiva, ela recupera ou determina o que, do vivido, foi, é, e tem chances de permanecer funcional. (ZUMTHOR, 1997, p. 15)

Um dos critérios de seleção da memória é a funcionalidade. Como ela está

associada ao coletivo o seu papel é verificar, ainda que inconscientemente, qual a

importância das informações a serem conservadas para o grupo e para a

posteridade. Os detalhes que não alteram o sentido podem ser esquecidos ou

substituídos por novas informações sem, no entanto, alterar o sentido do que está

sendo narrado.

O esquecimento também contribui para a reformulação da história contada.

Ao não lembrar dos mesmos detalhes, um novo cenário é criado, novos elementos

são acrescidos, outros retirados. Há uma liberdade na oralidade que só é possível

graças ao esquecimento.

Uma narrativa, por natureza móvel, nunca é recontada duas vezes da mesma

maneira. Tanto pela performance do narrador que nunca se repetirá; quanto pelo

ouvinte que está vivenciando um novo momento; quanto pelo espaço-tempo que não

será mais o mesmo. Essa mobilidade permitirá também ao contador uma liberdade

de recriação de sua narrativa. O teor do conto pode se manter o mesmo, mas a sua

estrutura e características são outras.

As informações chegam através das palavras que são ouvidas e registradas.

Essas palavras adentram a memória de quem as ouve e povoam o mundo

fantástico, pois ouvir uma história é revivê-la através do imaginário. Em Texaco,

Marie-Sophie relata que a mãe contava os acontecimentos que não havia vivido,

mas que ouvira:

O que ela sabia vinha das palavras ouvidas por acaso ao longo de toda a vida, palavras nascidas nos salões, proferidas nos passeios pela alameda des Soupirs, palavras percebidas durante as esperas no cais, palavras ditas pelos soldados sentinelas que andavam para lá e para cá sob as muralhas do Forte. (CHAMOISEAU, 1993, p. 158)

106

Marie-Sophie já se aproximando da velhice demonstra medo ante a

possibilidade da perda da memória. Esquecer era perder a sua história e a dos seus

ancestrais. Para vencer as consequências da idade avançada ela recorre à escrita

de suas lembranças em diários que se constituem a sua memória física.

Ela reconhece a incertezas da memória, pois as histórias que conta, ouvidas

de seu pai, são por ela também questionadas: “mas desconfio que, aqui, meu

Esternome reconstruiu um pouco as recordações para poder contrabandear suas

histórias” (CHAMOISEAU, 1993, p. 57). Ela é consciente de que o narrador pode, à

sua maneira, “contrabandear” as memórias para reescrever a sua história.

No início do romance, ao começar a sua narrativa, ela explica a Cristo que

para compreender a história de Texaco seria necessário voltar ao passado que é

revisitado através das suas memórias, mostrando o seu entendimento do que seja a

memória coletiva, uma vez que a mesma é a guardiã da história local.

Para compreender Texaco e o entusiasmo de nossos pais pela Cidade, teremos de ir bem longe na linhagem de minha própria família. Pois minha compreensão da memória coletiva é apenas minha própria memória. E esta, hoje, só é fiel se exercitada pela história de minhas velhas carnes. (CHAMOISEAU, 1993, p. 39 e 40)

Percebe-se que a memória permeia todas as relações existentes no romance.

É ela que fundamenta o fato histórico possibilitando assim a imagem de romance

histórico, é ela que inspira a criação mitológica contida nas falas de Marie-Sophie e

é a relação entre ela e o esquecimento que seleciona os fatos que devem ser

mantidos. Ela também cria a ideia de pertencimento, portanto ajuda a formar o

conceito de identidade. Desse modo a memória desempenha função essencial na

construção da narrativa de Texaco, pois, exerce todos esses papeis.

A memória é o princípio que mantêm vivas as tradições culturais de um povo.

Nesse sentido, Texaco apresenta-se como um romance memorialista que pretende

ser o registro da história de uma comunidade crioula que, por sua vez, é a própria

representação da Martinica que vive o seu processo de crioulização.

107

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Discutir questões tão amplas como a história, a ficção, o mito e a memória é,

de certa forma, uma proposta arriscada, ainda mais quando sabe-se tratar-se

apenas de considerações que indicam um estudo que ainda deve ser aprofundado.

No entanto, o objetivo maior desse trabalho dissertativo e que norteia toda a

pesquisa é a análise do romance Texaco. É o próprio romance, corpus do trabalho,

que apresenta os possíveis caminhos existentes para a sua melhor compreensão.

Rico em metáforas e constituído de várias sub-histórias que compõe a narrativa

maior, o romance poderia ter sido analisado sob outra perspectiva, mas coube aqui

uma reflexão mais ligada à constituição narrativa da obra.

Texaco, fruto do movimento da crioulidade, é o exemplo prático do que o seu

autor profere no manifesto Éloge de la Créolité. É uma obra que traz para a escrita

marcas da oralidade através do uso do crioulo; uma literatura que subverte as

estruturas da escrita canônica; que é pensada à partir do oral e o seu registro escrito

sem a perda das marcas da fala.

Além disso, identifica-se no romance a fundamentação ideológica do

movimento que prega a retomada e divulgação da cultural local estabelecendo

assim uma luta clara contra a cultura europeia imposta indiscriminadamente nos

últimos séculos e ainda hoje. Porém, não é a negação do outro que vemos

representado em Texaco, o que se observa é o desejo da convivência harmônica

entre as várias culturas, em um processo de respeito à diversidade cultural.

O autor toma de empréstimo conceitos da contemporaneidade e representa

em seu romance marcas do hibridismo e da crioulização, além de mencionar o

importante papel desempenhado pala Negritude na Martinica.

Defender uma ideia é algo que exige coragem de quem a proclama,

representar a ideia exige habilidade. Chamoiseau demonstra essa habilidade ao

fazer de Texaco um romance representativo do movimento que defende. A presença

da crioulidade é palpável nos capítulos do romance, exala-se na matriarca crioula,

filha de ex-escravos, mas que aprende os hábitos do branco e consegue viver em

delicada harmonia entre ambas as culturas.

Em alguns momentos, Texaco demonstra uma certa indiferença às questões

políticas, como se o único problema das favelas fosse a luta pelo espaço físico. No

108

entanto, esta é uma falsa apatia que é refutada diante dos protestos que são

explícitos na narrativa. A luta ideológica não surge nitidamente, mas ela se faz

presente na postura e no discurso dos personagens. Ao conquistar um espaço na

Cidade, os moradores têm a certeza de se fazerem visíveis aos outros. A população

negra que sempre esteve em segundo plano, enfim se faz presente, ainda que uma

presença resultante de muita resistência.

No decorrer da narrativa, percebem-se também os mecanismos utilizados

pelo narrador com o intuito de manter cativo o seu receptor e as consequências

desse tear, o que também foi objeto de análise desse trabalho, no qual se percebeu

a relação de troca estabelecida entre os contadores de histórias e os seus ouvintes,

em um contato contínuo que permite a construção e a re-construção constante do

texto oral.

O ouvinte não apenas é envolvido pelo que escuta, como também é

conduzido à uma outra esfera. Esse deslocamento permite ao narrador criar

mecanismos de impacto sobre o seu público. Quem narra pretende de alguma forma

levar o outro a um conflito, a um constante questionamento de suas crenças e

concepções, e a possíveis mudanças de conduta. Sob esse ponto de vista, a

narrativa nunca é inocente, ela carrega consigo grande carga de intencionalidade.

Observou-se ainda que as relações estabelecidas entre a história, o mito e a

ficção só é possível no romance graças aos personagens que compõem essa teia

narrativa fazendo uso de suas memórias. Viver na contemporaneidade tecnológica,

onde o grande número de eletrônicos reduz a cada dia a função usual da memória

faz refletir sobre o papel que esta ainda desempenha na sociedade atual.

É também preocupante o número cada vez menor de contadores como Marie-

Sophie, que guardam a memória coletiva da sua comunidade narrada através da

história da sua própria família. O próprio Chamoiseau, o “marcador de palavras”,

descreve a sua tristeza ao perceber que a morte daquela mulher ocasionaria o

esquecimento da história daquela comunidade, da própria Martinica. Não a história

oficial, contada nos livros de História, mas a “real”, vivenciada pelo povo.

As lembranças fazem parte do acervo pessoal de cada indivíduo que no

grupo compõe a memória coletiva de um povo. É fato que ela está sujeita às lacunas

provocadas pelo esquecimento, mas esse sujeitamento não a prejudica, ao

contrário, permite às memórias certa liberdade de reconstituir-se a cada nova

narrativa.

109

São as memórias que contam a história e também são elas que criam os

mitos. Não importa se factual ou ficcional, o contar e/ ou ouvir fascina independente

dos elementos que constituem o conto, sejam eles reais ou criados.

Narrar a história, ficcionar a vida, ou vice-versa, ficcionar a história e narrar a

vida. Aqui não importa o sentido da análise, o que de fato resiste são os elementos

narrativos que permanecem vivos através da memória, não importando serem eles

históricos ou míticos.

Por fim, encerro com a última cena do romance Texaco. Quando o Marcador

de Palavras conclui o seu escrito nos lembrando da necessidade de registrarmos a

nossa herança oral, pois, quando um contador morre ele leva consigo o seu legado.

Narrar é, portanto, uma forma de driblar a morte e manter vivas as nossas

memórias.

Eu me perdia ali dentro, encantado por sua palavra e sua deliciosa pessoa que eu passava horas a contemplar. Uma cabra de luta e coragem, imperial, cujas rugas brilhavam de força. Eu olhava seus olhos embaçados pelas lágrimas, lampejos que se perdiam. Olhava sua pele que a velhice secava, e sua voz que vinha de tão longe, e sentia-me fraco, indigno de tudo aquilo, inapto a transmitir tais riquezas. Quando ela se fosse, levaria sua memória, como a levou Solibo Magnífico, e eu nada podia fazer, nada, nada, nada, a não ser fazê-la falar, organizar o que me contava. (...) então, só podia escutá-la, escutá-la, escutá-la, sentindo uma perturbadora embriaguez ao desligar meu gravador a fim de melhor me perder dentro dela, e viver no mais profundo os cantos de sua palavra, até aquele dia de novembro em que a encontrei morta de velhice – seu pescador de tubarão enforcado a seu lado. Senti-me então arrasado sob o peso da exigência que se me impunha. Pobre Marcador de Palavras... você nada sabe do que é preciso saber para construir/ conservar essa catedral que a morte rachou... (CHAMOISEAU, 2993, p. 344)

110

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118

ANEXO – PATRICK CHAMOISEAU: VIDA E OBRA

Nasceu em 03 de Dezembro de 1953, em Fort-de-France, Martinica.

Consagrado escritor francês é conhecido por seus romances, é também autor de

contos, ensaios, novelas e roteiros para o teatro e o cinema.

Formou-se em Direito e Economia Social, na França, e depois de concluído os

estudos voltou à Martinica, onde atua até hoje.

Inspirado por seu amigo, o escritor e poeta ÉdouardGlissant, nasceu o interesse

pela etnografia, principalmente pela cultura crioula e as tradições locais em via de

desaparecimento.

Em 1986 publicou o seu primeiro romance, Chronique des sept misères, que narra o

dia-a-dia dos djobeurs, um tipo de faz-tudo que percorre as feiras ajudando a

carregar as mercadorias e cuja presença na Martinica se faz cada vez mais rara.

Dois anos mais tarde, em 1988 publicouSolibo Magnifique, obra sobre a busca da

identidade do povo da Martinica através do retorno às antigas práticas sociais.

Teorico do movimento da crioulidade, em 1989, junto comJean Bernabé eRaphaël

Confiant publica o livro Éloge de la Créolité, um manifesto em prol da cultura crioula.

No mesmo ano, em1989, publicouLettres Créoles também com Raphaël Confiant,

um livro sobre a história da literatura na Martinica.

A consagração de Chamoiseau aconteceuem 1992, quando ganhou o Prêmio

Goncourt com seu romanceTexaco, obra que narra a história da Martinica através de

três gerações de uma família.

Sua obra destaca os principais traços da cultura na Martinica.Chamoiseau acredita

que a cultura das Antilhas foi construída com base na oralidade e, portanto faz uso

dessa característica constantemente em suas obras, onde se encontra a presença

de diálogos e outros termos em crioulo. Sua obra tenta traduzir essa cultura através

da oralitura.

119

PRINCIPAIS OBRAS:

Romances e contos:

Chronique des sept misères, romance, 1986

Solibo magnifique, romance, 1988

Texaco, romance, 1992, Prêmio Goncourt

Une Enfance créole 1, Antan d'enfance, autobiografia, 1993, Prêmio Carbet

Une enfance créole 2, Chemin d'école, autobiografia, 1994

L'Esclave vieil homme et le molosse, contos, 1997

Biblique des derniers gestes, romance, 2002, Prêmio Especial do Júri RFO

À bout d'enfance, autobiografia, 2005

Un dimanche au cachot, romance, 2007

Les neuf consciences du malfini, romance, 2009.

Teatro:

Manman Dlo contre la fée Carabosse, théâtre-conte. (texto e ilustrações).

Paris: EditionsCaribéennes, 1982.

Ensaios:

Eloge de la créolité (com Jean Bernabé e Raphaël Confiant). Paris: Gallimard,

1989.

Lettres créoles. Tracées antillaises et continentales de la littérature: Haiti,

Guadeloupe, Martinique, Guyane: 1635-1975. (com RaphaëlConfiant) Paris:

Hatier, 1991.

Martinique. (com V. Renaudeau). Paris: Richer, 1994.

Ecrire en pays dominé. Paris: Gallimard, 1997.

Quand les murs tombent. L'identité nationale hors-la-loi ? (com Édouard

Glissant). Paris: Galaade, 2007.