novelos de silêncio ~ I ~

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Novelos de Silêncio -I Janeiro ~ Abril de 2007 eli miguel

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Novelos de Silêncio -I

Janeiro ~ Abril de 2007

eli miguel

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Pois me dispo de tudo, até de mim,

por isso julgarás que sou, rasgado,

uma modesta imagem virtual.

António Franco Alexandre, Duende

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a voz possante do mar,

um fragor amigo,

um segredo

de espuma

e vento.

Gundula Stleglitz

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Pudesse eu como o luar

Sem consciência encher

A noite e as almas e inundar

A vida de não pertencer!

Fernando Pessoa, Poemas Dispersos

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CARTA DA INFÂNCIA

Amigo Luar:

Estou fechado no quarto escuro

e tenho chorado muito.

Quando choro lá fora

ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das minhas mãos

e brincar com elas ao orvalho nas flores pela manhã.

Mas aqui é tudo por demais escuro

e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.

Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão cedo e te

oiço bater, chamar e bater, na fresta da minha janela.

Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo

vem agora,

no bico dos pés

para que eles te não sintam lá dentro,

brincar comigo aos presos no segredo

quando se abre a porta de ferro e a luz diz:

bons dias, amigo.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

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Não te esqueças de ouvir a luz

Não te esqueças que ao sol pôr Também eu morro

Não te esqueças

Daniel Faria, Poesia

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Nosso negócio é a contemplação da nuvem.

Carlos Drummond de Andrade

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Quero um barco de papel, um espelho de

água, um lago.

Mais nada.

José Agostinho Baptista, Esta Voz é Quase o Vento

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A longa e lenta chuva nas vidraças,

E as noites glaciais e pluviosas!...

Gomes Leal, "Noites de Chuva"

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Desejo foragido sempre,

florestação

nostálgica do limbo,

casa no deserto

E mais: teia observante,

propagação

da canforeira, alta, respirando,

chuva, chuva materna.

António Osório, Décima Aurora

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Da luz –

que em meus degraus me assiste –

bastava, a espaços,

um cone à minha mão.

Sebastião Alba, A Noite Dividida

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Interrompi os versos por laranjas.

E volto sempre a ti mesmo que não.

É estranho que pacíficas laranjas

não me consigam afastar de ti.

Ana Luísa Amaral, Coisas de Partir

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como se tudo fosse um imenso tanto faz

Mário Dionísio, Terceira Idade

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Não sei. Tantas coisas que eu não sei.

Paulo Castilho, Fora de Horas

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Passei toda a manhã à tua espera:

nenhuma hora te trouxe.

Mas, como o inverno traz a primavera,

a tarde iluminou-se.

Albano Martins, Secura Verde

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Estou cansado, é claro,

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada me serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói

E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,

E um pouco sorridente

De o cansaço ser só isto –

Uma vontade de sono no corpo,

Um desejo de não pensar na alma,

E por cima de tudo uma transparência lúcida

Do entendimento retrospectivo...

E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente: eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,

E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Álvaro de Campos, Poemas

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e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes

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A chuva cai. A chuva aumenta.

Cai, benfazeja, a bom cair!

Contenta as árvores! Contenta

As sementes que vão abrir!

Manuel Bandeira, "Enquanto a chuva cai..."

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Menina-flor.

O teu realejo apaixonou-se pela chuva

e parou de tocar.

Para sempre, menina-flor.

Perdeu o verniz, encheu o peito de sal

e ficou.

O teu realejo, um dirigível

a dispersar nuvens.

Para sempre, menina-flor.

Mesmo para lá do inverno.

Mesmo para lá do inverno, menina-flor,

uma recordação de água a voar

em círculos.

O teu realejo calado para sempre.

A tua chuva, o meu poema sem verniz.

Tu, menina-flor, e a chuva:

o meu poema calado em círculos para sempre.

Vasco Gato, A prisão e paixão de Egon Schiele

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O que interessa o tempo

neste caso?

Maria Teresa Horta, Destino

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E enganamos assim o coração,

disfarçando de mitos o que existe.

Luís Filipe de Castro Mendes, Modos de Música

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Yo vi una ave

que suave

sus cantares

a la orilla de los mares

entonó

y voló…

Rubén Darío, Poemas de adolescencia

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Sempre me pareceu que isto de esculpir a pedra era obra de magia.

José Saramago, Deste Mundo e do Outro

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Inda percorro os dias

e as noites sem sono

e o que perpassa é o sonho

Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo

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Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas,

tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso,

toma o maço e o cinzel na mão, [...]

Padre António Vieira, Sermão do Espírito Santono Tempo

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Ilhas

de água,

paisagem efémera

da chuva derramada,

estranhas lágrimas

do Vento.

Gundula Steglitz

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Gosto destas desavergonhadas desde pequeno.

Tive uma que me deu meu avô,

e ele próprio me ensinou a servir-me, quando tivesse fome,

daqueles odres fartos, mornos, onde as mãos se demoravam vagarosas

antes da boca se aproximar, para que o leite não se perdesse,

pelo pescoço, pelo peito até, o que às vezes acontecia, [...].

Eugénio de Andrade, Poesia

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e um voo nasce

na memória

em devir:

são flautas acordando

as árvores

paradas

José Manuel Mendes, Presságios do Sul

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Pelas imagens

entramos em diálogo

com o indizível

Ana Hatherly, O Pavão Negro

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Se a Musa fica calada

Como dizer o silêncio?

Natália Correia, Poesia Completa

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Basta uma flor;

basta uma asa

para saber que a primavera

entrou em nossa casa.

Albano Martins, Vocação do Silêncio

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Calle Principe, 25

Perdemos repentinamente

a profundidade dos campos

os enigmas singulares

a claridade que juramos

conservar

mas levamos anos

a esquecer alguém

que apenas nos olhou

José Tolentino Mendonça, Baldios

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Chamam-lhe

polinização,

apenas beijos

de uma borboleta

de flor em flor.

Gundula Steglitz

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Ai, doce pensamento meu,

quando me levarás onde te envio eu!

Romancero general - Anónimo (séc. XVII)

Tradução de José Bento

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AS MANHÃS

Das manhãs

Apenas levarei a tua voz

Despovoada

Sem promessas

Sem barcos

E sem casas

Não levarei o orvalho das ameias

Não levarei o pulso das ramadas

Da tua voz

Levarei os sítios das mimosas

Apenas os sítios das mimosas

As pedras

As nuvens

O teu canto

Levarei manhãs E madrugadas

Daniel Faria, Poesia

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Demasiado alto para

o sono

e o amor.

Contra a vertigem

sonâmbula

esta barragem de pedra.

António Ramos Rosa, Nos seus olhos de silêncio

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pedi-lhe a história de uma

árvore. disse-me conta a de

todas as árvores da floresta.

quando as vozes se cobrem de

escuro e as distâncias caminham

a par. cautelosamente. para o

lado onde os ecos morrem

de espanto. e um frémito

decompõe sua beleza estática. e

a lua sobe aos cômoros mais

próximos. e a noite afirma não

estarei aqui para sempre. há

lobos, há frio. há solidão na

terra.

Olga Gonçalves, caixa inglesa

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Así como del fondo de la música

brota una nota

que mientras vibra crece y se adelgaza

hasta que en otra música enmudece,

brota del fondo del silencio

otro silencio, aguda torre, espada,

y sube y crece y nos suspende

y mientras sube caen

recuerdos, esperanzas,

las pequeñas mentiras y las grandes,

y queremos gritar y en la garganta

se desvanece el grito:

desembocamos al silencio

en donde los silencios enmudecen.

Octavio Paz, Libertad bajo palabra

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ERROS

Não sei se má fortuna erros decerto

Erros somente? Pode o amor ardente,

Algum tempo omitido, descoberto

Lamber de novo a pele neste presente,

Que de pouco já serve a sua chama

Lugar comum tão pobre e tão verídico

Que sopras e apagas como a cama

Negas ao corpo Foge o tempo mítico

Em que tudo era eterno e só durou

O espaço da manhã do teu sorriso

Como a rosa que tarde já chegou

E pousou devagar no corpo liso

E frio não de morte ou indiferença

Frio só porque tudo tem um tempo

Até as rosas e não há presença

Nem chama do amor que o torne eterno

Gastão Cruz, in Poemas de Gastão Cruz

ditos por Luís Miguel Cintra

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OITAVO POEMA DO PESCADOR

Eu pescador que pesco por um instinto antigo

e procuro não sei se o peixe se o desconhecido

e lanço e recolho a linha e tantas vezes digo

sem o saber o nome proibido.

Eu que de cana em punho escrevo o inesperado

e leio na corrente o poema de Heraclito

ou talvez o segredo irrevelado

que nunca em nenhum livro será escrito.

Eu pescador que tantas vezes faço

a mim mesmo a pergunta de Elsenor

e quais águas que passam sei que passo

sem saber a resposta. Eu pescador.

Ou pecador que junto ao mar me purifico

lançando e recolhendo a linha e olhando alerta

o infinito e o finito e tantas vezes fico

como o último homem na praia deserta.

Eu pescador de cana e de caneta

que busco o peixe o verso o número revelador

e tantas vezes sou o último do planeta

de pé a perguntar. Eu pescador.

Eu pecador que nunca me confesso

senão pescando o que se vê e não se vê

e mais que peixe quero aquele verso

que me responda ao quando ao quem ao quê.

Eu pescador que trago em mim as tábuas

da lua e das marés e o último rumor

de um nome que alguém escreve sobre as águas

e nunca se repete. Eu pescador.

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades

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The sap

Wells like tears, like the

Water stiving

Sylvia Plath, Pela Água

(edição bilingue)

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Braços esquálidos

de árvores nuas,

procurando,

nas nuvens,

sinais da Primavera.

Gundula Stegliz

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Naquela tarde quebrada

contra o meu ouvido atento

eu soube que a missão das folhas

é definir o vento

Ruy Belo, Obra Poética

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y en primavera, amor,

quiero tu risa como

la flor que yo esperaba

Pablo Neruda, Los versos del capitán

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Oh que saudades que eu tenho

Da aurora de minha vida

Das horas

De minha infância

Que os anos não trazem mais

Naquele quintal de terra

Da Rua de Santo Antônio

Debaixo da bananeira

Sem nenhum laranjais

Oswald de Andrade, "Oito anos"

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LEMBRETE

Se procurar bem você acaba encontrando.

Não a explicação (duvidosa) da vida,

Mas a poesia (inexplicável) da vida.

Carlos Drummond de Andrade, Amor poesia

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Resto

rasto sólido

de um rumo,

caminho

que o Tempo,

a seu tempo,

irá destruir.

Gundula Steglitz

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A tua extinção é ainda um fogo.

Vasco Gato, A Prisão e Paixão de Egon Schiele

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rota tu volubilis

Carmina Burana, "O Fortuna"

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Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta. Com a cabeça

levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio.

Sophia de Mello Breyner Andresen, “O Homem”

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Não basta abrir a janela

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

Para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.

Há só cada um de nós, como uma cave.

Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;

E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,

Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

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Que é um caracol?... Um caracol é a gente ser:

por intermédio de amar o escorregadio

e dormir nas pedras... Seria:

um homem depois de atravessado por ventos e rios turvos

pousar na areia para chorar seu vazio

Manoel de Barros

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Pois sei que

- em termos de nossa diária

e permanente acomodação

resignada à irrealidade -

essa clareza de realidade

é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,

porque ela não me serve

para viver os dias.

Ajudai-me a de novo consistir

dos modos possíveis.

Eu consisto,

eu consisto,

amém.

Clarice Lispector, a descoberta do mundo

[poemas que (não) são de Clarice

arranjos em verso de Antônio Damázio]

Estou sentindo uma clareza tão grande

que me anula como pessoa atual e comum:

é uma lucidez vazia, como explicar?

assim como um cálculo matemático perfeito

do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer

vendo claramente o vazio.

E nem entendo aquilo que entendo:

pois estou infinitamente maior que eu mesma,

e não me alcanço.

Além do que:

que faço dessa lucidez?

Sei também que esta minha lucidez

pode-se tornar o inferno humano

- já me aconteceu antes.

A lucidez perigosa

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aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.

Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos.

René Char, A Religião do Girassol

Tradução de Jorge Sousa Braga

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Acordar, ser na manhã de abril

a brancura desta cerejeira;

arder das folhas à raiz,

dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher nos ramos

o vento, a luz ou o que quer que seja;

sentir o tempo, fibra a fibra,

a tecer o coração de uma cereja.

Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos

A uma cerejeira em flor

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Escolho o silêncio assunto antigo para

falar deste domingo: descrevê-los

o silêncio o domingo será como

falar da escuridão e que metáfora

mais certa se as há certas, para a ínfima

luz própria metafórica do dia

A tua voz então vem como nave

a si mesma sulcar-se, na penumbra

tornando-se, não sei se mais igual

ou mais diversa do escuro sentido

do sentido, o tema interrompendo

do poema: o silêncio o domingo

Gastão Cruz, Diversos 9

Metáfora

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Quanto mais longe vou, mais perto fico

De ti, berço infeliz onde nasci.

Tudo o que tenho, o tenho aqui

Plantado.

O coração e os pés, e as horas que vivi,

Ainda não sei se livre ou condenado.

Miguel Torga, "Regresso"

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Plano

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor

que se despeja no copo da vida, até meio, como se

o pudéssemos beber de um trago. No fundo,

como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na

boca. Pergunto onde está a transparência do

vidro, a pureza do líquido inicial, a energia

de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta

são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa

da alma suja de restos, palavras espalhadas

num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira

hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,

esperando que o tempo encha o copo até cima,

para que o possa erguer à luz do teu corpo

e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice, Poesia Reunida

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O olhar é um pensamento.

Herberto Helder, Do Mundo

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Mais longe não sei onde não sei como…

sei só que parti.

Um dia

tombavam monótonos aborrecimentos vagos

sonhei que embarcava numa nau de sonho

e vogava

incerto nas mãos do acaso

procurando a ilha do meu sonho

onde descansar enfim dos mundos já banais…

Sei que parti sei que não voltei…

não fiquei contudo nesse mundo novo

porque era sonho

− e em sonho se esvaiu mal lá cheguei…

Fui sempre além.

Diante dos meus olhos

frente ao meu desejo

era o indefinido o vago o misterioso.

Perdi-me então na bruma

…lá ao longe…

e fiquei preso

nesse vago sem fumo e sem largura.

Mas procurava sempre

algo que faltava à minha vida,

esperava

o que todos esperam… e ignoram.

− Depois, e depois?

− Ah, sei só que parti ainda!...

Adolfo Casais Monteiro, Confusão

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¿Que din as altas copas

de escuro arume harpado

co seu ben acompasado

monótono fungar?

Eduardo Pondal, "Os Pinos"

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Como queiras, Amor, como tu queiras.

Jorge de Sena, Poesia

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E desejar recomeçar. Enquanto agonizam as nossas convicções, a nossa ideologia, a nossa capacidade física. E querer

por força não desistir. Enquanto se esvai o nosso pequeno pecúlio de coisas a dizer, de experiência acumulada, de

interesse em continuar, mas continua-se sempre para a morte não ter razão. E a vida a ter contra ela. Como uma moeda

que se guarda para uma economia que não se sabe. Como se guardava outrora uma brasa sob as cinzas para ser lume

outra vez em calor e iluminação.

Vergílio Ferreira, Pensar

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NEOPTÓLEMO

Não achas vergonhoso dizer mentiras?

ULISSES

Se é a mentira que nos traz a salvação?

NEOPTÓLEMO

Mas com que cara ousarei proferir palavras falsas?

ULISSES

Quando é o proveito que está em causa, não interessam esses pruridos.

Sófocles, Filoctetes

recriação poética de Frederico Lourenço

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A pequena gata fitava cada um dos meus gestos

com atentos olhos tentando entender

absolutamente parada, a cabeça tensa,

as orelhas espetadas como se pudesse ouvir

as palavras que eu escrevia

observando o modo como ela seguia

cada um dos meus gestos.

Os gatos mais velhos não se interessam

por coisas tão fúteis, olham através delas,

os olhos dissolvendo-se em lugares lúcidos

e exteriores onde nem os gatos alcançam.

Manuel António Pina, Os livros

TEORIA DA COMPOSIÇÃO: a pequena gata

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Gárgula.

Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa

que a mantém suspensa.

E a boca demoníaca do prodígio despeja-se

no caos.

Herberto Helder, Ou o Poema Contínuo

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Words irritate. Gestures mislead. Emotions dissolve. Only sounds speak a language that might

be understood. If one opens the heart, would there be someone receptive enough? But who is

listening? Who is able to feel it? Often I do ask myself, where does a heartbeat identical to mine exist? And the

attempt of an answer is out there, on the other end of my own sound.

Gidon Kremer

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E desatam-se das luzes os seus reflexos

a noite desdobra-se em metades imperfeitas.

Sebastião Alba, A Noite Dividida

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L'aventure c'est le trésor

Que l'on découvre à chaque matin

Jacques Brel, "l'Aventure"

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O sorriso

discreto

de rochas nuas,

fragas

doce

a olhar o rio.

Gundula Steglitz

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Novelos de Silêncio-I

Janeiro ~ Abril de 2007

eli miguel