NOVAS BASES PARA A PERSONALIDADE
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Já andava meio indigesta com tanta aura de santidade envolvendo a coisa (a
Anabela mandou uns e-mails quase criptografados dizendo que eu, pra conseguir o belo
apetrecho, deveria “rastrear o objeto” – razão pela qual apelidei Anabela de Belabílis).
Tinha também em mente a forma do negócio: sabia que era meio quadrado com um
buraco no centro e imaginava ser de papelão e equivalente, em tamanho, a uma gaveta.
Quanto ao que fazer com aquilo, nada me passava pela cabeça, nenhuma idéia.
Mas as gavetas têm tamanhos variados... E foi aí que recebi o petrecho –
enorme, pesado como uma pessoa, inconcebível de se abraçar e carregar, uma palavra-
ônibus como a definição de “coisa”: tudo o que existe, ser inanimado, o que não se quer
ou não se pode nomear, empreendimento, evento, matéria, o que não se sabe, algo que
provoque estímulo, algo imprestável, nada, traste, bagulho, propriedade ou órgão
sexual.
Arrastei o enigma pra dentro do atelier de dois por dois, cuja porta, a partir
daí, passou a só se abrir até a metade. O incômodo foi tamanho que, de coisa, meu
hóspede tornou-se coisa-ruim e, a seguir, a título de desafogo meu, coisa nenhuma,
ignorada no mesmo lugar por um mês.
Só que isso não podia
continuar. Afinal de contas, corria à
boca miúda que todo mundo se
deitava no objeto , comia lá dentro,
ateava-lhe fogo, levava-o para o
mar, dançava em cima ou passava-
lhe a genitália generosamente.
Mas tudo o que é
sensorial acaba me escapando aos
sentidos e em vez de me relacionar
com as coisas, eu desemboco em
procurar uma coisa que não está lá. O
máximo que consegui, então, foi
meter os pés dentro do negócio,
fazendo-o de bacia. A pedicure,
Nely, ensaiou também uma
pequena participação, enfeitando a
“bacia” com vidros de esmalte e jarra
de flores. Posamos para fotos e
foi tudo.
Ridículo. Essa tentativa de
“intimidade” com a coisa
foi tão falsa e roscofe
quanto abraçar o chefe da
Seção de Compras e
Alienações do INSS,
elogiando-lhe a atuação na
última reunião e tentando
acreditar que se pode
ser feliz assim.
Com a ajuda de
Isidoro de Sevilha, para
quem nas etimologias
estavam as respostas para
todos os problemas,
chamei essa
primeira experiência de SUBTRAÇÃO (do latim SUBTRACTIONE : SUB =
posição inferior, movimento de baixo para cima; TRACTIONE = tração, ato
de deslocar), ou seja, deslocamento de alguma coisa por baixo de outra,
fraudulentamente.
Meu primeiro ato
de envolvimento com o
material foi, portanto,
uma fraude. Colocando
por aí um pronome, pode-
se dizer também que eu
“me subraí” ao objeto,
fugi dele como de um
vizinho cacete.
Não sou pessoa
de muitas idéias, elas
dificilmente me
acontecem e
preferencialmente sem
forçar (para não diminuir
ou subtrair o que já não
existe). Por isso prezo
tanto o avesso do
pensamento,
o avesso da idéia – porque quando se vira algo pelo avesso pode-se preservar
seu chamado lado direito. E foi aí que virei meu hóspede pelo avesso: de
dentro para fora, da minha casa para a casa de amigos, da falta de sentido do
objeto comigo a um possível sentido dele fora de mim. Ofereci, então, a coisa
à Adriana e – mais tarde – ao Wilson, que com ela passaram um bom tempo.
Agora, enfim, percebia alguma graça em todo o processo e dei nome a essa
segunda etapa da experiência: DIVISÃO (do latim DIVISIONE : DI = separação,
movimento para diversos lados; VISIONE = visão, ponto de vista), ou seja,
agora haveria outras maneiras de compreender a coisa, já que ela se
separava da situação de confinamento e bacia a que eu a reduzira.
Como já disse, lido com idéias e coisas ao inverso, preciso me afastar
delas para que tomem corpo. A caixa vazia de meu antigo hóspede
permanecia em minha casa marcando esse afastamento, definindo uma não-
coisa, já que era a ausência do objeto que passou a estar comigo.
Insolitamente eu me esquecia da coisa para dela me lembrar mais tarde, cada
vez com maior clareza, contornos e dobras, encaixada naquela espuma
amarela ensebada, agora solta na embalagem.
E tão naturalmente quanto iam e vinham essas imagens de um quase-
objeto (que não aboliram de todo o incômodo da coisa, mas tornaram-
na aceitável como uma espécie de miopia), foi se insinuando uma
quase-idéia – que, na verdade, estivera presente praticamente todo o
tempo (meses já) sem ser notada.
Essa quase-idéia é parte de um trabalho que começou,
coincidentemente, na época em que “a coisa” me foi entregue. Prefiro,
aliás, chamá-lo de não-idéia , pois há idéias, tanto quanto coisas, que
só se afirmam por sua negação. Faz parte também desse trabalho o
pedido, a apropriação e o roubo de experiências alheias que
transponho para faixas colocadas na rua.
E foi assim –
incorpóreo,
como puro
pensamento
ou não-
pensamento
, não-idéia –
que o objeto
voltou a
mim,
traduzido na
faixa, à Rua
Carangola
em Belo
Horizonte,
que dizia:
Realizei, então, a terceira, e talvez única, experiência com
a coisa: a CIRCULAÇÃO (do latim CIRCULATIONE : CIRCU = círculo,
circo ou recinto circular onde se realizam espetáculos cujos
artistas formam um conjunto itinerante; ACTIONE = ato de agir,
obra, maneira como um corpo atua sobre o outro, modificação da
realidade). Ou seja: finalmente
o objeto havia atuado sobre mim e eu sobre ele, como resultado
de uma itinerância que, por outro lado, eu também deveria alimentar.
É por isso que envio, agora, parte do meu trabalho para o ponto de origem do
objeto, definindo esse recinto circular onde atuamos. Envio ao criador da
coisa, banheira, geringonça, negócio, objeto, estorvo, não-idéia ou NBP uma
segunda faixa que espero seja também instalada em algum lugar público.
Detalhe: as etimologias acima citadas são tão confiáveis quanto
convenientes; já a palavra coisa, com que me referi reincidentemente ao
objeto, pode também, segundo o dicionário, significar: “aquilo que se
pensa, pensamento, idéia”.
Marta Neves