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Os bons e os maus
No meu último artigo sobre “Ideologia e Europa”, referi, “en passant”, a Escola,
enquanto um dos aparelhos ideológicos do Estado (Althusser) ao serviço da manutenção
do “status quo”, reforçando de forma velada e sub-reptícia o poder de quem tem (e está
no) poder.
Mal imaginava eu que, daí a poucas semanas, teria de bandeja, para exemplificação, um
projeto protagonizado pela Escola (seis e não sete escolas básicas da Região – a Escola
Básica e Secundária Gonçalves Zarco já negou a sua participação), que tende a
categorizar os nossos adolescentes e pré-adolescentes em dois patamares diferenciados,
forjando ao nível do inconsciente a sua identidade e posterior aceitação do seu lugar na
sociedade: o lugar dos bons ou o lugar dos maus, na turma dos bons ou na turma dos
maus.
Lembrei-me das filas dos bons e dos maus, e com o requinte e a criatividade da minha
professora do ensino primário, das filas do céu, do purgatório e do inferno, que tantas
dores de barriga me provocavam na hora de ir para a escola não só pelo lugar que eu
ocupava, como pelo lugar de que outras colegas minhas padeciam (ainda não havia
classes mistas).
Não sendo uma ideia original, pois sempre existiram filas boas e más (quem se senta à
frente, junto do professor, e quem se senta atrás?), turmas boas e más (como são
constituídas as primeiras turmas da manhã A, B e C, e quem integra as turmas da
tarde?) e escolas de primeira e segunda categoria (no passado, para quem era o liceu e
para quem a escola técnica?), este fenómeno de diferenciação social logo nos primeiros
anos de socialização tem sido objeto de estudo, investigação e debate mais
concretamente em torno do chamado “currículo oculto”, que é, como quem diz, todo um
conjunto de mensagens veiculadas pela escola e pelos seus atores sociais, que não
constam das intenções claramente explicitadas (não fazem parte do currículo expresso,
não constam dos programas das disciplinas, nem da legislação ou regulamentos), mas
que irão marcar a formação da personalidade de cada um, para o resto da vida, se não
houver um trabalho de consciencialização (conscientização, no dizer de Paulo Freire).
Não é preciso sermos psicólogos para sabermos que o que opera ao nível do
inconsciente é muito mais difícil de ser desmontado.
Sociedades organizadas por estratos ou classes sociais, conforme as teses demográficas
malthusianas, precisam de uma base mais larga de sustentação pacífica e ao mesmo
tempo acéfala, que suporte o resto da pirâmide social. Ora, para que essa sustentação
seja pacífica, necessário se torna que cada um se sinta “bem” no seu lugar. E não é
preciso evocar os Alfas, Betas e Gamas do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley,
para compreendermos como os escravos adoravam ser escravos, por manipulação
genética, condicionamento psicológico neo-pavloviano ou recurso a drogas.
Pensava eu assim que turmas boas e más existissem apenas ao nível do “currículo
oculto”, não obstante o enorme trabalho de formação pedagógica realizado para impedir
que o professor se tornasse, ele próprio, agente ao serviço da discriminação e
categorização social dos seus alunos.
Por isso, a minha indignação face à assunção, neste caso expressa, já não oculta, das tais
seis escolas básicas da Madeira, com a concordância da Secretaria Regional da
Educação (será mesmo?), de criação de turmas boas e turmas más, sob o pretexto de que
tal combaterá o insucesso escolar e elevará o nível de aprendizagem desses alunos.
Tamanha ingenuidade, senhores professores e senhores diretores!
Já tantos anos se passaram desde que Bourdieu e Passeron nos alertaram sobre o
“fatalismo” determinista da origem dos alunos que acediam à Universidade francesa,
concluindo que os filhos dos pescadores seriam pescadores, tal como os filhos dos
médicos seriam médicos. Desde então, a Escola tem combatido de forma consciente a
reprodução social. Porquê desbaratar todo esse capital acumulado de conhecimento
pedagógico, com um experimentalismo bacoco? Isto para não entrarmos em discussões
jurídico-constitucionais sobre o princípio da igualdade que vincula a Administração
Pública à não discriminação, positiva ou negativa, dos cidadãos.
E por falar em experimentalismos, por que não recordar a experiência do Efeito de
Pigmalião, relatado por Rosenthal e Jacobson? Numa escola mediana, foi
aleatoriamente escolhida uma turma, tão mediana como as outras. Só que o diretor
comunicou aos docentes, logo no início das aulas, que essa era uma turma especial, de
alunos com QI bem elevado. O que aconteceu então? No final do ano, essa acabou por
ser mesmo a melhor turma da escola, dadas as expetativas criadas nos professores sobre
um suposto desenvolvimento cognitivo dos seus alunos. Apenas o acreditar que esses
alunos eram capazes fez mudar radicalmente o clima da turma, não sendo ela nem boa
nem má.
Por tudo isto, eu não desejaria que um filho meu participasse no tal projeto-piloto, e
muito menos, ficando numa turma má. E você, leitor, desejaria?