Nietzsche - Linguagem e Experiência Criadora

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101 Nietzsche: Linguagem e Experiência Criadora Flávio Pimentel Mestrando em Filosofia do PPGF-UFRJ O presente título faz menção imediatamente a um texto de Nietzsche em que, com acuidade, o filósofo descreve o seu movimento de criação poética. Este texto é precisamente o terceiro item da parte de Ecce homo dedicada à apresentação da obra Assim falava Zaratustra. Nietzsche está se propondo fazer uma descrição do que ele entende por inspiração, o que ele experimenta no momento em que cria: O conceito desvelamento, no sentido de que, de repente, com indizível precisão e sutileza, algo se torna visível, audível, nos toca no mais fundo e nos transtorna, descreve simplesmente o estado de fato. Ouve-se, não se procura; apodera-se, não se pergunta quem dá; como um raio, um pensamento brilha, com necessidade, sem hesitação na forma – eu nunca tive uma opção. Um êxtase, cuja monstruosa tensão desata às vezes em torrentes de lágrimas, com o qual o passo involuntariamente ora se precipita, ora se torna lento; um completo estar-fora-de-si com a consciência distinta de incontáveis delicados tremores e calafrios até os dedos dos pés; uma profundidade de felicidade, na qual o mais doloroso e mais sombrio não atua como oposição, mas como condicionado, provocado, como uma cor necessária em meio a um tal transbordamento de luz; um instinto para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas. (...) Tudo acontece involuntariamente no mais alto grau, mas como em um turbilhão de sentimento de liberdade, de ser incondicionado, de poder, de divindade... A involuntariedade da imagem, do símbolo é o mais marcante; já não se conceitua mais o que é imagem, o que é símbolo, tudo se faz presente (s. bietet) como a mais próxima, mais correta, mais simples expressão. Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como se as coisas mesmas se achegassem e se presenteassem (sich anböten) como símbolos. (NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo tão bons livros, Assim falava Zaratustra, §3) Essa passagem de Nietzsche está carregada de tantas questões que, inúmeras delas, este texto não pode simplesmente nem mesmo visualizar. Mas algumas nos tocam imediatamente a vista. A primeira delas

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Revista de filosofia.

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Nietzsche: Linguagem e Experiência Criadora

Flávio Pimentel Mestrando em Filosofia do PPGF-UFRJ

O presente título faz menção imediatamente a um texto de

Nietzsche em que, com acuidade, o filósofo descreve o seu movimento de criação poética. Este texto é precisamente o terceiro item da parte de Ecce homo dedicada à apresentação da obra Assim falava Zaratustra. Nietzsche está se propondo fazer uma descrição do que ele entende por inspiração, o que ele experimenta no momento em que cria:

O conceito desvelamento, no sentido de que, de repente, com indizível precisão e sutileza, algo se torna visível, audível, nos toca no mais fundo e nos transtorna, descreve simplesmente o estado de fato. Ouve-se, não se procura; apodera-se, não se pergunta quem dá; como um raio, um pensamento brilha, com necessidade, sem hesitação na forma – eu nunca tive uma opção. Um êxtase, cuja monstruosa tensão desata às vezes em torrentes de lágrimas, com o qual o passo involuntariamente ora se precipita, ora se torna lento; um completo estar-fora-de-si com a consciência distinta de incontáveis delicados tremores e calafrios até os dedos dos pés; uma profundidade de felicidade, na qual o mais doloroso e mais sombrio não atua como oposição, mas como condicionado, provocado, como uma cor necessária em meio a um tal transbordamento de luz; um instinto para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas. (...) Tudo acontece involuntariamente no mais alto grau, mas como em um turbilhão de sentimento de liberdade, de ser incondicionado, de poder, de divindade... A involuntariedade da imagem, do símbolo é o mais marcante; já não se conceitua mais o que é imagem, o que é símbolo, tudo se faz presente (s. bietet) como a mais próxima, mais correta, mais simples expressão. Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como se as coisas mesmas se achegassem e se presenteassem (sich anböten) como símbolos. (NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que escrevo tão bons livros, Assim falava Zaratustra, §3) Essa passagem de Nietzsche está carregada de tantas questões

que, inúmeras delas, este texto não pode simplesmente nem mesmo visualizar. Mas algumas nos tocam imediatamente a vista. A primeira delas

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se refere à experiência de criação em Nietzsche como sendo desvelamento, algo que acontece numa experiência inspirada. Nietzsche mesmo fala que o conceito de desvelamento (Offenbarung) descreve simplesmente o estado de fato.

Sabemos que a posição que Nietzsche ocupa na história das reflexões sobre a arte assume com radicalidade, não a obra de arte como objeto da deleitação estética – como se existisse em si, fora do âmbito da existência que com ela se relaciona –, não o ponto de vista do espectador como aquele cujas vivências pessoais, cujos pontos de vista subjetivos do intelecto e do sentimento dão sentido às obras de arte, mas o ponto de vista do artista. Por essa assunção, Nietzsche entende o privilégio que o pensamento deve dar à experiência daquele que cria as obras de arte, daquele que as produz, fazendo vir a ser, surgir no mundo o que sem ele não existiria, saltar do nada para o ser. Em lugar de se ater ao sujeito que cria, o privilégio dado ao artista neste modo de reflexão sobre a arte se atém ao instante de produção das obras, voltando-se para a instância em que elas aparecem e vem a ser. A esta instância, como “lugar” de nascimento das obras, a existência precisa regressar para se fazer existência-artista, ela que, no capítulo “O Regresso”, de Assim falava Zaratustra, aparece não como um sujeito que cria, mas como o “aqui” da existência, que é a abertura de sua própria solidão, o estar-a-sós-consigo-mesma da vida, como diante de seu próprio nada, de seu próprio por fazer.

Esse privilégio assume a experiência do criador para se pensar na arte, mas não apenas na arte, como também na filosofia e na vida em geral. Com efeito, Nietzsche diz que “Na filosofia, até os dias de hoje, faltou o artista” e com isso ele quer dizer que faltou, no pensamento filosófico sobre a vida em geral, o levar em conta o fenômeno do artista e até mesmo deixar que esse fenômeno tomasse todo o campo de visão. De modo que temos que pensar que com a descrição que Nietzsche dá de sua experiência de criação está igualmente em jogo o modo como ele pensa a existência humana em geral. A vida, a existência é criativa, ela é um fenômeno constante de criação, sendo essa necessidade de fazer a si mesma que a cada instante se abre, lançando a vida para além de si em tudo o que realiza. A poiêsis, no sentido que Platão dá n’O Banquete, como “tudo o que promove a passagem do não-ser para a existência” (Platão, O Banquete, 206 b), define, neste sentido, a vida em geral. Ela fala desse movimento de se abrir em novas possibilidades, para além de tudo o que já está realizado, destruindo-se na mesma medida em que se realiza, e coloca a criação como um estar às voltas, a todo instante, com o nada das coisas e de si mesma. Desde então, a presença do nada, do não-ser, do não-feito, do não-realizado se conjuga com o fazer. A criação, pensada nestes termos, coloca a existência como tendo

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que ser pensada inexoravelmente como algo que está em relação constante com o nada, ao mesmo tempo que põe o nada como o que, na mesma medida em que possibilita a aparição do novo, se furta ao fazer e nunca pode se realizar, de modo que constitui o domínio do insondável, inapreensível e insólito da vida humana. Superar a si mesmo, que Nietzsche vê como o fundo abissal da vida, implica na idéia de salto da vida para além de si, salto que é feito no insondável, como criação e destruição de si, então como “risco e perigo e um lance de dados com a morte”. (NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, “Da auto-superação”) Se Nietzsche fala, contra a idéia wagneriana de redenção, que a figura do judeu errante é a figura do próprio artista é porque o artista expõe de modo mais transparente esse nomadismo da existência, posto que, para ser o que é, precisa estar sempre cumprindo essa passagem do não-ser para a existência, isto é, precisa estar sempre criando obras. O sentido de sua vida está lançado no quadro que desde nada e para nada ainda falta ser pintado, no poema que de nada e para nada ainda falta ser escrito, etc. A falta, o não-ser, o nada é motivador da vida do artista. Não se trata de um nada privativo, que signifique um decalque da existência, uma falta que possa vir a ser curada, mas de um nada criativo, que se abre como um transbordamento de vida que ultrapassa seus limites, instaurando assim um âmbito de novas possibilidades de realização.

Assim, a idéia nietzschiana de criação é a idéia mesma de vontade de poder como movimento de intensificação de interesse, de disposição, de pôr-se em obra ao se reunir em toda a sua vitalidade no fim proposto, ainda não feito, e que deve ser levado a cabo – o fim, a meta, pertencendo ao âmbito do não-feito, do nada, e que dá origem ao movimento. A valorização do artista vai de par, no pensamento nietzschiano, com a afirmação de que a arte desperta o interesse, intensifica a vontade. A experiência do artista é a experiência de uma intensificação das forças da vida, de uma excitação do desejo que dispara na direção de uma realização de nada e para nada além dela própria. A arte, para Nietzsche, não tem nada de uma atividade desinteressada. Por isso, o privilégio deixa de recair sobre o espectador desinteressado, que se deleita na contemplação do belo da obra de arte como meio de fuga do instante em que se encontra para atingir uma pacificação de todos os seus impulsos, uma negação do querer e uma narcotização de todos os afetos. Nietzsche inverte a ótica tradicional, de Schopenhauer via Kant, segundo a qual “o belo é o que agrada sem interesse”. O privilégio do artista no pensamento de Nietzsche reverte esse pensamento, e põe a beleza como excitante do desejo, como disposição para o fim e como despertar da vontade criadora: “Onde há beleza? Onde eu, com toda a vontade, devo querer; onde quero

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amar e sucumbir, para que uma imagem não fique apenas imagem”. (NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, “Do imaculado conhecimento”)

Falando desse privilégio dado à experiência criadora do artista em detrimento da experiência desinteressada do espectador, Giorgio Agamben o vê como o destino histórico da arte de nosso tempo, esse que pensa o criar como um risco, como sendo ao mesmo tempo o que fortalece e o que mata, o veneno que alimenta a vida do artista moderno. Se ele diz que essa propriedade da arte de nosso tempo abre para a possibilidade privilegiada de pensarmos a arte como abertura a um mistério absoluto, devemos também levar em conta que há a possibilidade, também, de compreendermos a criação como atividade do homem que luta por conquistar o que deseja criar, o que parece ir contra o pensamento que Nietzsche pode nos oferecer. Agamben vai dizer que, nessa valorização da experiência criadora do artista como o lugar próprio da arte,

Se põe a caminho a idéia segundo a qual um risco extremo esteja implícito na atividade do artista, quase, como pensava Baudelaire, como se essa fosse uma espécie de duelo até a última gota de sangue, “onde o artista grita de pavor ante ser vencido”. (AGAMBEN, L’Uomo senza contenuto, I, p. 15)

A experiência moderna de criação, tal como Agamben está

pensando, coloca a criação como um estar em risco, como um lance de dados com a morte, como um se bater com o nada, com o âmbito do não-feito, mas de tal maneira que pensa esse bater num sentido extremo, como luta, como guerra, onde a página em branco para o poeta, o quadro em branco para o pintor, o bloco de mármore para o escultor são o adversário a ser vencido, o inimigo a ser aniquilado para que a obra de arte apareça como produto da vontade vitoriosa do artista. Quer seja quando despende “sangue, suor e lágrimas” na produção da obra, quer seja quando, com facilidade, manipula os elementos e os meios tecnológicos de que dispõe, ronda a possibilidade de se compreender o artista como aquele que dispõe do aparato técnico e da criatividade formal para se expressar através da obra, dobrando a matéria e os materiais à sua vontade. Expressar a si próprio, seu pensamento, seu temperamento ou sua biografia através da obra, impondo à forma da matéria um significado ideal que se manifesta através dela, que se confunde com ela, mas que não é ela, vai de par com a idéia de que a criação consiste numa luta travada com o próprio nada – luta sempre destinada ao fracasso, uma vez que o nada nunca abandona o artista e que sempre lhe oferece a chance do próximo combate. Nós podemos ver, nesse modo de sofrimento da criação, a presença da perspectiva moderna

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que visa impor a vontade do homem sobre as coisas, de modo que elas se adéqüem aos seus fins produtivos. Desde isso, criar só pode ser um exercício de violência sobre si e sobre as coisas, onde a dor da geração deixa de ser esquecida para ser o testemunho da grandeza materna.

Nietzsche abre uma outra via de compreensão quando, pensando a criação desde a ótica da experiência criadora, desde este movimento de superação e de morte, coloca a inspiração, o desvelamento como descrição do estado de fato. Porque o que irá caracterizar o estado de inspiração, de acordo com a descrição que Nietzsche dá do fenômeno, é o caráter repentino, abrupto com que a possibilidade do criado assoma na existência, sem que possamos pensar em uma vontade preexistente a essa aparição súbita. Ao contrário, a vontade irrompe junto com essa irrupção repentina, o movimento que se dispõe a criar vem a ser a partir do instante em que a obra passa a ser vislumbrada como aquilo que deve ser levado à plenitude de sua realização. O artista é o Vollender, o que leva ao cheio, o que conduz à plenitude um movimento já sempre começado previamente, sem que ele possa dar a volta por detrás dele e apanhá-lo em flagrante, no seu ponto zero, no seu começo. A criação do artista é o consumar de uma possibilidade de vida cujo acontecimento já sempre se deu, no qual ele já está sempre lançado. O que faz com que, se há uma luta, se há um esforço, ele é sempre, de certa forma, em prol do “adversário”, como a condição de possibilidade para que a luta permaneça e onde só se pode tomar – a pintura do quadro em branco, o poema da página vazia – aquilo que se oferece como dádiva, como graça – aquilo que se pôs impulsivamente “aí”, que já se fez presente de si mesmo.

Na esteira da reflexão grega sobre a criação, Nietzsche irá retomar esse movimento criativo da arte como imitação quando, n’O Nascimento da tragédia, ele fala de uma imitação das pulsões dionisíacas e apolíneas, respectivamente das potências da embriaguez e do sonho, feita pelo artista quando cria. Imitação, porém, não significa cópia de um modelo preexistente, mas ao contrário quer dizer que o artista parte sempre do real – que n’O Nascimento da tragédia são as pulsões dos dois deuses da arte, como pulsões da natureza – para criar e esse partir do real quer dizer assumir em si mesmo as suas forças criativas e levá-las até onde elas, por si mesmas, não podem ir, engendrando o que o real, por si mesmo, não pode produzir. “Criar”, diz Nietzsche, é “escolha e aprontamento do selecionado – é isso”, diz ainda ele, “o essencial em todo ato de vontade”, o que pressupõe que a decisão seja sempre em favor de..., que a possibilidade de uma coisa já tenha aparecido, e nessa aparição súbita, aconteça igualmente a decisão da vontade para levá-la até o limite daquilo que pode: conduza-a através da passagem do não-ser para a existência. Com isso, a idéia de

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desvelamento corre junto com a idéia de que o mistério não é um adversário, como um enigma a ser resolvido, como um quebra-cabeças, como um desafio lançado à humanidade do homem. O mistério, o não-ser, ou como Nietzsche diz, “o doloroso e mais sombrio não atua como oposição, mas (...) como uma cor necessária em meio a um tal transbordamento de luz”. “Apodera-se, não se pergunta quem dá”, o que faz com que a aparição repentina do que se impõe como necessário a ser feito no momento da criação se faça junto com a sombra escancarada de uma origem da qual o intelecto já parte, no qual ele já se move, do qual é dependente, do qual nunca pode se apoderar. De acordo com o pathos presente na descrição de Nietzsche feita em Ecce homo, a experiência de criação não é movida pela revolta, nem por uma perspectiva de ação que tenta impor a sua vontade por sobre as possibilidades que se oferecem na situação, mas como uma afirmação, e isto quer dizer um “dizer sim às coisas”, como dispor-se à novidade do mundo, estar aberto a ela e a partir dessa abertura descobrir todos os meios que conduzam à efetivação das possibilidades do que toma a vida como o necessário acima de tudo. Sabe-se e quer-se joguete nos devires do mundo. O pathos aqui em questão é o de uma “profundidade de felicidade”, onde a dor e o mistério, onde aquilo que aprofunda, pertence igualmente à criação, tanto quanto o transbordamento de luz, a superficialização e mostração da realidade. Segundo o próprio Nietzsche, a primeira tese de sua estética diz que “O que é bom é leve, toda divindade corre com pés delicados”. (Nietzsche, O caso Wagner, I) Neste sentido, podemos pensar que o esforço por conquistar o criado e dar-lhe forma obedece dispostamente à sua aparição como o a ser criado, isto é, só pode conquistá-lo porque já foi conquistado por ele, como possibilidade de vir a ser da realidade, e se teve todo o seu ser liberado, “bem disposto” na direção dessa tarefa, deixando que ele venha a ser e se faça de acordo com as possibilidades que a ocasião vai oferecendo para o seu cuidado. Desde isso, podemos pensar que o artista, enquanto o Vollender, enquanto o completador, o que leva ao cheio ou consuma uma possibilidade de ser que toma toda a existência, não é nada, ele é tão só a passagem cuidadosa do “não ser para a existência”. Ele, o homem, é ponte e não meta, que precisa tanto da existência já aí das margens, bem como do abismo, para poder se fazer.

Ao pensar a arte desde a ótica da intensificação da vida, desde a ótica do interesse, Nietzsche coloca a criação, em toda a abrangência do termo, como fenômeno do corpo. E por corpo, Nietzsche não entende um fenômeno que pudesse ser constatado pelo estudo do biólogo, nem o irracional, que se contrapõe ao racional, nem algo já constituído, uma substância. Nietzsche parece pensar o corpo como acontecimento

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existencial de superficiliazação e mostração da realidade. Pensado dessa forma, ele não é um elemento substancial, estático e existente em si mesmo junto às outras coisas já constituídas, mas um movimento de aparição do real desde o toque primevo da sensibilidade. O que significa dizer que as coisas não preexistem ao toque, mas são ou vem a ser no momento do tocar, no momento do corpo. Pensado assim, o corpo aparece como “a grande razão”, onde “grande” quer dizer fundamental, o fundamento, e razão, Vernunft, aparece como vernehmen, como pegar, captar, como perspicere, como perceber. O estado de êxtase, pertencente para Nietzsche à criação, expõe o ser ex-tático do corpo, seu “estar fora de si”, junto às coisas, isto é, na presença, no vir a ser delas, porque expõe a intensificação de sua capacidade de sentir. No estado de êxtase, na embriaguez da criação, a sensibilidade se intensifica e se torna aberta não apenas à percepção do que já nos aparece como constituído em nossa visão cotidiana, mas sobretudo do possível, que oscila entre o ser e o não ser, que aparece como aquilo que “toca no mais fundo”, isto é, que aparecendo nos afeiçoa e mobiliza todo o nosso ser na destinação de sua consumação, de sua poiêsis.

Pensando o corpo como fundamento de todas as descobertas, como a grande razão ou a captação originária da realidade, e pensando-a ao mesmo tempo como poiêsis que se desdobra a partir da phýsis, da aparição súbita que acontece como sensação, Nietzsche coloca a criação poética, a criação com palavras, também dentro dos movimentos poéticos da existência, trazendo, assim, as idéias para junto dos “tremores e calafrios até os dedos dos pés”, “para junto do que toca no mais fundo”, bem como põe a linguagem no lugar da aparição súbita das palavras. “Como um raio, um pensamento brilha, com necessidade, sem hesitação na forma – eu nunca tive uma opção” e logo adiante ele diz:

Tudo acontece involuntariamente no mais alto grau, mas como em um turbilhão de sentimento de liberdade, de ser incondicionado, de poder, de divindade... A involuntariedade da imagem, do símbolo é o mais marcante; já não se conceitua mais o que é imagem, o que é símbolo, tudo se faz presente (s. bietet) como a mais próxima, mais correta, mais simples expressão. Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como se as coisas mesmas se achegassem e se presenteassem (sich anböten) como símbolos.

Esta hora poética se apresenta, de acordo com isso, como a

reunião, num só acontecimento, do real, cujo ser se mostra como um se fazer presente, como um oferecer-se, doar-se, e a palavra, compreendida

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como imagem. E nessa reunião, Nietzsche diz que “já não se sabe mais o que é imagem, o que é símbolo”, porque as coisas aparecem e se apresentam imediatamente como símbolos, como imagens, que passam a significar a palavra justa para dizer o que diz. Como entender isso, se a imagem é pensada na tradição filosófica como um decalque do real, como uma cópia imperfeita que apenas representa a realidade, sem, contudo, nunca poder abarcá-la e dizê-la na plenitude de seu sentido? De acordo com a descrição nietzschiana, a palavra representação, ainda que utilizada inúmeras vezes por Nietzsche em outros textos, não basta para se resolver a questão da imagem. Ficamos com a impressão de que a palavra apropriada para falar da imagem é a palavra apresentação, presentificação e não re-presentação. Tudo se passa como se a imagem não representasse, a seu modo, uma realidade preexistente e em si que, esta mesma, nunca aparece, como uma aparência que se deve transpor a fim de se apanhar a coisa mesma. Quando diz que, neste instante que se tratou de descrever, é como se as coisas mesmas se aproximassem e se presenteassem, se oferecessem como símbolos, Nietzsche parece dizer que forma e conteúdo ficam reunidos num só movimento de superficialização, de aparição, o que descarta, a seu modo, a dualidade metafísica de um sensível e de um supra-sensível, da aparência e da idéia, do signo e da significação. A idéia já é superficialização, já é aparecimento, iluminação, já é forma, aspecto, eidos, e este é o se fazer sensível da coisa. (Uma das críticas de Nietzsche ao que ele chama de decadência da arte irá recair justamente sobre a utilização da forma como material de expressão para pensamentos, idéias, para conteúdos morais e religiosos, “sem amar uma forma pelo que ela é” (NIETZSCHE, KSA, 12, 7[7], p. 286) e pensando-a como trampolim para o que se tem a intenção de dizer. O que é dito, com isso, da forma, parece valer, no pensamento nietzschiano da maturidade, como sendo válido para o modo de ser da realidade como um todo.)

Podemos ver isso com mais elementos a partir do que diz Fernando Pessoa numa frase de um texto em prosa, sem data, que na edição das Obras em prosa organizada pela Prof.ª Cleonice Berardinelli recebeu o nome de Os heterônimos e os graus de lirismo: “Em prosa, diz Fernando Pessoa, é mais difícil de se outrar”. O verbo “outrar” criado por Fernando Pessoa se aplica à presença dos heterônimos na escrita, ao modo de “encarnação” em Fernando Pessoa das diferentes vozes, dos diferentes modos de dizer, de pensar e de sentir que compõem cada universo poético e que cada heterônimo é. No contexto em que aparece a frase, Fernando Pessoa está falando da “aparição” dos heterônimos numa comparação com a dramaturgia, em que um autor deixa passar através de si as diferentes vidas dos personagens, e que é tanto melhor dramaturgo quanto menos se

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“revela”, quanto mais o personagem tem vida própria através dele. Revelar-se o dramaturgo através dos personagens, fazendo-os símbolos dos sentimentos e dos pensamentos do autor, é fazer os personagens “falhados”, diz Fernando Pessoa, porque não têm vida própria, não são só sua própria presença, não estão inteiros neles mesmos, em seus modos de sentir, de pensar e de dizer. Em prosa, diz ele, é mais difícil se outrar, isto é, em prosa é mais difícil deixar o modo de ser, a maneira de sentir e de pensar de um outro aparecer nas palavras. O que quer dizer que em versos, em poesia, é mais fácil se outrar. E por que é mais fácil se outrar em poesia? Porque aquilo que se revela na poesia, digamos, não é independente de um modo de dizer, não é independente da forma que se diz. Ao contrário, só se diz com uma entonação própria, com um ritmo próprio, com um embalo próprio dos sentimentos, com aquelas palavras apropriadas num conjunto e que não podem ser simplesmente substituídas por outras. Se assim fosse, bastaria, para se traduzir um poema, transportá-lo para uma explicação de conteúdo feita em prosa. Toda dificuldade de se traduzir poesia parece residir nisso. Em poesia é mais fácil de se outrar porque em poesia os pensamentos e os sentimentos com que se dispõem os poemas (e os poetas, e os heterônimos) é já imediatamente um modo de dizer, é já imediatamente irrupção dos pensamentos, dos sentimentos na forma da palavra, é já reunião, num só advento, do ver, do sentir, do dizer. (Cf. FOGEL, Gilvan. Apontamentos para uma leitura de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa) Isso que Fernando Pessoa nomeia “se outrar” parece estar em conformidade com o que Nietzsche chama de estilo em Ecce homo, como pathos tomando forma nas palavras, assomando na linguagem, já se dando como modo de dizer: “Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos, nos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos”. (Nietzsche, F. Ecce homo, Por que escrevo tão bons livros, §4)

Através de uma linguagem que fala de interior e de comunicar, Nietzsche nos deixa ver que não há primeiro um estado interior e depois a comunicação de tal estado através das palavras, mas sim que o que há é um movimento de exposição, de evidenciação de um “estado de tensão de pathos” nas palavras. É como se ele dissesse: Bom é todo estilo que não está nesta dualidade de interior e exterior, mas que é pura evidenciação, pura exposição das coisas mesmas, como o ódio não se encontra em nenhum lugar interior e recôndito da alma humana, mas nos olhos injetados de sangue e em toda disposição violenta dos gestos de um homem. Estilo parece ser aqui modo de dizer, e modo de dizer é modo de evidenciação de vida, de pathos, de corpo, modulação, tonalidade ou acorde de impulsos. Nietzsche compara, pois, o estilo ao gesto como o tomar forma do elemento

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patético nos ritmos, na duração dos signos, na modulação musical das palavras (a musicalidade das palavras impede sempre que pensemos na possibilidade de suas substituições). A palavra aparece, aqui, como forma, evidenciação, “gesto” de vida se fazendo vida, ou corpo se fazendo corpo na e como palavra.

É bastante sugestivo que, na passagem de Ecce homo que citamos no início e que fala do fenômeno da inspiração, Nietzsche fale deste estado extraordinário, inspirado, em que as tonalidades afetivas assomam na voz, na disposição das palavras e que é o acontecimento-corpo, como um fenômeno ao mesmo tempo luminoso e de liberdade, como “abertura” (Offenbarung, “revelação”, “desvelamento”) da realidade: “... um tal transbordamento de luz...”, “Tudo acontece involuntariamente no mais alto grau, mas como um sentimento de liberdade...” Luz é acontecimento de sentido, da disposição do aparecimento, da transcendência desde nada das coisas; é acontecimento de fazer-se visível, de aparecer ou de superficializar-se num modo de sentir, de ser tocado por... E este é um exercício de liberdade, o que Nietzsche entende como liberdade para... (Cf. NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra, “Do caminho do criador”), isto é, como dispor-se numa determinação a qual a vontade pode apenas dizer sim e escolher porque já aconteceu abruptamente uma decisão na qual ela está lançada. Liberdade é poder ter a existência tomada de assalto (“impulsivamente”) por um modo de ser através do qual a realidade se faz, se realiza. Cria a si própria como experiência criadora.

Liberada na direção de, se movendo já no transbordamento de luz, sendo já aparição de tensão ou relação de impulsos na consciência, como aparecimento de sentido, de perspectiva, a existência aparece sendo pensada como o estranho acontecimento de sentido e de compreensão se dando, se lançando sem poder ser a origem de si própria, e se a filosofia é uma tentativa de apreensão dessa origem, Nietzsche ocupa um lugar bastante privilegiado nela, uma vez que a põe como o buscado que nos determina, como o acontecimento a se compreender, mas que sempre, de todo, nos escapa das mãos, nunca podendo ser esgotado num saber: como “indizível certeza”. Como o deus Dioniso que aparece dito no palco, nos gestos, nas palavras e na música da tragédia, ao mesmo tempo que se oculta.

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Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. L’Uomo senza Contenuto. Macerata: Quodlibet, 1994. FOGEL, G. L. Apontamentos para uma Leitura de Alberto Caeiro. In: Terceira Margem, Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura - UFRJ, Ano VIII, nº 11, 2004. NIETZSCHE, Friedrich. Sämtlich Werke. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, ed. Giorgio Colli/M. Montinari. Berlim/Nova York: De Gruyter, 1999. PESSOA, Fernando. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1982. PLATÃO. O Banquete - Apologia de Sócrates. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém, PA: UFPA, 2001.