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Pedro Rocha de Oliveira Departamento de Filosofia Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro A acumulação primitiva de Frankfurtianismo: breve notícia sobre a Teoria Crítica Brasileira 1 Abstract: The Primitive Accumulation of Frankfurtianism: Notice on Brazilian Critical Theory. This essay presents the appropriation of second- generation Frankfurtian thought by Paulo Arantes and Roberto Schwarz, two Brazilian contemporary authors, as a response to national problems whose understanding demands a contextualisation within the general picture of the development of capitalism, as well as a perspective of radical critique of bourgeois society. This approach develops from the first receptions of Critical Theory in Brazil in the early 1960's and late 1970's, when military dictatorship and so- called ‘democratic reopening’ forced the Left either to accept the alliance with the national bourgeoisie prescribed by Soviet policy or to revise the categories of orthodox Marxism so as to insist on a radical critique of capitalism. In both moments, leftist intellectuals who chose the second path turned to the Frankfurt School’s critique of bourgeois modernization for inspiration. The Marxian notion of the Primitive Accumulation of Capital was also explored in order to emphasize the seamless continuity between colonial violence, in the beginning of Brazilian history, and the country's late entrance in world capitalism. Schwarz's and Arantes's generation perceived that continuity, not as something accidental and exceptional, but as an example of what, in bourgeois civilization, was the rule, and therefore Brazilian modernization appeared not as a still-unfinished process, but as a necessarily precarious and complete event: the country's miserable integration within international division of labour. On the other hand, certain specificities of that integration, insofar as they appear as more than a Brazilian accident, can be expanded so as to contribute to a 1 O autor gostaria de agradecer Felipe Brito, Demian Melo, Marcos Barreira, Felipe Demier e Marcelo Badaró por suas muitas sugestões e correções. Uma versão em inglês desse artigo foi publicada anteriormente como “The Primitive Accumulation of Frankfurtianism: Notice on Brazilian Critical Theory”. In: Culture, Theory and Critique. N. 53, Vol. 3. Routledge: London, 2012. pp. 305-322. 1

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Pedro Rocha de OliveiraDepartamento de FilosofiaUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

A acumulação primitiva de Frankfurtianismo: breve notícia sobre a Teoria Crítica Brasileira1

Abstract: The Primitive Accumulation of Frankfurtianism: Notice on Brazilian Critical Theory. This essay presents the appropriation of second-generation Frankfurtian thought by Paulo Arantes and Roberto Schwarz, two Brazilian contemporary authors, as a response to national problems whose understanding demands a contextualisation within the general picture of the development of capitalism, as well as a perspective of radical critique of bourgeois society. This approach develops from the first receptions of Critical Theory in Brazil in the early 1960's and late 1970's, when military dictatorship and so-called ‘democratic reopening’ forced the Left either to accept the alliance with the national bourgeoisie prescribed by Soviet policy or to revise the categories of orthodox Marxism so as to insist on a radical critique of capitalism. In both moments, leftist intellectuals who chose the second path turned to the Frankfurt School’s critique of bourgeois modernization for inspiration. The Marxian notion of the Primitive Accumulation of Capital was also explored in order to emphasize the seamless continuity between colonial violence, in the beginning of Brazilian history, and the country's late entrance in world capitalism. Schwarz's and Arantes's generation perceived that continuity, not as something accidental and exceptional, but as an example of what, in bourgeois civilization, was the rule, and therefore Brazilian modernization appeared not as a still-unfinished process, but as a necessarily precarious and complete event: the country's miserable integration within international division of labour. On the other hand, certain specificities of that integration, insofar as they appear as more than a Brazilian accident, can be expanded so as to contribute to a diagnosis of capitalism as a whole. Schwarz develops this problematic through an interpretation of the literary work of Machado de Assis. In it, the Brazilian elite of the 1800's – at once pro-slavery and liberal, and thus exemplifying the compatibility between European lumières and colonial brutality – functions as a key to understanding the limitations of the promises of bourgeois civilization.

Resumo: Este trabalho apresenta a apropriação do pensamento frankfurtiano por Paulo Arantes e Roberto Schwarz como uma resposta a problemas de interpretação da experiência nacional cuja compreensão exige uma contextualização dentro do quadro geral do desenvolvimento do capitalismo, bem como uma perspectiva de crítica radical da sociedade burguesa. Essa abordagem parte das primeiras recepções da Teoria Crítica no Brasil, na década de 1960, quando do golpe civil-militar, e na década de 1970, época da assim-chamada “reabertura democrática”. Em ambos os momentos, a recusa da prescrição soviética à aliança com a burguesia nacional levou certos intelectuais a revisarem as categorias do marxismo ortodoxo, buscando inspiração na crítica da modernização burguesa delineada pela segunda geração da Escola de Frankfurt. Ademais, o conceito marxiano de Acumulação Primitiva de Capital desempenhou a função fundamental de enfatizar a continuidade entre a violência colonial, na alvorada da história brasileira, e a entrada tardia do país no capitalismo mundial. A geração de Schwarz e Arantes percebeu aquela continuidade não como algo acidental e excepcional, mas como um exemplo do que, na sociedade burguesa, é a regra, de modo a

1 O autor gostaria de agradecer Felipe Brito, Demian Melo, Marcos Barreira, Felipe Demier e Marcelo Badaró por suas muitas sugestões e correções. Uma versão em inglês desse artigo foi publicada anteriormente como “The Primitive Accumulation of Frankfurtianism: Notice on Brazilian Critical Theory”. In: Culture, Theory and Critique. N. 53, Vol. 3. Routledge: London, 2012. pp. 305-322.

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fazer emergir a imagem de uma precária modernização brasileira que não era um processo inacabado, mas completo em sua precariedade mesma: a integração miserável do país dentro da divisão internacional do trabalho. Por outro lado, certas especificidades daquela integração, na medida que aparecem como algo mais do que um acidente brasileiro, pode, podem ser expandidas de modo a contribuir para um diagnóstico do capitalismo como um todo. Schwarz desenvolve essa problemática através de uma interpretação da obra literária de Macho de Assis, na qual a elite brasileira do século XIX, ao mesmo tempo escravista e liberal, exemplifica a compatibilidade entre as luzes européias e a brutalidade colonial, funcionando como chave para entender as limitações e promessas da civilização burguesa.

Em suas várias tentativas recentes de decifrar a realidade brasileira, as obras de Roberto Schwarz e Paulo Arantes apropriam-se de certos conteúdos do pensamento dito “Frankfurtiano”2. O presente trabalho reúne uma série de notas a respeito dessa apropriação, a partir de uma apresentação da lógica sócio-teórica que a prepara – uma lógica que transforma uma leitura sobre a realidade brasileira em um diagnóstico amplo do capitalismo.

I.

Carlos Nelson Coutinho, escrevendo em 1986, enxergava dois primeiros contatos da intelectualidade brasileira com a Escola de Frankfurt (Coutinho 1990). A primeira foi a recepção dos escritos de Herbert Marcuse nos anos 1960. Diante da postura do PCB de ler a ditadura militar brasileira (1964-1985) como momento propício para "acumulação de forças", uma "impaciência revolucionária" teria levado setores da intelectualidade a rejeitar a ortodoxia comunista (186-7). Isso acaba levando-os a Marcuse, o nome que, no imaginário da intelectualidade esquerdista, estava ligado às revoltas estudantis européias – o que justificava que o autor fosse lido numa chave "irracionalista" (189), um defensor do lúdico contra o produtivo, da sexualidade contra a racionalidade, de Orfeu e Narciso contra Prometeu. Rejeitava-se, assim, o rígido esquematismo do PCB através da flexibilização dos termos da discussão política. Determinados leitores, tais como Luiz Carlos Maciel, partindo da obra de Marcuse, desembocam mesmo num "orientalismo" (Soares 1999: 19), no registro da fundação de uma contracultura brasileira (Maciel 1973), como reação despolitizada ao fracasso da resistência armada à ditadura. Embora se pudesse problematizar até que ponto tais leituras realmente encontram respaldo na obra de Marcuse, o mais relevante, para os objetivos do presente argumento, é deixar marcado que a situação da intelectualidade de esquerda no Brasil dos anos 1960 e início dos 1970, balizada por uma decepção com a ortodoxia marxista e por um fracasso no campo da luta política, tem uma espécie de parentesco psicológico com a da intelectualidade alemã dos anos 20, que viveu o fracasso da revolução de 1919 e a ascensão da Social Democracia.

Em meados dos anos 1970, iniciam-se os debates a respeito da “reabertura política” dentro do regime ditatorial e, nesse contexto, Sergio Paulo Rouanet promove um segundo encontro com o pensamento frankfurtiano. Preocupado sobretudo com a relação entre cultura e democratização, e desenvolvendo um argumento sobre o universalismo cultural, Roaunet emprega a Teoria Crítica contra exatamente aquelas tendências intelectuais que acreditavam haver bebido dela no primeiro momento discutido por Coutinho3. Trata-se de combater como 2 No presente texto, esse termo será usado para se referir especificamente à segunda geração de colaboradores do Instituto de Pesquisas Sociais, principalmente Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Martin Jay mostra como esse grupo possuía um programa intelectual em comum (c.f. Jay 1996).3 Os artigos publicados pelo autor em jornais e revista do período foram posteriormente recolhidos em Rouanet 1987.

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reacionária a contracultura baseada na exceção e na peculiaridade nacionais, denunciando seu anti-intelectualismo, defendendo aspectos da Alta Cultura burguesa, e retomando uma discussão que preocupou bastante Marcuse, Horkheimer e Adorno. Em termos gerais, o argumento que encontramos nesses autores diz que a divisão do trabalho, a especialização, a acumulação de riqueza, combinada à densidade relativamente baixa de institucionalização social nos períodos primevos da sociedade burguesa, admitiu a formação de uma cultura autônoma em face das exigências econômicas do capitalismo, a qual permaneceu alheia aos seus conteúdos destrutivos e repressivos. Tal cultura teria funcionado como um reservatório dos valores que acabaram rejeitados pela prática material da sociedade capitalista desenvolvida, mas que haviam alimentado a idealogia universalista da burguesia em sua fase revolucionária, anti-absolutista: igualdade, liberdade, fraternidade. Rouanet empregava esse raciocínio para argumentar que a democratização social era um pré-requisito para acessar a alta cultura.

O que está em jogo é a análise frankfurtiana da recepção cultural através dos meios de comunicação de massa, um fenômeno típico do capitalismo avançado, no qual a cultura se torna uma dimensão da reprodução econômica. Mais especificamente, trata-se de salientar o efeito daninho que a forma dos meios de comunicação de massa teria sobre os conteúdos mesmos daquela alta cultura, destruindo seus efeitos elementos. O poder que uma sonata de Beethoven teria para – na formulação de Adorno e Marcuse – voltar-se contra o existente, fazendo chocar contra ele o conteúdo libertário da mentalidade burguesa armazenada na música tonal, depende de uma sofisticada consistência interna, ou da maneira específica como a composição joga com os sons e a percepção. Tal consistência é totalmente destruída quando a peça é interrompida pela propaganda, na lógica da difusão radiofônica. Além disso, a recepção da Sonata – a apreensão dos conflitos da lógica musical que ela envolve, e em cuja solução está figurado um questionamento da relação entre razão e sensibilidade, civilização e natureza, totalidade e individualidade – pressupõe um nível de conhecimento musical que, devido à rigidez da divisão do trabalho sob o capitalismo avançado, não pode ser alcançado pelas massas ocupadas com o trabalho massacrante, as quais enganam a si mesmas quando saboreiam como iguaria cultural os fragmentos radiodifundidos de uma música estraçalhada. Portanto, o valor específico da Alta Cultura burguesa está justamente em sua ingrata inacessibilidade, a qual pressiona, não obstante, pela justiça na sociedade incapaz de apreendê-la, para que seja capaz disso algum dia, quando a divisão capitalista do trabalho tenha sido abolida. Trata-se de um argumento que, a partir do problema da cultura, mobiliza a questão da liberdade para realizar uma crítica da sociedade capitalista como um todo: discussão propícia de ser travada no contexto da antevisão de um recuo da repressão militar do processo político, e de ingresso na normalidade da democracia burguesa.

Repete-se, aqui, o parentesco psicológico com os frankfurtianos: assim como os intelectuais alemães, no final da Segunda Guerra, haviam torcido o nariz para a democracia que derrotara o fascismo e se oferecia como alternativa ao comunismo soviético, no Brasil se trata de um movimento intelectual de resistência à simples celebração da boa e velha democracia enquanto alternativa ideal à ditadura.

Dito isso, podemos começar a ir mais fundo do que a constatação da simples afinidade psicológica.

II.

A ditadura, sua relação com a modernização brasileira, e o problema da inserção do Brasil dentro do projeto mundial da civilização capitalista são temas privilegiado por Roberto Schwarz no seu "Um seminário de Marx" (Schwarz 1999a). O texto recapitula os caminhos de

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um grupo de estudos paulista montado em 1958, discutindo a recepção do marxismo no Brasil, e as concepções de Brasil que essa recepção produz.

O momento da formação do grupo de estudos é imediatamente anterior àquele de que nos fala Coutinho. O contexto estava determinado pela recente morte de Stalin (1953) e a revelação da realidade da URSS, donde uma demanda, nos meios marxistas, de voltar a Marx e reencontrar os fundamentos do seu pensamento. Ao mesmo tempo, sob o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), que prometia desenvolver "50 anos em 5", a esquerda era induzida à empolgação pelo etapismo científico do PCB, o qual, em resumo, ensinava que a história brasileira é um caso de uma lei geral segundo a qual, nos países subdesenvolvidos, deveria haver uma aliança progressista entre a burguesia nacional e o proletariado contra os setores arcaicos da economia agro-exportadora, aliança essa que resultaria na modernização e no desenvolvimento de uma economia endógena, mais ou menos distante do padrão colonial.

Essa oposição entre o arcaico e o moderno, como tendências político-econômicas opostas na sociedade brasileira, e a aposta numa burguesia nacional progressista, tinha suas origens na ortodoxia da Terceira Internacional, tendo sido foi formulada e estudada por sociólogos e economistas da chamada escola "dualista", integrada por Celso Furtado e outros participantes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Entretanto, os estudiosos paulistas estavam a ponto de desenvolver uma outra abordagem, em polêmica com esta. A base dessa abordagem, segundo Schwarz, seria o primeiro volume do estudo de Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo (1942) (Prado Júnior 2000), sobre o período colonial brasileiro. O argumento da obra estava amparado fundamentalmente na percepção de Marx, exposta no célebre capítulo sobre a "Acumulação Primitiva de Capital", do Volume 1 do Capital, de que a escravidão colonial era um fenômeno absolutamente moderno, interconectado com o capitalismo metropolitano, preparando esse capitalismo e sendo preparado por ele. O desenvolvimento dessa idéia apontava para um questionamento das distinções etapistas do dualismo. E Schwarz ressalta como esse questionamento foi, de fato, promovido explicitamente por dois membros do tal grupo de estudos, Maria Sylvia Franco e Fernando Henrique Cardoso.

Em Homens livres na ordem escravocrata (1964) (Franco 1997), Maria Sylvia Franco colocou em foco as vantagens de uma maleabilidade econômica propiciada pela existência de características coloniais na alvorada da sociedade moderna brasileira, na qual a escravidão foi abolia apenas em 1888. A autoroa demonstrava como os detentores de riqueza podiam na verdade optar entre investimento na agricultura escravista e relação de trabalho livre, oscilando entre as relações primitivas, arcaicas do paternalismo colonial e a contratação por salário típica da modernidade. Como, no final das contas, essa oscilação era vantajosa desde o ponto de vista do “empresariado”, tratava-se de mostrar que o suposto arcaísmo de nossa economia não era um entrave para os negócios e para o capital, mas proporcionava, ao contrário, facilidades, sob a forma da maior liberdade de movimento.

Cardoso contribuiu com dois livros para a discussão. O primeiro, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962) (Carodoso 1977) argumentava explicitamente que os dois pólos, arcaico e moderno, que os dualistas enxergavam como opostos, na verdade se complementavam no Brasil. Cardoso mostrava que o progresso nacional, sob a forma da Independência (1822), ao contrário de levar a um distanciamento das relações sócio-econômicas típicas do período colonial, reproduzia e ampliava essas relações. O elemento arcaico de nossa economia – a oligarquia rural, as enormes diferenças sociais – é exibido como um resultado da inserção econômica do Brasil na economia moderna, e não um desvio dela. Isso fica claro nos momentos em que o livro aborda os dilemas envolvidos no processo de racionalizar – ou seja, de modernizar – uma economia escravista. A compatibilidade entre formas de trabalho e organização social desumanas e procedimentos empresariais típicos do capitalismo mostrava o lado macabro desse último.

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Cardoso deu dimensão política para esses problemas no seu livro seguinte, Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil (1964) (Cardoso 1972), onde analisa o comportamento da própria burguesia. Suas conclusões chocam-se explicitamente com os esquemas do PCB: o autor estabelece que a burguesia nacional está satisfeita em ser sócia minoritária do capitalismo internacional, tem vínculos indissolúveis com a agricultura, e portanto está longe de se aliar progressivamente com o proletariado numa luta antiimperialista. Os termos dessa crítica às bases do pensamento dualista apontam para a idéia de que o desenvolvimento capitalista em países retardatários não repete o trajeto daqueles que se desenvolveram em etapas anteriores de capitalismo, mas "corre em outros trilhos" (Schwarz 1999: 101)4. Essa idéia está na base da concepção anti-dualista conhecida como "dependentismo", que contou com defensores como Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini, entre outros5.

De todo modo, está claro que essas reflexões preparam o caminho para a compreensão do golpe militar de 1964, ocasião em que as previsões PCBistas sobre a mecânica histórica foram desmentidas barbaramente. Setores da elite brasileira, amparados no exército, fecharam-se, então, num programa que, se era modernizador, não era anti-imperialista: a ditadura que se seguiu teve apoio fundamental dos EUA, conservou meticulosamente os interesses do capital Europeu e Norte-Americano, e foi propelida por empréstimos gigantescos dos fundos internacionais. Tal programa tampouco era “progressista” no sentido esperado de uma “burguesia nacional” pela ortodoxia comunista: ao contrário, foi marcado por violenta repressão às demandas populares, congelamento de salários, ataques brutais aos sindicatos e movimentos sociais, etc. Tratava-se de um surto de modernização – os índices de crescimento industrial do período são bem altos –, mas sem nada comparável ao ganho civilizatório que a primeira modernização burguesa teria trazido para as sociedades metropolitanas. O dependentismo fornecia ferramentas para o desencantamento das esperanças no desenvolvimento dentro dos marcos do capitalismo, e também para uma crítica radical dele. Mas Schwarz aponta as limitações intrínsecas dessas concepções anti-dualistas.

Em primeiro lugar, esses esforços teóricos desenvolvem-se ao redor de uma atenção específica aos problemas do desenvolvimento industrial, mas falham em relativizar a própria industrialização capitalista. Em outros termos, "não houve muito interesse pela crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria" (Schwarz 1999a: 103). Tal interesse seria um dos caminhos de efetivação daquela crítica radical do capitalismo que é prenunciada pelo movimento argumentativo que aponta para a rejeição do caráter positivo da modernização. A noção de fetichismo evoca o descontrole inerente ao modo capitalista de produção, ao seu caráter de processo cego eminentemente indiferente às necessidades humanas, e à interconexão necessária e inevitável entre essa indiferença, de um lado, e a própria produção de mercadorias e acumulação de trabalho abstrato, por outro6. De modo que o capitalismo arcaico não é apenas uma forma de fazer capitalismo, mas o próprio capitalismo, com sua desumanidade intrínseca.

4 Mais tarde, para dar conta desses “outros trilhos”, seria difundida entre a intelectualidade marxista brasileira a noção de “via prussiana”, através da qual é traçado um paralelo entre a história do capitalismo brasileiro e aquela da Prússia, caracterizada por uma aliança semelhante entre os proprietários rurais e os industriais, ao invés de um conflito (revolucionário) entre aristocracia rural e burguesia industrial, que foi o caso dos EUA e da França. A origem dessa noção é, provavelmente, uma análise de Lênin (1980: 30), posteriormente digerida por Lukács, e adotada por Carlos Nelson Coutinho (1974: 3ss).5 É importante observar que dos Santos e Marini – membros fundadores da organização trotskista POLOP (“Organização Revolucionária Marxista: Política Proletária”) podem ser considerados propositores mais prolíficos da Teoria da Dependência do que Cardoso, que realizou apenas um reflexo acadêmico dela. A origem da Teoria da Dependência é, evidentemente, o conceito de Leon Trotsky de “desenvolvimento desigual e combinado” (c.f. Trotsky 2008: 4).6 C.f. K. Marx: O Capital I, Capítulo 1, §4.

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Uma consequencia bastante visível da degradação da vida sob a sociedade fetichista é a problemática cultura: a destruição da função referencial-utópica da cultura através de sua industrialização. Mas Schwarz argumenta que a leitura anti-dualista deixou de lado tanto o questionamento da industrialização, quanto a problemática cultural, talvez por manter-se alheia à Escola de Frankfurt, com quem compartilhava um certo pathos, e para quem os dois temas sempre haviam sido centrais7. Na apresentação de Schwarz, portanto, os frankfurtianos brilham por sua ausência.

Não obstante, é importante observar o caráter universal das percepções anti-dualistas a respeito da dialética do desenvolvimento capitalista. Tais percepções não pretendem caracterizar vicissitudes de um capitalismo especificamente brasileiro, subdesenvolvido, periférico, mas extrapolam num entendimento do capitalismo como um fenômeno mundial mantido por pactos tácitos (ou fetichistas) entre a dominação social e o desenvolvimento, a modernização e a barbárie. Nesse sentido, a dialética do desenvolvimento pode ser entendida como uma demanda específica, formulada a partir do subdesenvolvimento brasileiro, por uma “dialética do esclarecimento”. O ponto de partida é a tentativa de entender a realidade nacional atrasada; o ponto de chegada é uma crítica do projeto civilizatório burguês como um todo.

III.

Em seu texto "Recordações da recepção brasileira de Herbert Marcuse" (Arantes 2004b), Paulo Arantes refere-se a uma "convergência que ninguém viu" (115) entre o conhecido juízo frankfurtiano a respeito do longo fôlego do capitalismo8 e a teoria dependentista. Especificamente, no que ressalta a complementaridade, e não a oposição, entre metrópole e colônia, centro e periferia, e propõe que o subdesenvolvimento é a forma própria do capitalismo na periferia, o dependentismo está ressoando os temas frankfurtianos da incorporação da violência social – no caso, sob a forma da exploração, diferenças sociais extremas e manutenção de formas econômicas desumanas – no funcionamento normal do capitalismo contemporâneo. Contudo, em última análise, a estratégia adotada por F. H. Cardoso quando ocupa a presidência da república (1995-2002), a insistência na racionalização econômica extrema da sociedade brasileira, sob a forma da financeirização da economia brasileira, de modo a colocá-la no nível da economia internacional, mesmo acarretando em concentração de renda e todas as mazelas que haviam sido identificadas pelo próprio Cardoso nas décadas anteriores (Schwarz 199a: 103), é exemplo de como aquela incorporação da violência é coetânea à tecnificação da política identificada por Marcuse (1964). Na medida, entretanto, que "ninguém viu" essa convergência, Arantes repete, aí, a posição de Schwarz: ressalta aqueles conteúdos do esforço brasileiro de autocompreensão que apontam para uma radicalização da análise através de um eventual contato com teses da Escola de Frankfurt, mas assinala que esse contato não aconteceu.

Não obstante, em O Fio da Meada (Arantes 1996), o autor argumenta que aquela comunicação entre a leitura da experiência social brasileira e a leitura frankfurtiana da realidade do capitalismo contemporâneo foi em certa medida promovida pelo próprio Roberto Schwarz – e isso para ganho de interpretação duplo, pois Arantes defenderá que é justamente

7 Na Dialética Negativa (1966) de Adorno (Adorno 1986), o fetichismo da mercadoria funciona como uma espécie de chave para a crítica de toda a tradição filosófica ocidental, e em sua Teoria Estética (1970) (Adorno 1997), o fetichismo aparece ressaltando a dialética do caráter de aparência da obra de arte. De modo semelhante, figura na discussão de Walter Benjamin sobre a arte, além de ser o conceito estruturador de suas teses Sobre o conceito da História (1939) (Benjamin 1994: 222-32). Em Marcuse, uma espécie de fetichismo absoluto é o que marca a imanentização total da sociedade unidimensional (Marcuse 1964).8 Inspirado sobretudo nas análise de F. Pollock. C.f., Jay 1996, Cap. 5.

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à luz do subdesenvolvimento que as teses frankfurtianas podem ser compreendidas com maior proveito. A idéia, exposta na Dialética do Esclarecimento (1947) (Adorno e Horkheimer 1985), de uma interconexão entre racionalização social e dominação, no que vai "da Odisséia a Auschwitz", constitui um "trilho um tanto inespecífico", o qual "ganharia em precisão histórica" se fosse lido em termos de uma "periodização da própria expansão capitalista" (Arantes 1996: 48). Em consonância com a interpretação de Dolf Oehler (1999) – aluno de Adorno –, Arantes sugere que o "primeiro epicentro" histórico dessa dialética cuja lógica os frankfurtianos expuseram é a revolução fracassada de 1848, o rompimento definitivo da burguesia com quaisquer compromissos emancipatórios que pudessem estar incluídos no universalismo revolucionário dos lemas de 1794. Em termos bastante genéricos, porém ilustrativos, 1848 antecipa a possibilidade do golpe militar no Brasil em 1964; e 1964 mostra até onde chegariam os eventos de 1848, o aprofundamento da socialização burguesa sem ganho civilizatório. Diante do vislumbre dessa ingrata imbricação entre modernização e violência social (180), Arantes ressalta como uma perspectiva de inspiração frankfurtiana exige que se critique tanto as esperanças da esquerda dualista-desenvolvimentista quanto o procedimento técnico do dependentismo em sua cardosiana "versão moderada ou realista" (150). Na melhor das hipóteses, a esperança daquelas formas de pensamento que, embora reividincassem Marx, permaneciam imanentes e conformadas, era superar os males da produção de mercadorias através da intervenção estatal, repetindo o antigo e típico programa da moderada esquerda latinoamericana: desenvolvimento + assistência social = socialismo. Mas “Marx não escreveu o Capital para salvar a Alemanha” (Schwarz 1999a: 104)! Se o marxismo heterodoxo da Escola de Frankfurt apontava, sim, para uma participação cada vez maior do Estado na economia capitalista, o único resultado disso era a produção de uma sociedade opressiva, totalmente administrada, uma imagem que veio a ser ingratamente confirmada qundo a cínica apropriação neoliberal do dependentismo chegou a aferecer as mazelas do subdesenvolvimento como vantagem competitiva para a inserção na produção de mercadorias (Arantes 1996: 182)9.

Assim, segundo Arantes, o próprio Schwarz acabou por empreender o que julgava ter faltado ao “seminário de Marx”: uma crítica do desenvolvimentismo através da dialética da modernização. Mas Schwarz não se apropria desse tema frankfurtiano através de uma confrontação direta e explícita com os textos frankfurtianos: essa quase nunca é a abordagem escolhida por nossos autores. Ao invés disso, Schwarz encontra uma formulação endógena para aquela crítica na obra literária de Machado de Assis (1839-1908).

IV.

“A Viravolta Machadiana” de Schwarz (2004), começa com a sugestão de que a obra madura de Machado de Assis, produzida entre 1880 e 190810, era muito diferente – e também muito melhor – do que a ficção brasileira produzida até então, incluindo trabalhos anteriores do próprio Machado. A chave para esse contraste foi uma original mudança de foco na leitura da realidade brasileira. A análise que Schwarz faz dessa mudança – especialmente em Ao vencedor as batatas, de 1977 (Schwarz 2000), e Um mestre na periferia do capitalismo (Schwarz 1997) – tem uma relação muito próxima com o conteúdo dos debates do “seminário de Marx”, em especial no que diz respeito à relação entre o discurso do nacionalismo progressista e a perspectiva de crítica radical.

9 No que diz respeito às vantagens econômicas do subdesenvolvimento, ver também Schwarz 2003.10 Para efeitos da discussão de Schwarz, as obras principais são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899).

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A ficção brasileira, a partir de meados do século XIX, tinha a forma de uma “mistura romântica de colorido local, elementos romanescos e patriotismo, (...) a fórmula fácil e infalível em que o público leitor da jovem nação se comprazia” (Schwarz 2004: 15), mas Machado vai gradualmente “desacat[ar] os pressupostos da ficção realista, ou seja, os andaimes oitocentistas da normalidade burguesa” (16). Pode-se dizer que o processo foi gradual, visto que, nas obras pré-maduras havia uma “busca da modernidade” (22) – ou, nos termos do vocabulário do debate sobre desenvolvimento nacional, uma busca por modernização. A narrativa de tais obras – por exemplo, Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) – era construída ao redor de heroínas bonitas e inteligentes que tiveram o azar de nascerem pobres e livres numa sociedade paternalista e escravocrata, o que as colocava na condição de dependentes dos outros. De acordo com o imaginário esclarecido liberal – o qual era, inclusive, mobilizado pelo abolicionismo – a situação de dependência é uma situação subumana. Assim, os romances narravam a tentativa de suas heroínas de superar a pobreza e a dependência, tornando-se completamente emancipadas e humanas no sentido burguês, empregando, para tanto, as ferramentas sancionadas pela ideologia burguesa: a inteligência, a determinação e a retidão moral (Schwarz 2004: 21-23). Obviamente, a descrição da forma geral das obras pré-maduras de Machado nesses termos é pautada pelo debate sobre o desenvolvimento econômico nacional. Mas a conexão entre modernização, ou desenvolvimento capitalista, e ascensão pessoal, ou a vida privada do indivíduo liberal típico, está na própria forma literária do romance. A obra de Machado desse período tenta realizar, na periferia do capitalismo, os padrões heróicos da subjetividade liberal e do empreendedorismo metropolitanos, testando-os literariamente através do emprego da forma por excelência da narrativa burguesa, o romance. À subjetividade literariamente construída são contrapostos os revezes do ambiente social brasileiro, o que resulta na apresentação de dilemas morais que espelham a objetividade desse ambiente – por exemplo, casar-se com um homem rico não por dinheiro, mas por amor –, os quais devem ser superados dentro dos limites da casa de família e da vida moral interior – isto é, dentro dos limites da imaginação social burguesa – de modo a garantir a entrada na sociedade burguesa plena – ou o espaço patrimonialista, que é o mais próximo disso que existe no Brasil oitocentista. Há, assim, um conteúdo social que aparece na exposição dramática das vidas impossíveis das “mulheres livres na ordem escravocrata”. Schwarz vê um elemento de “engajamento” nessa literatura: a exibição das agruras sociais dos personagens tem uma intenção didática, a de ajudar a converter o “paternalismo tradicionalista e autoritário” em um “paternalismo esclarecido” (22). Assim essa literatura é uma espécie de bem-intencionado acessório da modernização. A obra madura de Machado vai superar essa configuração: ao invés de engajar-se na modernização, emitirá um juízo a seu respeito.

A argumentação de Schwarz consiste em mostrar como esse juízo sócio-histórico emerge da forma das obras. Tal procedimento crítico é inspirado por Theodor Adorno (Schwarz 1997: 36, 55)11, e envolve atentar aos recursos literários que Machado tem que empregar de modo a retratar uma realidade específica – “a componente reflexiva e construtiva do esforço mimético” – e encontrar a conexão necessária entre tais recursos e o componente “fotográfico” da obra (Schwarz 2004: 30), ou a realidade retratada. O que justifica essa abordagem é a constatação de que a forma, enquanto método narrativo, é uma dimensão fundamentalmente importante da experiência dos romances de maturidade de Machado de Assis. Tal método substitui as heroínas românticas por personagens-narradores falastrões e volúveis, cuja voz está marcada por uma alteração frívola entre glosas cultas da alta cultura, 11 Schwarz descreve a relação entre literatura e sociedade, no que pesa ao procedimento de criação e de crítica literária, em sua famosa análise de um texto-chave de Antonio Candido: Schwarz, Roberto: “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”. In: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Paulo Arantes resume e comenta tal relato de Schwarz em Arantes, Paulo: Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, pp. 41-45.

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vulgarizações apressadas expressas em construções elegantes, e exemplos heróicos e grandiosos empregados para avaliações mesquinhas de pequenezas do quotidiano. Schwarz argumenta que o próprio método narrativo possui um “referente” que é “captado e imitado” pela obra, e que pode ser acessado através de uma “reflexão extra-literária” sobre o lugar histórico e sociológico de Machado e seus personagens (Schwarz 1997: 35ss). Aquela reflexão leva à noção de “desfaçatez de classe”, com a qual é revelada a conexão necessária entre forma e conteúdo, causando a aparição completa do efeito cognitivo específico do texto. A voz dos narradores de Machado de Assis não é mero recurso literário, mas dá expressão literária à posição intelectual da classe dominante brasileira no final dos anos 1800s. Essa voz tem um efeito de “escândalo”, que consiste em “sujeitar a civilização moderna à volubilidade” (54) através da constante adaptação mútua entre a realidade atrasada da aristocracia semi-rural e a alta cultura européia absorvida por algum filho mais velho que emprega as riquezas auferidas pelo pai através da exploração do trabalho escravo para ir estudar em Coimbra e passear em Paris. A extravagância arbitrária da forma dá consistência histórica e profundidade sociológica ao conteúdo literário. Os setores “europeizantes da sociedade brasileira”, cultural e economicamente pedantes, “participavam sim da civilização burguesa, embora de modo peculiar, semidistanciado, que levava a invoca-la e descumpri-la alternada e indefinidamente” (43). Ora, tal descrição do narrador machadiano veste como uma luva os empreendedores periféricos retratados por Maria Sylvia Franco e F. H. Cardoso.

O ridículo cultural manifesto na loquacidade dos narradores é, portanto, apenas um aspecto do seu programa europeizante. Suas citações cultas funcionam como crítica social na medida que se referem não à falta de elegância intelectual da elite periférica, mas ao problema histórico detectado por análises feitas na geração anterior a Schwarz: o caráter conservador da emancipação política brasileira e a compatibilidade entre uma economia escravocrata e a ideologia liberal burguesa. Aquela compatibilidade não é acidente: é a forma necessária da inserção do Brasil na ordem econômica internacional do capitalismo. “Contrariamente ao que as aparências de atraso fazem supor, a causa última da absurda formação social brasileira está nos avanços do capital e na ordem planetária criada por eles, de cuja atualidade as condutas disparatadas de nossa classe dominante são parte tão legítima e expressiva quanto o decoro vitoriano” (Schwarz 1997: 39). Assim, “o peito dos brasileiros proprietários abriga duas almas”, e isso se torna “a própria forma da prosa” das obras maduras de Machado de Assis (Schwarz 2004: 28). Há um paralelismo entre os planos econômico e cultural, o qual age explicitamente nos romances de maturidade, organizando-os, de modo que sua “justeza mimética” é um “efeito do rigor construtivo” (Schwarz 1997: 55).

A aparência estética que Machado de Assis constrói oferece, assim, uma perspectiva desmistificadora sobre o problema do desenvolvimento brasileiro. O esclarecimento europeu não está oposto ao vergonhoso subdesenvolvimento brasileiro: a compatibilidade entre os dois mundos é atualizada no segundo e, assim, o caráter inerentemente positivo da modernização explode. Não se trata apenas de apontar para quão ridícula é a elite brasileira, em suas ambições de misturar o capitalismo liberal moderno com o arcaico paternalismo escravocrata, mas também de mostrar o quanto o próprio modelo do capitalismo liberal também é horroroso, na medida que é compatível com aquela ridicularia macabra. Machado exibe “a elasticidade com que a civilização burguesa se acomoda à barbárie, a qual parecia condenar, e que lhe é menos estranha do que parece” (Schwarz 1999b: 153).

V.

Esse diagnóstico machadiano da elite brasileira tange a discussão da esquerda sobre a cultura e sua degradação, dentro da qual, conforme vimos acima, uma posição frankfurtiana havia sido defendida por Rouanet nos anos 1970. Mas quando a compatibilidade entre o liberalismo

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moderno e o escravismo arcaico vigente no Brasil do século XIX é exibida através da volubilidade de letrado do personagem de elite nas novelas maduras de Machado de Assis, a alta cultura burguesa é arrastada desde seu lugar privilegiado como oposto radical da barbárie. Em vez de alternativa à situação contraditória de um Brasil onde o atraso é um traço do presente, a cultura é parte do problema. Nesse sentido, Schwarz aponta para uma perspectiva que corresponde a uma leitura radical da Escola de Frankfurt, que vai um pouco além da de Rouanet – mas, novamente, sem entrar em debate aberto com os textos frankfurtianos.

Rouanet empregava Frankfurt para questionar aqueles princípios que acabaram se tornando uma espécie de senso comum para uma Esquerda bem-intencionada e dotada de preocupações espirituais: a ocupação dos espaços midiáticos (para não dizer assentos nos parlamentos, vagas no serviço público e cadeiras universitárias) para a disseminação dos melhores conteúdos possíveis, desde uma Alta Cultura formadora (ao invés da cultura de massa e do irracionalismo pós-moderno), aqui e ali misturada com temas e motivos de uma “legítima” cultural nacional, até, eventualmente, um discurso emancipatório12. Na perspectiva frankfurtiana de Rouanet, a própria maneira como os conteúdos são difundidos retira deles sua potencial verdade formadora ou emancipadora. A comunicação de massa pressupõe uma total passividade por parte do seu consumidor, e essa passividade transforma os conteúdos em imagens a serem contempladas e absorvidas13. Tudo o que aparece nessas mídias tem a marca da banalidade e da exterioridade, como na equidistância homogenizadora entre economia, moda, política, esporte, ciência, sentimento e entretenimento promovida pela sucessão de caras e bocas da âncora do noticiário ou pela programação televisiva diária. O escândalo político, a contusão do jogador de futebol, a revolta popular no Bahrein, a gravidez da atriz da novela, são eventos distantes artificialmente trazidos para dentro de casa, e é essa artificialidade mesma – indiferente ao distanciamento real que as relações sociais fetichistas introduzem entre o sujeito de bem e o seu destino – que embasbaca o espectador. Assim, no final das contas, não importa se, eventualmente, tratar-se-á de embasbacá-lo com Beethoven, mazelas sociais, ou discurso emancipatório14.

Porém, o que a reflexão assis-schwarziana pode sugerir é que, se a forma da disseminação desvirtua os conteúdos da alta cultura, esta também precisa ser condenada por sua afinidade com sua própria degradação (Schwarz 1999b: 152-3). Evidentemente, essa sugestão não consiste numa novidade, mas numa mudança de foco. Nem Adorno, nem Marcuse nem Walter Benjamin foram indiferentes a essa problemática (embora seus comentadores às vezes o sejam). Mas na obra dos dois primeiros, porquanto o tema da degradação da cultura conviva com aquele da adequação entre a cultura e sua degradação, o primeiro parece ter primazia sobre o segundo. Em especial, em seus textos "Sobre o caráter afirmativo da cultura" e "Comentários para uma redefinição da cultura", Marcuse parece oscilar continuamente entre as duas visões (Marcuse 2001), que também parecem estar presentes na Teoria Estética de Adorno. Já em "A obra de arte na época de sua reprodução técnica", Walter Benjamin defende a idéia de que, no fundo, a arte tecnificada promove uma manutenção da aura, o que sugere que a promoção de ofuscamento pela cultura de massa diz respeito à sua similitude com a alta cultura, e não à sua diferença frente a ela15. Finalmente, na

12 No Brasil, a origem desse senso-comum foi, evidentemente, a obra de Gramsci.13 A idéia da "massa distraída" (Benjamin 1994: 193) expressa isso de forma sintética.14 Siegfried Kracauer teve percepções semelhantes, ligando a experiência político-social no capitalismo nas primeiras décadas do século XX com o conteúdo cultural especificamente produzido para a mídia de massa. (C.f. Kracauer 2009, especialmente o texto "O ornamento de massa" (91-104) e a parte sobre "Cinema" (303-348). Diante disso, vale ressaltar que, se, nessa perspectiva, as mídias não têm qualquer poder de sacudir o espectador e tirá-lo da sua inércia, a coisa é diferente para indivíduos que, por processos muito mais complexos do que o simples esclarecimento, já se encontrem sacudidos, e quiçá organizados.15 A leitura que Benjamin faz do futurismo fascista apóiam essa interpretação. C.f. Benjamin 1994: 194-4, especialmente: ‘'Fiat ars – pereat mundus' [que se faça a arte, e que pereça o mundo], diz o fascismo” (196).

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Dialética do Esclarecimento (Adorno e Horkheimer 1985), aparece a formulação bastante radical de que mesmo o melhor da civilização ocidental – “reflexão, significação e, por fim, verdade” – foi incapaz de deter os Pogroms, o que “demonstra” sua “impotência” (160).

Tratam-se, portanto, de três posições que se relacionam, mas também opõem mutuamente: o populismo cultural, o frankurtianismo com pitadas de elitismo, e o sentimento de derrota do ocidente do frankfurtianismo geralmente tido por pessimista. Mas é importante ressaltar que não se trata exatamente de pessimismo, aqui. Um importante elemento decorrente da interpretação que Schwarz faz da civilização burguesa a partir de Machado de Assis é a constatação de que a alta cultura é coisa do passado, a modernização não é caminho para o futuro, e ambos foram negativamente suprassumidos pelo desenvolvimento do capitalismo. Com a degradação da cultura, não perdemos referenciais com os quais cumpre reatar: esses referenciais esgotaram historicamente seu potencial. Tal potencial não estava blindado contra a história e, de fato, a história que se deu a revelia deles também se deu por sua capacidade de ficar à revelia da história. Só que dizer que a civilização clássica burguesa não tem mais nada a nos oferecer em termos de superação do capitalismo tardio significa apenas que o caminho está fechado para a civilização clássica burguesa, e não para nós. Assim como a luta civilizatória latinoamericana não deve ser representada como aquela entre o arcaico e moderno, visto que o arcaico foi moderno desde cedo, as trevas da contemporaneidade não podem ser dissolvidas pelo esclarecimento humanista, pois são as trevas dos ofuscados por um projeto de iluminação que se realizou. O que está em jogo, então, é, através de uma negação radical do existente, apontar para a necessidade de ir além dele. Esse é o projeto mesmo de uma teoria crítica amparada no conceito de fetichismo, a qual Schwarz acusa haver faltado para desenvolvimentos ulteriores do dependentismo, e a qual Arantes assinala que Schwarz começou a empreender (Arantes 1996: 190ss).

VI.

Um dos pontos de Arantes é a insistência em que a crítica contemporânea ao capitalismo deve passar pelo conceito de fetichismo. No que diz respeito às contribuições da Escola de Frankfurt para a apropriação desse conceito, Arantes enfatiza a conhecida dívida para com o História e Consciência de Classe de György Lukács (1974: 176), e seus desenvolvimentos ao redor da idéia de reificação (Arantes 1996: 191). Arantes não deixa de fazer a ressalva de que tal apropriação só levava adiante “metade do programa" do livro: a outra metade era a prescrição da revolução proletária como antídoto para a reificação (Idem). O que está em jogo não é uma rejeição da perspectiva revolucionária, mas um esforço de formular uma crítica ao capitalismo num momento em que a revolução não está mais "na ordem do dia", como estava no "momento de estado de graça histórico" em que História e Consciência de Classe foi escrito (45).

Com isso, voltamos ao tema do pensamento que rejeita a realidade social num momento de decepção com os processos políticos. Trata-se de um movimento que perpassa os escritos de Theodor Adorno. Na apresentação da Dialética Negativa, aquele autor observa, na conhecida alusão às Teses sobre Feuerbach, que "a filosofia permanece viva porque se deixou passar o momento de sua realização" (Adorno 1986: 15), com o que ela só pode curvar-se sobre si própria. A conseqüência é que a relação entre o pensamento crítico e a realidade é uma relação de negação: a realidade onde a perspectiva de suprassunção revolucionária não se apresenta não merece nenhuma simpatia, não apresenta nenhuma positividade, não tem nenhum ponto de apoio para o pensamento. Trata-se de um pathos familiar para qualquer leitor de Adorno: coroado pelo escrito sobre "Resignação" (Adorno 1978), e os ácidos e constantes comentários contra o engajamento, construiu para Adorno a fama de pessimista conformado, hóspede ingratamente satisfeito do "Grande Hotel Abismo" de que fala Lukács

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(Lukács 1974: 22). Contudo, pode ser mais útil ler a inserção desse pathos na história do marxismo não como uma negação a priori da revolução, mas como negação da revolução a priori, ou seja, negação do otimismo mecanicista de um materialismo histórico cientificista, daquela ontologia do trabalho que, através um construto sociológico-metafísico, dedica-se a demonstrar filosoficamente a vocação e a predestinação da classe trabalhadora a transcender o capitalismo. Arantes sugere que Adorno seja lido como alguém que rejeitou a solução filosófico-política para o problema da superação do capitalismo, em nome de uma atenção privilegiada às questões de crítica de economia política, e sobretudo a do fetichismo (Arantes 1996: 192). Ao invés de uma caracterização (no fundo, idealista e puramente epistemológica) do sujeito que, no fim das contas, vai acabar superando o capitalismo, o que está em questão é a necessidade de caracterizar com rigor isso que precisa ser superado. No contexto político da América Latina, marcado pelo personalismo e pelo caudilhismo – e, mais recentemente, pela participação entusiasta das grandes organizações sindicais na administração do capitalismo colapsado através de governos de esquerda “rosada” – não parece ser má a recomendação de prestar-se atenção ao conteúdo sócio-econômico ao invés da direção política quando dos esforços de compreensão dos processos de mudança social.

Tal ênfase não é apenas um escrúpulo local: ela tem implicações mais amplas para o entendimento do projeto da Esquerda como um todo, especialmente em face dos desastrosos anos 1990, em cujo âmbito Arantes defende a necessidade de uma “teimosia teórica”. E é nessa linha que o autor lê o interesse de Roberto Schwarz no crítico alemão Robert Kurz16. A idéia central de O Colapso da Modernização de Kurz (1992), é a tese de que na sociedade soviética funcionava uma forma de capitalismo – em termos kurzianos, uma parte do "sistema mundial produtor de mercadorias" ou da "sociedade do trabalho" – cuja coesão e planejamento induzidos pelo Estado não puderam manter alheia à crise global de acumulação de capital em processo. Schwarz, que faz a apresentação da edição brasileira do livro, sumariza o argumento nos seguintes termos: a competição entre empresas no "livre mercado" implica um desenvolvimento técnico constante; até certo ponto, esse desenvolvimento técnico resulta não só em métodos mais produtivos, mas também em uma diversidade maior de mercadorias a serem produzidas – no jargão, a "inovação de processos" acarreta "inovação de produtos"; porém, a partir da incorporação da microeletrônica nos processos produtivos, ainda que o cardápio de bugigangas tenha se incrementado muitíssimo, essa expansão não acarreta numa criação proporcional de empregos, porque os métodos produtivos dispensam mão-de-obra. Na medida que, na leitura de Kurz, o processo produtivo imperante na URSS não dizia respeito a outra coisa que a produção de mercadorias, e o seu esforço civilizatório se havia reduzido à expansão da produção de mercadoria para regiões atrasadas do globo, auxiliada pelas forças organizadoras do Estado, a derrocada da economia soviética era apenas um capítulo da derrocada da sociedade produtora de mercadorias – especificamente, o segundo capítulo, pois o Terceiro Mundo havia precedido o bloco socialista nas crises da dívida externa de 1980. São dois momentos da mesma crise, o teor da qual pode ser expresso sucintamente na seguinte fórmula: "o capital começa a perder a faculdade de explorar trabalho" (Schwarz 1992: 9).

Evidentemente, Marx já entendia a relação entre “desenvolvimento” técnico e crise, algo que está expresso – por exemplo – na famosa “lei tendencial da queda da taxa de lucro” 17. Kurz tampouco foi o primeiro a perceber que a sociedade soviética era partícipe do modo de produção capitalista, não obstante as diferenças de regime político18. A relevância de Kurz 16 Kurz é conhecido, juntamente com Anselm Jappe, Norbert Trenkle e Ernst Lohoff, como um dos propositores originais da Wertkritik, ou “crítica do valor”, cujos principais veículos, hoje, são os periódicos Krisis e Exit.17 Objeto da Parte 3 do Volume 3 do Capital.18 Erik Hobsbawm trabalha com a idéia dessa afinidade, mas com conclusões diferentes. C.f. os Capítulos 13 e 17 do seu A Era dos Extremos (Hobsbawm 2007), em especial certas observações a respeito da

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para Schwarz e Arantes está sobretudo em sua oportuna re-contextualização desses problemas no cenário dos anos 1990, baseada numa arguta percepção empírica, ao mesmo tempo em que – justamente por isso – retoma a centralidade do problema do fetichismo da mercadoria para a leitura de Marx e para a crítica da realidade capitalista contemporânea. Como no caso da Escola de Frankfurt, o que está em jogo aqui não é uma leitura abrangente da obra de Kurz, mas uma apropriação cuidadosa e seletiva de alguns de seus temas. Kurz insiste que o fetichismo da mercadoria e o “fetiche do trabalho” são os dois fundamentos da acumulação capitalista, e ataca o que, para ele, é uma falta de profundidade na crítica tradicional de esquerda: preocupada com problemas (insolúveis) de distribuição de riqueza, tende a ignorar os problemas centrais da produção capitalista inerentemente destrutiva. Na leitura que Schwarz faz de Kurz, o fetichismo é o que está em jogo quando os paradoxos inquestionados do desenvolvimento capitalista levam à crise: por um lado, a separação entre riqueza e produção material sob a forma do capital fictício (uma forma “avançada” de capital financeiro)19 e, por outro, a expulsão de populações inteiras para fora da atividade econômica, transformando-as em “não-pessoas sociais”, “sujeitos monetários sem dinheiro” (Schwarz 1992: 10)20. Um princípio de socialização que, em ato, leva à expulsão social: é essa a encarnação mesma do fetichismo da mercadoria, da lógica das coisas que se impõe sobre as necessidades das pessoas, relativizando-as.

O ponto crucial da leitura de Schwarz, entretanto, é sua ênfase na idéia kurziana de que a crise – a qual, aliás, não é um momento pontual, mas representa uma tragédia de longo prazo para a humanidade – não consiste num fracasso do capitalismo enquanto tal, mas na sua realização. Se o Terceiro Mundo não foi capaz de alcançar, através da industrialização, uma "reprodução coerente no âmbito do mercado global", isso não se deu por falta de capitalismo, mas por sua presença. Conforme queriam os dependentistas de cepa conservadora, a chave para o desenvolvimento tardio – tanto no Brasil quanto na URSS – era "a mão-de-obra barata e semiforçada", expulsa dos espaços agrários através da violenta "mutação do mercado e do padrão produtivo"; porém, com o sucessivo desenvolvimento técnico, sobretudo na microeletrônica, essa mão-de-obra "ficou sem comprador" (Schwarz 1992: 8-9). Assim, a modernização econômico-social "não estaria mais no futuro, mas no passado, e deu no que deu, por tenebrosa que uma tal perspectiva seja para o Leste europeu e a América Latina" (11).

A apropriação schwarziana de Kurz, portanto, reforça a idéia de que a modernização burguesa completa tem forma de barbárie. O capitalismo atrasado não foi abortado: realizada dentro dos padrões de produtividade do século XX, a absorção tardia de populações inteiras como mão de obra assalariada valorizadora do capital era impossível. O desenvolvimento na periferia estava condenado desde o início21. As sociedades que resultaram desse bizarro processo civilizatório levado a cabo combinam métodos brutais de “reinserção no contexto modernizado" – "droga, máfia, fundamentalismo e nacionalismo" (10) – e o "estado de sítio, requerido pelo aprofundamento dos impasses do sistema" (11).

interpenetração entre modernização e manutenção do arcaísmo feudal (483), e a lição geral de que "uma das maiores ironias desse século estranho é que os resultados mais duradouros da Revolução de Outubro, cujo objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto na paz – a saber, providenciando, sob a forma do medo, o incentivo para reformar-se depois da Segunda Guerra Mundial, e estabelecendo a popularidade do planejamento econômico, fornecendo-o um dos procedimentos para sua reforma" (7-8).19 O qual, conforme é preciso lembrar no pós-2008, é conseqüência, e não causa da crise (Kurz 1995).20 Essas fórmulas reverberam com as intuições machadianas sobre a "escravidão moderna" da "liberdade sem posses" (Schwarz 2004: 33).21 Evidentemente, outros autores haviam apontado essa impossibilidade antes de Kurz, entre eles – na via trotskista – Ernest Mandel. Ver suas discussões a respeito do desenvolvimento disigual e da troca desigual em Mandel 1975, Capítulo 11. Florestan Fernandes é um autor brasileiro que trabalhou numa perspectiva semelhante.

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Justamente a noção de um Estado de Exceção – de uma conexão presente e inescapável entre civilização capitalista e violência sistemática – é fundamental para a leitura da sociedade contemporânea realizada por Paulo Arantes.

VII.

Schwarz termina sua apresentação ao livro de Kurz sugerindo que "qualquer morador da América Latina que leia jornais" é capaz de perceber as "conexões decisivas" trazidas à tona pela crítica kurziana da sociedade produtora de mercadorias (Schwarz 1992: 11-12). A ingrata vantagem dessa perspectiva está enraizada no fato de que a experiência social latinoamericana está tradicionalmente marcada, em sua normalidade, pela consciência constante da desagregação social – consciência esta, entretanto, que se reveza com surtos de euforia desenvolvimentista. Na descrição de Paulo Arantes, o discurso do desenvolvimento no Brasil tem a forma de proclamações cíclicas de “milagre econômico”, seguida por relapsos melancólicos na consciência do atraso (Arantes 2004b: 25-30). Mas o papel desempenhado pelos “milagres” na autocompreensão econômica brasileira, na qual imagens arcaicas se combinam com preocupações modernas, não é uma idiossincrasia subdesenvolvida. Mesmo nos países centrais, o comportamento sócio-econômico contemporâneo envolve uma “fuga para a frente”, e a crença cega na “salvação da economia” através da recombinação das fórmulas que engendraram a crise. A perplexidade dos comentadores econômicos diante das manobras realizadas nos EUA e na União Européia em 2010 e 2011 mostrou o quanto a alienação frente ao opaco e ao misterioso é um traço inerente mesmo ao capitalismo mais "avançado"22. Da mesma forma, a consciência de uma cisão fundamental e intransponível na sociedade contemporânea vêm penetrando gradualemente mesmo o que antigamente se chamava de Primeiro Mundo, e se desenvolve em termos de um discurso sobre proliferação das periferias23.

A imagem que emerge desses relatos é a de uma hierarquização e imobilidade sociais extremas, uma rígida polarização econômica entre vendedores formais e informais de força de trabalho, e a incorporação de práticas sociais bárbaras. Na sociedade capitalista, as periferias são internas: “o desempregado não foi 'excluído' do mercado, simplesmente não encontra mais quem lhe compre a força de trabalho, assim como o pobre é um consumidor como outro qualquer, só que insolvável – numa palavra, o mercado é uma formação social que não admite nenhum 'exterior'" (Arantes 2004b: 52). Desde as formas mais subcivilizadas de manutenção da vida – coletar víveres entre os dejetos do consumo – até as forças repressoras oficiais, aplicadas quotidianamente com constância e brutalidade, integram uma "dualidade unidimensional" (54) cujas características contam com lugar específico, sob a categoria da "flexibilidade", no jargão da manutenção econômica (63-5). Na medida que a atividade econômica normal envolve elementos arcaicos que multiplicam a si mesmos nas chamadas sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas, o que se dá é uma interrelação global entre a ordem e a desordem, semelhante àquela que Machado de Assis empregava como chave de leitura para a realidade nacional brasileira: uma "convergência entre duas modernizações

22 Dois exemplos recentes. The Economist, Take your pick. A divided panel reaches three competing conclusions. The Economist, 27 de Janeiro de 2011, trata dos dilemas insolúveis da Comissão de Investigação da Crise Financeira nos EUA. The Economist, The great unknown. Can policymakers fill the gaps in their knowledge about the financial system? The Economist, 13 de Janeiro de 2011, trata especificamente da obscuridade inerente às operações de mercado financeiro no capitalismo contemporâneo, e oferece a governantes e administradores um passo-a-passo de como superá-la (!).23 Uma narrativa estadunidense sobre isso emprega o termo "brasilianização" (Lind 1995). Arantes cita diversos outros autores contemporâneos que trabalham nessa linha. Vários periódicos de ampla circulação vêm tratando do assunto, também. Exemplos recentes: The Economist, Unbottled Gini. Inequality is rising. Does it matter – and if so why? The Economist, 20 de Janeiro de 2011. Edward Luce, A agonia da classe média americana. Financial Times, 4 de Agosto de 2010.

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abortadas, ou consumadas, tanto faz" (66), a nacional e a global. Na medida que a normalidade daquela convergência é percebida desde o ponto de vista da crítica do fetichismo – isto é, como o produto de um processo histórico cego, engendrado por relações sócio-históricas específicas – as análises de Arantes ficam inoculadas contra uma leitura apologética da barbárie contemporânea que degringole em um discurso sobre diversidade, multiplicidade, etc24. E mais importante que salientar a influência da Escola de Frankfurt sobre essas análises é perceber que, nelas, as posições frankfurtianas sobre o efeito destrutivo da dialética da civilização capitalista são mantidas vivas através do confronto constante com a experiência social.

VIII.

Extinção (Arantes 2007), até o momento o último trabalho mais extenso de Paulo Arantes, começa com uma discussão a respeito da relação entre fetichismo e guerra. Refletindo a respeito da invasão do Iraque pelos EUA, Arantes analisa o que parece ser um novo paradigma de guerra. Até os anos 1990, vínhamos vivendo na “era da mútua destruição assegurada pelo equilíbrio do terror termonuclear” (Arantes 2007: 28). Então, as armas mais avançadas não podiam ser usadas, porque “o primeiro lance já é o ato final da guerra absoluta”. Mas o desenvolvimento técnico levou a um novo arsenal high-tech que pode ser usado, e cujo emprego é, incidentalmente, acompanhado por um discurso sobre a escolha pela guerra. O adágio sobre a “guerra preventiva”, o qual adornou as últimas campanhas dos EUA e da OTAN no mundo árabe, coroa uma prática já estabelecida de “governar por meio de uma pressão militar contínua, doméstica e mundial”. Para completar o quadro, um discurso acadêmico sobre a guerra e cosmopolitismo apresenta a volição política como produto da violência conscientemente planejada e tecnicamente formatada: Norberto Bobbio, Michael Walzer, Jürgen Habermas, Axel Honneth, estão entre as vozes que saudaram a primeira Guerra do Golfo (1991) como o sinal de uma sociedade global madura e moralmente regulada (Arantes 2007: 31-32). Se a ameaçada bruta da extinção pela guerra nuclear impedia qualquer resposta racional para o problema do conflito, paralisando sinistramente uma política encurralada, agora é uma forma mais desenvolvida de guerra, feita por dispositivos nucleares de pequena escala, somados às chamadas “bombas inteligentes” e os “ataques cirúrgicos”, que permite a “continuação da política”. O resultado é a “política como continuação da guerra” (29). Se, para os teóricos clássicos, a guerra era considerada um último recurso, a cartada nacional final para evitar a destruição (27), e portanto algo da esfera da necessidade e da compulsão, a figura da “guerra preventiva” está articulada no espaço discursivo da escolha e da vontade: o reino da liberdade. Mas tal conformidade mútua entre liberdade e necessidade, ação e passividade, é a forma mesma do “sistema capitalista de exploração e controle”, o qual “se caracterizada pela automatização recorrente de processos sociais que passam a funcionar como uma segunda natureza” (28) e, nesse sentido, a normalização do conflito bélico – ou, o que é ainda mais bizarro, o conflito bélico como paradigma de normalização – não é nem fortuito, nem está fora do lugar no ordenamento civilizatório burguês. Promovendo uma “maré de normativismo jurídico”, um esclarecimento que “ofusca” (41), os defensores declarados desse ordenamento – alguns, membros das gerações posteriores da Escola de Frankfurt, e portanto ligados ao discurso que chamava atenção sobre os conteúdos progressistas da cultura burguesa humanista – vão se tornando mais estúpidos na proporção em que as bombas vão ficando mais inteligentes.

24 Na história da autocompreensão brasileira, tal leitura foi desenvolvida principalmente pelo Tropicalismo. Ver Veloso 1997.

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Assim, não se pode dizer do processo como um todo que ele é regressivo. Trata-se de um resultado da dialética da modernização capitalista – de seu caminho adiante, que tem a forma de “fuga para a frente”. A manutenção de uma economia internacional extremamente dependente dos combustíveis fósseis, bem como a necessidade de “lastrear pelo poder das armas o dinheiro mundial, também ele under attack” (27), trasforma a guerra, de recurso excepcional, em procedimento quotidiano. “Para assegurar o suprimento a preços baixos de energia fóssil para as economias centrais, quer dizer, para assegurar a matriz energética da riqueza de algumas nações, é preciso desmantelar as estruturas sociais produtivas das fontes supridoras” (68) – produzir um subdesenvolvimento –, e isso é mera questão técnica, logística. No centro do problema não está a excepcional maldade e ganância dos poderosos, mas a operação sócio-econômica normal de uma sociedade para a qual a exceção é a regra, e na qual, por necessidade, “a guerra civilizou-se a tal ponto que não é mais guerra, mas uma operação de polícia mundial, algo como uma extensão global do processo de pacificação na origem das sociedades bem ‘policiadas’ de hoje” (49).

A discussão sobre a necessária normalidade da guerra como o vetor internacional da política leva, assim, à reflexão sobre a violência doméstica sistemática: o Estado de Exceção. O autor sugere que tal instituto é uma das fundações da sociedade burguesa moderna, e embora as teses de Giorgio Agamben25 talvez funcionem como pano de fundo para a argumentação de Arantes, a referência mais explícita, nesse ponto, é o 18 Brumário de Luiz Bonaparte de Karl Marx – a mesma obra que Arantes emprega, em O Fio da Meada, como chave de leitura para a “dialética do esclarecimento” frankfurtiana. Os eventos narrados por Marx – a repetição de 1848 em 1871, o levante social, a guerra civil, e a imagem do general probo e íntegro como a única força capaz de unificar as elites e restaurar a ordem – dá testemunho do sangrento mecanismo de contenção que é desencadeado contra as contradições sociais capitalistas, sendo que não se trata de uma violência pura e selvagem, mas de uma violência oficial e prevista em lei, a convergência entre “ditadura e guerra civil enquanto verdade latente da normalidade constitucional” (45), a suspensão da ordem jurídica em nome da ordem jurídica. Há, na civilização burguesa, uma necessidade ancestral de defender a sociabilidade de si mesma. O Estado de Exceção é a “guerra justa” por excelência (45). A democracia burguesa e a ditadura têm uma origem única.

O fato de que a violência oficial aparece através do conceito de ditadura não significa que o que está em questão aqui é uma crítica aos sangrentos regimes militares dos quais o Terceiro Mundo padeceu, especialmente na segunda metade do século XX. Embora a instrumentalidade desses regimes para a manutenção do “business as usual” seja inquestionável, também é verdade que eles se tornaram obsoletos, sendo “substituídos com vantagem pela ditadura dos mercados” (153), sob a forma da financeirização tecnicamente administrada. O emprego do conceito de Estado de Exceção por Arantes, portanto, tenta apontar para o tipo de administração social armada mundial que não requer golpes de Estado. A corrente militarização do quotidiano em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, a qual acompanha e possibilita dramáticas intervenções no espaço urbano, e constitui parte das festivas preparações para a Copa do Mundo (2014) e os Jogos Olímpicos (2016), com a proliferação de unidades policiais que funcionam segundo a lógica da ocupação territorial, constituem respostas recentes para a ancestralmente explosiva situação social cujas estatísticas são demasiadamente alarmantes para os gostos da FIFA e da Autoridade Olímpica. Trata-se de um exemplo da redução global da política à violência – ou à “segurança”, como prefere o jargão da grande mídia e das campanhas eleitorais. Para um bom leitor de Machado de Assis, tal redução não deve ser vista como um sinal de distorção da política, mas como um vislumbre sinistro e esclarecedor da natureza contraditória da civilização burguesa.

25 C.f. Agamben 2004.

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