nova ágora 2009 2

download nova ágora 2009 2

of 175

Transcript of nova ágora 2009 2

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 1

    GORA FILOSFICA

    GORAFILOSFICA

    Revista Semestral do Curso de Filosofia Unicap

    TICA E RESPONSABILIDADE:entre conceitos e fundamentos

    ORGANIZAO

    PROF. DR. MARCOS ROBERTO NUNES COSTA

    ISSN Impressa 1679-5385ISSN Eletrnica 1982-999x

    GORA FILOSFICA P. 1-175 ANO 9 N. 2 JUL./DEZ. 2009RECIFE

  • 2 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    GORA FILOSFICA P. 1-175 ANO 9 N. 2 JUL./DEZ. 2009RECIFE

    FASA GRFICARua do Prncipe, 610, Boa Vista,Fone: (81) 2119-4160, Fax: (81) 2119-4259CEP 50050-410, Recife-PEEditorao Eletrnica e capa: Llian Costa

    GORA FILOSFICA. Recife: Fundao Antnio dosSantos Abranches FASA, ano 9, n. 2, jul.dez. 2009. 175p.Publicao do Curso de Filosofia da Universidade Catlicade Pernambuco1. Filosofia Peridicos2. Universidade Catlica de PernambucoISSN Impressa 1679-5385ISSN Eletrnica 1982-999x

    (CDU) 1(05)

    COMISSO EDITORIALRua do Prncipe, 526, Boa Vista, bl. G-4, 8 andarFone: (81) 2119-4109, Fax: (81) 2119-4228,CEP 50050-900, Recife-PE E-mail: [email protected]

    Editor Prof. Paulo Csar Nunes FradiqueEditor-adjunto Prof. Fernando Jos Castim Pimentel

    BIBLIOTECA CENTRAL Pe. ALOSIO MOSCA DE CARVALHO, S.J.E-mail: [email protected] Endereo para permutaEndereo da verso eletrnica: http://www.unicap.br/revistas/

    UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCOPe. Jos Acrzio Vale Sales S.J.PresidentePe. Pedro Rubens Ferreira Oliveira, S.J.ReitorProf. Junot Cornlio MatosPr-reitor AcadmicoProf. Luciano Jos Pinheiro BarrosPr-reitor AdministrativoPe. Miguel de Oliveira Martins Filho, S.J.Pr-reitor Comunitrio

    CONSELHO CIENTFICOProf. Dr. Abdr Leclerc (UFPB)Prof. Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Prof. Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Prof. Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova Italia)Prof. Dr. Helder Buenos Aires de Carvalho (UFPI)Prof. Dr. Jesus Torres Vasquez (UFPE)Porf. Dr. Junot Cornlio Matos (UNICAP)Prof. Dr. Kal-Heinz Efken (UNICAP)Prof. Dr. Luis Alberto De Boni (PUCRS)Prof. Dr. Luis Alberto Cerqueira (UFRJ)Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Prof. Dr. Paulo Meneses (UNUCAP)Prof. Dr. Nytamar Oliveira (PUCRS)Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa (UECE/UFCE)Prof. Dr. Rafael Ramn Guerrero (Unv. Complutense Espaa)Prof. Dr. Vicencio de Mateus (UFPE)Porf. Dr. Zeferino Rocha (UNICAP)Prof Dr Maria Simone Marinho Nogueira (UEPB)

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 3

    GORA FILOSFICA

    Apresentao

    O Curso de Filosofia da Universidade Catlica, desde 2001,vem fazendo um esforo conjunto, por parte de seus docentes, departilhar, com os companheiros de trabalho o resultado de seus traba-lhos de reflexes e pesquisas. O reconhecimento desse esforo nostem motivado a procurar, cada vez mais, qualificar o nosso trabalho nosentido de melhor contribuir com aqueles que se comprazem com areflexo filosfica de rigor e profundidade. Essa motivao vem cres-cendo continuamente pela aceitao de companheiros de outras insti-tuies acadmicas do pas e at fora dele. Isso tem-se constitudouma motivao para o nosso curso e, particularmente, para aquelesque se dispem trabalhar na confeco de um fascculo da Revistagora Filosfica. No firme propsito de manter, consolidar e ampliara divulgao de nossas meditaes e a experincia do labor do pensa-mento, estamos disponibilizando a todos o fascculo 2 da Revista DE2009. Esse fascculo continua a dermarche constituindo a identidadeda gora: espao pblico de reflexes, debates e discursos plurais.

    Os textos apresentados no presente nmero deslizam no es-pao do mundo ocidental e no tempo que percorre da antiguidade aosnossos. O artigo de abertura, de Jos Tadeu, Unicap, apresenta umcaloroso debate iniciado na antiga Grcia em torno da relao Filoso-fia e Literatura. Expe algumas posies de autores que pensam osdistintos ramos de saberes como passveis de aproximaes; j ou-tros defendem o distanciamento. O autor nfase o pensamento da fil-sofa Martha Nussbau e apresenta o gnero literrio novela, comopotencial de pr em movimento a imaginao e suscitar reaes depensamentos, sentimentos e prticas, capazes de interferir na vida pri-vada e pblica de uma determinada comunidade. O texto seguinte, deLeno Francisco, fala das distintas perspectivas de Fundamentao daPrxis Poltica: Aristteles e Maquiavel. O terceiro texto, de MariaSimone, apresenta a centralidade do amor no pensamento de Nicolaude Cusa. No final de sua exposio, ela diz que a hermenutica doamor no pensamento cusano diz que o mundo, criao do infinito amorabsoluto, morada dos homens e, como tal, lugar em que o confronto

  • 4 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    com as diferenas, ou com o outro, deve ser transformado emencontro...e que possa iluminar o caminhos dos homens nos encon-tros presentes e futuros.O quarto texto, do prof. Dr. Matheo Raschietti,traz-nos uma instigante reflexo sobre o conceito de bilde nas obrasem vernculo de Meister Eckhart, com uma pluralidade de significa-o para o termo. O quinto texto, da dupla prof. Dr. Ramiro Delio eDra. Ana M. Machado Gonalves Reis, apresenta as concepes doconceito de responsabilidade em dois filsofos que levaram o termomuito a srio, Kant, no pensamento moderno, e Lvinas,contemporaneamente. O sexto texto, de Marcos Nunes e RicardoEvangelista, convida-nos a pensar uma temtica apaixonante do apai-xonado por Deus, Santo Agostinho. Particularmente nos brindou comuma reflexo sobre Natureza, Funes, Paixes e Aes da Alma edo Corpo . Finalmente, o prof. William de Siqueira Piau nos apre-senta uma instigante questo: discutir a afirmao de que Kant, dealgum modo, pode ter reencontrado a Teologia quando da elaboraoda crtica do juzo e se h alguma verdade no fato de que ela, de algu-ma forma, auxiliou a Teologia Crist.

    O leitor logo perceber que a pluralidade de autores e temasapresentados articulam em torno da tica, o que se justifica pelo ttulo:tica e Responsabilidade: entre conceitos e fundamentos.

    Prof. Dr. Jos Tadeu Batista de SouzaCurso de Filosofia da Unicap

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 5

    GORA FILOSFICA

    Filosofia e literatura entre abraos e socos:uma questo moralJos Tadeu Batista de Souza........................................................7

    Aristteles e Maquiavel: dois paradigmas no que dizrespeito fundamentao da prxis polticaLeno Francisco Danner.................................................................39

    O amor no pensamento de Nicolau de CusaMaria Simone Marinho Nogueira......................................................57

    O conceito de bilde nas obras em vernculo deMeister EckhartMatteo Raschietti............................................................................75

    Responsabilidade em Kant e em Lvinas:entre os conceitos e os fundamentosRamiro Dlio Borges de MenesesAna M. Machado Gonalves Reis....................................................103

    Natureza, funes, paixes e aes da alma e docorpo segundo Santo AgostinhoRicardo Evangelista BrandoMarcos Roberto Nunes Costa.......................................................127

    Primeira crtica: a teologia desencontradaWilliam de Siqueira Piau..................................................................149

    Diretrizes para submisso de artigos......................................171

    Permutas...................................................................................173

    SUMRIO

  • 6 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 7

    GORA FILOSFICA

    Filosofia e literatura entre abraos e socos:uma questo moral

    Prof. Dr. Jos Tadeu Batista de Souza1

    ResumoFilosofia e Literatura emergiram no cenrio histrico ocidental constituindo-sepilares de sustentao da expressividade do pensar e do agir humano. O relaci-onamento que se concretizou entre elas, no entanto, ocorreu de modo diferenci-ado nas formas e contedos propostos por seus personagens. A pretensodeste texto expor a postura de alguns personagens defensores da relao deaproximao e de afastamento, considerando a moral como um componenteimportante nessas relaes. D-se nfase postura de Martha Nussbau, apre-sentando o gnero literrio novela como potencial de pr em movimento a ima-ginao e suscitar reaes de pensamentos, sentimentos e prticas, capazes deinterferir vigorosamente na vida privada e pblica de uma determinada comuni-dade humana. A novela, enquanto gnero vivo, poder colocar a vida em movi-mento no sonhar, desejar, fantasiar, imaginar e criar um sentido alternativo paraa experincia do viver.Palavras-chave: filosofia; literatura; moral.

    Philosofy and literature between embraces and punches: a moral question

    AbstractPhilosofy and Literature have emerged, risen out from the occidental , westernhistorical scenery, setting, constituting them selves human thinking and actingexpressivity upholding pillars (se optar pela forma analtica com of ficariaassim Constituting themselves pillars of the human thinking and acting)however, the relationship turned materialized between them has occurred unlikelyin each other in the forms and in the contents proposed by their personagesposture, attitude that are defenders, upholders regarding to approach andwithdrawal relationship, considering morality as an important component inthese relations. One emphasizes Martha Nussbaus posture, attitude, presenting,showing up the literary gender, know as short novel story as a great potentialto put into movement imagination and to stir up thoughts, feelings and practicesreactions, capable of interfering vigorously in a certain human community privateand public life. The short novel, as lifely gender, will be able putting intomovement dreams, wishes, fancies, imaginations and creations regarding to analternative feeling for living experience.Key words: Philosopy Literature Morality.

  • 8 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    Introduo

    Desde os antigos gregos, filosofia e literatura so dois pilares desustentao da expressividade do pensamento no Ocidente. Elasperfazem os cenrios histricos com figuras de destaques: so dimen-ses constitutivas e modeladores da cultura humana ocidental. Cadauma, em sua especificidade, tem dado contribuies indelveis for-mao da mentalidade que ainda permanece viva e esplndida de vi-gor em nossos dias.

    Na trajetria percorrida por filosofia e literatura, podemosidentificar momentos fecundos de aproximaes e distanciamentos.Ambas trouxeram contribuies significativas, que no podem ser ig-noradas por um olhar retrospectivo, sob pena de uma parcialidadeingnua.

    A nossa pretenso nas linhas que seguem considerar o as-pecto moral como um componente importante das complexas rela-es entre filosofia e literatura. Tomamos, como ponto de partida, attulo de exemplo, a posio de Alasdair MacIntyre. Em seguida, ex-pomos sumariamente, contribuies de Martha Nussbaum, acentuan-do o gnero literrio novela como fonte de contribuio fundamentalpara a experincia moral.

    O nosso esforo mostrar que, na perspectiva de Nussbaum,a novela pe em movimento a imaginao e suscita reaes de pensa-mentos e prticas capazes de interferir significativamente na vida pbli-ca de uma determinada sociedade. Ela pode expressar formas deracionalidades que so mais condizentes com o estatuto do humano edesencadear procedimentos prticos alternativos experincia consti-tuda.

    No pretendemos fazer um esboo histrico nem dos abra-os nem dos socos que se fizeram frente na histria do relacionamen-to. Contudo, tentamos dar nfase s possibilidades dos abraos, semnos esquecer das diferenas. Pensamos que os abraos podem refletiro sentido de uma razo que amadureceu sob o calor de coraes esentiu a necessidade de defender a possibilidade do acontecimento davida humana.

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 9

    GORA FILOSFICA1 A problemtica

    O tratamento da questo filosofia e literatura requer comocondio fundamental, a tomada de conscincia do carter deproblematicidade que est implcita em cada um dos termos tomadosisoladamente, e com grau de complexidade ainda mais acentuado,quando se tem a pretenso de postular uma relao entre eles. Naverdade, trata-se de uma questo que acompanha as aventuras e des-venturas do prprio pensamento que emerge na antiga Grcia e des-dobra-se no tempo e no espao da denominada razo ocidental at osnossos dias.

    Nesses desdobramentos no tempo e no espao, muitas ques-tes foram levantados e perderam-se no tempo, muitas outras foramperpassando com vigor, encontrando um espao de sobrevivncia, enovas questes emergiram e somaram-se aos fios da rede de comple-xidade. O emergir e desaparecer, o nascer e manter-se vivo at a mortee das cinzas da tumba renascer indicam que o pensamento tem afora viva de fazer a histria como marca indelvel de semelhanas ediferenas que podem ser vislumbradas na pacincia da prpria hist-ria do tema. So muitas as possibilidade que temos de nos aproximardo estatuto da questo, que j tem uma longa histria. O percurso pelahistria desse assunto seria uma dessas possibilidades. Uma outra viaseria escolher um perodo ou um autor para nele tratar a questo. Umcaminho um tanto novo seria tratar a intriga da relao filosofia-litera-tura articulada a partir da dimenso moral. Qualquer uma das vias pos-sveis que forem assumidas tero de enfrentar as complicaes dosfios que se tecem, se torcem e se entrelaam na tradio da prpriaquesto. Uma via de possibilidade tambm muito recente seria tomaro elemento da linguagem para articular a aludida relao filosofia-lite-ratura.

    Ainda se podem aumentar os fios da complexidade da rede,se nos preocuparmos em delimitar qual o lugar especfico a partir doqual se vai proceder disposio dos fios. Ou seja, a configurao daquesto ter necessariamente a marca imposta pelos limites do lugar apartir do qual se proceder o discurso: o lugar filosfico ou literrio.

  • 10 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    Assumir um lugar para pensar na relao como problematem a vantagem de afastar, de incio, a iluso da neutralidade, por umlado, e por outro, o perigo do reducionismo. Filosofia e literatura po-dem cair nas velhas formas de reivindicao da nobreza do seu estatu-to e a desconfiana na fecundidade de uma profcua relao de apro-ximao. A tradio do problema expe ocasies em que a vontadede reflexo no passa da exposio de preconceitos, mal entendidosou mesmo um equvoco no uso que um dos domnios tende a fazer dooutro. Essa maneira de postar-se, na verdade, no se apresenta comoalgo produtivo e satisfatrio. Muito pelo contrrio,

    as polmicas que se enfrentam sobre o registro filo-sofia e literatura produzem, no momento, uma pro-funda insatisfao. As vezes parecem referir-se asvirtudes ou demritos dos textos filosficos como tex-tos literrios e outros apontam a estes comoaportaes relevantes para a filosofia2.

    No podemos ignorar o mrito das reivindicaes pelo re-conhecimento da especificidade dos saberes que esto em questo.Afinal a decncia de uma relao produtiva s ser possvel medidaque cada domnio tiver a clareza da sua especificidade e, portanto, dasua diferena. A partir dessa auto percepo, ser possvel o estabele-cimento de modalidades de relaes que atendam satisfatoriamente,pelo menos em parte, a filsofos e escritores.

    Da parte dos filosficos, h um risco de considerar a literatu-ra como uma simples forma de embelezamento de seus discursos ouapenas um meio indispensvel para a anunciao de seus contedos.No se reconhece que se produz uma dicotomia entre forma e conte-do que mantm, na sua base, um pressuposto que d autonomia aambos os domnios, mas os impede de autoperceberem-se como ir-manados enquanto forma e contedo. A partir desse pressuposto, apa-rece, explicitamente, uma compreenso do que prprio de cada do-mnio. Ou seja, a partir dessa compreenso se pensa que o prprio dofilosfico produzir contedos, enquanto ao escritor compete produ-zir a forma. Compreender os domnios como instncias com determi-naes prprias sem perceber as implicaes vinculativas , de algu-

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 11

    GORA FILOSFICAma maneira, um limite que exprime uma reduo da prpria identida-de. A reduo apresenta-se justamente no momento em que se atribuiao filsofo o poder de pensar contedos, e ao escritor, o poder decriar a forma ou meio de anunciao do que foi pensado. Dessa ma-neira reducionista de compreenso da relao dos domnios, podem-se vislumbrar as consequncias danosas para ambos. Para o filosfi-co, a consequncia apresentar-se como algum que sabe pensar e,s vezes, pensar de forma profunda, abstrata, mas no sabe comu-nicar seu pensamento. Nas palavras de Jeanne Marie: no limite, issosignifica que os filsofos sabem pensar, mas no conseguem comu-nicar seus pensamentos, que no sabem falar nem escrever bem; e queos escritores sabem falar bem, sabem expressar-se, mas no tm ne-nhum pensamento prprio consistente3. Ora, considerar a literaturaapenas como um veculo de comunicao ou como um elemento deembelezamento do discurso filosfico tira a sua dimenso de serieda-de como produtora e enunciadora de verdades e lhe confere um esta-tuto meramente ornamental.

    Essas formas de reducionismo muitas vezes, so consolida-das a partir da afirmao de uma concepo limitada de autonomia,que, no final, ope filosofia e literatura como domnios de saberes ab-solutamente separados e que devem manter os seus campos bem de-limitados e protegidos das interferncias alheias. Segundo MariaHerreira de Lima, esta uma posio defendida por talo Calvino:

    para talo Calvino a filosofia e a literatura so aguer-ridos adversrios, porque nos diz: os olhos dos filso-fos vm atravs das opacidades do mundo, suprimin-do sua materialidade, reduzindo a variedade existen-te a uma teia de relaes entre idias gerais, fixandoregras para um nmero infinito de fichas no tabladoat tentar esgotar as combinaes que bem podiamser infinitas.Mas ento entram os escritores e substituem as fi-chas e o tablado abstrato por jogadores de xadrez:reis e rainhas com castelos, todos com um nome, umaforma particular e uma srie de atributos prprios asua condio, real, eqina, ou eclesistica. Em vez

  • 12 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    de um simples tablado, desenvolvem poerentos cam-pos de batalha ou mares turbulentos. De maneira queas regras do jogo se transformam e a ordem que semanifesta muito diferente dos filsofos4.

    Na mesma linha defendida por Calvino, pode ser menciona-do o escritor Milan Kundera, que tambm tem reservas quanto a umaaproximao de filosofia e literatura. Ele teme que a filosofia faa umuso moral indevido da literatura; que sejam feitas interpretaes exter-nas dos textos desrespeitando aquilo que especfico do discurso lite-rrio. Defende, desse modo, uma autonomia e, de alguma forma, temeque a literatura seja usada ou subordinada a outros fins que no sejamcondizentes com a sua forma prpria de ver o mundo.

    A defesa radical da pureza da literatura poder tambmesquecer os vrios modos de relaes dos dois domnios de saberesem absoluto respeito a suas particularidades. No enxerga, portanto,que possvel considerar uma modalidade de relao, tomando comocaso especfico as dimenses literrias do saber filosfico, consideraros estilos diferentes, o uso da retrica, a utilizao da metfora bemcomo o uso da narrativa como uma forma de construo do sentidoque pode ser comum a ambas as disciplinas ou gnero de discurso5.Em todo caso, defender a pureza das duas formas de saberes , naverdade, obstruir as vias normais por onde passam os fluxos do pen-samento que no se preocupa com a pureza ou impureza da forma,mas simplesmente com o poder passar e manter viva a fora que asse-gura a sua possibilidade de ir e vir como passagem que no se deixareter nas vias pelas quais passa.

    Da mesma forma que encontramos defensores da pureza dosdiscursos, encontramos tambm aqueles que desconfiam de tal pre-tenso e preferem no acentuar a separao da viso de realidadeoferecida pela reflexo filosfica e pela criao literria.

    Aqueles que no defendem a radical separao, percebemcertamente que os domnios so diferentes, e isso fundamental serdefendido, mas, enquanto diferentes tem muitos elementos que podemser partilhados num sistema de trocas que enriquecem e complementamas insuficincias de cada um. Reconhecem, portanto, que a literatura e

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 13

    GORA FILOSFICAa filosofia so duas linguagens que tm a capacidade de dizer a mesmarealidade. Cada uma diz a partir do que lhe prprio e pode oferecera outra, aquilo que ela no capta por causa da determinao do seulugar de ver, que no lhe permite ver nem dizer o todo.

    Essa perspectiva admite que possvel o intercmbio e valo-riza as diferenas como algo de dimenses positivas. Seus defensorescertamente so convictos que existem atividades significativas nas duasformas de saberes que so fundamentais na construo de seus res-pectivos iderios, como por exemplo, a construo do sentido da re-alidade nas suas variadas dimenses. No obstante, a radical diferen-a que h entre eles, podemos mencionar como adeptos dessa pers-pectiva: a Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e Richard Rorty, ErnstTugendhat.

    Chama-nos a ateno que os mencionados autores, de algu-ma forma, tenham uma sensibilidade para questes morais. Muito pro-vavelmente vlida para todos a idia de que

    defendem uma verso mais moderada da filosofiamoral como uma forma de reflexo que continua atradio crtica ilustrada mas que renunciaram as suaspretenses excessivas e que no s tem nada a per-der (ou que temer) ao aproximar-se da literatura,seno que teria que aproximar-se dela como umafonte importante de imagens, metforas, e constru-es do sentido da identidade dos sujeitos, de suascapacidades e tarefas, entre outros campos, da vidamoral6.

    Esses autores, certamente, perceberam a necessidade de tra-tar as questes da moralidade na fronteira da filosofia, ou seja, abrindoo espao da conceptualizao filosfica para o mbito da literatura, noqual tambm se verifica a experincia da moralidade. Podemos imagi-nar que uma das motivaes que os levaram a tomar essa perspectivatenha sido a constatao de que muitas propostas de consideraomoral no passam de formulaes abusivamente abstratas e por de-mais genricas, o que no d conta do concreto da experincia moral.Em outros termos, perceberam a possibilidade de tratar as questes

  • 14 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    morais instrumentadas com elementos que lhes permitem atingir o con-creto da vida em seu respectivo contexto. Assim, pensam poder apre-ender a realidade moral como algo complexo, mas concreto. Na basedessas intuies, est a constatao da insuficincia e, por conseguin-te, a crtica de um modelo de pensamento abstrato e generalizadorpara dar conta das circunstncias e particularidades, que vivem os su-jeitos morais.

    2 A posio de Alasdair MacIntyre

    A percepo dessa insuficincia levou MacIntyre no somentea recusar o modelo como tambm propor uma alternativa metodolgicacapaz de suprir as deficincias. nessa perspectiva que podemos con-siderar que ele pensou na possibilidade de usar a narrativa com umrecurso prprio para abordar devidamente a experincia moral. Demodo mais particular props formular com propriedade, o conceitode unidade da vida na teoria moral. Para ele, possvel fundar a suaidia de unidade de vida em evidncias empricas. Na formulao deMaria Herreira, sua proposta apresentada nos seguintes termos:Alastair MacIntyre props uma maneira de abordar este tema da uni-dade da vida na teoria moral. Seu argumento repousa, em parte, emdemonstrar que a concepo de unidade de vida que defende podeapoiar-se em evidncias empricas e apresenta, alm disso, uma ima-gem coerente de nossas intuies sobre a vida moral7. O fato de re-correr a literatura para compreender a experincia moral no significaque ele defenda um nico sentido de unidade de vida que possa sertomado de forma genrica por qualquer teoria moral. Muito pelo con-trrio, ele tem conscincia da pluralidade de sentidos que foram plas-mando-se no tempo, conformando uma diversidade de sentidos daidentidade pessoal. Seria muito estranho que ele no tivesse a clarezadas diferenas de concepes explicitadas pelas correntes diversasque compem o cenrio da disputa pela validade de seus postuladosenquanto teorias morais.

    A partir da diversidade de configuraes de entendimentosquanto a teorias morais, impe-se a necessidade de se estabelecer

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 15

    GORA FILOSFICAuma certa prioridade no pr em relaes determinados tipos de textosliterrios com determinadas compreenses de filosofia moral. A ne-cessidade de se estabelecer uma escolha impe, por outro lado, aimportncia de se ter presente o problema no resolvido da validadeda literatura como evidncia das experincias vital e moral8. Poroutro lado, tem-se a necessidade de considerar a problemtica da re-latividade dos pontos de vista, a partir dos quais se tentam constru-es de sentidos dos textos literrios uma vez que eles levam a conclu-ses diferentes sobre as relaes que queremos estabelecer: entre ex-perincia de vida e conscincia moral, e entre experincia de vida me-diada pela construo do texto literrio e reconstrues do sentido daexperincia moral9.

    Ambas as questes so, de fato, muito intrigantes, mas a quetem uma ressonncia maior para MacIntyre a que diz respeito a rela-tividade. Pois a sua concepo de vida requer que se entendam osatos individuais no interior de uma circunstncia configurada por vriosfatores e no de forma isolada. Portanto, quando se quer saber o sen-tido da ao de um determinado sujeito, tem-se que perguntar: quem,como e para qu. Essas aes esto situadas numa teia de relaes.O fator complicador est no fato de a narrativa poder ser lida de vriasmaneiras, o que redunda na possibilidade da formulao de vrios sen-tidos. E a, como fica a sua pretenso de unidade de vida? A sua alter-nativa considerar que h uma tradio de pensamento moral quepode ser considerada superior em relao as outras.

    No que concerne concepo de unidade, poderamos acen-tuar alguns elementos que nos parecem relevantes do ponto de vistamoral. Podemos acentuar a importncia que ele d idia de respon-sabilidade moral necessariamente vinculada de continuidade fsica deum sujeito ligado a um corpo material. Corpo esse que pode, por suavez, ser membro de comunidades diferentes, desde a qual age e conecta-se com os outros sujeitos no decorrer da vida. Ora, a exigncia deresponsabilidade por aes somente consequente se se funda nacerteza da identidade do seu autor. Caso no se verifique a coincidn-cia da identidade do autor da ao e a cobrana da responsabilidade,cometem-se equvocos. Outro elemento significativo de sua concep-o : o entender a continuidade de vida como um ordenamento

  • 16 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    teleolgico dirigido pela busca do bem ou verdade dessa vida comouma totalidade10. A questo aqui no afirmar a paridade da unidadeda vida com a narrativa, mas supor que a referida continuidade sefunda, de alguma forma, num horizonte metafsico. Podemos mencio-nar ainda, a defesa de uma estabilidade dos atributos pessoais e comosustentculo uma estabilidade na estrutura de crenas e valores dascomunidades de referncia11. importante salientarmos que a idiade comunidade tem uma importncia fundamental no pensamento deMacIntyre. Ela pode ser considerada como uma espcie de a prioripara podermos entender as formas de vivncias reais e, portanto, con-dio necessria para se ter uma inteligibilidade da existncia damoralidade. Neste particular, diz Maria Herreira:

    ... a idia de comunidade como suporte de umatradio, quer dizer, de uma estrutura decrenas, valores e prticas coerentes erelativamente constante, serve no s decondio de inteligibilidade s crenas eprticas morais mas tambm se faz presentena comunidade mesma de sua existncia, emsua capacidade de permanecer no tempo, navitalidade e produtividade de suas crenas (nasua fora motivadora) como uma prova de seuvalor intrnseco12.

    Mesmo que no se faa a defesa do carter auto-evidentedo conceito de unidade da vida, pode-se reconhecer que as basesde apoio das intuies de MacIntyre encontram suporte nas crenasconsolidadas e tm sustentao tanto na tradio da literatura comoem outras construes simblicas da experincia cultural. No entanto, visvel, nas sugestes de MacIntyre, a recorrncia a instncias sepa-radas dos atos que servem de parmetros avaliativos dos prpriosatos. Nessa recorrncia a uma dimenso que transcendente as condi-es dos prprios sujeitos dos atos, podemos atribuir um carterdogmtico s suas consideraes. A idia do bem, que certamente foitomada do iderio aristotlico, constitui essa instncia avaliativa dasaes morais. A partir dessa idia do bem que se poderia entrar na

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 17

    GORA FILOSFICAaventura da descoberta de um sentido para a ao moral. No nossomodo de entender, a essa recorrncia que se contrape MariaHerreira quando afirma: essa idia de unidade de vida que pode seravaliada desde uma concepo do bem moral que transcende as deci-ses existenciais dos sujeitos e suas concepes particulares, contmum elemento dogmtico13. De fato, a instituio de um mbito fora dadinmica interna do prprio sujeito que age, como referencial para aconstituio da identidade da vida de um indivduo como um todo,leva-nos a supor que essa instncia tem um carter verdadeiramentesuperior. Dessa forma, a compreenso da totalidade da vida s acon-teceria, de modo satisfatrio, na suposio de que possvel chegar aessa verdade referencial. Essa verdade, portanto, teria um cartertranscendental. Afirma Herrera : O que MacIntyre postula encon-trar uma verdade transcendente e s frente a ela se poderia medir, emltima instncia, tanto a validade das doutrinas morais, como o valordos atos individuais na busca dessa verdade14.

    A perspectiva de compreenso assumida pela autora que arecorrncia a uma dimenso metafsica ultrapassa os domnios nos quaismovem os suportes de coerncia da idia de unidade de vida defen-dida por MacIntyre. Em outros termos, ele atribuiria uma tarefa aotexto literrio que est, para alm de suas condies, um suposto cum-primento: A tarefa que MacIntyre atribui narrativa na defesa de umadoutrina moral especfica resulta excessiva15. Portanto, para ela, aconcepo de unidade de vida, como um possvel sentido do tododa experincia de vida no implica assumir uma idia de verdade trans-cendente e que possvel pensar numa outra perspectiva, ou seja, aprpria idia de totalidade: podemos pensar nessa totalidade comouma construo contingente, falvel e, por conseguinte, aberta a revi-ses e questionamentos16. Essa ltima perspectiva de pensamento,condiz melhor, ao concreto da experincia de vida e est mais de acordocom as condies que a literatura pode apresentar. De qualquer ma-neira, no momento em que se assume uma compreenso de totalidadecomo algo contingente, falvel e, portanto, algo aberto, assume-se, porconseguinte, a condio de historicidade. Isso implica entender que aexperincia moral possvel ocorrer nos fluxos e contrafluxos dos pro-cessos que se verificam como algo sempre flexvel. O contexto que o

  • 18 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    prprio MacIntyre reivindica para situar a experincia moral no mo-mento que tomado como referncia, para se compreender o sentidoda vida, tem que levar em conta o seu carter de complexidade, dadojustamente pelas variveis de flexibilidade que a realidade mesma com-porta. Em outras palavras, a inteligibilidade do sentido da experinciamoral numa perspectiva de unidade, tem que ser entendida nas cir-cunstncias de complexidade que so marcadas por dvidas, perple-xidades e contradies.

    Parece-nos que as consideraes crticas que a autora faz proposta de MacIntyre reside no fato de ele ancorar sua propostanum sentido de transcendncia/dogmatismo e no se dar conta da di-menso propriamente literria da narrativa que ele se prope conside-rar na explicitao da realidade moral. Ela reclama uma espcie de usoimprprio ou limitado que ele faz da literatura e, com isso, no conse-gue afastar-se de uma considerao tradicional da filosofia. Por isso,ela enftica em dizer: ... MacIntyre no considera os aspectos lite-rrios da narrativa nem pensa que esta constitua uma linguagem ouforma de descrio diferente da linguagem filosfica tradicional17.

    Se a crtica, por um lado, tem razo em reclamar dainadequao ou limite, do uso da literatura por parte de MacIntyre,por outro tem que reconhecer a diferena da sua postura de aberturapara uma possvel relao proveitosa, em relao a outras posturasque radicalizam as diferenas e autonomias de ambas. preciso, tam-bm, atentarmos para o fato de que se ele no conseguiu dar conta dadimenso literria da narrativa como recurso adequado para constituiro sentido da unidade da vida nas aes morais, isso no quer dizer queele defenda a moralidade como algo exclusivo da investigao da filo-sofia. Muito pelo contrrio, assim como ele foi propenso a uma apro-ximao com a literatura como um mbito possvel de investigao eexplicitao da moral, tambm entende que ela ultrapassa os limites dafilosofia e se estenda a outros domnios. Nesse sentido, ele tem afirma-es lmpidas:

    Quando falo de investigao moral, me refiro a algomais amplo do que se entende convencionalmente,ao menos nas universidades americanas, por filoso-fia moral, posto que a investigao moral se estende

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 19

    GORA FILOSFICAa questes histricas, literrias, antropolgicas e so-ciolgicas18.

    Portanto, se a sua habilidade no nos convence da justia dotrato da narrativa no que ela tem de especificamente literrio, pelomenos se esfora para expor uma abertura de possibilidade deinterdisciplinaridade no trato de questes morais.

    3 Martha Nussbaum: tica de novela impossvel

    Os intentos de aproximao da polmica questo damoralidade e o mbito da literatura tem vrias vertentes, como anunci-amos antes, no interior da Histria da Filosofia. No pensamento con-temporneo, poderamos elencar uma enormidade de nomes e pontu-ar questes especficas de seus respectivos interesses. Um mapeamentodessas vertentes, com certeza, tornaria visvel o complexo de questese posies divergentes no trato de questes idnticas. Nos limites denossa pretenso, ou melhor, a ttulo de exemplificao, poderamosinvocar o nome de Martha Nussbaum e expor as suas contribuiesna configurao do mapa da relao filosofia e literatura. No obstanteo carter redutivo da nossa impresso, podemos dizer que a sua obra um modelo exemplar da relao filosofia e literatura, no pensamentocontemporneo, particularmente, a sua contribuio na questo daexperincia moral.

    Numa perspectiva bastante diversa da de MacIntyre, comovimos antes, Nussbaum tambm admite que a linguagem expressivadas narraes literrias particularmente adequada para descrever aexperincia moral19. No seria a literatura apenas uma modalidadepossvel da descrio do fenmeno da moralidade, mas um modo ade-quado autenticamente para esse fim. Na sua maneira de compreendera literatura, aparece uma dimenso de especificidade que lhe prpriapara anunciar questo da vida moral no perceptveis por outras vias.Ou seja, as questes j tradicionais do racionalismo formalista egeneralizador deixam na sombra dimenses da experincia moral, quesomente a literatura capaz de torn-la visvel. Ela tem presente, demaneira muito forte, que as investigaes do fenmeno moral, uma vez

  • 20 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    empreendidas a partir de uma perspectiva racionalista que se pretendepromover uma preciso conceitual na forma da universalidade, deixaas particularidades da experincia inatingveis. Ora, como j bemsabido, o que se chamou de filosofia moral na tradio da filosofiasempre foi formulada nos parmetros da racionalidade objetivante eabstrata. A constituio de princpios generalizadores, postos comocabides ancoradores das prticas particulares, tiveram, de certa for-ma, a hegemonia nas consideraes da filosofia moral. O domnio daracionalidade conceitual fundada na coerncia lgica e na pretensode objetividade, nas consideraes de Nussbaum, no conseguempenetrar nas regies de profundidade que tem a experincia humana,onde acontece a trama da vida moral.

    A partir da intuio da insuficincia do racionalismo abstratoe universalista, ela prope uma alternativa. A literatura, na sua particu-laridade de gnero, como a novela, pode ser uma alternativa com con-dies de atingir o mago da realidade moral. No se trata de instituira novela como uma disciplina a mais nas investigaes da moralidade.Trata-se de implementar um recurso capaz de atingir a complexidadeda trama da moralidade que acontece na enigmtica tessitura do hu-mano. A novela, segundo ela, tem a capacidade de chegar ao humanotentando vislumbrar um sentido de vida e de ao que se concretizamnum emaranhado de relaes que escapam a uma pretensosimplificadora como a razo conceitual.

    O humano alm de sua materialidade corprea, de sua formali-dade abstrata de pensar, tambm sonho, desejo, fantasia, imaginao,crenas; elementos esses que se configuram de forma entrelaada na vidaconcreta de cada ser humano. E, por conseguinte, so elementos que es-to presentes de forma determinante nos fluxos e contrafluxos das dinmi-cas da moralidade. Para ela a novela apropriada para acercar-se dessarealidade e dar-lhe uma expresso mais consequente. A vida, enquantoacontecer essencialmente prtico, que se constitui no fluir da experinciade si mesmo, da natureza e das relaes com os outros, um corpo espe-cfico onde a novela pode interferir, reforando e exprimindo a experinciamesma de vida. A novela, portanto, entra na dinmica do acontecimentoda vida fazendo perguntas e oferecendo respostas conforme as ocorrnci-as concretas da experincia humana.

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 21

    GORA FILOSFICA impressionante a reflexo que Nussbaum faz da fora da

    imaginao literria na vida das pessoas em sua dimenso coletiva nasociedade contempornea. O prprio sentido de coletividade podeser, segundo ela, constitudo, adequadamente, a partir da literatura,sobretudo a novela. Na clara inteno de combater a perspectiva deinteligibilidade do utilitarismo, ela afirma, num artigo cujo ttulo j aexpresso da sua posio, a imaginao literria na vida pblica, oseguinte:

    A literatura e a imaginao literria podem ter umefeito subversivo frente idia de racionalidade ex-pressa habitualmente pela cincia econmicautilitarista. Por isso a literatura deve formar parte deuma educao a favor de uma idia de racionalidadepblica mais ampla que a idia de indivduo comomaximizador de utilidades. Atravs da anlise da no-vela de Dickens Tempos difceis, se chega con-cluso de que s a imaginao proporcionada pelasnovelas e no pelos livros de economia poltica pode ser a base para governar adequadamente umpas de pessoas livres e iguais ou para desenvolvernossa vida cotidiana como cidados20.

    O texto de uma riqueza extraordinria e, por conseguinte,pode ser realado em mltiplos aspectos. Chama-nos a ateno, demodo especial, a idia de imaginao como um componente capaz deinterferir na configurao de uma forma de racionalidade. Racionalidadeque ela contrape outra por seu carter objetivante. Como aponta-mos antes, a sua proposta visa a resgatar uma compreenso deracionalidade compatvel com a natureza diferenciada do humano,que, evidentemente, est para alm do meramente coisico damaterialidade econmica. Essa dimenso objetiva que prima pela exa-tido lgica exprime devidamente as realidades quantitativas, umas fi-cam muito longe de atingir o sentido antropolgico do humano.

    O diagnstico que a autora faz da sociedade contemporneatem, a nosso ver, a inteno de denunciar exatamente a ausncia dadimenso qualitativa, que nunca aparecem nos quadros da racionalidade

  • 22 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    da lgica de quantificao. A essa carncia ela se refere dizendo: Navida poltica de nossos dias, com frequncia carecemos da capacida-de para vermos uns aos outros como inteiramente humanos, comoalgo mais que sonhos e defeitos21.

    A sua reivindicao tem, a nosso ver, a vantagem de trazerpara o centro das preocupaes a possibilidade de uma aproximaoao humano diludo nas dispersas engrenagens da sociedade que primapelo esfacelamento e anonimato. Ela sugere que pensemos na socie-dade como um conjunto de relaes produzidas pelas pessoas, cadauma com sua particularidade, e no como uma multiplicidade de peasde uma mquina que funciona em harmonia. Na verdade, um olharsobre o conjunto daquilo que as cincias sociais podem conceituarcomo o social, a sociedade, com as suas mltiplas instituies,tem, na sua base, no estruturas conceituais ou objetos duradouros notempo, mas particularidades pessoais com nome, cor, etnia, sexo, pre-ferncias, desejos, esperanas, frustraes; cada uma com a sua ca-pacidade diferenciada de dizer sim e no a si mesmos e s coisas queelas constroem. Todas partilhando as dores, os sofrimentos, as mor-tes, os movimentos e, acima de tudo, a certeza de que so distintos doferro, do ao, da gua, dos deuses, etc.

    No meio dessa multiplicidade de diferenas, elas reconhe-cem que cada uma tem o mesmo olhar diferente em comum. E justa-mente por causa da diferena que cada um tem no olhar, emerge acapacidade de ver a necessidade e ser visto na sua diferena. Assim, amultiplicidade dos olhos refletem os horizontes inabarcveis do huma-no que se recusa a ser reconhecido como uma pea eminente de umamquina annima que funciona perfeitamente.

    Desde essa perspectiva, a pergunta o que o ser humano seapresenta imprpria, porque j o insere nos horizontes das coisas e nadimenso da generalidade. Ao invs de o que, mais condizente per-guntar quem , e ter presente que, quaisquer que sejam as respostas,ficam muito a quem de dizer o seu verdadeiro sentido, que permanecevivo e inapreendido no olhar que enxerga e se ofusca, na voz que gritae cala, no ouvido que ouve e ribomba, no crebro que pensa e esque-ce, no corpo que se faz presena e ausncia de si mesmo e dos outros,um sinal que apenas indica uma direo mas no mostra nenhum pon-

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 23

    GORA FILOSFICAto; sentido que se sente humano, que se pensa humano, que se fazhumano, nunca uma tecnologia de conceitos humanos.

    Nussbaum tem presente a riqueza das tecnologias daracionalidade que so capazes de inventar formas de literatura que sepem a servio da prpria racionalidade tcnica, reforando as polti-cas dos homens coisas, reproduzindo, de formas variadas, a pobre-za da intuio que acredita que sempre bom mais do mesmo22. Osquadros conceituais, com muita competncia, criam e recriam recur-sos de manipulao da realidade e conseguem apresent-las ampla-mente, como novas alternativas de compreenses, sem nunca sedarem conta do ridculo de sua farsa. assim que as denominadasnovas racionalidades apresentam, em novos embrulhos, o seu con-tedo do mesmo, que elas no conseguem dispensar. No queremosdizer com isso que ela faa uma opo pela literatura como fonte daimaginao que necessariamente tem que opor-se racionalidade. Asua oposio a um certo tipo de racionalidade que se apresenta comoverdade total e no se d conta de suas insuficincias e sua presteza`as manipulaes, sobretudo, a dimenso do humano. Muito pelocontrrio, ela mesma esclarece: ... a narrao de histrias e a imagi-nao literria no se opem discusso racional, seno que podemproporcionar ingredientes essenciais para a dita discusso racional23.

    importante essa considerao, para no cairmos na tenta-o de nos envolvermos em polos de reducionismos, ou fazermos adefesa da irracionalidade pura e simples como certas linhas deesteticismo, como acusa Carlos Pereda. Trata-se de reconhecer queh racionalidades diferentes que podem dialogar entre si ou igualarem-se. No caso de nossa autora, aqui, como ficou bem explcito em suasprprias palavras, trata-se de possibilidades de discursos que podemdiscutir, de forma produtiva e, portanto, enriquecedora, numa pers-pectiva de complementariedade. Todavia, ficou bem claro que a formade racionalidade defendida pelo utilitarismo economicista recusadotaxativamente.

    As razes da recusa j foram de alguma maneira apontadas,mas, preciso pontua-las cuidadosamente, porque elas evidenciammelhor os contornos da proposta defendida pela autora.

  • 24 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    Pensamos que possvel lanarmos luzes sobre as razesdas crticas ao utilitarismo econmico, justificando o poder da imagi-nao literria, sobretudo a novela, na dinmica do viver em socieda-de. Podemos tomar como ponto de partida a formulao da prpriaautora das seguintes questes: Porque novela? Ela mesma diversifi-ca a pergunta: por que novela e no outras formas de narrativas comohistrias, biografias, sinfonias, filmes, tragdias, comdias ou poemaslricos? Antes de deter-se na resposta s questes que se pe, fazuma interessante colocao bem precisa a respeito de porque novela eno histrias, fazendo uma evocao a Aristteles. Considerando quea questo que lhe importa a capacidade de imaginar o que viver avida de outra pessoa ela evoca Aristteles e responde a pergunta:

    ...minha resposta a pergunta da histria sai direta-mente de Aristteles. A arte literria simplesmentenos mostra o que ocorreu, enquanto que as obrasde artes literrias nos mostram as coisas do modocomo poderiam ter ocorrido na vida humana. Em ou-tras palavras, a histria simplesmente registra o quede fato ocorreu, quer represente ou no uma possibi-lidade geral para as vidas humanas24.

    A diferena radical que aparece na sua resposta est entre aobjetividade e a possibilidade da imaginao. A objetividade do fatoocorrido j dado, irreversvel. Ao passo que a possibilidade umaabertura concretude. Evoca vontades, decises, desejos, determi-naes. Aqui podemos vislumbrar a implicao da literatura e na vidamoral. A narrao da histria, ao apresentar o ocorrido, pode exibir ossujeitos dos fatos como sujeitos mortos, enquanto a literatura apontapara o possvel, podemos imaginar como plausvel os agentes comosujeitos vivos, provocados simplesmente pelo desafio de pensar e de-cidir agir. Se no nos equivocamos, aqui est um dos elementos dejustificao da literatura como via possvel de influncia na vida daspessoas como indivduos enquanto sujeitos de relaes coletivas. Aatuao no mbito do possvel suscita a ideia de que so os humanosos instituidores das possibilidades dos sentidos mesmos e das configu-raes concretas da vida pblica. A dimenso do possvel, portanto,aparece como uma questo central na sua compreenso:

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 25

    GORA FILOSFICAA literatura se centra no possvel, convidando a seusleitores a perguntar-se sobre si mesmos. Ao contr-rio da maioria das obras histricas, as obras literriasconvidam a seus leitores a pr-se no lugar de agen-tes de muitos diversos tipos e a assumir suas experi-ncias25.

    Explicita-se com isso que as potencialidades da imaginaoso acionadas justamente quando se tem uma abertura para o poss-vel. Imaginar que as determinaes da vida cotidiana no so resduoscongelados pela natureza, nem apenas efeitos de foras externas, mui-tas vezes fantasmagricas, de fato sentir a existncia como uma tare-fa da qual no podemos nos livrar. A existncia se descobre assim,como algo dado num movimento permanente que a cada instante evo-ca a tomada de deciso sobre ela mesma. Isso tem, como consequncia,tornar todas aqueles que se sentem existentes chamados a assumir a simesmos e tudo o que se refere a sua condio de ser relacional. Avida, portanto, torna-se um encargo do qual o indivduo no podeconstituir substitutos.

    O fato de cada um ter que viver a sua vida abre horizontesticos fundamentais, no que diz respeito liberdade e responsabili-dade. So horizontes estes que dizem respeito a cada indivduo en-quanto ente particular e aos mltiplos outros de seus circuitos de rela-es. Na obrigatoriedade de ter de assumir suas experincias quese faz primordial o poder da imaginao. No como algo que vempara as experincias, mas como algo que se origina na experienciamesma, abrindo brechas para elementos novos. Ela acontece medi-da que cada vivente leva a srio a experincia de ir vivendo a vidanaquilo que ela vai exibindo de prazeroso ou horroroso, de desejvelou detestvel. Como ideal tico desejvel a vida boa, que vemdesde os gregos, a tomada de conscincia dos instantes que se vive vaiidentificando o desagradvel e indesejvel, e j fazendo emergir a ima-ginao na elaborao de uma alternativa. Elaborar alternativas impli-ca necessariamente na imaginao. Envolve de certo, o conjunto dasdisposies de sonhar, desejar. Exatamente dimenses da vida que searticulam mais propriamente com as emoes. justamente essa di-menso que entra no interesse de Nussbaum enquanto contributo

  • 26 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    vida pblica. Diz ela: As emoes e a imaginao do leitor, emconsequncia, permanecem ativos, e a natureza dessa atividade esua relevncia para o pensamento o que me interessa26.

    A novela, nesta perspectiva, cria um elo de relaes entrepersonagem e leitor a ponto de influir nas emoes e sentimentos quemarcam a sua maneira de agir concretamente. Por causa desse relaci-onamento que acontece entre leitor e personagem, suscitando esseltimo as reaes, que Nussbaum, percebe a novela como um gne-ro vivo. claro que ela reconhece que outros meios como msica,filme, e outros gneros de literatura tambm provocam as emoes eoutras formas de expresses, mas a novela tem a sua preferncia, tal-vez por causa do potencial de fora viva: ... a questo porque novelae no outros gneros: porque a novela , desde meu ponto de vista,uma forma viva27.

    O fato de ser a novela o que ela chama de forma viva adiferencia de outros gneros; portanto, tem a sua preferncia. A nove-la, assim, apresenta-se como algo bem concreto, que segue as varia-es das manifestaes diferenciadas da vida mesma. Essa caracters-tica muito importante, porque permite articular devidamente as gene-ralidades e as particularidades conforme vo acontecendo na experi-ncia de cada um. Essa concretude da novela marca especfica queela no reconhece em outros gneros: A novela concreta at umponto com frequncia sem paralelo com outros gneros28. Isso podeexplicar, por outro lado, o predomnio que tem a novela nas culturascontemporneas. No o puro fato de ser concreta, mas a capacida-de de trabalhar o que ocorre na vida das pessoas. Vida essa que,como j dissemos antes, no acontece somente como materialidadede atos, fatos e situaes, mas tambm como sonho, fantasia, desejos,etc. Nisso nossa autora tem muita clareza:

    a interao entre aspiraes gerais humanas e for-mas particulares de vida social que ou bem permitemou bem impedem suas aspiraes, e que conformampoderosamente no processo. As novelas (pelo me-nos as novelas realistas...) apresentam formas per-sistentes de necessidades e desejos humanos, talcomo ocorrem em situaes sociais concretas29.

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 27

    GORA FILOSFICAPodemos supor que a novela apresenta situaes que so

    bem diferentes das vividas pelos seus leitores (ouvintes), mas, sobre-tudo, situaes que entram no imaginrio e corresponde a desejos, elafigura como um contra modelo a sua prpria situao. nesse sentidoque a sintonia entre personagem e leitor pode desencadear, no ltimo,um processo de atividade conforme suas convices. No nosso modode ver, aqui est um dos ncleos fundamentais da problemtica damoralidade: a sua importncia para a vida coletiva. A excelncia danovela est, para Martha Nussbaum, exatamente nesta dinmica comoparte constitutiva:

    Este ir e vir entre o geral e o concreto est construdona estrutura mesma do gnero. Desse modo, a nove-la elabora um paradigma de um estilo de raciocniotico que especfico a respeito do contexto, semchegar a ser relativista, no qual obtemos prescriesconcretas; potencialmente universalveis ao transfor-mar uma idia geral de prosperidade humana em si-tuao concreta30.

    preciso termos em mente a importncia do modelo, comoj nos referimos, principalmente quando eles dizem respeito vidacoletiva. A ideia de imaginao pblica, est de alguma maneira, vincu-lada possibilidade de modelos plausveis. Principalmente a modelosque configurem uma vida pblica correspondente aos desejos de umasociedade onde a vida humana seja o critrio fundante e, portanto, oelemento articulador das dimenses da economia, da poltica das ins-tituies administrativas, etc. Vemos, portanto, que, na perspectiva dea autora apresentar a novela, possvel se realarem vrios elementos,que no somente constituem crticas a modelos fundados nas lgicasracionalista e tecnicista, mas apontar tambm para a necessidade oupossibilidade de desenvolvermos formas criativas de considerar a vidaem sociedade. Na verdade, trata-se de levar a srio a capacidade quetodo ser humano tem de inventar, de projetar, de transcender os dadosdo real e a si mesmo.

    As consideraes feitas acima justificam, suficientemente,segundo nosso modo de ver, o porqu de novelas e no outro gnero.

  • 28 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    No somente o porqu, mas, de alguma forma, que novelas, pois vi-mos que, na viso da autora, a prpria estrutura da novela propicia ainterao entre leitor e personagem pela capacidade de provocar rea-es ou produzir no leitor um efeito que o pe em atividade, por issomesmo pode constituir-se um magnfico elemento de interferncia navida pblica que pode muito bem conformar-se com uma vida pblicacidad. claro que no so todas as novelas que tm essa estrutura deinterao voltada para questes da vida coletiva, sobretudo no queconcerne ao poder, questo econmica, a questes sociais. Ela fazquesto de pontuar que h novelas que se prestam mais e outras me-nos para implementar um processo criativo e fazer emergir a imagina-o capaz de determinar comportamentos morais. No texto que estamosconsiderando, por exemplo, ela toma como modelos uma novela in-glesa de Charles Dickens, Tempos Difceis. Para ela, no obstante,as reservas que faz, na novela de C. Dikens, aparecem de forma signi-ficativa as questes que levantamos e, sobretudo, consideraes va-liosas sobre o poder da imaginao em poltica; consideraes queesto relacionadas com a riqueza metafrica e lingustica da novela31.Isso no quer dizer que ela defenda a novela como o veculo capaz deoferecer solues para todos os aspectos da vida privada e da vidapblica. Conforme j nos referimos, a novela oferece possibilidadesde concretizao de determinadas convices. Por isso no podemosimaginar que ela sugere a novela como soluo para tudo. Nesse sen-tido, importante estarmos atentos para o que ela diz: a leitura denovelas no nos proporcionar uma viso completa da justia social,mas pode servir como ponte entre uma viso da justia e a realizaosocial de tal viso32.

    Ora, se tomssemos como elemento articulador, de uma de-terminada sociedade, a justia, e, a partir dela, refletssemos o queimplicaria termos concretos a sua efetivao, veramos que vrias facetasseriam evocadas. Poderamos perguntar-nos como a novela poderiaparticipar de forma contundente nessa discusso. Pelo que j foi ex-posto, poderamos dizer que um elemento de alta importncia seriagarantir a presena da prpria idia de justia no nvel do concreto quese vive. Haveria o deslocamento do nvel de abstrao intelectual parao terreno da experincia. Aqui, neste nvel, ela perderia a sua feio de

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 29

    GORA FILOSFICAconceito, que se adequa inteligibilidade, rigorosamente lgicas eentraria numa dimenso mais de vibraes emotivas. Entraria nos so-nhos, nas fantasias das pessoas como sentimentos de nobreza que pro-duz prazer a cada vez que se sente. Em segundo lugar, poderamospensar que haveria a descoberta de que a justia concerne a todos osviventes que se fazem perceber na ocupao de um espao determi-nado enquanto indivduo particular e que tem em comum com os ou-tros indivduos a pertena a uma teia de relaes delimitados tambmpor espaos determinados. Haveria uma justia da qual algum fossecapaz de dizer: eu senti a justia. Ou eu fiz a justia. At mesmo dar anotcia: fulano ou cicrano, Jos ou Maria praticou a justia. Ela assumi-ria uma feio de efetividade, de concretude que algum poderia, afi-nal, dizer: sou testemunha por viver uma experincia de justia. Seriaento uma justia de todos, para todos e que se concretiza em e comalgum. E no uma justia que para todos e no atinge ningum.

    Haveria evidentemente instncias de operacionalizao dajustia, mas no seriam reconhecidas como portadoras ou respons-veis por ela. Ou seja, todos individual e institucionalmente, seriam seussujeitos e seus beneficiados. Ela estaria como dimenso constitutiva davida de modo imprescindvel e no como um aspecto regular de con-flitos ocasionais. Talvez at pudesse perder o seus status de virtude eprincpio que lhe foi conferido at hoje na tradio do Ocidente. Po-deria at ser desvinculada dos cdigos de leis que impem suaobrigatoriedade formal para uns em detrimento de outros. Tambmpoderia perder seu carter lgico, seu nome de invocao, seu smbo-lo de balana. Ela poderia at perder sua identidade, ser invisvel e nodita, mas viva na atuao, no testemunho e na imaginao de quemtem a possibilidade de julgar, legislar, gerir os bens pblicos, ensi-nar, noticiar, cantar, dramatizar, poetar, pintar-viver a vida em carne eosso.

    Pensada nessa perspectiva, a justia seria bem mais condi-zente com uma imaginao que pensa o conjunto da vida como umacontemplao esttica do que com os tratados jurdicos e tico-polti-cos. Seria uma espcie de fome que o alimento no sacia e no hreparao de quem cometeu uma infrao qualquer; seria mais umsonho que se partilha acordado, do que o desabafo aliviado de quem

  • 30 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    diz: o culpado foi punido, fez-se justia. Uma vida pblica modeladapor uma forma de percepo de justia como a sugerida, provavel-mente anuncia uma outra compreenso de racionalidade como a quej apontamos. Principalmente a to cara racionalidade da cincia mo-derna que prima pela objetividade, a quantificao e a exatido mate-mtica. E, por conseguinte, rejeita toda dimenso do subjetivo, doqualitativo e do inexato. Essa forma de racionalidade cientfica re-presentada no texto pelo personagem Tomas Gradgrind, que Nussbauncapta nos seguintes termos:

    Tomas Gradgrind, senhor. Um homem de realidades.Um homem de fato e de clculos. Um homem queprocede mediante o princpio de que dois e dois soquatro, e nada mais, e ao qual no deve-se tentarconvencer de que pode haver algo mais. TomsGradgrind senhor; sim, senhor-peremptoriamenteToms-Toms Grandgrind. Com uma regra na moe uma par de balanas, e a tabuada de multiplicarsempre sempre em seu bolso; sim, senhor; prontopara pesar e medir qualquer pedao de natureza hu-mana e dizer-lhe exatamente a que se reduz. umamera questo de nmeros, um caso de simples arit-mtica33.

    Dessa breve descrio que ela faz da figura de TomasGrandgrind como representante da concepo de racionalidade queC. Dickens quer combater, evidenciam-se alguns elementos que me-recem uma considerao pela fora que tm na determinao do sen-tido da realidade. Ser um homem de fato, de calcular, que procede porprincpios, aponta para a quantificao que pode ter medidas exatas.Assim, todo o que pode ser medido entra como um ente semelhante; ocarter de unicidade e diferena se esvai. No caso da quantificao danatureza humana, ela se objetiva e perde a sua diferena de ser subje-tivo, entra na generalidade da abstrao e passa a ser uma quantidadeabstrata muito geral. A autonomia que cada pessoa tem e que nopode entrar numa generalizao quantitativa dispe a diferena huma-na ao manuseio dos teis. O sentido das relaes que cada indivduo

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 31

    GORA FILOSFICAestabelece com os seus prximos se perde no anonimato da abstraodo dado matemtico. Segundo Nussbaum:

    O indivduo no chega sequer a ser to nico comoum inseto, j que o clculo do senhor Gradgrind seconverte em simples imput dentro de uma comple-xa operao matemtica, que trata a unidade socialcomo um nico sistema, onde as preferncias e sa-tisfaes de todos se combinam e fundem34.

    Essa forma de racionalidade aplica-se facilmente no mundoda economia e at da poltica. Encontra muito facilmente as soluesexatas para os problemas humanos, que foram cuidadosamente cata-logados e somados. As solues se avizinharam com clareza, de modoque se pode contar quantos so os problemas, quanto tempo tm,quantas consequncias podem ter, quantas pessoas so necessriaspara resolv-las, quanto custa exatamente. Tudo se resolve pelas me-didas, pelas quantidades calculadas. Tudo tem soluo. uma ques-to de encontrar a medida certa. At para o desespero de algum queentra em profundos prantos num momento de extrema instabilidadeesse modo de proceder v as medidas. Temos o exemplo da filha doSenhor Gradgrind que aos prantos lhe diz:

    Pai, descobri que a vida muito curta. Ele respon-de: sem dvida curta, minha querida. Porm estcomprovado que a durao mdia da vida humanafoi incrementada nos ltimos anos. Os clculos devrias companhias de seguro e caixas de penso,entre outros clculos que no podem equivocar-se,notou este fato. Eu falo de minha prpria vida, pai.Ah! Sim? Pois ainda assim, respondeu o senhorGradgrind, no preciso assinalar-te Louisa, que [tuavida] est governada pelas mesmas leis que gover-nam as vidas em seu conjunto35.

    Esse modo de pensar, com certeza, no consegue enxergardimenses da vida como a dor, o sofrimento, a tristeza, as alegrias, asesperanas, os desejos e sonhos que, misteriosamente, plasmam mo-

  • 32 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    dos de vida. , portanto, um pensar que at pode dizer muito bem assuperfcies da vida como aparece, mas nunca tem acesso a interioridadena forma como acontece. Pesar e medir os pedaos da vida humanaficam longe do olhar desinteressado daqueles que enxergam os risosdas crianas que esperam manter-se vivas no dia seguinte, ver o voardas pipas e dizer: que lindo! No passa perto do sentimento daquelesque veem pessoas disputando lixeiras com os insetos e so capazes dedizer: que horror. Jamais entendero a infinitude da confiana daquelesque, a cada dia, sentem nusea de ver mais um morto pelas ruas vtimada violncia, mas seguem acreditando: viver tranquilamente possvel.

    A dimenso do interior do humano fica, pois, invisvel aracionalidade que reduz tudo ao clculo. Recomenda-se como bomprocedimento de rigor manter-se bem distante das dimenses subjeti-vas, pois elas so enganadoras, do-nos somente aparncias, levam-nos ao relativismo, ao erro. O que concerne ao mundo da vida queno entra no clculo matemtico deve ser visto, portanto, como sus-peito. O que essa racionalidade objetiva, genrica abstrata,quantificadora, uniformizadora das diferenas, com solues exataspara tudo no enxerga que os olhos com os quais v a realidadenunca podero ver o brilho do olhar de algum que transborda dealegria; nunca, sequer, poder desconfiar que a lgrima que inunda orosto de algum poder ser expresso de uma dor profunda. Paraessas dimenses do humano, os fazeres cientfico e filosfico so semsujeito humano. Se, por acaso, puder ser chamado de humano ou outro, ou tem deformaes graves, pois no sente, no ouve, no cho-ra, no v. O que anunciam como viso de no passa pelo olho quev o misterioso da vida humana. A essa cegueira que a novela emquesto quer denunciar ela diz:

    Mas a novela nos mostra que, em sua determinaopor ver o que cabe nos clculos utilitrios, a menteeconmica est cega: cega ante a riqueza qualitativado mundo perceptvel; cega a respeito daseparatividade de seus agentes, as suas mais ntimasprofundidades, nas esperanas, seus amores e seusmedos; cega ante tudo o que supe viver uma vidahumana e tratar de conferir-lhe um significado hu-

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 33

    GORA FILOSFICAmano. Cega, por cima de tudo, ao fato de que a vidahumana algo misterioso e s vezes insondvel; algoque exige ser tratado com faculdades mentais e re-cursos da linguagem que sejam adequados a expres-so dessa complexidade36.

    Parece-nos que o que foi posto acima retoma e resume, ade-quadamente, o ncleo das consideraes da autora quanto novelacomo instncia criadora de uma possvel imaginao que pode ser al-ternativa racionalidade cientfica. Sobretudo, para orientar prticasconcretas de condutas morais e formas de vida pblica. No se trata,como mencionamos antes, de fazer simplesmente a crtica racionalidade cientfica que bem apropriada pela cincias particu-lares como a economia e a poltica , mas apontar para uma insuficin-cia e mesmo uma impropriedade para tratar dimenses antropolgicasdo humano. A novela, portanto, no apresentada como substitutalegtima e nova forma mais prpria de racionalidade, mas como umaalternativa possvel que, com maior propriedade, consegue atingir re-gies da pessoa que no se deixam tolher pela razo calculadora. Almdo mais, a novela prope uma interao com o leitor que o remete reflexo e o acionamento de disposies de suma especificidade dainterioridade humana, levando-o a tomar posio e assumir a sua pr-pria experincia como algo que brota das entranhas da interioridade. nesse horizonte que a novela se insere e, a partir dele, a imaginaopblica pode configurar compromissos arraigados na qualidade e nona quantidade. Podemos pensar que a configurao de uma vida soci-al pensada a partir das entranhas humanas seja mais consequente con-sigo mesma e menos contraditria. Segundo Nussbaum, a novela temexatamente compromissos com essa parte imperceptvel racionalidadedas aparncias:

    A novela tem um compromisso para com a riquezado mundo interior, maior inclusive que em outros g-neros narrativos, assim como um compromisso mai-or para com a relevncia moral de seguir uma vidaao longo de todas suas aventuras concretas na tota-lidade de seu mundo concreto37.

  • 34 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    A experincia moral encarada desde a interioridade e comoum elemento constitutivo da vida humana e no como uma referncia acdigos externos, pode ser instituda como horizonte indicador de pr-ticas pessoais e pblicas. A idia de fazer aos outros o que gostariaque fizessem comigo bem pode ser componente fundamental dessehorizonte. Teramos, assim, uma sensibilidade para pensar a vida comorede complexa de relaes na qual sentir-se eu implica referir-se aosoutros. Afinal, o destino de cada um tarefa de cada um e de todos.No caso das sociedades contemporneas que tm dimenses globais,a percepo dos excludos se tornaria fundamental como possibilida-de mesma de garantir sua existncia como ser humano:

    A novela nos convida a preocuparmos pelos destinosde outros como ns, aos quais nos ligamos tanto poruma amizade compassiva como por uma identifica-o emptica. De modo que quando a novela nosalerta ao final a pensar o que vamos fazer, nossaresposta natural ser, se tivermos lido bem, fazer paraos outros homens e mulheres correntes como parans, e vendo inclusive nas circunstncias de vida maisslida e correntes em uma lugar onde, na imagina-o, construmos nossa prpria morada38.

    A novela tem, na sua prpria estrutura, elementos que, aointeragir com os leitores aciona tambm pulsaes que lhe trazem mui-to prazer. E isso torna o enfrentamento da prpria experincia algoagradvel e prazeroso. Entra como um tipo de oxignio que alivia o arpoludo. Ao prazer bem podemos relacionar a alegria. Na verdade, anovela pode ensinar que a vida feita de prazer e de alegria e tem queser assumida como tal:

    porque expressa em sua forma artstica, o desejo deque o leitor viva uma vida de gozo, de fantasia gene-rosa e liberal, (...) E ao formar com o leitor umarelao rica em prazer, assumem reflexo moral, en-sina ao leitor um estilo de relao humana onde areflexo se nutre com a plenitude do caprichoso, e asatitudes morais mais amveis e generosas quando aimaginao intervm39.

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 35

    GORA FILOSFICAO gozo e a alegria humana podem ser articulados com outras

    riquezas da interioridade, e ajudar a pensar, desejar e atuar para cons-titu-los em bens de alto valor que devem ser partilhados por todos.Seguramente so ingredientes imprescindveis para fazer emergir sen-timentos de amorosidade, e, portanto, a habilitar as pessoas a verem oreal a partir do corao. Isso, com certeza, pode ajudar a fazer acon-tecer a fantasia, concretizar as iluses e reconstruir o mundo. O olharao interior, ou fantasia, a grande caridade no corao, contribui parauma construo generosa do mundo40, onde se possa viver a vida ever o humano do humano.

    Concluso

    O nosso esforo teve como pretenso apresentar, de formaabreviada, uma velha e disputada questo: A relao entre filosofia eliteratura. Foi nossa inteno particularizar o problema fazendo umaespcie de torso para articular com a questo moral. A partir dessatica, apresentamos as posies de Alasdair MacIntyre e MarthaNussbaum.

    Tentamos enfatizar algumas questes desta ltima porque nospareceu mais tentadora a ideia de imaginao literria vinculada vidapblica. Como nos nossos dias atuais, percebemos cada vez mais aimportncia da tica nas gestes pblicas, e cada vez maior o nmerode novelas que disputam a preferncia do telespectadores; pensei quetentar explicitar os mecanismos inerentes estrutura do gnero novela,como a compreende Nussbaum, poderia contribuir para uma possvelreorientao na maneira de considerar novela e construo dacidadania.

    Na perspectiva que apresentamos, tentamos acentuar a no-vela como um mbito possvel de elaborao da imaginao criadoracapaz de interferir de forma incisiva nas dinmicas das experinciasdas pessoas. Vimos que se trata de uma forma de racionalidade bas-tante diferente da racionalidade cientfica, onde impera a pretenso deobjetividade, o rigor lgico, o carter abstrato, a generalizao e oapego ao fato como nica dimenso do real. Exatamente por causadessas caractersticas, manifesta-se limitada para tratar realidades que

  • 36 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    esto alm dessas caractersticas. O ser humano, com sua dimensode interioridade e uma estrutura complexa de elementos como pensa-mento, corpo, desejos, sentimentos, sonho, fantasias, alegria, dor, etc.,no seria devidamente atingido por essa forma de racionalidade. Anovela, portanto, desenharia uma maneira mais adequada para essasdimenses. Atentando-se s caractersticas da sociedade contempo-rnea na qual as pessoas funcionam de forma objetiva e utilitria, anovela pode ser uma crtica segura da utilidade objetiva dos humanos.Por outro lado, enquanto interage com o leitor/espectador, ela podeacionar-lhes a imaginao e ajudar a formular modelos alternativos devida coletiva mais condizente com a realidade da vida humana, queno pode ser reduzida a meros fatos, a simples coisas, a realidadesmensurveis. medida que ela cria empatia, desperta a imaginao,motiva desejos, pode transbordar em reflexes profundas e tomadasde decises capazes de marcar a experincia de vida. Assim, a novelapode ser uma linguagem que fala a totalidade do ser humano, que seconcretiza no mundo como corpo e estrutura complexa. Para isso,requer uma racionalidade que lhe trate de forma flexvel, que d contado sentido geral do humano que ocupa um espao nico.

    medida que a novela toca as pessoas no seu concreto,atingindo sua interioridade onde se elaboram e se diluem os sentimen-tos e as convices das prticas, podemos imaginar a sua importnciapara imaginarmos uma sociedade toda pensada a partir do sentidohumano. Ela poder ter, portanto, uma fora mobilizadora de aes,pensamento, sonhos e desejos, promotores da iluso de que o mundopode ser um lugar para se viver. Um viver a vida no seu acontecermaravilhoso, no seu danar a alegria, no seu festejar a bondade, na suarazo sentinte; cada um inventando e reinventando a melhor maneirade superar as dificuldades, simplesmente para que cada um possa ex-perimentar o seu viver at o limite do seu final.

    A novela, nas consideraes de Nussbaum, figura como umelemento de cunho eminentemente educativo, que pode contribuir sig-nificativamente na educao de inteligncias e vontade, prticas mo-rais, gesto poltica, participativa e solidria, na configurao de umacultura capaz de imaginar a histria como um processo aberto nainfinitude do tempo que guarda os segredos do humano.

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 37

    GORA FILOSFICANotas

    1 Doutor em Filosofia pela PUCRS, professor do Curso de Filosofia da UNICAP.2 THIEBAUT, Carlos. Filosofia y literatura: de la retrica a la potica. Isegoria

    - Revista Filosofa Moral y Poltica. Madrid, n. 11, 1995, p. 82.3 MARIE, Jeanne. As formas literrias da filosofia. [S.l.]: [s.n], 2002, p. 2.

    Mmeo.4

    LIMA, Maria Herrera. El punto de vista moral en la literatura. In: LOPES DELA VIEJA, M. T. Figuras del logos: entre la filosofia y la literatura. Mxico:fundo de Cultura Econmica, 1994. p. 40.

    5 Ibid., p. 42.6 Ibid., p. 43.7 Ibid., p. 45.8 Ibid., p. 46.9 Ibid., p. 46.10 Ibid., p. 47.11 Ibid., p. 48.12 Ibid., p. 49.13 Ibid., p. 49.14 Ibid., p. 50.15 Ibid., p. 50.16 Ibid., p. 50.17 Ibid., p. 51.18 MACINTYRE, Alasdair. Tres versions rivales de la etica. Madrid: Ediciones

    Rialy, 1992, p. 25.19 LIMA, [s.d], p. 51.20 NUSSBAUM, Martha C. La imaginacin literaria en la vida pblica. Isegoria

    - Revista Filosofa Moral y Poltica. Madrid, n. 11, p. 42, 1995.21 Ibid., p. 43.22 PEREDA, Carlos. Sueos de vagabundos: un ensayo sobre filosofia moral y

    literatura.. Madrid: Visor, 1998, p. 27.23 NUSSBAUM, 1995, p. 44.24 Ibid., p. 44.25 Ibid., p. 44.26 Ibid., p. 45.27 Ibid., p. 45.28 Ibid., p. 46.29 Ibid., p. 46.30 Ibid., p. 46.31 Ibid., p. 46.32 Ibid., p. 48.33

    Ibid., p. 53.34

    Ibid., p. 54.

  • 38 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA35

    Ibid., p. 55.36

    Ibid., p. 58.37 Ibid., p. 62.38 Ibid., p. 64.39 Ibid., p. 64.40 Ibid., p. 68.

    Referncias

    BONILLA, Alciras. La transformacin del jogos. Aspaka,Monogrfic: Maria Zambrano, p. 13-29.LIMA, Maria Herrera. El punto de vista moral en la literatura. In:LOPES DE LA VIEJA, M. T. Figuras del logos: entre la filosofia yla literatura. Mxico: fundo de Cultura Econmica, 1994.______. Los recursos de la ficcin y los usos morales de la literatura.Isegoria - Revista Filosofa Moral y Poltica. Madrid, n. 22, 1995.MACINTYRE, Alasdair. Tres versions rivales de la etica. Madrid:Ediciones Rialy, 1992.MARIE, Jeanne. As formas literrias da filosofia. [S.l.]: [s.n],2002. Mmeo.NUSSBAUM, Martha C. La imaginacin literria en la vida pblica.Isegoria - Revista Filosofa Moral y Poltica. Madrid, n. 11, p. 42-80, 1995.PEREDA, Carlos. Sueos de vagabundos: un ensayo sobre filosofiamoral y literatura. Madrid: Visor, 1998.THIEBAUT, Carlos. Filosofia e literatura: de la retrica a la potica.Isegoria - Revista Filosofa Moral y Poltica. Madrid, n. 11, p. 82-107, 1995.TORRE, Maria Tereza de la Vieja. Espectativas de la filosofia moral yliteratura. Isegoria - Revista Filosofa Moral y Poltica. Madrid, n.11, 1995.

    ZAMBRANO, Maria. Filosofia e Poesia. Mxico: Fondo de CulturaEconmica, 1996.

    Endereo para contato:e-mail: [email protected]

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 39

    GORA FILOSFICA

    Aristteles e Maquiavel: dois paradigmas noque diz respeito fundamentao da

    prxis poltica Ttulo em Ingls

    Leno Francisco Danner1

    ResumoO presente artigo pretende refletir, a partir de Aristteles e de Maquiavel, sobrea emergncia de dois paradigmas no que diz respeito fundamentao da prxispoltica: a poltica como problema moral (Aristteles); a poltica como questotcnica (Maquiavel). Pretendo tambm fazer conexes com concepes polti-cas posteriores, especialmente no que diz respeito ao sentido da relao socia-lizao-individuao.Palavras-Chave: Aristteles; Maquiavel; poltica; socializao; individuao.

    Aristotle and Machiavelli: two paradigms concerningthe political praxis foundation

    AbstractThis Article aims at reflecting, from Aristotles and Machiavellis viewpoints,about two paradigms emergence, rouse regarding to political praxis: politics as amoral problem (Aristotle); politics as technical problem (Machiavelli). it aims,also, at establishing connexions, relations with posterior, later politicalconceptions, meanly concerning socialization individuation relation sense.Key word: Aristotle Machiavelli Politics Socialization Individuation

    Introduo

    Como podemos defender a legitimidade de um Estado que realiza,digamos assim, reformas sociais? Por que muitos de ns defen-demos, ainda que talvez no saibamos direito de como possvel, umEstado interventor, realizador de direitos? Num outro sentido, por quepodemos defender a ilegitimidade seja das reformas sociais, seja deum Estado amplo e mesmo de sua (deste Estado) realizao de direi-tos? Enfim, qual o sentido do Estado e/ou da poltica? Essa ltimapergunta, que me parece sintetizar as perguntas que fiz acima, apon-tam para sentidos diversos de compreendermos o binmio sociabili-dade-individualidade, socializao-individuao, e sua organicidade ouno sentidos diversos e divergentes, diga-se de passagem.

  • 40 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    Ento, tematizando Aristteles e Maquiavel, quero explicitarsobre e demonstrar a emergncia de dois paradigmas no que dizrespeito fundamentao da prxis poltica (ou, se quiserem, do Esta-do, da sociedade poltica, etc.). Num segundo momento, quero mos-trar como essa relao sociabilidade-individualidade, socializao-individuao est na base, ainda que mencionada e significada poroutros conceitos, das concepes de outros pensadores modernos econtemporneos no que diz respeito ao Estado e sociedade poltica,e no que diz respeito s funes do Estado e ao sentido da sociedadepoltica.

    1 Socializao e individuao em Aristteles: sobre o sentidoda poltica

    Para Aristteles, a sociedade poltica anterior,ontologicamente falando, em relao ao indivduo, de modo que estej no poderia ser compreendido sem aquela. Ou seja, no podemosfalar do ser humano a no ser enquanto ser social, poltico: Aristtelesafirma que fora da cidade s existem deuses e animais, mas nuncaseres humanos2. Essa afirmao poderia possuir mltiplos sentidos,mas eu quero mencionar, enfatizar apenas um, para o que aqui meinteressa: o de que s podemos falar em individuao na socializao.Impossvel concebermos um ser humano descolado da sociedade hu-mana: o ser humano devm humano na comunidade humana. A indivi-dualidade se constri na sociabilidade. Ento, ns podemos pensarque a estrutura da sociedade, da sociabilidade, determina a estruturada individualidade; por outras palavras, podemos pensar que o modoem que estiverem organizadas a sociedade e as instituies define otipo de sociabilidade que temos (e que teremos) e, consequentemente,o processo de individuao. Guardemos esta idia.

    O que caracteriza o ser humano e a sociedade, segundoAristteles, est em que aquele um ser simblico e aquela, uma co-munidade simblica3. Outros animais vivem em bandos, em comuni-dades, mas o bando humano, a comunidade humana significa essa vidacoletiva e, consequentemente, a subjetividade. O animal est preso noeterno crculo da causalidade e da necessidade nasce, cresce, re-

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 41

    GORA FILOSFICAproduz-se e morre. O ser humano tambm, mas significa esse proces-so e, significando-o, pode exp-lo em sua crueza e fatalidade, ou dour-lo com sentidos metafsicos, religiosos, etc. Ora, na base da significa-o humana est justamente o fato de que significamos em vista defins, nossa vida cotidiana uma vida perpassada de significados com-partilhados e at inventados, mas que so, sim, significados que orien-tam nossa vida social e individual. Ou seja, o ser humano reflete sobreo certo e o errado, sobre o justo e o injusto, perpassando sua compre-enso de si mesmo e do social com termos morais. O ser humano temo sentimento do justo e do injusto, do moral e do imoral no impor-ta como ele os compreenda, e no importa a diversidade de compre-enses em relao a essa questo, o que importa que os seres huma-nos se significam e sociabilidade em termos morais4. O ser humano,portanto, um ser simblico-moral; e a sociedade uma comunidadesimblico-moral. Guardemos essa segunda idia.

    Aristteles afirma que o ser humano no nasce j pronto, notem uma personalidade ou um carter definidos de antemo, nem umanatureza de antemo j dada5. O ser humano devm humano: o serhumano um vir-a-ser, um processo, e um processo que caudatriofundamentalmente da sociabilidade. Como disse acima, o ser humanodevm humano na comunidade humana; o ser humano se humaniza nacomunidade humana. Guardemos esta terceira ideia, de que o ser hu-mano devm humano e que este processo caudatrio das condiessociais em que ele (o ser humano) est inserido.

    Acredito que Aristteles atribui um sentido ontolgico so-ciedade, socializao. Isso absolutamente claro em seus escritos eeu quase que tenho vergonha de repetir. Quase, porque idias geniaissempre merecem bis. Infelizmente, muito se acha que so as idias quemais emburrecem que merecem bis (como ns vemos na mdia) euconto com a sua compreensao de que um tanto fcil percebermosem nosso cotidiano sobre algumas idias geniais e outras, burras. Mas,voltando ao assunto, Aristteles atribui um sentido ontolgico socia-bilidade na exata medida em que a ontognese humana umaontognese social, para ele. Ento, o Estado ou a sociedade polticaaristotlicos ganham sentido na exata medida da importncia das idi-as que lhes convidei, de modo todo especial, a guardar: a ontognese

  • 42 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    humana no algo j dado de antemo, j pronto: no samos diretodo ventre de nossa me para a Agor pblica, no samos j do ventrede nossa me para irmos direto fazer poltica ou para nos tornarmosbandidos. O processo de individuao um processo de socializao,que se d a partir da socializao, que caudatrio dessa socializao,no sentido de que ela contribui fundamentalmente na construo decada individualidade. Em suma, a ontognese humana uma ontognesesocial e Aristteles nos convida a percebermos a estrutura da socieda-de como sendo uma estrutura moral, formativo-educativa.

    por isso que a poltica que Aristteles a rigor entende porsociabilidade ou nsita sociabilidade adquire para este pensadorum sentido todo especial: porque aqui que se d, por assim dizer, aconstruo do ser humano e a instaurao de relaes sociais equitativas:a finalidade da poltica o bem do homem, levar realizao obem dos homens. E o Estado aristotlico uma instncia fundamental-mente formativo-educativa, na exata medida em que sua ao tem porobjetivo construir um ser humano tico e uma sociabilidade equitativa,na exata medida, portanto, em que seu objetivo conduzir o proces-so de formao humana.

    A poltica, para Aristteles, uma cincia, ou melhor, a rai-nha das cincias, a cincia suprema que legisla sobre tudo o mais, eque coordena as outras cincias6. Ela tem esse status justamente por-que, como disse antes, se reconhecermos que a ontognese humana uma ontognese social, se entendermos que o carter moral (ou imo-ral) do indivduo e mesmo relaes sociais ticas ou violentas so re-sultado do modo em que estiver organizada a sociedade, ento, enten-dendo isso, colocamos a poltica como o locus original e basilar apartir do qual a sociabilidade realizada e o indivduo, formado. Oprprio poltico, como o entende Aristteles, deve receber prepara-o para ser poltico: isto , no se pode pensar em um governante queno possua sabedoria poltica, que no conhea, como quer Aristteles,a alma humana7, exatamente porque a realizao da poltica e a con-duo do Estado so atividades srias, atividades que envolvem o maiore mais instigante dos desafios, ou seja, a formao humana. Nessecaso, trata-se de uma tarefa que no cabe a aventureiros ou idiotas.Notem bem: Aristteles o filsofo do cidado cotidiano, no do rei-

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 43

    GORA FILOSFICAfilsofo ao estilo platnico, mas isso no significa que se possa fazerpoltica de qualquer modo, principalmente para quem, como o casode Aristteles, reconhece a centralidade da prpria poltica.

    Percebam, como sntese de tudo o que disse sobre Aristteles,o significado positivo que est imbricado na relao sociabilidade-in-dividualidade, socializao-individuao. Aristteles otimista em re-lao sociabilidade: ela o local de realizao do homem, seu fimltimo, por assim dizer. Na cidade, o homem no apenas vive; ele vivebem8. Uma lio para ns, no? Para Aristteles, vejam isso, a justiapossui um sentido ontolgico, na medida em que est diretamente liga-da sociabilidade: a justia o bem dos outros9. A justia - significadacomo o bem dos outros a maior das virtudes. A justia na soci-abilidade a maior das virtudes. E um ser humano justo perfeito,moralmente falando; possui a virtude plena, diria Aristteles. E umacidade justa, que realiza o bem de todos, tambm perfeita, moral-mente falando.

    Isso tudo me leva a defender que ele inaugura um paradigmano que diz respeito fundamentao da prxis poltica, da sociedadepoltica, do Estado: para esse pensador, a poltica um problemamoral, ou seja, se toda ontognese humana uma ontognese social,se o ser humano devm humano na sociabilidade, ento o Estado ou asociedade poltica podem e devem conduzir esse processo de forma-o e de educao. E o problema bsico da poltica o problemasobre a melhor formao humana e sobre a melhor maneira de se levar realizao uma sociabilidade equitativa.

    2 O realismo poltico de Maquiavel e o sentido da poltica

    Maquiavel escreve sobre o poltico e sobre o modo de esseagir politicamente, no escreve sobre a sociabilidade. Se o polticoaristotlico um poltico orientado pela ideia de que a ontognesehumana uma ontognese social e, portanto, de que o Estado adquireuma funo de formao moral (que no o mesmo que moralizao),que lhe basilar e sem a qual ele no pode ser entendido, o polticomaquiaveliano no tem outra orientao que no seus interesses, umpoltico cujo objetivo a conquista e a manuteno do poder para seu

  • 44 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    CURSO DE FILOSOFIA

    (deste poltico) deleite, ou seja, um poltico cujo deleite seu prprioego elevado categoria de poder soberano. uma idia que me pare-ce interessante (para mim que tambm gosto de ser um voyeur deidias), mas tambm simplista: poderia Maquiavel at no reconhecer,como o faz ao contrrio Aristteles, o carter social, a ligao socialdo indivduo, mas pelo menos poderia ter sido marxista antes de Marx,isto , poderia ter concebido o poder como luta de classes ou comopoder de classe. O fato que o poltico maquiaveliano o polticopara quem o poder a realizao de um seu objetivo egosta: o poderpela vontade de ter o poder. um poltico solipsista, desligado dasociedade ou da classe (e isso incrvel!). Poder-se-ia argumentarque O Prncipe aponta para um Maquiavel nacionalista, desejoso dever sua Itlia livre da Igreja e dos estrangeiros, e unida, unificada. Masno me parece que h uma linha reta entre o realismo polticomaquiaveliano e o nacionalismo maquiaveliano.

    incrvel percebermos, ento, que O Prncipe no reflete apoltica a partir do binmio ou da organicidade entre sociabilidade eindividualidade, socializao e individuao: ns temos o indivduo quequer conquistar o poder, os desafios que se lhe apresentam, os meiosde que ele dispe, mas a virt e a fortuna, ou seja, mais a virtude (nosentido que Maquiavel atribui a esse termo) e a situao do contextoem que ele se encontra. No temos o fundo da sociabilidade, notemos, na verdade, a sociabilidade como fundo, como base. Esta, quan-do muito, aparece em duas acepes: uma, de que os homens tendema ser maus, volveis, precisando constantemente da chibata10; a outra,no sentido de que no sabemos sobre as qualidades dos que nos cer-cam (estamos, na verdade, cercados por muitas pessoas que so ms)e, portanto, temos de nos precavermos de tudo e de todos11.

    Ento o poltico maquiaveliano desconfia de todos, porque ohomem um perigo, e a sociabilidade muito mais. Por isso, o polticovirtuoso aquele que leo e raposa, que sabe se utilizar ou da foraou da astcia, ou de ambas, conforme a necessidade do momento12. um prncipe sempre jogando em todos os lados, para garantir seu po-der. Mais: o prncipe deve aparentar possuir todas as qualidades mo-rais, mas no deve ter nenhuma (exatamente porque ele est cercadode pessoas ms, que podem lhe destruir e a seus intentos de poder, se

  • Ano 9 n. 2 jul./dez. 2009 - 45

    GORA FILOSFICAele for bom; ele deve ser mau porque as pessoas que o cercam soms)13. Nisso consiste a virtude poltica em Maquiavel.

    Maquiavel observa a sociedade (ou as sociedades) e dessaobservao conclui sobre a maldade dos homens, conclui ainda, comoconsequncia, que ingenuidade fundamentarmos a poltica a partir deum ideal. Ater-se verdade efetiva das coisas equivale a dizer que oshomens no so ticos, nem podem vir a s-lo, e que, por conseguinte,o Estado no tem um papel moral, formativo-educativo, nem influi nacorreo do gnero humano (j que pelo menos o