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MAM 68: Cultura & Loucura 02 | Poesia - Marcelo Montenegro 14 | Pôster 16 | Entrevista - Guilherme Zarvos 18 | Bixiga 70: Deixa a gira girá 26 | Vozes&Visões - A resistência da poesia brasileira 30 | Caronte - por Rafael Campos Rocha 32

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Caro leitor, como as vagas que se chocam com nosso casco, NAU

faz nesse número o movimento de refluir para o futuro avanço.

Voltamos 45 anos no tempo, para um momento expressivo da

nossa história, 1968, quando no Museu de Arte Moderna do Rio de

Janeiro uma trupe de jovens artistas se uniu para pensar a Cultura e a

Loucura na arte brasileira. Estavam lá Hélio Oiticica, Rogério Duarte,

Lygia Pape, Caetano Veloso, Frederico Moraes, Nuno Veloso e Sérgio

Lemos.

O entrevistado é Guilherme Zarvos. Poeta, agitador cultural, cria-

dor do CEP 20.000, o principal evento de poesia do Brasil, Zarvos é

uma figura central para a cultura carioca. O poster central é um po-

ema de Marcelo Montenegro, “Buquê de presságios”, ilustrado pelo

grande quadrinista Carcarah.

A revista traz ainda Bixiga 70, um dos mais interessantes expoentes

da cena musical atual, com suas experiências instrumentais baseadas

na riqueza rítmica do afrobeat e de outras raízes da música negra.

Por fim, uma coluna de Renato Rezende e a chance de continu-

armos nos deliciando com Caronte, a barqueira do amor, do grande

Rafael Campos Rocha.

Boa navegação!

Coordenação geral

Didi Rezende

Editores

Afonso Luz

Sergio Cohn

Editor de arte

Tiago Gonçalves

Foto da capa

Edu Monteiro

Produção

Tay Lopes

Revisão

Evelyn Rocha

Barbara Ribeiro

Tiragem

20 mil exemplares

Contato

[email protected]

Número 4 | 2013

ISSN: 2318-1192

SuMáRIo

MAM 68: Cultura & Loucura 02

Poesia | Marcelo Montenegro 14

Pôster 16

Entrevista | Guilherme Zarvos 18

Bixiga 70: Deixa a gira girá 26

Vozes&Visões | A resistência da poesia brasileira 30

Caronte | por Rafael Campos Rocha 32

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Em 10 de junho de 1968, quando o Museu

de Arte Moderna do Rio de Janeiro sediou o

debate intitulado “Amostragem da Cultura/

Loucura Brasileira”, era o lugar e a hora certa.

O Brasil estava vivendo a efervescência tro-

picalista, que colocava em pauta muitas das

questões tratadas naquela noite. E o MAM se

tornou um dos espaços centrais de encontro

dos artistas e jovens que estavam criando

uma renovação da cultura brasileira. Era lá o

cenário principal carioca para as conversas

culturais, seja na sua cantina, na cinemateca,

ou nos seus jardins, durante os “Domingos da

Criação”, os eventos livres organizados por

Frederico Morais, um curador independente

que coordenava os cursos do museu.

Foi Frederico Morais, aliás, quem realizou

o convite para Hélio Oiticica e Rogério Duarte

organizarem o evento, que ficou conhecido

como Cultura e Loucura. Um mês antes, no

dia 23 de maio, o MAM já havia sediado o de-

bate “Critério para o julgamento das obras de

arte contemporâneas”, em que a participação

de Hélio foi feita através de um texto cujo teor

era a provocativa constatação da crise dos va-

lores tradicionais e acadêmicos como critério

de julgamento nas artes de seu tempo. Esses

dois debates selaram uma parceria de três

meses entre Oiticica e Rogério Duarte, que foi

iniciada em maio e teve seu auge no dia 6 de

julho de 1968, com o início do evento “Arte no

Aterro – um mês de arte pública”, realizado no

Parque do Flamengo, onde eles apresentaram

o happening “Apocalipopotese”.

“Cultura e Loucura” reuniu alguns dos

principais nomes da vanguarda da época,

para discutir o tema de forma inteiramente

aberta. Estavam lá músicos, artistas, soció-

logos. Mas algumas ausências foram senti-

das: Abelardo Barbosa, o Chacrinha, estava

convidado e não pode comparecer. O mesmo

ocorreu com Fernando Gabeira e Glauber Ro-

cha. Em 1973, o artista visual Antonio Manuel

criou um Super-8 utilizando trechos do áudio

do evento, sobrepostos em imagens filmadas

posteriormente de alguns dos participantes.

Mas foi apenas quase quarenta anos depois

que as fitas completas reapareceram, permi-

tindo um registro mais claro do que foi o de-

bate. A transcrição de trechos delas permite

a compreensão da riqueza do pensamento

sobre o tema de então.

Frederico Morais, o mediador, foi quem

realizou a apresentação:

“Bom, nesta mesa, estão presentes, da

direita para a esquerda: Rogério Duarte, que

juntamente com Hélio Oiticica, é o organi-

zador do debate. Ao lado, nós temos Sérgio

Lemos, que é um brilhante sociólogo da nova

geração, professor de Sociologia do Conheci-

mento e Sociologia da Vida Cotidiana, e que

desde então tem procurado estudar, entre ou-

tras questões, o comportamento sexual e os

mitos do consumo de massa. Em seguida, Ly-

gia Pape, artista plástica, participante de um

dos mais importantes movimentos da arte

brasileira, que foi o neoconcretismo. Em se-

guida, Hélio Oiticica, também ex-integrante

do neoconcretismo, e que, além de artista de

vanguarda da maior importância, é também

um teórico e um escritor de muito talento.

Em seguida, Caetano Veloso, que não é pre-

ciso apresentação, porque vem revolucionan-

do a música popular no Brasil. E, finalmente,

Nuno Veloso, provavelmente o menos conhe-

cido aqui, neste momento. Mas Nuno Veloso,

que foi o ex-presidente da ala de composito-

res da Mangueira, e fez um curso de doutora-

do livre, na Alemanha, tendo como professor

Marcuse, entre outros, exatamente os filóso-

fos aí da moda, né, os filósofos pop. É assis-

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tente também da cadeira de Filosofia Alemã,

na Universidade Livre, no Instituto da Euro-

pa Oriental. E foi um dos professores de Rudi

Dutschke – isso é um fato muito importante.

Bem, feita a apresentação, nós consideramos

agora aberto o debate, e estamos ainda aguar-

dando a presença de Chacrinha, que deverá

sentar ao meu lado. Glauber Rocha e Fernan-

do Gabeira não puderam comparecer”.

O primeiro a falar foi Hélio Oiticica. Em

1968, Oiticica era um artista visual já reconhe-

cido, que estava seguindo com a sua proposta

experimental e já havia criado Parangolés e

Penetráveis, inclusive o “Tropicália” que no-

mearia o movimento. A sua fala, como sem-

pre provocativa, questiona as fronteiras entre

alta e baixa cultura, num discurso que mostra

a clara identintificação com os tropicalistas:

“O conceito de gênio foi uma coisa cria-

da pela classe dominante, na Renascença; é

uma coisa que pra mim não existe mais. Eu

já cansei de dizer, por exemplo: pra mim, a

Mirinha da Mangueira, que mal sabe ler, diz

coisas muito mais importantes do que qual-

quer gênio desses da humanidade. Hoje em

dia, a tendência é acabar com tudo isso. Esse

conceito de gênio não existe mais. É uma coi-

sa que Lygia Clark define como a precarieda-

de do momento. Quer dizer, cada momento

é que é a criação. Agora, eu acho que o Cha-

crinha, dentro desse negócio, de momento da

criação, ele é profundamente criador, porque

tudo que ele faz é uma coisa criadora, ele não

está lá pra desempenhar um papel. Eu sei que

ele é consumo também, sei que ele pode ser

um instrumento de domínio da massa, ago-

ra é também uma coisa criadora. Porque nós

vivemos numa sociedade capitalista, todas as

coisas boas e ruins são instrumentos de do-

mínio, de modo que... Por exemplo, Danny

Kaye é um gênio fantástico, um grande co-

mediante, mas também era um instrumen-

to de domínio da cultura americana, para se

impor no mundo. Uma coisa não pode ser

vista separada da outra. Já a loucura seria o

que não é feito. Por exemplo, uma pessoa tem

um ataque, arranca os cabelos, isso daí é uma

loucura, mas é uma loucura que se manifesta.

Então, é um ato criador. É uma coisa que está

se manifestando. Agora, a loucura morta mes-

mo, como uma coisa morta, é o que você não

fez, e não manifestou. O que fica na subjeti-

vidade e se volta para ela mesma. Isso é que

seria a loucura mesmo. Cientificamente ex-

plicada, seria isso. Ao passo que todas as ou-

tras coisas no mundo são coisas apreensíveis,

e não são coisas loucas. Então, é isso”.

O próximo a falar foi Rogério Duarte. Um

dos mais importantes designers gráficos bra-

sileiros, foi o criador do famoso cartaz do

filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, além

de capas de alguns dos discos tropicalistas,

como os de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em

1965, publicou na Revista Civilização Brasi-

leira o texto seminal “Notas sobre o desenho

industrial”. Em 1968, estava morando na casa

de Oiticica no Jardim Botânico. Foi lá que os

dois atuaram no filme experimental Câncer,

de Glauber Rocha. É sobre o fotógrafo Carlos

Saldanha, que participou dessa filmagem,

que Rogério fala na sua exposição. Nela, ele

também cita a crise que sofreu após a prisão e

a tortura ocorrida em abril daquele ano, após

a Passeata dos Cem Mil:

“Eu gostaria que o Carlos Saldanha vies-

se aqui falar. Quem é Saldanha? Saldanha é

uma pessoa que eu conheço há muitos anos,

e que depois viajou, passei quatro anos sem

ver, e agora ele aparece, e conta uma porção

de coisas novas. Eu comecei a me interessar

mais fortemente por Saldanha quando o vi

no trabalho, fazendo um filme com o Glau-

ber Rocha, do qual eu participei como ator,

com o Hélio Oiticica, chamado “Câncer”...

Então, quando eu o vi no trabalho, eu me sur-

preendi com um tipo de integração, que me

parecia quase impossível, entre uma pessoa

e uma ferramenta, no caso, uma máquina

moderníssima, que é uma câmera de cinema,

de som direto. Depois eu vi, junto com o seu

instrumento de trabalho, um caderno de ano-

tações sobre revelação de filme, sobre curvas,

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latitude, sobre problemas de som, de eletrô-

nica. Eu suponho que seja isso, porque eu não

entendi direito, era um tipo de especulação

de cientistas, que eu não me sentia assim, à

altura de acompanhar, mas eu pude ver que

aquilo era misturado com uma série de outros

tipos de trabalhos, como os trabalhos de Pas-

cal, onde ele questionava uma série de coisas

fundamentais, ou mesmo onde ele funda-

mentava, onde ele nomeava, onde ele tomava

a palavra. Eu quero fazer disso a minha res-

posta, pelo seguinte, me lembrando de uma

antiga dificuldade de acompanhar o que o

Saldanha sempre chamou de a velocidade

dele, e vendo que dessa vez eu estava mais

ágil para esse acompanhamento, de repente

eu realmente perdi, a partir disso, a noção

da diferença entre o processo de criação e a

loucura. Porque eu perdi a medida, realmente

uma série de medidas. Eu enlouqueci, fiquei

embriagado, e me perdi. E eu não sei qual é o

meu processo, se eu sou sujeito ou objeto da

minha loucura, por exemplo. Eu não sei se a

minha obra é criada por mim ou pelos outros.

Eu não sei se existe alguma coisa que eu pu-

desse chamar de obra, entende? A dificuldade

se estende, arrodeia o plano do conceitual,

porque nos trai na própria matéria do concei-

to. Eu não sei se isso que eu estou dizendo faz

sentido, e também não sei qual o sentido que

faz o próprio sentido. E, de repente, as pala-

vras começaram a se comer umas às outras,

como num processo de leucemia...”

Em seguida, a primeira convidada pelos

organizadores, a artista visual Lygia Pape. Ela

havia participado junto com Oiticica do neo-

concretismo, e seguia uma trajetória experi-

mental que fazia com que, embora fosse cerca

de dez anos mais velha que os outros partici-

pantes da mesa, estivesse em plena sintonia

com eles:

“Bom, eu vou falar sobre Marcuse, mas

isso não significa que eu seja especialista em

Marcuse. Qualquer pergunta que vocês quei-

ram fazer sobre ele depois, eu espero que se

dirijam ao Nuno, que é especialista nisso. É

Hélio Oiticica no penetrável “Tropicália”.

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que há um trecho num livro dele, que me pa-

receu uma resposta ao problema da loucura.

E então, eu fiz uma pequena síntese, que eu

vou ler aqui pra vocês. Marcuse nos fala que

o homem animal converte-se em ser humano

através de uma transformação de sua natu-

reza. Isto é, do princípio de prazer, o homem

passa ao princípio de realidade, onde esse ho-

mem desenvolve a função da razão. Torna-se

um sujeito consciente, e que parte para uma

racionalidade que lhe é imposta de fora para

dentro, e, logicamente, condicionado por essa

cultura. Mas é um modo de atividade mental

que está separado ou isolado dessa organiza-

ção mental nova, a fantasia, que está prote-

gida das alterações culturais. Essa fantasia,

que eu chamaria loucura, confunde-se com o

sentido de liberdade, e é o elemento deflagra-

dor da criação, da invenção. Toda boa cultura

estabelece padrões sociais, morais, políticos,

artísticos etc. Eles são a própria defesa contra

qualquer mudança na sua estrutura. O ho-

mem enfia-se dentro de uma forma segura,

fechada e castradora, mas que ele conhece. A

loucura, fantasia e criação propõem estrutu-

ras abertas, em que o homem é levado a re-

fletir e desmontar seus critérios de razão, e a

ter uma visão dinâmica das coisas. Desconfio

sempre do sucesso de qualquer... Bom, isso

aqui agora já é a minha opinião. Desconfio

sempre do sucesso de qualquer coisa aceita

sem reservas, pois algo está errado: ou não foi

compreendido ou é uma forma acomodada a

essa cultura. Toda agressão supõe uma trans-

formação. É necessário corromper os valores,

e para fazer isto, temos coisas novas, que dão

estruturas novas, que dão uma linguagem

nova, que é a invenção. A criação é uma totali-

dade, a loucura como ato total. Relembrando:

criação, loucura e fantasia são os elementos

deflagradores de qualquer invenção. A razão

vem depois, como elemento conscientizador,

e como degrau para uma nova criação, fanta-

sia, loucura. É um ciclo infinito, é a própria

vida. É a loucura que salva o homem. Eu fiz

uma colocação sucinta assim, mas a loucura

pra mim significa uma abertura, uma liberda-

Rogério Duarte em cena do filme “Câncer”, de Glauber Rocha.

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de, no sentido de criação e de invenção, isso

dentro do meu trabalho, ou dentro de qual-

quer outra atividade humana”.

Caetano Veloso, que havia então lançado

seu primeiro disco solo, faz um testemunho

do seu pensamento na época:

“Eu queria dizer que o meu pensamen-

to flutua. Eu só posso dar um testemunho,

fazer uma espécie de confissão sobre o que

aconteceu com o meu trabalho. Isso talvez

me aproxime realmente de muito do que foi

dito nesta mesa. Por exemplo, quando eu fa-

lei que o Chacrinha era mais cultura do que o

Flávio Cavalcante, isso implicava necessaria-

mente numa atitude. Eu acho que inclusive

alguém, logo depois, disse: ‘Mesmo porque

gostar de Chacrinha agora já é moda’. Eu não

tenho muito medo da moda, mas aconte-

ce que ficou estranho gostar de Chacrinha,

pode ser uma prisão mais fechada do que

negar Chacrinha, e apagar, e não considerá-

-lo como representante da cultura brasilei-

ra. Entretanto, a resposta do Hélio Oiticica,

quando disse que o Flávio Cavalcante é fas-

cista e o Chacrinha não é fascista, realmen-

te me agradou na hora em que eu ouvi. Eu

não tenho muita consciência sobre isso, não

é uma consciência imbatível, eu não quero

impor o meu pensamento, mas eu gostaria

de dizer que realmente, enquanto o trabalho

explícito do Sr. Flávio Cavalcante é policiar

a criação brasileira, que se dirige ao consu-

mo de massas, o Chacrinha é um elemento

criador dessa própria arte de consumo, e o

mais genial e criativo de todos. Realmente,

ele me oferece elementos para o enriqueci-

mento da minha criação, mas eu não gosta-

ria que as pessoas não viessem a pensar no

Chacrinha como o maior pensador sobre a

realidade brasileira, mas, sim, que reconhe-

cessem, nessa criação brutal que vai através

da televisão de um país subdesenvolvido, al-

guns elementos de brutalidade mesmo, que

me podem ser muito caros. E que a própria

inspiração, nesse sentido, já denota um mo-

vimento ao qual eu quero... Como se diz?...

Torquato Neto durante o evento Apocalipopótese (1968).

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me engajar, sei lá, quer dizer, a um movi-

mento de enlouquecimento da cultura na-

cional, no sentido de que seja uma intuição

brutal, inicial, como a necessidade de uma

nova razão”.

O sociólogo Sérgio Lemos falou em segui-

da. Na época, Lemos era conselheiro do jor-

nal-escola O Sol, uma aventura editorial im-

portante, capitaneada pelo poeta Reynaldo

Jardim. E portanto estava lidando com algu-

mas das grandes questões da juventude:

“Qual é a loucura que terá importância?

Será a loucura de não prendermos as nossas

limitações da aparência. Fundamentalmen-

te, é isso. A conveniência nossa, da peque-

na burguesia, que se choca com o Programa

do Chacrinha, deve ser derrubada, porque

ela nos impede também de fazermos coisas

inconvenientes. A nossa opção contra o sis-

tema é prejudicada, é atrasada, pelo nosso

culto à aparência, o nosso culto à conveniên-

cia. E quando fazemos, será sempre no nível

da conveniência, como conveniência, como

aparência, para aparentar negar o sistema.

A negação real, a revolucionária, ela se torna

impossibilitada a nós, pequenos burgueses,

por esse culto à aparência. Quebrar a nossa

aparência, nos humilhar, não é ruim, é bom.

A alienação, a separação entre indivíduo e

sociedade, evidentemente que não é irredutí-

vel, mas o que nos interessa é valorizar a lou-

cura enquanto protesto, enquanto negação,

formulação de novas estruturas. E a luta pela

idealização de novas estruturas exige uma

descrença, uma desmoralização das estru-

turas vigentes, através daqueles laços que os

prendem a ela, daqueles controles – no caso

especificamente do pequeno burguês, a apa-

rência. Vamos dizer que eu não teria coragem

de dizer estas coisas, se não tivesse renun-

ciado, durante alguns acessos de loucura há

anos atrás, da aparência do homem certinho,

direitinho. Eu fui congregado mariano, inclu-

sive, eu vivia do culto da aparência, eu seria

incapaz de pensar que realmente pudesse

haver o que na época eu chamara injustiça

Caetano Veloso vestindo um Parangolé.

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tação dos escravos em 1888 aqui no Brasil. E

o primeiro núcleo de escravos livres aqui, no

Rio de Janeiro, foi justamente de Mangueira,

onde hoje em dia chama-se Morro do Telha-

do – no tempo, Morro Pindura Saia, porque as

escravas lavavam suas roupas e penduravam

no alto do morro de Mangueira. É também a

escola mais antiga. Vai fazer 40 anos, ano que

vem. Essa ideia toda, que hoje se chama de

burguesia no samba, essa coisa toda, nasceu

de um erro de um governo: por volta de 1937,

38, se criou uma coisa chamada Estado Novo,

e esse Estado Novo é que exigia, obrigava a es-

cola de samba a manter um enredo que falas-

se de qualquer ato patriótico, que depois foi

modificado para regional ou folclórico, mas

era só ato patriótico. Eu, pessoalmente, sou

contra isso, mas a ideia... Quando eu passei a

morar nos morros, eu consegui mudar esses

itens, para levar também o artesanato a essa

ideia, quer dizer, contar esse ponto não só

para a dança, e para o samba, e a música, mas

também para o bordado das bandeiras, o bor-

dado das roupas, que houvesse oportunidade

para todo mundo ter a sua expressão cultural,

no morro. Agora, se depois disso se desvir-

tuou, se hoje em dia existem escolas que em-

pregam profissionais para o seu carnaval, isso

evidentemente não é culpa do morro, e muito

menos da Mangueira.

[Auditório] Você veio aqui falar sobre Mar-

cuse, e agora está falando da Mangueira?

[Frederico] Um momentinho. O debate

é sobre a amostragem da cultura brasileira;

samba e Mangueira fazem parte da cultura

brasileira.

[Nuno] Quem tem questões sobre Marcu-

se, pode perguntar. Ninguém? Então, posso

continuar.

[Hélio] Por que é que Marcuse é bom, e a

Mangueira não é? Ah, é muito melhor.

[Nuno] Acabou”.

Hélio Oiticica escreveu na época um texto

sobre o evento, que reproduzimos ao lado.

social no Brasil. Porque isso me faria trair

aquela aparência do homem certinho, do

bom mocinho, direitinho, bonitinho. Houve

choques,vamos dizer, me chocaram, que de

algum modo, me humilharam muitas vezes

na vida. Eu tive que desistir da aparência

pequeno burguesa, e que, realmente, aquilo

podia não funcionar, deixou de ser sagrado.

É claro que está sempre a cultura de massa,

está sempre o sistema reabsorvendo todas as

suas negações. Cada vez que for reabsorvido,

passamos pra outra. Creio, nesse sentido, que

as políticas são um pouco isso”.

Por fim, falou Nuno Veloso. Figura curiosa,

única, Nuno era parceiro de Cartola na Man-

gueira, e foi, conforme dito por Frederico,

assistente de Herbert Marcuse na Alemanha.

Transitava sem dificuldades por esses dois

universos, para encantamento de seus ami-

gos, como Oiticica. Em entrevista realizada

para Maurício Barros de Castro, Nuno se lem-

bra um pouco sobre a época:

“Eu me perguntava como ia pra lá, então

entrei para a marinha mercante, fui pra In-

glaterra, fiz o tal Mestrado em Filosofia da

Arte, aí voltei e apareceu a oportunidade de

fazer Doutorado na Alemanha. Eu tive que

aprender outra língua e lá fui eu para o dou-

torado. Foi lá que eu fui assistente do Her-

bert Marcuse. Eu só podia fazer o doutorado

e voltar ao Brasil, a promessa era essa, mas

na hora de vir embora, me convidaram pra

dar aula em alemão, na Alemanha, e ser as-

sistente do Marcuse, que foi embora pra Ca-

lifórnia e eu fiquei como professor titular...

Cartola dava força, me escrevia toda semana,

no carnaval me mandava fantasia da ala dos

compositores, que eu fazia parte, e eu chora-

va como um desesperado, era um débil men-

tal, pior que ainda sou, qualquer coisa eu

choro. Eu perdi meus pais muito cedo, mas

tive sorte porque, de repente, todos eram

meus pais e todas eram minhas mães, às ve-

zes não sabia como, mas acordava na casa

de um, ficava amigo do outro... Lembro que

quando voltei da Alemanha, já Doutor, e eu

não tinha pra onde ir, e o Nelson Cavaquinho

foi me esperar. Nelson Cavaquinho, o Carto-

la e o Elton Medeiros, que ficou muito meu

amigo... Aí eu disse: ‘Eu não tenho pra onde

ir’, e o Nelson respondeu: ‘Vai lá pra casa’; eu

respondi: ‘Não quero te atrapalhar, Nelson’,;

e ele, ‘O último lugar que eu vou é a minha

casa, você pode ir lá, ficar à vontade’”.

A sua fala no evento “Cultura e Loucura”

causou fortes reações na plateia, o que mos-

tra o quanto as ideias defendidas pelos pales-

trantes, de encontro entre cultura erudita e

popular, eram avançadas para a época. Como

declarou Rogério Duarte, num depoimento

de 1987, relembrando o evento: “Aquilo foi

muito combatido pela esquerda tradicional,

colonizada. Nós não cabíamos nessa gaveta

e fomos rejeitados por isso, por buscar uma

totalidade num momento em que tudo estava

compartimentalizado. O tropicalismo, e sua

força, significa isso. Ele não é um movimento,

mas um momento de um movimento que já

começa muito antes”.

Vamos então para a fala de Nuno Veloso,

que fecha a noite em grande estilo:

“Eu tenho impressão que a gente pode en-

contrar fonte de encontros e desencontros em

qualquer manifestação da vida. Isso não quer

dizer que seja uma novidade, que esteja bus-

cando qualquer coisa de nova, quando se faz

uma nova arte. Acho também que a intenção

do Hélio, quando foi procurar os morros, não

foi criar o Parangolé, eu acho que a vivência

nos morros é que levou ele a fazer essa arte,

que fala muito bem da descoberta do lixo das

favelas. Essa arte dele também é social, ainda

que muita gente não entenda assim. E depois,

eu acredito realmente que haja um certo exa-

gero nele, nesse amor pela Mangueira. Mas

eu acho que, na parte histórica da coisa, de

toda a criação da arte eminentemente po-

pular, no sentido de samba, e de bordados, e

essas coisas todas, começaram com a liber-

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A arte da poesia falada no Brasil ainda é coisa para poucos. Os eventos de poesia se multipli-

cam, poetas recitam seus versos em profusão, mas são raros os que criam uma dicção própria,

capaz de cativar o público e levá-lo a outros lugares expressivos. Se você perguntar a Chacal, um

mestre da poesia falada desde os anos 1970, quando junto com o grupo Nuvem Cigana criou as

Artimanhas, quem é capaz de fazer isso no Brasil de hoje, ele citará certamente Marcelo Mon-

tenegro como um dos exemplos. Marcelo, nascido em São Caetano do Sul, em 1971, é autor dos

livros de poesia Orfanato portátil (2003) e Garagem lírica (2012), e tem circulado por aí com

o incrível espetáculo Tranqueiras líricas, onde funde poesia com rock’n’roll, jazz e blues. Sua

poesia, lírica e coloquial, se encaixa perfeitamente com o espetáculo, conquistando entusiastas

tanto entre leitores assíduos de poesia quanto o público em geral. Como diz o poeta e críti-

co Maurício Arruda Mendonça, “a sensibilidade de Montenegro é a do carinho pelos detalhes,

porque ele busca o gosto de existir na celebração do momento presente, porque deseja captar

fenômenos efêmeros e registrá-los velozmente antes que se desmanchem e sejam velados pelo

esquecimento”. [Sergio Cohn]

Marcelo Montenegro Poesia

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Co

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Marcelo, você estreou em livro nos anos

1990, mas diz que encontrou sua voz apenas

na década seguinte, com o segundo livro.

Fale um pouco da sua trajetória como poeta

e das suas referências.

Nos anos 90, eu e um amigo, Marcelo Ca-

panema, fazíamos um fanzine, o Ruptura,

que circulou de forma muito bacana, baita

experiência. Inclusive, antes mesmo des-

te meu primeiro livro enjeitado (De soslaio,

1997), eu e o Capanema editamos em parce-

ria umas brincadeiras concretistas – ele me

apresentou aos concretos e, uau, foi um cho-

que (já o De soslaio foi feito sob o choque dos

surrealistas, hehe). Obviamente foi um cami-

nho necessário para eu chegar a tal da minha

voz, mas, numa versão ideal, não deveria ir

parar em livro. O lance é que eu era movido

pelo espírito de fanzine, tinha pressa. Não

tinha lá muita noção de nada. Por exemplo.

Estou lendo uma coletânea de entrevistas do

Allen Ginsberg e ele diz que tudo se trata de

um comprometimento profundo, em todos

os níveis, com a literatura. Essa equalização

dificílima – como diz o Bernardo Pellegrini: “o

amor é mão de obra” – entre o que você é e

o que você faz. Sabe a história juvenil de es-

tar com os amigos, aí chega sua garota e você

faz sinal para os caras não falarem sobre tal

assunto na frente dela? Ou, sei lá, ela não gos-

ta que você fume um negocinho, e você tem

que fumar escondido? Pois eu fazia isso com

a literatura também. O fato é que de lá até a

concepção dos poemas que viraram o Orfa-

nato portátil (2003) eu passei por um proces-

so forte de definições. Uma espécie de refina-

mento. Artístico, mas, sobretudo, da minha

própria vida. Até estudar eu fui. Era formado

em história e nunca tinha estudado literatura

formalmente. Resolvi, como diria o Nei Lis-

boa, levar “uma vidinha sincera” – em suma,

a tal da equalização. Só aí passei a ter clare-

za da limonada que eu queria fazer. A paixão

pela canção, pelo cinema, pela leveza, pelas

pequenas coisas da vida urbana, pelo efême-

ro, tudo que eu mantinha “escondido” da lite-

ratura, incluindo consciência de linguagem,

apareceu. Por isso considero o Orfanato meu

primeiro livro. O segundo, Garagem lírica, é

de 2012. Do ponto de vista das referências,

hoje posso brincar falando sério que minha

poesia é um misto de João Cabral de Melo

Neto e Jerry Seinfeld.

Além da poesia escrita, você tem um trabalho

reconhecido de poesia lida com acompanha-

mento de uma banda de blues e rock’n’roll.

Como é esse espetáculo?

Faço o espetáculo – que se chama Tran-

queiras líricas – desde 2004. Pelo fato de ter

essa influência da música, de trabalhar bas-

tante o ritmo e a escolha de cada palavra,

meus poemas acabam funcionando bem fa-

lados. É muito gostoso fazer e muito legais

os comentários das pessoas depois de assis-

tirem. Reforça o lance do Octavio Paz de que

“compreender um poema é ouvi-lo”. Hoje

está consolidado no formato guitarra, bai-

xo e bateria, mas já fiz com piano, trompe-

te, gaita. Muitas vezes faço só com o Fabio

Brum, grande guitarrista e parceiro – são

dele os arranjos todos. Sempre achei que é

algo que funciona exclusivamente ao vivo,

mas estamos tão entrosados e fazendo há

tanto tempo que o Fabio me convenceu: va-

mos gravar um CD em breve.

Quais são os seus novos projetos? Algum li-

vro de poesia em andamento?

De concreto só a ideia do CD. Livro ainda

deve demorar, mas aquela história. Poesia

você nunca para de escrever e de pensar, a ca-

beça não para, é uma desgraça. Mas tenho or-

ganizado coisas dos meus blogs antigos. Tem

uns textos e poemas ali que gosto bastante.

Talvez dê jogo. A ver.

dois poemas

Poema estatístico

Tem uma esquina prenha de um latido.

Trechos de pássaros que permanecem

nos muros que ficam. E vice-versa.

Um e-mail anotado às pressas no canhoto

do tintureiro.

A cirrose portátil. A síndrome de pânico.

O enroladinho de presunto e queijo.

Tem a Mulher Mais Linda da Cidade.

Groupies de cabelo rosa. Poodles

da solidariedade. Alguém chorando lágrimas

de tubaína. Penélopes Charmosas.

Dick Vigaristas. Um cara que já sai desviando

do cinema del arte, evitando ser atingido

por alguma conversa perdida.

Tem a mulher da video locadora

que não conhece o filme que estou procurando.

Um amigo que diz que escreve

só para colocar epígrafes.

Taxistas infláveis. Manicures em chamas.

Um casal que desce a rua na banguela

prolongando a gasolina daquilo tudo

que um dia fora. Eu ando apaixonado

pela mulher da video locadora.

Lendo revistas na sala de espera

do consultório dentário. Tem uma

que venta. E um que desiste.

De arranhar os vidros do aquário.

Plano

Morder o pássaro do pensamento

sem apaziguar o seu voo.

Caber na canção uma dor

que não cabe no mundo.

Um cachorro mancando na aurora.

A beleza fugiu do assunto.

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entrevista por Sergio Cohn

| 19

Guilherme, como foi que começou o seu in-

teresse pela arte?

É preciso entender que no Rio de Janeiro

dos anos 1970, entre o surfe e a areia da praia,

existia uma atividade cultural que não acon-

tece mais hoje. Havia uma disposição para

mostrar as coisas, que eu acompanhava alea-

toriamente. Eu não conhecia os artistas, mas

se você cutucasse encontrava tudo. E todo

mundo fumando maconha. A ditadura era

um ambiente terrível, mas numa situação de

perigo parece que se cria vontade de encon-

tros, de escapar da porra da doença. E nessa

época eu comecei a fazer teatro no colégio,

mas não produzia muita coisa. Eu escrevia

muito mal. Meu primeiro texto foi publicado

quando eu tinha entre sete ou nove anos. Era

um texto que se espera de uma criança, mas

não vem ao caso. Depois que comecei a fu-

mar maconha, parti para o surf, drugs & rock

and roll, e parei de escrever. Só fui retomar a

escrita na minha tese de mestrado, no fim da

década de 1980.

Mas já naquela época você convivia com

muitos artistas na casa da sua mãe.

Convivia com escritores, intelectuais ca-

nônicos, mas de grande qualidade: Rubem

Braga, Antonio Callado, Ferreira Gullar, Paulo

Mendes Campos, Otto Lara Resende, Hélio

Pellegrino, um pouco antes com o Paulo Fran-

cis. Mas era uma coisa diferente. Nós éramos

cinco filhos, minha mãe não tinha tempo de

nos entrosar muito com os artistas. Mas o

pessoal com quem eu fumava maconha com

15 anos também tinha uma excelente educa-

ção, tinha livros em casa, e a gente conversava

sobre literatura. Depois, no meu caso, por ter

ambiguidades sexuais, eu acabava levado à

procura da experimentação, quanto mais era

a oferta. Se fosse ao cinema para ver “Mimi,

o metalúrgico” já era um ato político eferves-

cente, com palmas, porque a ditadura pegava

muito pesado. E tudo era marcado por essa

experimentação. Depois vieram os anos ul-

traliberais da década de 1980.

Que foi quando você partiu para a política e

participou da implantação dos CIEPs com o

Darcy Ribeiro. Como foi essa construção?

Isso foi uma alucinação maravilhosa,

como se estivesse construindo Brasília. Por

sinal foi mais quantidade de cimento movi-

mentada do que no tempo de Brasília. Ima-

gina, 500 prédios. E todo mundo acreditando.

Até hoje, mesmo agradecendo ao Lula, não

chegamos onde sonhávamos em 1980. Era

um deslumbre, eu jovem, andando para todo

lado, vendo tudo que o Darcy trabalhava, com

entusiasmo e aplicação. Prática e delírio. Fo-

ram anos muito felizes. Depois disso nunca

mais consegui um emprego. Um emprego es-

tável, pelo menos.

E nunca seria tão bom quanto...

Não existe mais essa linha de liberdade.

Quando a Jandira Feghalli foi secretária de

cultura da prefeitura do Rio, ela me cha-

mou com aquela conversa de boi dormir,

me convidou para trabalhar junto, mas não

dava para aceitar. Aí vai todo mundo junto,

mas se você der dois gritos, está fora. Tem

que ter bons modos. Mas cultura e política

é emoção, e isso eles não entendem. Imagi-

na com Darcy, ele não tinha bons modos, e

se os maus modos saíssem, estavam dentro

de um contexto. Mas é claro que ele não fa-

lava besteira. Ele podia estar errado, mas o

errado dele era certo, porque era como eu

brincava com ele: os gênios têm razão, eles

não têm que ser sábios, mas sim ter humo-

res. O gênio tem muitos defeitos. Se você

tem um mestre, e acha ele um gênio, você vai

respeitá-lo, como os orientais. Nada de ficar

questionando. Quando conheci o Darcy em

1977, eu tinha 19 anos, ele 55. Então foi um

susto. Aí li tudo que ele escreveu. E para ele

eu era de direita, o que era meio complicado.

Dentro de uma tradição leninista, qualquer

reformista é de direita. Mas nosso convívio

foi tão bom que eu fui indicado por ele para

candidato a deputado. Ele dizia: “Guilherme

foi conquistado da direita pelo Brizola”. E eu

respondia: “Tá bom, Darcy”...

Você acha que os CIEPs acabaram por moti-

vo político ou por ter sido um projeto muito

ambicioso, um salto muito grande?

Motivos políticos. O projeto era exequível.

O Darcy queria era dobrar de tamanho. Mas

o Darcy, como disse, era gênio. Ele fez uma

lista junto com o José Mário Pereira, essa lista

está no Senado hoje, dos mil livros mais im-

portantes, e mandou comprar. Eram livros

para as crianças e para as professoras. Nun-

ca se comprou tanto livro por um governo

de estado. Eu dizia a ele: “Darcy, os meninos

não estão lendo!”. Ele respondia: “Buuurro,

burro, burro! Você não entende que se sair

um intelectual de cada CIEP os livros já estão

muito mais do que pagos?” Quer dizer, o ní-

vel de pensamento dele era muito alto. E eu

ria. Eu era muito jovem, ria e dizia: “Está cer-

to, vamos lá!” E algumas pessoas liam, sim.

guilherMe zarvoS

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20 |

O MV Bill conta que leu ao menos alguns, no

CIEP da Cidade de Deus, onde ninguém que-

ria ir dar aula. Ele ia lá ensaiar com a banda

dele, não sei se com gato de eletricidade ou

se deixavam, no salão previsto para receber

casamento, onde a juventude depois de fa-

zer esportes de dia ia dançar à noite. O Darcy

pensava o tempo todo em criar ambientes – o

CIEP seria um ambiente integrado, para toda

a comunidade. O que vem já do Anísio Tei-

xeira, voltamos ao modernismo. Mas a classe

dominante é de um egoísmo, uma raiva con-

tra a garotada desprovida, e não deixou esse

projeto se consolidar.

Depois do trabalho com o Darcy nos CIEPs,

você realizou as Terças Poéticas. Como foi

essa história?

Isso foi na prefeitura do Marcelo Alencar,

no começo dos anos 1990. Eu já o conhecia de

antes, quando namorou minha mãe, na épo-

ca que foi senador após a cassação do Mário

Martins. Depois, o Marcelo também foi cassa-

do. Ele era legal, mas com o poder foi mudan-

do muito. Mas ele foi indicado pelo Brizola,

e o Gerardo de Melo Mourão, que trabalhava

com ele na parte de cultura, era uma indica-

ção e um grande amigo do Darcy. Quando fui

conversar com o Darcy sobre um projeto que

eu queria fazer de literatura, ele foi bastante

duro, e disse que se quisesse ficar com ele,

que eu continuasse na área da educação. Ele

já estava ficando irritado com as minhas ten-

dências sexuais. Mas se quisesse partir para

a literatura, podia ir conversar com o Gerar-

do, que ia gostar do projeto. Mas também fez

um porém: “Não me traga os chatos dos poe-

tas para falarem da própria obra, traga para

falarem da obra de outros!” Aí eu procurei o

Gerardo e ele abraçou o projeto. Então cha-

mei as pessoas que achava legais, pesquisei.

Falei com o Aloísio, que era maravilhoso e

infelizmente já faleceu, mas na época tinha a

Livraria Timbre e morava lá no Baixo Gávea,

onde ficava bebericando o dia todo, e ele me

ajudou a formatar o evento. Pensamos vários

dias de projeto. As Terças Poéticas sempre ti-

nham uma estrutura de duas pessoas conver-

sando sobre poesia, e depois uma garotada

recitando.

Quem participou das Terças Poéticas?

Muita gente. O próprio Gerardo. O João

Cabral de Melo Neto, falando sobre si mes-

mo. Porque houve uma situação muito incô-

moda. Minha mãe estava casada com Rodol-

fo Sousa Dantas, que tinha sido casado com

a filha do Vinicius e era diplomata, então

bebericou muito com o Vinicius e, por ser di-

plomata, ficou amigo do João Cabral. Então

minha mãe disse que eu não podia de ma-

neira nenhuma chamar o João Cabral, que ia

ficar irritadíssimo. Então chamei o Antonio

Carlos Secchin para falar dele. E aí convidei

a maravilhosa, mas não tão grande poeta,

Marly de Oliveira, que estava casada com o

João Cabral, para falar. Mas não é que no dia

entra João Cabral pela porta? E ele falou so-

bre poesia. No último dia, consegui levar a

Heloísa Buarque de Hollanda e ela fez as pa-

zes com o Chacal. Eles falaram sobre a época

definida como poesia marginal. Nesse dia fe-

liz foi o Boato que participou, junto com ou-

tros poetas que até hoje a gente convive. E aí

o Chacal viu aquilo tudo e queria continuar.

Mas eu não. A responsabilidade de chamar

gente importante para falar durante a tarde

era muita. Não quis. Aí o Chacal falou de fa-

zermos de noite. Fui conversar com o Tertu-

lião dos Passos, que estava comandando a

RioArte. Foi nesse momento em que o Carlos

Emílio Corrêa Lima entrou em cena. Ele es-

tava trabalhando como editor do Letras&Ar-

tes da RioArte, que ele fez se tornar um jornal

amalucado e vanguardista, que ganhou até o

prêmio APCA em São Paulo. E gostou muito

do que viu nas Terças Poéticas, então ajudou

no contato com o Tertulião. Depois, o Carlos

Emílio espalhou que fundou o CEP 20.000,

mas na verdade ele só ajudou nessa relação

com a RioArte. E o Tertulião era muito liga-

do ao Marcelo e muito amigo da minha mãe.

A participação do Carlos Emílio foi impor-

tante, mas não tanto. Então, ficou assim: o

Chacal estava precisando de dinheiro. Já eu,

mais uma vez de graça, queria criar ambien-

te, porque na Alemanha eu tinha decidido

que seria basicamente homossexual, então

lá vivi com os punks, no meio de ambientes

maravilhosos, nem sempre com poesia, mas

com muita música.

Você estava em Berlim quando caiu o Muro?

o Darcy pensava o tempo todo em criar ambientes o cieP seria um ambiente integrado, para toda a comunidade. o que vem já do anísio teixeira, voltamos ao modernismo. mas a classe dominante é de um egoísmo, uma raiva contra a garotada desprovida, e não deixou esse projeto se consolidar.

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| 21

Não, foi antes. O Brizola seria candidato

naquele ano, e voltei em final de setembro

para fazer a campanha. No final de dezem-

bro o Muro caiu. Em Berlim todo mundo se

encontrava, os Verdes, os punks, era uma ci-

dade muito livre. Qualquer um que com 17

anos não quisesse servir o exército ia para lá

e ainda recebia um dinheiro para ficar mo-

rando. Todo mundo traumatizado porque o

papai não falava da Segunda Guerra, e como

não queria nem exército, nem serviço social,

aquilo virou o que chamei no meu livro de

“essa ilha chamada Berlim”. Era minha se-

gunda grande viagem para o exterior. Um

pouco antes, tinha voltado para o Brasil, para

acabar o mestrado, e decidi me mandar nova-

mente. Já havia tido várias experiências, ido

para Índia, e resolvi escolher um lugar barato

para fazer o doutorado. Mas em Berlim não

tinha doutorado em inglês. Fiquei seis meses

sem conseguir nada, a Universidade Livre de

Berlim estava em greve e eu não conseguia

aprender alemão, e decidi voltar para fazer

a campanha do Brizola. Quando o Brizola

perdeu a eleição, percebi que na política real

não ia dar mesmo. Sendo homossexual, não

tinha jeito. Só se mentir. Mas vi que uma coi-

sa que me agradava, ainda mais na verdade,

tanto que continuo fazendo até hoje, é a jun-

ção de política e cultura, essa movimentação

pela cidade, a circulação por esses ambien-

tes. Na Alemanha o Partido Verde, que era

mais progressista, desejava proibir carros de

circularem por boa parte de Berlim. Eu era

estrangeiro, pegava carona, parava os carros,

mesmo à noite. Eles me davam carona para

todo lugar. Então eu vi uma cidade grande

funcionar com liberdade. Depois eu voltei lá

e não é mais a mesma coisa, mas na época

vi uma cidade mais libertária, até porque ela

queria contrastar com a Alemanha do outro

lado do Muro. Mesmo essa não era aquela

desgraça toda que dizem. Muita gente tem

saudade, especialmente os mais velhos. Mas

era outra opção, muito desagradável, igual

ao tempo da ditadura no Brasil.

Voltando para a criação do CEP 20.000, você

e o Tertuliano é que conseguiram o Sérgio

Porto para abrigar o evento?

O Teatro Sérgio Porto era considerado o

patinho feio dos espaços culturais no Rio. Ele

foi conseguido pelo Tunga, nos anos 1980, que

propôs fazer algo como um espaço fantástico

de arte contemporânea. Então, ele e o Waltér-

cio Caldas fizeram uma exposição maravilho-

sa. E Darcy, junto com o Gerardo, que é pai

do Tunga, conseguiu com o Marcelo Alencar a

cessão do espaço que guardava a papelada da

Secretaria Municipal de Educação, lá no Hu-

maitá. Eu fui ao lançamento da exposição. Fui

também à geração 1980 no Parque Lage. Mas

o evento do Sérgio Porto foi lindo. E, quando

precisávamos pensar um espaço para substi-

tuir as Terças Poéticas, eu me lembrei de lá.

O Sérgio Porto era realmente visto como o

patinho feio, com barulhos de chuva no teto

de zinco, sem nenhuma estrutura. Era con-

siderado uma caveira de bode. Mas o Chacal

adorou o espaço e começamos a trabalhar. Eu

saí distribuindo papel para a garotada toda...

Para divulgar o evento.

Sim. Quando começamos, já existiam à

nossa volta todas as pessoas que tinham par-

ticipado das Terças Poéticas. Já eram umas

cinquenta pessoas, provavelmente. E o Baixo

Gávea estava crescendo como ponto de en-

contro. Em 1987 já estava começando, quando

saí do país. Quando voltei, em 1989, já estava

fervendo. Em 1990, quando a gente começou

o CEP 20.000, aquele ambiente já estava for-

mado. Era 24 horas. Os nem-nems, os jovens

que nem trabalhavam nem estudavam, pas-

savam todo tempo lá. Você acha que o Plano

Collor atingiu a turma do Baixo Gávea? Não!!!

Ninguém tinha poupança. Era um ambiente

muito próximo do que eu sentia em Berlim. Eu

já tinha visto isso antes da Alemanha. Em 1978,

eu vi um pouco do movimento punk na Ingla-

terra. Mas aí era mais careta. E tinha visto um

lugar em Amsterdam, que hoje é mais forma-

lizado, mas fui saber que havia sido criado pe-

los Provos em 1966, aquela turma que criou as

bicicletas brancas. Já era uma resistência, uma

criação de ambiente Provos. E era isso que me

animava. E começamos a fazer o evento, que

chamamos de Centro de Experimentação Poé-

tica. E, brincando com o número do CEP do

Rio de Janeiro, incluímos o 20.000.

No momento em que vocês criam o CEP, o

Brasil está vivendo um período de escassez

Quando o Brizola perdeu a eleição, eu percebi que na política real não ia dar mesmo. sendo homossexual, não tinha jeito. só se mentir. mas vi que uma coisa que me agradava, ainda mais na verdade, tanto que continuo fazendo até hoje, é a junção de política e cultura, essa movimentação pela cidade, a circulação por esses ambientes.

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22 |

na cultura. Não havia eventos, nem mesmo

livros de poesia nas estantes. Não tem qua-

se ninguém publicando. Agora, vivemos o

oposto, muito por consequência do CEP: te-

mos dezenas de saraus de poesia no Rio de

Janeiro, o Brasil publica 2 mil títulos novos

de poesia por ano. Mas, em 1990, qual era a

importância do CEP, da criação de um espa-

ço livre de expressão para a juventude que

queria fazer poesia?

Foi muito importante, mesmo sabendo

que no começou o CEP abrangia apenas da

Zona Sul até Santa Teresa. Mas foi conquis-

tando espaço com o tempo, porque quan-

tos eventos vieram depois influenciados

pelo CEP? Dezenas! De gente que ia ao CEP

e aprendia a fazer. Em São Gonçalo, em Ni-

terói. Depois, na comemoração dos dez anos

do CEP, teve o CD encartado na Revista Trip,

que repercutiu bastante. Mas a gente não

teve um maior reconhecimento por causa

das liberdades excessivas de comportamen-

to. O que é uma caretice completa do meio

cultural brasileiro. Pelo CEP ser totalmente

livre, foi difícil de se manter politicamente.

Mesmo no começo. Quando o Tertuliano

chegou no primeiro dia, ele se assustou. Mas

ele tinha vontades políticas. Era presidente

da RioArte, e queria ser vereador. E ele che-

gou para mim e disse: “Não pode ter maco-

nha!” E eu disse: “Olha, isso eu não garanto.

Quer ir lá na frente falar?” E ele deixou pas-

sar, porque sabia que não tinha como con-

trolar. Eu já tinha falado com o Darcy sobre

isso, que era preciso dar essa liberdade. O

Darcy entendia. Quando rolou o festival de

Águas Claras, em São Paulo, em 1983, eu fui

lá e adorei, e então propus para o Darcy que

a gente fizesse algo parecido no Rio. A gente

pensou em fazer um Festival da Juventude,

e chamou o Medina para conversar. Mas daí

o desgramado do Medina fez o Rock’n’Rio.

Águas Claras foi a coisa mais livre que eu ti-

nha visto da vida. Foi uma loucura...

Quais eram as bandas?

Eram grandes. O festival era grande, numa

fazenda. Chovia três dias, e era assim: se não

agradou, laaaama! Laaama! Aí vinha a Wan-

derleia, e queriam jogar na lama. E pediam

calma, porque vinha o João Gilberto, o Fagner.

Egberto Gismonti. Raul Seixas estava muito

doente. Erasmão conseguiu segurar gente. Eu

já tinha tomado ácido, estava com dez ami-

gos, quinze, estava com a minha namorada.

Você uma vez me falou que no Brasil logo

após a ditadura havia mais liberdade do que

no Brasil anos 2000.

1979, 1980? Muito mais. Nós tivemos o

Rock Brasil, as pessoas ainda acreditavam que

o Brasil seria um país, não desenvolvido nes-

se termo que estão falando no governo atual,

mas no sentido utópico. No caso do Darcy era

socialismo moreno, mas em outros casos, não

sei, vivia-se a ideia de uma realização asso-

ciada, outros iam pensar na forma tradiconal

Moderna. Mas todos pensavam em algo um

pouco utópico. Ainda havia um sentimento

que acabou com o neoliberalismo, com a glo-

balização, que nunca que um bárbaro que vá

invadir um império pode achar que o império

exista. A gente chamava de alguma coisa, de

“do mal”, de “desgraçados”, ou de “vamos en-

trar no poder para transformar o poder”, mas

havia um desejo ali de mudança. Essa acei-

tação com naturalidade só surgiu nos anos

1990. A naturalidade de sonhar pouco. Isso foi

se radicalizando até 2001, com o ataque das

Torres Gêmeas. Aí que eu já estava desespe-

rado. Foi quando eu conheci você e lançamos

o Morrer. Eu achava que nada valia a pena

nesse mundo. Sei lá de quê que eu estava tão

puto. Mas em 2002 o Lula vence a eleição e

reaparece alguma esperança.

E você faz o Zombar...Aí já estava zombando demais. Zombei

tanto que o santo me fez pegar AIDS. Toda vez

que eu faço demais, acontece alguma coisa.

O que é um pouco a situação grega do ficar

cego. Ou eu quebro a perna, ou pego uma

doença, ou arrebento as costas. Isso é do san-

to. Eu não quero ser um herói trágico. Eu me

defino como um borderliner, um fronteiriço.

Não é que eu queira. É onde eu pude ficar. Eu

gostaria de morar numa fazenda, ter meus fi-

lhos, minha mulher. Não sei em que nível de

libertário eu estaria se isso ocorresse, ou se

estaria no poder mais establishment. Mas a

minha natureza, a minha transformação que

passou pela homossexualidade, que até hoje

passa, me fez ir para onde eu me encaixava,

que foi para a arte de escrever. Apesar de ser

eu me defino como um borderliner, um fronteiriço. Não é que eu queira. É onde eu pude ficar. eu gostaria de morar numa fazenda, ter meus filhos, minha mulher. mas a minha natureza, a minha transformação que passou pela homossexualidade, me fez ir para onde eu me encaixava, que foi para a arte de escrever.

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| 23

uma poesia sempre distanciada de um forma-

lismo. No início eu queria escrever romance,

mas havia uma pressão interna no CEP pela

plataforma poética como uma forma maior, e

acabou que fui me deixando entrar na poesia.

Lendo, pensando a poesia como expressão

principal. Depois, já nos anos 2000, veio o

pessoal das artes plásticas. Mas na verdade é

tudo a mesma coisa. Como o Marcos Faustini,

que falou na entrevista que fizemos com ele

que queria ser um vagabundo. Isso eu sempre

soube também. Podia ser dentro do capitalis-

mo, ou fora, eu sempre quis o igualitário e o

vagabundo. Se eu tivesse uma fazenda, a pro-

priedade podia ser até que eu gerisse melhor

que os empregados, mas a diferença salarial

teria que ser pequena.

Você disse que o Darcy o considerava de di-

reita. Você é contra a propriedade?

Não, acho que as pessoas podem ter pro-

priedade. Mas as relações humanas, muita

gente detesta ser empreendedor, prefere um

emprego, não se pode obrigar a todos a serem

empreendedores.

E a história da sua mãe? Ela passou por tudo.

Pelo menos até 1974 sim. Entre 1959 e

1974. Ela se separou do meu pai em 1959, ti-

nha 28 ou 29 anos. Eu tinha dois anos, só fui

ver meu pai com oito. Ele era um ser humano

que escrevia e mandava presentes exóticos

no mundo inteiro, mas eu não sabia quem era

de verdade. Sempre tinha aquela empregada

má em casa. Minha mãe não era de classe

alta, e era desabutinada, então tinha aquela

empregada que batia, que me apertava e ain-

da ficava dizendo: “ah, seu pai não é vivo!!!”

Mas como chegavam os presentes, eu criava

uma ideia de que esse pai era longínquo, e a

mamãe era a super-heroína porque sempre

convivendo com pessoas legais e persegui-

das pela ditadura. Ela não pôde mais escrever

com o nome dela durante a ditadura, assinar

os textos, teve que ir inventando nome. Era

jornalista, começou assinando Thereza Cesá-

rio Alvim, depois criou pseudônimo.

A história de vida dela é forte. Ela nem ter-

minou o segundo grau, já frequentava a PUC,

que estava começando, com Raquel Jardim,

Álvaro Americano e sua turma. E daí é uma

história longa, porque a família da minha

mãe tinha apartamento em Paris e ela passa-

va temporadas lá. E acabou se casando com

meu pai, que era fazendeiro, mas vendeu uma

ideia totalmente errada. Em Paris ele gastava

que nem um louco, e vendeu a ideia para ela

de que estava bem de vida, mas já estava per-

dendo muito dinheiro. Ela achando que ele

era boa vida, uma fazenda do nível da famí-

lia Prado, e não. Era uma fazenda com uma

dureza boa, mas uma solidão terrível. Aí ela

exigiu que o papai mudasse para São Paulo.

Isso dificultou. Ele era um jovem, casou com

26 anos, essa movimentação foi penosa, por-

que ela exigia um nível de vida muito alto. Já

que casou com um grego que era rico, exigia

um nível de vida condizente. Sei que deu tudo

errado, e ela aproveitou que ele teve que ir

embora do Brasil, por vários motivos, e falou:

“não, vou voltar para o Rio”. E a família dele

falou: “Se ficarem em São Paulo vão ter tudo

o que quiserem, no Rio terão o mínimo”. Mui-

to bem, ela aceitou o mínimo. E começou a

trabalhar. Logo, poucos meses depois, ela faz

uma tradução do Sartre. Aí já foi chamada

pelo pessoal de teatro. Era uma jovem bem de

vida, bem posicionada, de uma família com

um lado moderno. Era tia da Miúcha, que ti-

nha quase a mesma idade. E foi entrando no

grupo de teatro, começou a namorar o Paulo

Francis, que botou ela para escrever na revista

Senhor. Depois ele não quis mais fazer crítica

de teatro na Última Hora, e chamou ela. Ela

não quis, porque achava que conhecia pouco

de teatro, mas o Samuel Wainer foi educadís-

simo num sentido progressista e falou: mas

nós queremos uma opinião assim, de uma

pessoa que tem bom gosto, você fica substi-

tuindo o Paulo Francis, mas não precisa saber

de teatro. E depois ela entrou para a parte de

política. E daí teve o golpe, e ela começou a

escrever contra a ditadura.

Em 1973, ela fez a Folha de Eva, o pri-

meiro jornal feminista. Ela vinha bebendo

menos, sempre bastante, mas nem tanto

quanto antes. Ela sempre bebia muito. Mas

sempre tinha projetos. Antes, ela tentou

fazer um jornal com Sebastião Nery, Jorge

Miranda Jordão, que ela namorou depois

do Paulo Francis, gente de resistência. O

Juscelino não quis bancar o jornal, que se

chamaria Urgente. Isso ainda na frente am-

pla, 1966. Ou já depois de 1968, e por isso

que não quis bancar. O Folha de Eva era de

No início eu queria escrever romance, mas havia uma pressão interna no ceP pela plataforma poética como uma forma maior, e acabou que fui me deixando entrar na poesia. lendo, pensando a poesia como expressão principal. Depois, já nos anos 2000, veio o pessoal das artes plásticas. mas na verdade é tudo a mesma coisa.

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24 |

uma modernidade incrível. O desenho era

da Marta Alencar, mulher do Hugo Carvana.

Só que o pessoal do Pasquim, que era mais

inteligente em termos de marketing, falou:

“Nós temos que criar uma briga, senão o

jornal não vai aguentar”. Eram amigos dela.

Ela ficou ofendida com a ideia de uma bri-

ga falsa entre o Pasquim, que tinha fama de

machista, e o Folha de Eva, para consolidar

um jornal feminista. Achava que existia es-

paço para a mulher. Fizeram achando que o

jornal ia vender... Acho que isso contribuiu

muito para ela... Foi o último ato de rebeldia.

Depois ela até fez outras, mas já estava um

pouco enlouquecida, não de loucuras, mas

sem forma.

E seu pai?

Quando eu o conheci, comecei a admirá-

-lo, a achar ele um máximo. Mas ele admirava

a ditadura, e não dava para admirar a ditadu-

ra. Mas eu podia admirar o Brasil grande que

a ditadura propunha. Ele acusava a esquerda

de festiva! Eu via a resistência, levava a sério,

sabia que as pessoas eram importantes. Mas

hoje, depois de ler a Odisseia, eu era uma es-

pécie de Telêmaco entre os dois. E acredita-

va mesmo num Brasil grande, mas grande e

libertário. E fui fazer economia. Aos 18 anos

não, era um deslumbre, porque, ah, ele tinha

uma fazenda imensa e eu fui tentando me

aproximar e não conseguia. Era sempre con-

fuso, louco, louco, louco. E fui me afastando,

como toda a família. Porque ele não convivia,

era difícil. Ele, desconfiando que eu era gay,

já queria me deserdar. E me considerava um

vagabundo. Agora, eu não ia para empresa

privada para receber pouco, e não cabia na

política. Onde podia ficar? Ou na universida-

de ou na arte de rua. E a arte de rua foi o que

primeiro me pegou.

Esses temas todos permeiam a sua escrita,

embora você diga que ela não é autobiográ-

fica.

Não é totalmente autobiográfica. Eu não

vou ficar choramingando. No caso, o Morrer

foi o livro mais autobiográfico que eu fiz. No

livro mais recente tem algumas coisas, mas

minha vida mesmo é muito mais barra pe-

sada do que meus escritos, e eu não vou es-

crever essa barra pesada toda. Nunca escrevi.

Escrevi talvez um pouquinho do segundo li-

vro, Paulinho, um negócio intenso de garo-

to, mas já era distanciado. Eu, infelizmente,

por não achar um espaço sentimental que

me agrade, ando muito com gente que tam-

bém está na beira. Isso desde sempre. Eu não

acho que isso seja motivo, nem isso que estou

contando sobre a minha família. Claro que

eu não deixo de ser confessional. Mas tenho

que mentir, senão não traz literatura. Tem que

ter as máscaras. O Silviano já falava no início

do CEP: “Se você trouxer os seus sentimen-

tos reais sem a estética, sem a mentira, você

está fazendo carta para a namorada, ou carta

para a posteridade, institucional para quando

morrer?” Eu acho que o escritor tem que ser

feito de mentira. Ou, o caso da Beat Genera-

tion. Mas a gente nem chegou a isso no Brasil,

escrever a realidade, Bukowski. A genialidade

do Allen Ginsberg. Mas não acho que a lite-

ratura passe por aí não. O texto tem a marca

da sua vida. Mas se está marcando demais, sai

dela. Inventa! Vive mais feliz na literatura do

que está sendo na realidade. Em vez de trazer

mais choro, traz mais alegria. Vai bater sem-

pre um pouco no Morrer, meio fora da curva.

Mas foi você e o Ericson Pires que disseram:

“Guilherme, isso é um livro”. Eu estava achan-

do muito autobiográfico, geralmente eu fujo.

Mas faço o caminho, principalmente nessa

época, sem a linguagem do eu. Porque nos

anos 1970 minha mãe falava: “quem escreve

‘eu’ não sabe escrever”. Mesmo tendo alguns

caras bons, inclusive eu tenho impressão que,

por exemplo, o Menino de engenho é uma boa

escrita que está mentindo. Agora, Insônia,

que é do maravilhoso Graça, eu tenho a im-

pressão que é na primeira pessoa. Mas como

jornalista dos anos 1970, não só ela, muitas

pessoas falavam que é muito mais fácil escre-

ver com o eu, e quem escrevia com o eu escre-

via com menos força. Por isso que quando eu

não aguentei mais ali, que foi o Morrer, antes

é lírico, tem um eu. Ele bate na potência, mas

a potência da escrita vem do estômago, quan-

do já foi digerida muita coisa, não é dos poros.

Fumaça de rua, falta de toque, não. Tem que

ser outras pessoas, mas pouca gente escreveu

na primeira pessoa bem.

eu, infelizmente, por não achar um espaço sentimental que me agrade, ando muito com gente que também está na beira. isso desde sempre. eu não acho que isso seja motivo, nem isso que estou contando sobre a minha família. claro que eu não deixo de ser confessional. mas tenho que mentir, senão não traz literatura. tem que ter as máscaras.

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| 25

Tem uma pesquisa difundida agora que 90%

dos protagonistas da literatura brasileira

atual são brancos, de classe média, jornalis-

tas e tal. É a elite, da qual a princípio fazemos

parte. E ao mesmo tempo, eu não me sinto

representado pela literatura brasileira con-

temporânea...

Elite sim, mas vamos falar dos humanis-

tas. Elite do saber pelo menos. Aqui eu volto

à questão que Ericson Pires colocava. Você é

neguinho? Você é amigo de quem? Quer dizer,

há uma literatura onde ainda são os humanis-

tas falando em nome de classes de emergên-

cia, mas já tem os intelectuais vindo da clas-

se de emergência se expressando. Você, eu e

mais várias pessoas vivemos coisas que não

estão aí. Não somos da classe dominante, não

somos paupérrimos. Nosso termo é a liberda-

de, é a libertação. Acho que a literatura só vai

ser boa quando misturar. Mas tem que ter es-

critores que não têm dinheiro, mas podem es-

crever. Não precisa escolher porque mora na

favela. Quando der dinheiro cultural aleatório

aí vai aparecer. Outro dia ouvi, acho que foi o

Claufe Rodrigues na TV, que disse que o ato

de ler um livro em papel tornou-se um pouco

subversivo. A leitura e o pensamento.

Falando em pensamento, antes de você sair

do CEP, você tinha a proposta de uma plata-

forma dentro do projeto voltada para a re-

flexão, o CEPensamento. Você sempre teve

essa preocupação com a ausência de espa-

ços de reflexão no Rio de Janeiro. Como está

vendo isso?

A gente conseguiu sair do nada e criar o

jornal Atual – o último jornal da Terra segun-

da dentição. O que seria impossível antes das

manifestações de junho. Como seria impossí-

vel o Congresso aprovar 75% para a Educação,

25% para a Saúde se não fosse essa movimen-

tação. Ela ganhou um tipo de alegria, de uto-

pia, mesmo que a gente não saiba se vai dar

tudo errado. Aí é o que estou chamando de

“me dê motivo”, não importa mais se vai dar

certo ou não. Se a tendência do mundo é vi-

vermos cada vez mais em cidades, é claro que,

sim, uma cidade que nem Berlim, que nem

Paris, não vai haver dinheiro para tudo isso.

Então, eu vejo infelizmente uma sociedade

de consumo, onde os subversivos devem ser

apenas 2% da população. Você falava em 5

mil leitores no Brasil. Eu sempre achei esse

número pouco, agora sabemos que é muito

mais – com as manifestações de dezenas de

milhares de pessoas, que devem estar dispos-

tas a ler coisas interessantes. É preciso criar

um jeito de produzir e distribuir livro para

essas pessoas. Tem que ter projeto. Se quiser

fazer sozinho, faça. Mas tem que ter projeto

de estado também. Não essa pão-durice, que

parece raiva dos editores livres, dos escritores

livres. Não tem mais análise literária, a gente

tem que resistir.

Eu pessoalmente estou com 57 anos, não

vou ficar pensando em como o mundo vai ser

daqui a 50 anos. Não tenho a menor ideia, e

nem tenho o compromisso político que eu ti-

nha aos 30, aos 20, aos 7 anos de idade com

um país que ia dar certo. O Darcy inventou

esse bordão. Não. Agora é estar junto com

um grupo legal que esteja pensando. Parar

também de chamar essa juventude narcisista

para as coisas e escrever os meus livros, tentar

conseguir uma escola que me deixe dar aula.

Eu não quero dar aula o dia inteiro, vira uma

confusão. Sou doutor, mas não há lugar para

alguém como eu dar aula. Passar da universi-

dade com escrita criativa? Tudo tem que ser

formal, entrar no sistema. Se é federal não

adianta fazer isso. Se é particular vão dizer

que você está atrapalhando, a burrice impe-

ra. A gente tem que resistir e agir. Quem sabe

o mundo no futuro não possa ser melhor?

Quem sabe?

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26 |

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Vendo o show do Bixiga 70 no Circo Voador, é impossível não se lembrar da definição de

arte por Mário Pedrosa: “alegria de criar, alegria de viver”. Acima de tudo, o que fica evidente no

palco é o prazer dos músicos de estarem juntos tocando, dançando, celebrando.

Cada arranjo, cada improviso é fruto desse encontro prazeroso de dez músicos da nova

cena paulista, ocorrido três anos atrás. Em conversa no camarim, pouco antes do show, os

músicos contaram e refletiram sobre a trajetória da banda. Mantendo o tom do Bixiga 70, as

aspas são coletivas. “Todos nós já nos conhecíamos antes de tocar no Bixiga 70, bastante em

função do Estúdio Traquitana, que virou um polo aglutinador da cena musical que despontou

em São Paulo nos últimos anos. O estúdio fica no bairro do Bexiga, na rua 13 de Maio, 70, e

existe desde 2009, dirigido por Cris Scabello e o Décio 7. A gente produziu lá discos do Leo

Cavalcanti, Pipo Pegoraro e mais recentemente o disco da Alzira E. O estúdio também sempre

foi um espaço de ensaios e encontros de vários trabalhos paralelos. Já passaram pelo Traqui-

tana Anelis Assunção, Curumim, Karina Buhr, Ganja Man, músicos que fazem parte dessa

mesma cena que a gente faz parte”.

Segundo eles, todos esses músicos trazem em comum uma liberdade criativa que os apro-

ximam da Lira Paulistana, surgida trinta anos antes: “A nossa cena é marcada pela liberdade

de trabalhar com a música sem se preocupar com o que o mercado está ditando. É o lado

positivo de não existir mais a possibilidade de atingir grandes sucessos de público. A gente

pode se permitir experiências mais ousadas de composições e arranjos. Não temos uma preo-

cupação em agradar o público geral. Nesse sentido, acho que nos aproximamos da turma da

Lira. E assim como eles fazemos um trabalho colaborativo. Todo mundo toca junto, compõe,

convive. Não há competição”.

Foi em 2010 que a banda realmente começou a se reunir. “O Décio 7, que é o baterista da

trupe, foi quem começou a juntar a turma. Ele saiu catando os músicos, que tinham em comum

a ligação com a música africana, o jazz, o soul, reggae, o dub, com a ideia de uma big band instru-

mental. O Décio 7, junto com o Rômulo Nardes, que toca percussão, já haviam até acompanhado

a Fanta Konate, que é uma importante música de malinké, o ritmo do Guiné. Então nós já come-

çamos pensando bastante em arranjos que valorizassem a riqueza rítmica. E logo nos primeiros

ensaios, quando estávamos montando o repertório, fomos convidados para tocar na Festa Fela,

que rola todo ano para celebrar o aniversário do Fela Kuti, que é no dia 15 de outubro. Então a

gente correu para montar um repertório para apresentar na festa, e chamou o grupo de Bixiga 70,

em homenagem ao Africa 70, o grupo que acompanhava o Fela. E a partir desse momento a gente

nunca mais parou”.

Com dois discos já lançados, Bixiga 70 já mostrou que vai muito além da retomada do Afro-

beat. Os arranjos sofisticados e as referências sonoras abrangem uma pesquisa muito mais pro-

funda de estilos musicais, especialmente no segundo disco, onde a música brasileira ganhou

maior espaço. “Tem a presença de Tincoãs, de quem regravamos ‘Deixa a gira girá’ e Moacir

deixa a gira girá Bixiga 70

fotos: Nicole Heiniger

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Santos, por exemplo. Mas a principal diferença do segundo disco é a

tentativa de captar o estilo de som que fazemos ao vivo, com mais pega-

da, com mais punch. Isso foi resultado da experiência que tivemos de-

pois do disco de estreia. Foram mais de cem shows entre os dois discos”.

Circulando em shows pelo Brasil e Europa, a banda tem consegui-

do encontrar seu público. O que não é tarefa fácil: “Com a parada de ter

dispersado os fomentadores, com o fim das gravadoras, todo mundo

se apropriou do seu próprio trabalho. Então é uma cena imensa de

pessoas produzindo sem ter que passar pelo crivo de uma força supe-

rior, que não existe mais. O que é muito bom, porque permite que mui-

ta coisa interessante surja. Mas depois fica todo mundo batendo cabeça

para encontrar o rumo do seu produto, porque não existe mais os canais

tradicionais de distribuição. Se você faz certo tipo de som, tem que con-

seguir que ele chegue ao público que você acredita que é interessado

nesse tipo de música. Esse é o ponto. Se conseguir isso, terá maior visi-

bilidade, pode conseguir respirar, ter um público pequeno mas fiel. Mas

é uma cena gigantesca, e que não conta com nenhum meio divulgador”.

As questões cotidianas se multiplicaram no gerenciamento de uma

banda após o fim das gravadoras. Agora, os músicos precisam cum-

prir diversas funções, de produção à assessoria de imprensa, que antes

possuíam profissionais especializados nas grandes empresas. De saber

prensar e distribuir o seu próprio disco a se relacionar com a mídia, o Bi-

xiga 70 aprendeu a lidar internamente com essas demandas: “Na divisão

da tarefa, ajuda bastante sermos dez. Tem cara que cuida do agenda-

mento do show, outro que cuida do mapa do palco, outro da comunica-

ção e redes sociais, envio de discos, manutenção de sites. Em torno de

uma banda existem mil funções, e é importante saber dividir e adminis-

trar essas demandas. Mas não somos só nós. O Bixiga 70 conta com pro-

fissionais além dos músicos, como a Verdura Produções, que é a nossa

produção executiva, e a Pessoa Produtora, que cuida da venda de shows.

Mas nós somos cara de pau, todos temos mais de uma década de estra-

da na música, e aprendemos a lidar com as tarefas, por necessidade”.

A relação com a mídia e o público é pensada internamente pela

banda: “A nossa principal maneira de trabalhar é tentar antigir dire-

a principal diferença do segundo disco é a tentativa de captar o estilo de som que fazemos ao vivo, com mais pegada, com mais punch. isso foi resultado da experiência que tivemos depois do disco de estreia. Foram mais de cem shows entre os dois discos.

tamente nosso público, com as redes sociais

e com as nossas relações pessoais. A gente

eliminou vários intermediários com isso. O

gerenciamento do Bixiga 70 é feito por nós

mesmos, e sem ser necessariamente voltado

para os grandes meios de comunicação. A

gente está muito mais interessado nessa re-

lação direta com o público do que depender

dos grandes meios de comunicação”. Seguin-

do esse caminho, a experiência do Bixiga 70

vai na contramão dos que afirmam apenas o

fechamento de espaço para a reflexão crítica

no Brasil atual: “A resposta em relação aos

discos é surpreendente. Saiu muita coisa em

blogs e jornais, no Brasil inteiro, e é fantástico

ver que as pessoas estão interessadas e pen-

sando a música com profundidade. Muitas

vezes a gente lê as pessoas escrevendo coisas

que a gente conversava internamente, e que

nunca expressou publicamente, o que mostra

que elas sacaram o que a gente está fazendo.

Nos interessa muito mais falar com veículos

independentes, que dialogam com um públi-

co mais proativo, do que atingir um grande

número de pessoas passivas por um veículo

mais tradicional”.

Essa relação de trabalho horizontal, com

todos atuando ativamente, acontece também

no processo criativo da banda e se reflete no

palco. Todos participam dos arranjos e com-

posições, contribuindo com ideias e suges-

tões. O resultado disso pode ser visto nos dis-

cos e no nos shows do Bixiga 70, um dos mais

vibrantes e criativas em atividade.

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BIxIGA 70

Décio 7 (Bateria)

Douglas Antunes (Trombone)

Cris Scabello (Guitarra)

Marcelo Dworecki (Baixo)

Cuca Ferreira (Sax Barítono)

Daniel Gralha (Trompete)

Maurício Fleury (Teclado e Guitarra)

Rômulo Nardes (Percussão)

Daniel Nogueira (Sax Tenor)

Gustávo Cék (Percussão)

foto: Nicole Heiniger

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30 |

Em O destino da pintura moderna, o crí-

tico britânico Herbert Read assinala as mu-

danças da estrutura econômica da sociedade

nos últimos três séculos, que fez com que o

mecenato desaparecesse, e ironiza a então

demanda dos artistas plásticos por um pa-

trocínio estatal: “Não vejo qualquer diferença

cívica entre o poeta e o pintor: cada um de-

les expressa individualmente uma visão, que

pode ter ou não uma grande importância so-

cial; num dos casos, porém, a sociedade pode

impunemente ignorar a criação, e no outro é

agora compelida a aceitá-la e a pagar por ela

um preço, com o dinheiro do próprio rendi-

mento público”. Seria interessante, a partir

dessa observação, comparar o circuito das ar-

tes visuais contemporâneas com o da poesia

contemporânea no Brasil. Em ambos, existe a

versatilidade dos papéis do artista, em ambos

a distância entre a obra de arte e o “grande

público”, mas, no caso da poesia, uma falta

fundamental: não há mercado, não há retor-

no financeiro, não há verdadeira circulação.

Para além das questões econômicas ligadas

aos mecanismos financeiros da arte contem-

porânea, atados ao ultracapitalismo, o crítico

e curador paulista Teixeira Coelho, no artigo

“A contemporaneidade comum”, levanta a

hipótese de que as artes visuais brasileiras só

ganharam terreno e prestígio no circuito in-

ternacional da arte contemporânea depois de

terem desistido do conceito de identidade, de

brasilidade; em suma, depois de terem aberto

mão do projeto nacional do modernismo.

Teria a poesia brasileira, que desde os seus primórdios e até recen-

temente (até o modernismo), lidava também principalmente com a

construção de uma identidade nacional, perdido o público interno

depois de ter, no mesmo movimento, abandonado essa questão e pas-

sado a majoritalmente versar sobre a própria linguagem e a rede teci-

da pela literatura? Por outro lado, talvez o que mais tenha contribuído

para a poesia brasileira em termos de popularização e divulgação no

século 20 tenha sido as gravações feitas por nossos músicos e compo-

sitores, possivelmente os verdadeiros herdeiros e parceiros dessa forte

tradição, já no contexto da indústria cultural. Curiosamente, a canção

popular brasileira nunca precisou se preocupar com a questão da pro-

cura ou da formação de uma identidade nacional, por ser, desde o iní-

cio – e sem poder deixar de sê-lo – intrinsecamente brasileira, devido

ao seu caráter e origem fundamental e irredutivelmente popular. Teria

a canção, principalmente depois da difusão em massa de discos e cds,

e do seu apogeu a partir da bossa nova e, logo a seguir, do tropicalismo,

tomado para si a função de debater o país e suas mazelas enquanto

que a poesia (e também as artes visuais) se tornava mais cosmopolita,

mais voltada às questões da própria linguagem, e mais removida da

“realidade”?

Para Affonso Romano de Sant’Anna – um crítico ferrenho e nem

sempre lúcido da arte contemporânea, mas frequentemente um argu-

to pensador da cultura –, o duplo fenômeno da proliferação dos poetas

e da diminuição da circulação da poesia é global. Em seu estudo “O

desemprego do poeta”, ARS afirma que “a história do poeta enquan-

to indivíduo social é a história de seu desemprego”, devido aos “fato-

res da vida moderna que vieram lhe alterar a função dentro da nossa

sociedade burguesa”. Discordando de João Cabral de Melo Neto, que

no Congresso de Poesia de São Paulo, em 1954, havia identificado o

recuo da importância social da poesia na incapacidade dos poetas

de valorizar e dominar os meios de comunicação em massa, como

o rádio e a TV, para a criação e a disseminação de seus poemas, Ro-

mano de Sant’Anna acredita que o problema não está nem na poesia

nem nos poetas, mas na própria sociedade capitalista burguesa, que

a reSiStênCia da poeSiabraSileira

Renato Rezende

Vozes&Visões

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| 31

tudo industrializa e transforma em capital e trabalho – tudo, menos a

poesia, que, devido à sua própria natureza, resiste a este processo e,

desta forma, teria se alienado do sistema e se tornado uma atividade

socialmente intransitiva.

Seja como for, como a poesia poderia resistir, em termos de lin-

guagem, de contribuição ao diálogo e de lugar para reflexão? Para

Jean-Luc Nancy, em ensaio justamente intitulado “Resistência da

poesia”, “é preciso contar com a poesia”, mesmo se “poesia” não sig-

nifique o poema, tradicionalmente compreendido como tal, mesmo

ela se mantenha algo indeterminável. Talvez seja justamente para re-

sistir e prosseguir resistindo que a poesia deva, no contemporâneo,

abrir mão de seus suportes, narrativas, discursos e linhagens pré-es-

tabelecidos pelo cânone. Talvez seja possível pensar a poesia, des-

de suas origens remotas à atualidade das mídias digitais, como uma

disponibilidade à intermedialidade, à alteridade e à tradução, sendo,

portanto, fundamental investigar suas bordas, suas zonas de passa-

gens, transporte e trocas com outros discursos disciplinares, cultu-

rais e midiáticos. Para Nancy, a poesia insiste e resiste por um lado,

ao discurso e, por outro, ao manter vivo, latejando, insistindo, aquilo

que não pode ser capturado pelo discurso, aquilo que “anuncia ou

contém mais do que a língua”. Poderíamos, aqui, talvez aproximar

tais ideias de resistência e expansão da compreensão do ato literário

(e poético) do que, mais próxima de nós, propõe Josefina Ludmer:

“escrituras [que] não admitem leituras literárias; isso quer dizer que

não se sabe ou não importa se são ou não são literatura”. Para a crí-

tica argentina, tais escrituras, que ela denomina de ‘pós-autônomas’,

embora continuem sendo apresentadas como literárias, permeiam o

campo social constituído pela imaginação pública (fundindo ficção e

realidade, ou seja, vida e linguagem) e esva-

ziam radicalmente o dispositivo canônico da

“literatura”. Importa, portanto, para a poesia,

não mais transmitir noções sobre a vida, mas

promover formas de vida.

Vivemos uma época marcada pela insta-

bilidade e por incertezas que, para o bem e

para o mal, dissolvem fronteiras, abalam es-

truturas, unem águas profundas e rasas, mis-

turam, produzem o informe e o inaudito. É

preciso dar sentido e significado àquilo que

nos invade, que nos desafia e nos atormenta;

ainda que, sempre, algo disso nos escapará

– é preciso fazer desse resto, ou melhor, des-

se excesso, uma possibilidade de linguagem,

um risco. É preciso, portanto, enfrentar a es-

curidão e as contradições do nosso tempo,

identificar outras chaves de leitura e novas

brechas e bordas para pensar a nossa poesia.

A meu ver, a poesia contemporânea brasilei-

ra se mantém atual e potente ao desguarne-

cer as fronteiras que a separam, por um lado,

de disciplinas como a política e a filosofia e,

por outro, ao expandir o conceito de poema

para incluir novos meios e suportes, além de

aumentar seu corpus ao incluir em sua tra-

dição linhagens esquecidas ou desdenhadas.

a meu ver, a Poesia coNtemPorâNea Brasileira se maNtÉm atual

e PoteNte ao DesguarNecer as FroNteiras Que a seParam, Por

um laDo, De DisciPliNas como a Política e a FilosoFia e, Por

outro, ao exPaNDir o coNceito De Poema Para iNcluir Novos

meios e suPortes, alÉm De aumeNtar seu corPus ao iNcluir em

sua traDição liNhageNs esQueciDas ou DesDeNhaDas.

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Rafael Campos RoCha

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