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NIETZSCHE: UM FAZER A CONTRAPELO1
Profª. Drª. Glória Maria Ferreira Ribeiro – Departamento das Filosofias e Métodos (UFSJ) (Bo ls is ta do Grupo PET-Filosofia/UFSJ MEC/SESu/Depem).
Resumo: O presente artigo tem como objetivo explicitar a posição assumida pelo
pensamento de Nietzsche diante o fenômeno de banalização da vida. A tendência à banalização
não é algo que pertença exclusivamente a nossa época ou à época de Nietzsche, mas é um
fenômeno inerente à própria existência humana. Hoje essa tendência se fortalece cada vez mais
em função do desenvolvimento tecnológico e de um alarmante esvaziamento da linguagem. Ora, o
que nos interessa é, precisamente, compreender como esse fenômeno pertence à própria estrutura
da vida e o que ele hoje representa.
Palavras-chave: Vida, banalização, tecnologia.
A palo seco é o cante de caminhar mais lento:
por ser a contrapelo, por ser a contravento;
Personalidade conturbada por diversas doenças, a mente tomada por uma loucura
iminente, contestador radical da moral cristã, crítico ferino do pensamento metafísico,
Nietzsche foi, acima de tudo um apaixonado pela vida - que se fez à questão essencial do
seu pensamento – que se põe ao revés, se põe a contrapelo da sua época. Contudo, estar
a contrapelo de uma época histórica pertence à natureza de toda questão essencial da
filosofia. Martin Heidegger, em sua Introdução à Metafísica, nos diz:
toda questão essencial da filosofia permanece necessariamente inatual, extemporânea. E isso por dois motivos: ou porque a filosofia se projeta para muito além da atualidade, ou então, porque a filosofia reconduz e reata seu presente a seu passado presente originário. Como quer que seja, a filosofia é e permanecerá sempre um saber que não se deixa moldar pela medida do seu tempo, mas que, pelo contrário, põe o tempo sob sua medida. A filosofia acha-se essencialmente fora do seu tempo, porque ela pertence ao domínio daquelas poucas coisas cujo destino consiste em nunca poder ou dever encontrar ressonância imediata na atualidade. Onde tal parece ocorrer, onde uma filosofia se transforma em moda, é porque aí não há verdadeira filosofia, ou porque esta é desvirtuada e usada pervertidamente, segundo intenções estranhas à filosofia para satisfazer as reclamações e as necessidades da moda.2
Esse escrito de Heidegger data de 1953, os escritos de Nietzsche foram produzidos entre
1872 e 1888. Tanto o escrito de Heidegger quanto os escritos de Nietzsche ainda hoje nos
1 O presente artigo originou-se do projeto de pesquisa homônimo apresentado por mim, no ano de 2005, pleiteando a bolsa de iniciação científica da FAPEMIG para Dênis Gualberto de Paula. 2 MARTIN, Heidegger. Introdução a Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p.15
“Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006
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- 2 - falam de questões que nos são essenciais e, no entanto, continuamos gravitando na
periferia do pensamento desses filósofos. Hoje, mais do que em qualquer outra época, a
moda e os modismos regem as nossas ações. A filosofia parece ter se desviado da sua
essência. O que existe de mais essencial no pensamento de Nietzsche parece ter sido
desvirtuado e esquecido. Talvez a questão que nós devamos elaborar seja precisamente
essa: por que hoje nos encontramos tão afastados do pensamento de Nietzsche? Por que
nos distanciamos cada vez mais de todo pensamento que se mantém próximo à origem? Poderíamos dizer que: quanto maior se mostra a eficácia da ciência e da técnica, mais e
mais nos afastamos do que em nós há de essencial, mais e mais nos esquecemos da
nossa finitude: do abandono e incerteza que caracteriza a nossa existência, que
caracteriza a própria vida. Vida que se faz a origem de todo pensamento radical.
Esquecemos que estamos abandonados à nossa própria sorte, às nossas próprias
possibilidades de ser. Esquecemos que temos que ser corajosos e afirmar o caráter
efêmero da vida. Tomados pela força desse esquecimento, nos agarramos à condição de
sujeitos do conhecimento à medida que esta condição nos dá a segurança e a certeza
que nos falta e de que precisamos face ao extraordinário. Afinal, quão tranqüilizador é
para nós enquanto sujeitos da ciência pensar na morte como um fenômeno “natural”. Algo
que pode ser explicado cientificamente, e por esta explicação, “dominado”. Assim,
enquanto sujeitos do conhecimento, vemos amortizada a nossa perplexidade face ao
estranho, ao inabitual à medida que tudo pode ser convertido em objeto de explicação,
tudo pode ser “objetivado”. Devoramos velozmente as últimas invenções e descobertas tecnológicas e somos
devorados pela curiosidade do que ainda está por vir a ser inventado e descoberto.
Perdemo-nos num “disse que disse” acerca deste nosso mundo moderno, repetimos o que
já se sabe, o que toda gente sabe, o consabido. Somos tragados de roldão pelas
informações trazidas através dos meios de comunicação, onde tudo é massificado, onde
nada do que se diz é, de fato, apropriado. A velocidade com que as informações são
veiculadas pela TV, rádio, cinema e, agora mais modernamente pela Internet, não nos dá
o tempo necessário para compreendermos o que é dito. Tampouco, há tempo para nós
nos compreendermos nesse dito. Esse dizer, veiculado pelos meios de comunicação, que
pertence a todo mundo, de fato, não pertence a ninguém. Somos impelidos por este
falatório, a uma curiosidade superficial e desenfreada pelo novo, pela novidade. Queremos
sofregamente, comprar a última novidade do mercado editorial, assistir o último filme
lançado nos cinemas, comprar a mais recente novidade em roupas. Consumimos e somos
consumidos pela moda. E assim, não permanecemos tempo suficiente em nada,
conseqüentemente, não nos reconhecemos essencialmente em nada do que fazemos. Por
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- 3 - não haver esse reconhecimento é que as coisas (que compramos, lemos, vestimos e assistimos) são facilmente descartadas e substituídas por outras. Essa impermanência nas coisas e em nós mesmos nos lança num estado de ambigüidade, onde “se conhece tudo,
pois se fala de tudo e se interessa por tudo”3. Vemo-nos presos na mais absoluta impessoalidade - desinteressamo-nos de nós mesmos.
Nesse estado de impessoalidade o espírito do público, da publicidade impera
assustadoramente. Porque tudo passa a ser do domínio de todos. Nós nos vemos
relegados a um “canto estreito” da vida4. Dela (vida) só conhecemos o que se encontra
compreendido na fala pública. Ou melhor: acostumamo-nos a repetir o que já foi dito sobre
as coisas, a repetir o que já foi dito sobre o que é o homem e sobre o que é a vida na terra.
Por isso, mesmo quando ouvimos as notícias sobre as mais recentes descobertas
tecnológicas – por mais extraordinárias que sejam – já não nos admiramos mais, pelo
menos, não por muito tempo. Parece que tudo, nesse nosso mundo, se tornou familiar –
até mesmo, o que era extraordinário... Pois bem, é contra essa banalização da vida que o pensamento de Nietzsche se insurge.
Essa tendência à banalização, não é algo que pertença exclusivamente a nossa época ou
à época de Nietzsche, mas é um fenômeno inerente à própria existência humana. Hoje
essa tendência se fortalece cada vez mais em função do desenvolvimento tecnológico e
de um alarmante esvaziamento da linguagem. Para Nietzsche, que viveu nas últimas
décadas do século XIX, o perigo dessa banalização se manifestava no cristianismo – que,
para ele representava a expressão mais acabada do pensamento metafísico, a forma mais
acabada de negação da vida.
Segundo Nietzsche, o homem do cristianismo é o homem do rebanho... Ele se dilui no
meio da multidão, não tem rosto, não possui o poder de uma vontade afirmativa. Possui
apenas medo e ressentimento. Esse homem se mantém sempre sentindo as mesmas
coisas, é incapaz de esquecer. Ele se apega ao que já se encontra feito e por isso sofre.
Sofre porque a sua única vontade é reativa: ele reage contra a fugacidade das coisas, quer
que a vida se mantenha inalterada, quer que o tempo se converta num eterno presente.
Desse modo pensa poder fugir da morte, pensa poder fugir de si mesmo. Sendo assim
esse homem é incapaz da solidão. Incapaz de se manter no fluxo vital: de criar para si
mesmo regras e leis, de criá-las e esquecê-las. Esse homem se refugia na impessoalidade
do rebanho – age sempre como os outros agem. Fica feliz em seguir uma doutrina como o
rebanho segue o seu pastor.
3 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 1989, p. 78. 4 Alusão ao texto Cartas a um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke, editado pela Editora Globo.
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- 4 - E mais: revoltado com a sua impotência diante da vida, o homem metafísico se rebela
contra essa mesma vida que o ameaça. O fenômeno vital se mostra para esse homem
como aquilo que não deve ser... Tudo passa, tudo flui, a morte é inevitável... Isso ele não
pode suportar. Ele precisa “dominar” a vida, torná-la ao menos aceitável. Na sua tentativa
de dominação, ele cria as instituições, por exemplo, cria a justiça para se proteger de todo
homem que seja mais forte do que ele. Cria artifícios para dissimular a sua fraqueza. Na
criação desses “artifícios”, o nosso homem parte do pressuposto de que há um sujeito por
detrás dos fenômenos que a esses serve de causa. O homem da metafísica procura
desesperadamente algo que sirva de fundamento para a sua existência. Num sentimento
de vingança contra a vida, esse homem cria uma “outra vida”, uma vida supra-sensível:
pálida, opaca, ascética. É dela que os seus companheiros de rebanho retiram a
justificativa das suas existências, é essa outra vida que impõe as regras desde as quais
eles deverão pautar as suas ações. Contudo, essa reação contra a vida que se encontra encarnada no homem da metafísica,
no homem do cristianismo nada mais é do que a expressão da vontade de poder implícita
em todo existente. A vontade do homem do cristianismo nasce de uma reação contra a
vida, isso quer dizer: essa vontade é, igualmente, proveniente dessa mesma vida – dela
(vida) nasce e contra ela se rebela. Por ser fraco, ressentido e covarde esse homem cria
“artifícios”, “artimanhas” com as quais procura dominar a vida e, com essa dominação,
proteger-se da sua própria impotência. Precisa proteger-se, fundamentalmente, daquele
tipo que mais se aproxima da vida enquanto um poder de afirmação, ou seja, o homem do
cristianismo precisa proteger-se do homem nobre. O homem nobre é o senhor da sua ação: é ele quem cria as suas regras e valores. Tudo
parte dele. Tudo dele se origina. Diante da afirmação da sua vontade prostra-se todo
aquele que não compartilha com ele dessa força afirmativa, dessa força ativa. O que não é
nobre é o que “sobra”: é o estranho, o diferente. Caso a honra exista essa só pode existir
entre os fortes: somente frente aos iguais é que devem existir deveres. Em relação ao
estranho, ao diferente, isto é, frente àqueles que não possuem a mesma força pode-se
agir ao bel prazer ou segundo Nietzsche: “como quiser o coração”. O homem nobre não
conhece o que seja justiça, se se concebe por justiça algo do gênero: “direitos iguais para
todos”, pois direitos, assim como deveres só existem entre os poderosos. O poder do
nobre está na sua força de ação, na sua força ativa – que por ser sua é sempre uma “boa”
ação por mais violenta e irascível que ela possa ser. Pois bem, ser nobre é ser força
engendradora de ações. Enquanto expressa essa força ele emerge como aquele que
afirma a sua vontade, e, dela se esquece, para que essa vontade possa novamente
renascer, desde esse mesmo esquecimento. O esquecimento é, portanto, o que permite
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- 5 - que o homem “saia” de uma ação de modo a poder vir a afirmar outra. E mais: é esse
esquecimento que dá a leveza característica do nobre – leveza que caracteriza, de igual
modo, a criança.
Não tomar a sério os seus inimigos e as suas desgraças é o sinal característico das naturezas fortes que se acham na plenitude do seu desenvolvimento e que possuem uma superabundância de força plástica, regeneradora e curativa, que sabe esquecer. (um bom exemplo disso nos tempos modernos é Mirabeau, que não conservava na memória os insultos nem as infâmias, e que não podia perdoar, simplesmente porque esquecia).5
O nobre não se atém a nada por muito tempo e, isso porque ele se mantém imerso na
fluência da vida. O nobre não se prende ao que foi feito porque está sempre lançado no
que ainda está por vir. É como se em cada ato seu, ele renascesse para a descoberta do
mundo. Daí a sua leveza: a leveza de quem acaba de nascer, leveza de quem ainda não
traz consigo o peso dos juízos já estabelecidos acerca dos homens e das coisas. A leveza
da criança que, por não levar as coisas a sério, esquece constantemente das coisas que
ela mesma afirma. Por conseguinte, o nobre é incapaz de ressentimentos, pois esses
implicariam num atavismo: em manter-se atado num mesmo sentimento. Se o nobre é
muitas vezes cruel com o que é estranho, com o que é diferente, essa crueldade não se
funda em nenhum rancor, em nenhum ressentimento. Ele é cruel única e exclusivamente
porque não pode deixar de ser. Ele é naturalmente forte e tem de expressar-se como tal:
tem de dominar, subjugar todo aquele que não compartilha da sua força. E quando o
homem nobre se dispõe a ajudar o fraco, ele nunca ajuda movido pela compaixão, mas
sim pelo “ímpeto gerado pela abundância de poder.” Pois bem, o nobre é a expressão
primordial da vida como vontade de potência. A sua ação é sempre verdadeira e gratuita.
Verdadeira na medida em que a própria vida a impõe. Gratuita porque sendo imposta pela
vida, ela não possui nenhuma utilidade para fora dela mesma. Poderíamos mesmo dizer
que o nobre é o homem de solidão e liberdade. Frente aos tipos psicológicos descritos por Nietzsche é o tipo representado pelo homem do
cristianismo, pelo homem do rebanho que mais se aproxima de nós: da tendência de
nossa existência cotidiana de se submeter ao jugo do público, da publicidade (daquilo que
pertence a todo mundo e, por conseguinte, não pertence a ninguém). Ou seja, nos
encontramos próximos da situação do rebanho na medida em que o sujeito da nossa
existência cotidiana, não é outro que o impessoal. Por sua vez, o esquecimento que nos
toma cotidianamente é de natureza contrária a do esquecimento próprio das naturezas
fortes. Se o nobre esquece do que fez, para que o seu fazer possa sempre renascer desse
esquecimento, nós nos esquecemos, precisamente, desse caráter efêmero das nossas
ações, do nosso fazer no mundo. Ao contrário do nobre, esquecemos que todo fazer é
fazer para nada e para ninguém, é fazer por fazer. Fazer para esquecer. Esquecemos
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- 6 - desse tipo mais radical de esquecimento. Isso porque nos mantemos presos no que já se
encontra feito, nos apraz repetir o que já foi dito... Cotidianamente delegamos a
responsabilidade desse feito e desse dito a alguém que se perdeu no indiferenciado dos
nossos dias. Assim, porque, cotidianamente delegamos a responsabilidade do que é feito
e dito a outrem, precisamos sempre que esse outrem nos alimente com algo novo, para
que possamos continuar a repeti-lo. É assim que hoje vivemos num estado de continua
impermanência, ou seja: como foi visto acima, não permanecemos tempo suficiente em
nós mesmos. Coisa completamente distinta do que acontece com o nobre que renasce,
continuamente desde a sua própria força de criação. Nós, homens modernos,
simplesmente saltamos de uma novidade para outra, contudo essa novidade não é algo
criado por nós, não nasce da afirmação da nossa vontade, mas, surge como fruto do
falatório acerca das coisas desse nosso mundo moderno. Diferentemente do nobre, que
jamais se perde no que dito pela multidão, que jamais se refugia no aconchego do rebanho
nem na certeza e segurança daquilo que já se encontra feito. Pois bem. Nós nos aproximamos do Homem do cristianismo com algumas modernizações,
próprias de nossa época. Por exemplo: no lugar de criarmos uma “outra vida”, nós, como
vimos, inventamos o mundo tecnológico, onde existem explicações para quase todos os
males que nos atormentam. Se antes, para o tipo cristão, a distância que havia entre o
mundo sensível (em contínuo devir, em contínuo fluir) e o supra-sensível era a distância
que se verificava entre o material e o espiritual. Hoje a distância que existe entre o real e o
virtual. Na esfera virtual somos capazes de conhecer uma quantidade extraordinária de
coisas e de pessoas, sem vê-las ou toca-las. Assim, nós nos resguardamos de nós
mesmos ao nos resguardarmos do outro. Poderíamos mesmo dizer que hoje, carecemos
de solidão. O pensamento filosófico, principalmente. Num escrito sobre Heráclito, Nietzsche nos diz:
[...] Quando em um filósofo há orgulho, é um grande orgulho. Sua atuação nunca
o aponta a um público, à aprovação das massas e ao coro aclamador dos
contemporâneos. Traçar solitariamente o caminho é próprio da essência do
filósofo6.
Em Nietzsche há, sem dúvida, um grande orgulho e uma profunda solidão. Convém,
entretanto, lembrar que a solidão de Nietzsche não se deve simplesmente ao fato de ele
não ter sido totalmente compreendido, seja nessa nossa época, seja na sua. A solidão de
Nietzsche é inerente a radicalidade da sua questão – é inerente à própria constituição do
5 NIETZSCHE, F. Para Além do Bem e do Mal. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1999, p. 43. 6 NIETZSCHE, F. Heráclito. São Paulo: Editora Abril Cultural, Coleção os Pensadores, 1973, vol. I, p. 57.
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Nietzsche: Um fazer a contrapelo
- 7 - fenômeno da vida. Isto é: a vida, em seu modo de ser mais próprio, exige solidão.
Contudo, nada parece mais difícil do que a tarefa da solidão. Diferente de encontrar-se
sozinho, sem a companhia e o reconhecimento de outros homens, a solidão é, antes, uma
condição Humana. Não é algo que esteja sobre a tutela de nosso querer. Assumir e
afirmar essa condição implica em afirmar nossa finitude. Significa assumir o fato de que
não existe nada sob os nossos pés. Nenhum fundamento, nada que sirva de base para as
nossas ações, nada que explique o porquê de sermos o que somos. Assumir a solidão que
nos constitui é, fundamentalmente, assumir a vida como uma tarefa de criação. Tarefa na
qual, esse mundo que nos é dado pronto, feito, perfeito, tem que ser esquecido para que
possa de novo renascer – desde uma perspectiva que, nesse mesmo mundo se mantém
ainda em latência. É como se precisássemos conhecer o passado, conhecer toda uma
tradição de pensamento, para procurar o que nessa tradição se mantém indecifrado; o que
nesse passado ainda está por vir. Talvez seja esse o sentido das palavras de Nietzsche no
prólogo do seu Zaratustra, quando ele nos fala que estamos no meio, entre o animal (o
que foi) e o super-homem (o que virá). Ele nos diz:
O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande no homem, é ser ponte e não meta: o que se pode amar no homem é ser uma transição e um ocaso.7
Assumir essa condição numa tarefa, num fazer é ter orgulho. Um grande orgulho.
Gostaria de terminar esse artigo com um poema de João Cabral de Mello Neto:
O Palo Seco
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante,
O Cante sem mais nada
Se diz a palo seco
A esse cante despido:
Ao cante que se canta.
Sob o silêncio à pino.
O cante a palo seco.
É o cante mais só:
É cantar num deserto
Devassado de sol;
É o mesmo que canta
Num deserto sem sombra
Em que a voz só dispõe
7NIETZSCHE, F. Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães & Guimarães, 1987, p. 19.
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Glória Maria Ferreira Ribeiro
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Do que ela mesma ponha
(...)
O cante a palo seco
não é um canto a esmo
exige ser cantado
com todo ser aberto;
é um cante que exige
ser-se ao meio dia
que é quando a sombra foge
e não medra a magia
(...)
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contrapelo,
por ser a contravento;
(...)
O cante a palo seco é o cante
que mostra mais soberba
e que não se oferece.
Que se toma ou deixa;
Cante que não se enfeita,
Que tanto se-lhe dá;
É cante que não se canta,
Cante que aí está”
J. C. de Melo Neto.
Referências Bibliográficas
MARTIN, Heidegger. Introdução a Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. . Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 1989, p. 78. NIETZSCHE, F. Para Além do Bem e do Mal. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1999. . Heráclito. São Paulo: Editora Abril Cultural, Coleção os Pensadores, 1973. . Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães & Guimarães, 1987.
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